Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1611/17.0T8EVR.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
REQUISITOS
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A declaração de insolvência não se basta com a mera constatação da falta de cumprimento de uma ou mais obrigações pelo devedor, sendo necessário que o incumprimento, pelo seu montante ou circunstâncias, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1611/17.0T8EVR.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
1. (…), residente na Rua (…), nº 37-2º- Esq., em Vila Real de Santo António, requereu a declaração de insolvência de (…), Sociedade de Caça e Turismo Rural, Lda., com sede na Quinta do (…), Estrada Nacional 114, em Évora.

Alegou em resumo que é credora da requerida no montante global de € 1.159.925,90, conforme esta reconhece na secção 0529, nota 29, da informação empresarial simplificada (IES) relativa ao exercício de 2007 e que a contabilidade da Requerida apresenta uma manifesta superioridade do passivo sobre o altivo, recorrente em todos os seus anteriores exercícios, pelo que se encontra preenchida a previsão do disposto no art. 20.º/2, al. h), do CIRE.

A Requerida deduziu oposição argumentando, em resumo, que a nota 29 da IES de 2007 dizia respeito à rúbrica “dívidas a terceiros”, sendo que apenas € 25.175,00 do valor de tal rúbrica correspondiam a um crédito ao requerente entretanto pago por compensação e que a relação entre o seu ativo e passivo, em 2017, é positiva.

Assim, por não reconhecer a existência de qualquer dívida ao Requerente ou a sua situação de insolvência, concluiu pela improcedência da ação.

2. Foi proferido despacho que afirmou a validade e regularidade da instância, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença, em cujo dispositivo designadamente se consignou:
“Face a todo o exposto, julgo totalmente improcedente a presente ação de insolvência intentada por (…) contra a (…), Sociedade de Caça e Turismo Rural, Lda.

3. O Requerente recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:

- «Se certo que a douta sentença recorrida reconheceu ao ora apelante a qualidade de credor, de modo algum podemos concordar com a Mtª Juíza a quo, na valoração das provas em que se baseou para concluir que “o máximo que o requerente conseguiu foi impugnar a data da redação a escrito do contrato celebrado entre a requerida e (…)”.

- Salvo o devido respeito, o referido contrato não pode ser descontextualizado dos factos e fundamentos da oposição das Requerida, nem da prova documental resultante das IES de 2006 (fls. 318 verso a 321), 2007 (fls. 121 a 125) e 2016 (fls. 13 a 27 verso).

- Com efeito, na IES de 2006- Notas 30-campo0530 e 32- campo 0532, pode-se ler: "divida junto do (…)-Aquisição das Herdades em Parceria com o Sr. (…) no montante de € 1.168,425,90" (Fls. 321).

- Na IES de 2007- Nota 29-campos 0529, pode-se ler: existe uma divida a (…), relacionada com a aquisição das herdades (50% a mais de cinco anos).

- Ora, na página 3 da IES em causa o valor indicado em "outros credores" é de € 1.159,925,90, o que corresponde a um decréscimo de € 8,500,00, precisamente o valor pago pela requerida ao requerente pelo cheque nº (…), s/ o (…), que integra os documentos juntos com o nº 13 à oposição.

- A IES de 2016 (Fls. 440 a 470), na página 2, demonstra que o passivo da requerida era superior ao ativo, apresentando capital próprios negativos no valor de -€ 251.256,28, o valor de outras contas a pagar era de € 1.155.376,89, e as dívidas ao Estado no montante de € 35.932,27, sendo os resultados negativos transitados no montante de € 348.706,58.

- O primeiro balancete relativo ao primeiro semestre 2007, junto como doc. 19-A a oposição (fls. 345), em que surge na conta 26, a dívida a (…), no montante de € 1.500.000,00 para justificar a conta outros credores da respetiva IES.

- O Doc. nº 24, junto a oposição foi forjado, porquanto o mesmo nunca poderia ter sido subscrito antes de 2013, data em que ocorreu a junção de freguesias na sequência da chamada Lei Relvas, conforme a caderneta predial de fls. 775, a escritura de compra venda de fls. 817 a 819, e a fotocópia não certificada da descrição e inscrições em vigor relativas ao prédio de Fls., propriedade da requerida, em que a garantia do alegado "empréstimo" consiste na cedência da posição de promitentes compradores do mesmo, por parte da requerida e do seu sócio gerente …

- Acresce que a alegada data de celebração do mesmo – 10 de Abril de 2002 – é precisamente a data anterior ao termo de validade que consta na fotocópia do BI do sócio gerente da requerida.

- Mais revelando conveniente que os outorgantes prescindissem do reconhecimento notarial nos termos da respetiva cláusula X.

- E revelador que o prazo de pagamento do "empréstimo" mediante a prestação de serviços, fosse de 15 anos de modo a terminar em Abril de 2017, que não fossem inscritas nas respetivas contas as amortizações respeitantes aos valores dos serviços prestados durante os alegados 15 anos da sua vigência.

- Factos que não podem ser infirmados pelas declarações de parte do sócio-gerente da requerida, a Fls. 32 e 33 da transcrição das suas declarações 0:23:25:2 a 0:24:51.4. do CD de 26/9/2018, nem pelo depoimento da testemunha (…) a fls. 17 a 24 da transcrição 0:09:56.7 a 0:15:57.6 do CD de 26/9/2018., quando ao ser confrontado com o referido documento nº 4 o contrato, afirmou perentoriamente ser aquele o contrato que assinou.

- Acrescendo que de acordo com o depoimento da testemunha (…), contabilista certificado da requerida, a fls. 28 da Transcrição 0:26:32.7 a 0;28:35.6 do CD de 26/9/2018, quando após referir que "há ... uma compra de gado em nome da (…), fatura/recibo, portanto, em princípio paga, e não havia fundo nenhum por parte da (…). Legitimamente, perguntei a gerência como é que ambas foram pagas"…"foi quando me foi explicado que segundo este contrato com o (…), onde foi registado depois a operação de credito dele."

- Ou seja, o documento de suporte do lançamento na contabilidade foi em 2003 a contrato que nessa data não podia existir, como acima está demonstrado.

- Sem este contrato, não seria possível "limpar" a IES de 2016 e a situação de insolvência da requerida evidenciada na primeira IES de 2016, com o documento de quitação junto com o nº 33 (fls.490) à oposição e transformar o gerente e único sócio em credor de mais de € 1.045.326,45, só até Junho de 2016, a título de "suprimentos".

- O referido contrato e a quitação permitiram "resolver" o reconhecimento da divida e do respetivo montante constante da IES de 2007 e a situação de insolvência, com movimentos contabilísticos da ordem de € 1.500.000,00, apenas com balancetes, sem qualquer movimento de caixa ou documento de suporte dos mesmos.

- Bastando para isso que o sócio gerente da requerida dissesse ao seu contabilista certificado, (…), que era ele que tinha pago a dívida ao (…), a que se referia aquela quitação.

- É o que resulta do depoimento daquela testemunha a fls. 39 a 41 da transcrição 0:40:12.5 a 0:4:09.8. do CD de 26/9/2018.

- A "explicação" dada pela testemunha (…) para a referência a dívida a mais de cinco anos a (…) como sendo a dívida relativa as despesas de escritura que o Requerente teria pago, conf. fls. 3 a 10 da transcrição 0:01:13.1 a 0:10:44.9 do CD de 26/09/2018, não colhe pela simples razão que o alegado crédito do Requerente era de 2003, e a IES respeita ao exercício de 2007.

- O que só faria sentido se a contrato de empréstimo fosse verdadeiro era que fosse referenciada naquela nota da IES de 2007, dívida (…), em face da data do dito "contrato" – 10 de Abril de 2002.

- A dívida a (…) referenciada na nota da IES de 2007, como dívida há mais de cinco anos, só pole significar que estava reconhecida na contabilidade da requerida o crédito do Requerente resultante do contrato celebrado em 7 de Maio de 2002 (fls. 126 a 127 verso).

- A fls. 39 e 40 da transcrição 0:48:41.1 a 0:51:31.7 do CD de 9/1/2019, quando questionado "se nestes balancetes desde 2013 ate 2017, onde este escrito (…) estivesse escrito (…), os resultados globais eram os mesmos ou não, isto alterava os resultados globais destes balancetes?", a testemunha (…) respondeu "Não".

- Nesta conformidade, é possível concluir a luz da experiencia, sendo falso o documento que serviu de suporte ao lançamento do "crédito" de (…) nos balancetes, que estes não correspondem a verdade.

- No nosso modesto entendimento, uma vez que os balancetes não foram acompanhados de quaisquer outros documentos de suporte, a referência na IES de 2007 a divida ao requerente corresponderia a que estava inscrita como sendo a (…), ou seria uma única conta onde constariam o valor do crédito vincendo estabelecido na cláusula 4º do contrato de 7 de Maio de 2002.

- A qual corresponde ao valor de € 1.110.149,10, tendo em consideração a decomposição da referida conta 26, no balancete de 2007, junto pela requerida que deveria ser dado como provado na sentença recorrida.

- Sendo óbvio que o "reconhecimento" das despesas notariais visaram claramente tentar justificar a inclusão da referência ao Requerente na IES de 2007, conjuntamente com o "crédito" de (…).

- Não havendo divida ao Requerente como a Requerida sustentou na sua oposição, coma justificar que os pagamentos ao Requerente fossem incluídos na conta 26 Compra das Herdades com a referencia que se tratava do pagamento de "LUCROS" ?

- Nesta conformidade, a prova documental e testemunhal produzida, o Requerente não só conseguiu demonstrar a falsidade do dito "contrato de Credito Privado, e, consequentemente, ter um credito sobre a Requerida pelo menos, de € 1.110.149,10.

- Considerou ainda Mtª Juiz a quo que, face às novas IES relativas aos exercícios de 2015, 2016 e ao exercício de 2017, juntas aos autos entre as duas audiências e estando em curso o depoimento do seu contabilista certificado, que a Requerida não se encontrava na situação de insolvência.

- Tal entendimento resultou do facto de considerar provado o "empréstimo" e a respetiva quitação de (…).

Desde logo, é de realçar que a juncão de novas IES, indicia que a própria Requerida sabia que a IES de 2016, indiciava claramente uma situação de insolvência, pelo que sentiu necessidade de "refazer" as contas.

- O que se traduziu eliminação na IES de 2017, dos resultados negativos transitados do exercício de 2015 e 2016, respetivamente € 329.000,00 e € 348.706,50, que na IES de 2017 aparecem a 0, mediante o registo contabilístico de suprimentos do único socio e gerente da Requerida no montante de € 303.712,65 em 2015, € 295.295,58 em 2016 € 1.045.324,45 em 2017, sem quaisquer documentos de suporte desses movimentos financeiros,

- Que se destinaram claramente a acomodar as contas à solvência da Requerida.

- Sem o "contrato de empréstimo" e sem a "quitação” “não bate a bota com a perdigota", na medida em que os suprimentos do único sócio da sociedade ficam sem suporte, sendo certo que, como é óbvio, não basta a palavra do próprio sem os respetivos comprovativos financeiros.

- Quer isto dizer, salvo o devido respeito, que a situação de insolvência da Requerida deve ser vista a luz da primeira IES de 2016, na medida em que, tendo ainda em consideração o que acima se refere ao montante do crédito do Requerente, aquela apresenta uma manifesta superioridade do passivo sobre o ativo, situação recorrente de exercícios anteriores.

- Sendo certo que mesmo com as novas IES, a "solvência" da Requerida apenas dos elevados suprimentos do único sócio, cuja prova documental dos respetivos movimentos financeiros não foi junta aos autos, como era seu ónus.

- Se é certo que a superioridade do passivo sobre o ativo prevista no Artº 20º, nº 2, alínea h), do CIRE, de per si, pode não ser suficiente para considerar uma sociedade insolvente, no caso sub judice, a Requerida não apresenta receitas, mesmo tendo em conta os subsídios que, demonstrem que tem condições de satisfazer o crédito do Requerente, mesmo tendo em conta as IES retificadas.

- Pelo que no nosso entendimento deve ser a Requerida ser declarada insolvência.

Termos em que deve o presente recurso ser considerado procedente, reconhecendo-se o crédito do Apelante no montante de € 1.110.1498,10. E decretada a insolvência da Requerida com as legais consequências, assim se fazendo JUSTIÇA!”

Respondeu a Devedora por forma a concluir pela improcedência do recurso.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
Vistas as conclusões da motivação do recurso, importa apreciar (i) a impugnação da decisão de facto, (ii) se a Apelada se encontra em situação de insolvência.

III. Fundamentação
1. Factos
1.1. A decisão recorrida julgou assim os factos:
Provados:
1) A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objeto a produção e comercialização de espécies cinegéticas e agropecuárias, bem como produtos veterinários e alimentares, ligados aos sectores atrás referidos, comercialização de produtos silvícolas, elaboração de projetos cinegéticos, turísticos, agropecuários e silvícolas, prestação de serviços, estudos e apoio técnico a empresas agropecuárias e cinegéticas, organização de caçadas e montarias, repovoamentos cinegéticos e desenvolvimento de ações no âmbito do turismo rural.

2) Mostra-se registado como gerente da sociedade requerida (…).

3) No dia 7 de Maio de 2002, a requerida celebrou com o requerente o contrato corporizado no documento de fls. 126 e ss., cujo teor se dá por integralmente reproduzido, mediante o qual, no essencial:

- reconheceram que ambas as partes tinham interesse na aquisição, em partes iguais, das propriedades referidas em 4) e 5);

- o requerente se comprometeu a patrocinar a aquisição do prédio referido em a), através das verbas que dispõe recebidas da EDIA, como início do pagamento do processo de expropriação da Aldeia da Luz;

- a requerida seria a responsável pelo pagamento integral de todos os tramites legais para o efeito da celebração da escritura de compra e venda referida anteriormente;

- a requerida ficaria com a responsabilidade de efetuar a exploração da propriedade, bem como com todos os encargos dela decorrentes;

- o preço de venda do resto das propriedades era de aproximadamente € 860.000,00 e do efetivo pecuário e respetivas quotas de produção (405, 6 quotas) era de aproximadamente, um milhão de euros;

- o requerente assumiria todas as responsabilidades do empréstimo a contrair junto do Banco (…), bem como pela entrega e liquidação das quantias de pagamento do mesmo;

- a requerida, como contrapartida monetária do descrito supra, comprometia-se a suportar todos os encargos da gestão e exploração do imóvel, bem como do efetivo pecuário, a promover a realização de projetos agropecuários, turísticos, florestais e cinegéticos, bem como a proceder às obras necessárias de recuperação das propriedades, dado o estado depauperado e caótico em que as mesmas se encontram, com vista a valorização do imóvel, legalizar o efetivo pecuário, o qual não possui saneamento atualizado, entregando todos os lucros daquelas atividades ao requerente, para que este procedesse ao pagamento das prestações bancárias, de acordo com o contrato que este viesse a celebrar com o Banco (…).

4) No dia 18 de Junho de 2003, no Cartório Notarial de Barrancos, (…) e esposa (…) declararam vender à requerida (…), Lda. e a (…) e (…), tendo estes, declarado comprar, pelo preço global de duzentos e cinquenta e nove mil, trezentos e setenta e quatro euros e noventa e um cêntimos, que os primeiros, declararam já ter recebido, o prédio misto denominado Herdade do (…) ou dos (…), na freguesia da (…), concelho de (…), descrito na CRP de (…) sob o nº …/90.05.25;

5) No dia 7 de Novembro de 2003, no Cartório Notarial de Sousel, (…) e esposa (…) declararam vender à requerida (...), Lda. e a (...) e (...), tendo estes, declarado comprar, pelo preço global de oitocentos e sessenta mil euros, que os primeiros, declararam já ter recebido, os prédios denominados Herdade das (…), Herdade da (…), Herdade do (…), Herdade dos (…), e cinco deles, denominados (…), sitos nos concelhos de (…) e (…), identificados no documento de fls. 128 e ss. e 134 e ss., cujo teor se dá como integralmente reproduzido;

6) O Município de (...) instaurou no Tribunal de Reguengos de Monsaraz, ação declarativa, com processo ordinário ao qual foi atribuído o nº 177/04.6TBRMZ, contra (…) e mulher (…), (…) e mulher (…), (…), Lda.ª e Banco (…), na sequência da qual, por sentença transitada em julgado, a ação foi considerada procedente, tendo reconhecido que o Município de (…) é titular de direito de preferência na compra e venda, realizada no dia 7 de Novembro de 2003, de imóveis identificados em 4), sitos no concelho de … (Herdade das …, Herdade da …, Herdade do …), determinou a substituição dos réus compradores pelo autor e adjudicou ao mesmo, o direito de propriedade sobre os referidos prédios.

7) Encontra-se depositado à ordem do processo 177/04.6TBRMZ o valor de € 676.400,00, correspondente ao valor da preferência, cabendo 50% do respetivo valor à requerida.

8) No processo referido em 6), o requerente e a requerida contestaram conjuntamente, sendo patrocinados pelo Dr. (…), colega de escritório do mandatário que patrocina o requerente na presente ação.

9) Em 2009 o requerente intentou contra a requerida ação de processo comum, que correu termos na Instância Central Cível e Criminal de Évora, Juiz 1, sob o n.º 298/09.9TBEVR, peticionando:

1 - a resolução do contrato de 7 de Maio de 2002 referido em 3) e a condenação da requerida a restituir os animais do efetivo pecuário adquirido pelo requerente e facultado à requerida para gestão, bem como os animais àquela data existentes;

– Subsidiariamente, peticionou, que fosse declarada a denúncia do contrato referido em 3) e a requerida condenada a restituir ao requerente os animais do efetivo pecuário adquirido pelo requerente e facultado à requerida para gestão, bem como os animais àquela data existentes;

– Subsidiariamente, peticionou, a condenação da requerida no pagamento, ao requerente, de € 1.000.000, acrescido de juros de mora, à taxa legal a contar da citação;

2 – a condenação da requerida no pagamento de quantia não inferior a € 2.000,00 por cada dia de atraso no cumprimento da sua obrigação de entregar os animais do efetivo pecuário referido em 1-);

3 – a declaração da nulidade do empréstimo que o requerente fez à requerida, no valor de € 559.687,45 e, em consequência, a condenação da requerida a restituir ao requerente o montante em causa, acrescido de juros de mora à taxa legal a contar da citação.

10) Os pedidos do requerente no processo 298/09.9TBEVR, referidos em 9), foram julgados totalmente improcedentes, por sentença transitada em julgado.

11) Na prestação de contas da requerida de 2007, na rúbrica “outros credores”, a nota 29, refere: “Existe uma dívida a (…) relacionada com a aquisição das herdades (50%) a mais de 5 anos”.

12) A rúbrica “outros credores” presente na prestação de contas da requerida de 2007 tem inscrito o valor de € 1.159.925,90.

13) Do valor inscrito na rúbrica “outros credores”, referido em 10), € 25.175,00 diziam respeito a um crédito do requerente sobre a requerida.

14) O crédito referido em 13) correspondia ao valor de imposto de selo devido pela segunda escritura pública, de compra e venda das herdades, e constituição de hipoteca sobre elas, em garantia do financiamento prestado ao requerente, que havia sido pago pelo requerente, apesar do recibo ter sido emitido à requerida.

15) A requerida apresentava, no exercício findo em 31/12/16 (conforme doc. de fls. 970, processo em papel, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido):

- um valor total do ativo de € 1.427.144,37

- um valor total do passivo de € 1.489.404,15

- capital próprio de € -62.259,78

- ativos fixos tangíveis no valor de € 254.454,45

16) Do valor do passivo, € 279.289,97 encontravam-se lançados na conta de suprimentos.

17) A requerida apresenta, no exercício findo em 31/12/17 (conforme doc. de fls. 1000, processo em papel, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido):

- um valor total do ativo de € 1.473.241,45

- um valor total do passivo de € 1.436.602,56

- capital próprio de € 290.812,44

- ativos fixos tangíveis no valor de € 238.167,94

18) Do valor do passivo, € 1.293.733,78 encontravam-se lançados na conta de suprimentos.

19) A requerida não possui dívidas vencidas à Segurança Social e à Autoridade Tributária e Aduaneira.

Não provados:

A. Que no exercício de 2016 a requerida apresentasse um passivo superior ao ativo no montante de – € 251.266,88.

B. Que o crédito referido em 13) se encontre extinto.

C. Que na nota 29, inserida na rúbrica “outros credores”, presente na prestação de contas de 2007 da requerida, esta tivesse reconhecido uma dívida a (…), no montante de € 1.159.925,90, relacionada com a aquisição das herdades.

D. Que o valor de € 1.500.000, inserido na rúbrica “outros credores”, no exercício findo em 31/12/2003 apresentado pela requerida, fosse devido ao requerente.

E. O valor a receber, pela ação de preferência referida em 6), será inferior ao valor a deduzir nos ativos da requerida por força de tal ação.

1.2. Impugnação da decisão de facto

O recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as provas que justificam a incorreção e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (artigo 640.º, n.º 1, do CPC).

O Apelante impugna a matéria de facto mas não cumpre estes ónus; a sentença recorrida enumerou os factos que julgou provados (1 a 19) e não provados (A a E) e o Apelante não faz referência a nenhuma destas enumerações, rematando, assim, a sua impugnação: “Nesta conformidade, a prova documental e testemunhal produzida, o Requerente não só conseguiu demonstrar a falsidade do dito contrato de crédito privado, e, consequentemente, ter um crédito sobre a Requerida, pelo menos, de € 1.110.149,10”.

A sentença recorrida não discrimina, nem faz referência, nos factos provados ou não provados, a qualquer contrato de crédito privado e não comportando o juízo de facto impugnado uma tal matéria, não se vê como modificar a decisão de facto quanto a ela, uma vez que também é de excluir – o apelante não o equaciona – qualquer aditamento à matéria de facto; resta, pois, o montante do crédito do apelante, facto controvertido para as partes e que a decisão recorrida julgou em desfavor do apelante.

É este o sentido útil que colhemos da impugnação da decisão de facto e é ele que constituirá objeto de pronúncia, na ausência das apontadas especificações dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados e da decisão que sobre os mesmos deverá incidir; a impugnação tem, assim, por objeto a matéria constante no ponto C dos factos não provados, da qual o Apelante entende que se prova ter um crédito sobre a Requerida, pelo menos, de € 1.110.149,10.

O Apelante pediu a insolvência da Apelada alegando que esta lhe deve a quantia de € 1.159.925,90 e justificou o crédito com documentação da própria Apelada argumentando que esta, na informação empresarial simplificada (IES) relativa ao exercício de 2007, ao contabilizar € 1.159.925,90 na rúbrica “dividas a terceiros – médio e longo prazo – outros credores” e ao mencionar na “secção 0529 – nota 29 – dívidas a terceiros há mais de cinco anos”, “existe uma dívida a Filipe Drago relacionada com a aquisição das herdades (50%) há mais de cinco anos”, reconhece ser devedora do Apelante na referida quantia de € 1.159.925,90.

A decisão recorrida julgou não provada esta matéria e motivou designadamente assim o seu juízo: “Facto C) – A propósito da nota 29 da IES de 2007 provou-se, apenas, aquilo que consta dos factos 11), 12) e 13), atento o que se referiu a propósito da fundamentação da matéria de facto respeitante ao facto 13). Mais se refira que no aditamento à perícia levada a cabo pelos peritos da Autoridade Tributária (fls. 734), os mesmos foram claros na decomposição quantitativa, em sede contabilística, do saldo agregado respeitante à conta “outros credores” (a que a nota 29 dizia respeito), no montante global de € 1.159.925,90, que se decompunha em: - € 25.175,00 (…); - € 1.500.000,00 (…); - € 49.775,90 (…) e € 415.025,00 (…). Conforme análise contabilística levada a cabo pela perícia realizada, não há nada que indique que o montante global de € 1.159.925,90, referente à conta “outros credores”, disse respeito a um crédito do requerente, muito pelo contrário, provou-se que tal crédito seria, na sua grande maioria de outros credores.”

A nota 29 da IES relativa ao ano de 2007 (fls. 123 vº dos autos) – existe uma dívida a (…) relacionada com a aquisição das herdades (50%) há mais de cinco anos” – permite afirmar que, nesta data, a contabilidade da Apelante lhe atribuía a qualidade de credor mas não permite concluir pelo montante do crédito; afirmar que o montante do seu crédito concordava com o montante global inscrito na rúbrica “dívidas a terceiros – médio e longo prazo – outros credores” – € 1.159.925,90 – constitui um saldo lógico que só a decomposição qualitativa deste último permitia estabelecer.

Foi realizada uma perícia à contabilidade da Apelada, levada a efeito por peritos da Autoridade Tributária, na qual se procedeu à “decomposição qualitativa, em sede contabilística e conforme balancetes disponibilizados pelo respetivo contabilista certificado, do saldo agregado (natureza credora – responsabilidades perante terceiros) refletido na conta 26 na referida cifra de 1.159.925,90 Euros”.

Decomposição que teve o resultado que a sentença recorrida consignou, ou seja, da análise contabilística da Apelada, configurada pelo Apelante como o suporte probatória do seu crédito, resulta um crédito a seu favor de € 25.175,00 e não um crédito de € 1.159.925,90, como considerou.

A prova produzida conforma-se com a resposta encontrada para o ponto C dos factos não provados.

Explicado qualitativamente o saldo agregado (natureza credora – responsabilidades perante terceiros) refletido na conta 26 na referida cifra de 1.159.925,90, a impugnação segue agora outro caminho; não é o que consta nos documentos contabilísticos da Apelada, no ano de 2007, que prova o crédito do Apelante – como alegou no requerimento inicial - mas o que de tais documentos devia constar.

Segundo o Apelante, o crédito de (…) que consta (segundo a decomposição qualitativa levada a efeito pela perícia) na contabilidade da Apelada e contribui, em grande parte, para o saldo agregado credor de € 1.159.925,90 inscrito na rúbrica “outros credores” na IES de 2007, resulta de um contrato forjado (fls. 255 e 256 dos autos) e, como tal não devia/podia constar na demonstração de resultados da Apelada e, nesta linha considera que, demonstrada a falsidade deste contrato, demonstrado fica o seu crédito sobre a Apelada.

Independentemente das razões que fundamentam esta sua argumentação – mormente da prova, constante nos autos, que deixa por explicar, se acaso explicação pode existir, a referência no contrato que documenta na contabilidade da Apelada o crédito de (…), datado de 10/4/2002, a um artigo matricial (… da União de Freguesias) que à data não existia e só foi criado em 2013 (cfr. fls. 830) – o certo é que o iter probatório assim proposto pelo Apelante não tem, não pode ter, o resultado que defende.

Ainda que o Apelante lograsse demonstrar, como afirma, que o crédito de (…) é forjado e que, como tal, não concorre para o saldo agregado de € 1.159.925,90 inscrito na rúbrica “outros credores” na IES de 2007 tal não significa, a nosso ver e contrariamente ao que afirma, a demonstração do seu crédito e isto porque não se pode aqui estabelecer, ou considerado estabelecido, um qualquer principio de terceiro excluído, segundo o qual, o crédito inscrito na referida rúbrica ou é do Apelante ou é de (…), como supõe a argumentação do Apelante.

Ao Apelante incumbia demonstrar o seu crédito, tal prova não se mostra feita e ainda que viesse a provar que a demonstração de resultados da Apelada, relativa ao ano de 2007, assenta em documentos contabilísticos que, por falsos, não representam a realidade económico-financeira da sociedade Apelada, não se seguiria – não se vê como, nem o Apelante o explica – a demonstração do seu crédito.

Aliás, na ação que introduziu em juízo em 2009, contra a ora Apelada, o Apelante quantificou o seu crédito, com a mesma origem do ora pretendido (empréstimo para compra de herdades e animais), em € 559.687,45 (ponto 9 dos factos provados) o que ab initio indiciava, no mínimo, a dificuldade de prova do montante do crédito que nos autos alegou.

A prova produzida não impõe, a nosso ver, decisão diversa quanto à matéria impugnada e, como tal, a impugnação da decisão de facto improcede.

2. Se a Apelada se encontra em situação de insolvência

2.1. O Apelante pediu a declaração de insolvência da Apelada com recurso à previsão da alínea h) do nº 2 do artigo 20º do CIRE, segundo o qual a declaração de insolvência das pessoas coletivas pode ser requerida designadamente quando for manifesta a superioridade do passivo sobre o ativo segundo o último balanço aprovado, argumentando que “resulta das IES que a Requerida regista no último balanço uma manifesta superioridade do passivo sobre o ativo, situação recorrente em todos os exercícios anteriores”.

A decisão recorrida declinou a pretensão do Apelante por falta de prova, consignado a propósito com clareza e concisão: “… face aos factos provados, verifica-se que o devedor confortou, na sua escrituração, a capacidade de pagar, desde logo, evidenciando na última prestação de contas apresentada (IES de 2017) um ativo (de € 1.473.241,45) superior ao passivo (de € 1.436.602,56), deitando por terra a presunção em que assentava o pedido de insolvência, por parte do credor requerente.

É certo que tal superioridade do passivo em relação ao ativo parecia não existir, prima facie, à data da propositura da ação, já que a IES de 2016 da requerida apresentava um passivo superior ao ativo e, mesmo a IES de 2016 retificada (que o Tribunal considerou mais próxima da realidade financeira da empresa) apresentava um ativo total no valor de € 1.427.144,37 e um passivo total no valor de € 1.489.404,15. Contudo, não só a diferença entre estes dois valores, não permite extrair a conclusão da manifesta superioridade do passivo em relação ao ativo, atento o conceito por nós adotado e supra exposto (havendo uma diferença, apenas, de € 62.259,78), como o conteúdo do artigo 3.º do CIRE, que contempla as regras que devem presidir à contabilização dos ativos e dos passivos para efeitos de preenchimento da alínea h) do art. 20.º do CIRE, não permitiria chegar a tal conclusão. Isto porque a IES de 2016, apesar de apresentar um passivo superior ao ativo, tem contemplado, nos valores do passivo, € 279.289,97 respeitantes a suprimentos.

Note-se que a avaliação do passivo e do ativo da sociedade, de acordo com o estatuído no art. 3.º/2 do CIRE deve fazer-se em obediência, em primeira linha, às normas contabilísticas que sejam aplicáveis, ainda que, de acordo com o disposto no número 3 do mesmo artigo, haja a possibilidade de se contabilizar ativos e passivos que não constam do balanço (escrituração), conquanto se trate de elementos identificáveis (al. a)), e o passivo a considerar nesta avaliação (de manifesta superioridade em relação ao ativo) deve excluir as obrigações do devedor que, pela sua colocação hierárquica, só podem ser por ele satisfeitas após a satisfação integral dos direitos dos credores (al. c)).

Sendo os suprimentos obrigações do devedor que preenchem o conceito previsto na alínea c) do n.º 3 do art. 3.º do CIRE, não deviam os mesmos ser contabilizados no passivo, para efeitos de aferir da sua manifesta superioridade em relação ao ativo. Assim, mesmo na IES de 2016 retificada, atendendo ao valor contabilizado a título de suprimentos, o passivo a considerar para efeitos de preenchimento da alínea h) do art. 20.º do CIRE seria inferior ao ativo, já que a dedução do valor dos suprimentos (€ 279.289,97) ao passivo, para efeitos da análise da situação de insolvência, levariam a que o passivo fosse de € 1.210.114,18 e o ativo manter-se-ia no valor de € 1.427.144,37.”

Não se vê que mais dizer; a Apelada não apresenta, de facto, um passivo superior ao ativo em nenhum dos exercícios considerados nos factos que se provam; não o apresenta claramente no exercício de 2017 – ponto 17) dos factos provados – porquanto o demonstrado valor do ativo (€ 1.473.321,45) é superior ao valor do passivo (€ 1.436.602,56) e não o apresenta no exercício de 2016 – ponto 15) dos factos provados porquanto o demonstrado valor do ativo (€ 1.427.144,37) é superior ao valor do passivo (€ 1.172.689,92) quando contabilizado sem o valor da conta de suprimentos – ponto 16 dos factos provados – como prevê e impõe o artº 3º, nº 3, al. c), com referência ao artº 48º, al. g), ambos do CIRE.

Os factos que se provam não permitem concluir pela superioridade do passivo sobre o ativo da Apelada, improcedendo o recurso quanto a esta questão.

2.2. Argumenta, por último, o Apelante que a Apelada não tem receitas e que, assim, não demonstra condições para satisfazer o seu crédito.

O devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas é considerado em situação de insolvência (artº 3º, nº 1, do CIRE), incumbindo ao credor que requeira, com este fundamento, a declaração de insolvência demonstrar a “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações” (artº 20º, nº 1, al. b), do CIRE).

A declaração de insolvência não se basta com a mera constatação da falta de cumprimento de uma ou mais obrigações pelo devedor, sendo necessário que o incumprimento, pelo seu montante ou circunstâncias, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.

No caso dos autos o montante do provado crédito do Apelante (€ 25.175,00) não revela a impossibilidade de a Apelada satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações provando-se, como é o caso, que à ordem do processo 177/04.6TBRMZ se encontra depositado o valor de € 676.400,00, 50% do qual cabe à Apelada (ponto 7 dos factos provados).

O Apelado não demonstra que a impossibilidade da Apelante satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, improcedendo o recurso também quanto a esta questão.

Resta, pois, confirmar a bem cuidada sentença recorrida.


3. Custas
Vencido no recurso, incumbe ao Apelante o pagamento das custas (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.
Évora, 26/9/2019
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho