Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
609/22.1T8ELV.E1
Relator: MARIA ISABEL CALHEIROS
Descritores: ACORDO SIMULATÓRIO
VONTADE DOS CONTRAENTES
PROVA INDICIÁRIA
PREÇOS DECLARADOS
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Os factos do foro subjectivo (a intenção na prática de um acto, a determinação da vontade real dos declarantes) por regra não são objecto de prova directa, mas sim indiciária, obtida a partir de comportamentos ou circunstâncias conhecidas, ponderadas à luz das regras de experiência comum, e que permitem chegar, por dedução lógica, à sua demonstração.
II – O convencimento do tribunal pode ser alcançado unicamente com base em elementos indiciários.
III - Um dos indícios mais frequentes e relevantes para a prova indirecta do acordo simulatório é o indício pretium vilis: o preço irrisório ou abaixo dos valores de mercado (que abrange não só o preço em sentido estrito como a toda a contraprestação susceptível de valorar-se em dinheiro).
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo: 609/22.1T8ELV.E1
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SUMÁRIO (da responsabilidade da Relatora)
(…)

I – RELATÓRIO
1.1. (…) intentou a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra (i) (…) – Leiloeiros, Lda., (…) e mulher, (…), (ii) (…) e Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), C.R.L., pedindo que os Réus sejam condenados a:
«a) A reconhecerem que o Autor, nos termos descritos, é legítimo titular do direito legal de preferência, por força do disposto no artigo 1380.º, n.º 1 e 1380.º, n.º 2, alínea a), do C.Civil, artigo 3.º, Anexo II, da Portaria n.º 219/2016, de 09.08, Lei n.º 111/2015, de 27.08 e artigos 26.º e 27.º da Lei n.º 73/2009, de 31.03 (Lei da Reserva Agrícola Nacional), na venda dos dois prédios rústicos inscritos sob os artigos (…) e (…), ambos da Secção (…) da matriz predial rústica da freguesia de (…), do concelho de Campo Maior, descritos na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior, respectivamente, sob os n.ºs (…) e (…), formalizada entre os 1.ºs e 2.ºs Réus, mediante escritura de Compra e Venda, celebrada em 29/04/2022 (doc. n.º 5), perante o Cartório Notarial da Dra. (…), sito na união de freguesias de (…) e (…), concelho de Vila Franca de Xira;
b) A verem adjudicados (“ex tunc”) em propriedade ao Autor os dois prédios rústicos (2), em questão, bem como a verem cancelados os respectivos registos de Aquisição e Hipoteca, constantes da Conservatória do Registo Predial de Campo Maior, ambos, respectivamente a favor dos 2.ºs Réus a) e b), no que concerne aos aludidos prédios rústicos (2), descritos na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior sob as fichas n.ºs (…) e (…), nomeadamente, com cancelamento dos registos lavrados em ambos prédios, mediante as Aps. … (2), de … e … (2), de … e a verem substituído, em ambos registos de aquisição o, aí adquirente, (…), pelo Autor, ora, preferente, bem como a verem canceladas em ambas apresentações a Hipoteca a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), C.R.L.».
Alegou, para o efeito e em síntese, que é proprietário de um prédio rústico, com uma área inferior à unidade de cultura, confinante com os supra referidos prédios rústicos, cuja área também é inferior à unidade de cultura para aquela zona, e que foram objecto de venda judicial para o réu (…), não lhe tendo sido realizada a comunicação dos elementos essenciais do negócio, em violação do disposto nos artigos 1380.º e 416.º a 418.º, ambos do Código Civil.
1.2. O Réu (…) deduziu contestação, na qual invocou, além do mais, ser titular de um direito de preferência prevalecente, previsto no artigo 31.º, n.º 2, do Regime do Arrendamento Rural, decorrente da sua qualidade de arrendatário dos prédios.
1.3. A Ré Caixa de Crédito Agrícola deduziu reconvenção, peticionando, em caso da procedência do pedido do autor, a entrega do preço depositado nos presentes autos.
1.4. A Ré (…) – Leiloeiros, Lda. deduziu contestação, defendendo-se por excepção (ilegitimidade passiva) e impugnação.
1.5. O Autor, em resposta à contestação apresentada pelo Réu (…), invocou a nulidade do negócio com base no disposto no artigo 819.º do C.C. e no instituto da simulação.
1.6. Foi proferido despacho no qual se julgou procedente a excepção de ilegitimidade passiva da Ré (…), Leiloeiros (encarregada da venda por negociação particular), sendo a mesma absolvida da instância.
1.7. Foram elaborados os temas da prova e realizada a audiência de julgamento, no decurso da qual foi ordenada a realização de perícia, e por fim proferida sentença, com o seguinte teor decisório:
«1) Declarar nulo o contrato de arrendamento celebrado entre os réus (…) e (…) em 01-05-2017, referente aos prédios rústicos situados na (…), freguesia de (…), concelho de Campo Maior, inscritos, respectivamente, sob o artigo (…), da secção (…), com a área de 2,2000 hectares, pelo preço de € 19.500,00 e sob o artigo (…), da Secção (…), com a área de 2,0250 hectares, também pelo preço de € 19.500,00 e descritos na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior, respectivamente, sob os n.ºs (…) e (…);
2) Reconhecer ao autor (…) o direito de preferência na aquisição dos prédios rústicos situados na (…), freguesia de (…), concelho de Campo Maior, inscritos, respectivamente, sob o artigo (…), da secção (…), com a área de 2,2000 hectares, pelo preço de € 19.500,00 e sob o artigo (…), da secção (…), com a área de 2,0250 hectares, também pelo preço de € 19.500,00 e descritos na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior, respectivamente, sob os n.ºs (…) e (…), registada por via da ap. (…), de (…).
3) Determinar o cancelamento dos registos prediais do direito de propriedade (ap. …, de …) e de constituição de hipoteca voluntária (ap. …, de …) relativos aos sobreditos imóveis.
4) Determinar a entrega da quantia de € 34.519,31 (trinta e quatro mil e quinhentos e dezanove euros e trinta e um cêntimos), depositada pelo autor nos presentes autos nos termos do artigo 1410.º, n.º 1, do C.C., à ré Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), C.R.L. (o remanescente deverá ser entregue ao réu …).
1.8. Inconformado com a sentença proferida, o Réu (…) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse provido e se revogasse a sentença proferida pelo Tribunal a quo e esta substituída por outra que, para efeitos do reconhecimento do direito de preferência do arrendatário, julgue válido e eficaz o contrato de arrendamento dos autos, celebrado em 01.05.2017, entre o aqui recorrente como inquilino e (…), como senhorio, tendo por objeto os prédios rústicos situados na (…), freguesia de (…), concelho de Campo Maior, inscritos, respetivamente, sob o artigo (…), da secção (…), com a área de 2,2000 hectares, pelo preço de € 19.500,00 e sob o artigo (…), da secção (…), com a área de 2,0250 hectares, também pelo preço de € 19.500,00 e descritos na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior, respetivamente, sob os n.ºs (…) e (…) e que, em consequência, reconheça o direito de preferência do aqui recorrente na compra desses prédios, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 31.º do D.L n.º 294/2009, bem como, a já reconhecida prevalência deste direito de preferência sobre a preferência legal do recorrido (…).
Concluiu as suas alegações da seguinte forma (que se aqui se reproduz):
1ª O douto Tribunal a quo, ao declarar nulo o contrato de arrendamento rural celebrado em 01.05.2017, entre (…) e o aqui recorrente (…), tendo por objeto os prédios rústicos dos autos, à luz dos artigos 819.º e 240.º do Código Civil, fez uma errada interpretação e aplicação da lei.
2ª Relativamente à nulidade desse contrato, à luz do artigo 819.º do Código Civil, concluiu o Tribunal a quo pela inoponibilidade do contrato de arrendamento rural à execução, fundamentando essa decisão com o facto de o mesmo ter sido celebrado em 01.05.2017 e à data já incidia sobre os prédios rústicos dados de arrendamento uma penhora registada no ano de 2014.
3ª Resultou provado nos autos que o contrato de arrendamento rural em causa foi efetivamente celebrado em 01.05.2017 e que, nessa data, os prédios rústicos objeto desse contrato, tinham registada uma penhora efetuada em 20.11.2014, no âmbito do processo executivo n.º 1219/11.4T2STC, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Execução – Juiz 1.
4ª Em 29 de Abril de 2022, mediante a celebração de escritura pública de compra e venda, com mútuo e hipoteca, celebrada perante a Notária (…), os referidos prédios foram vendidos – em venda executiva – ao aqui recorrente (…).
5ª Importava, assim, determinar se aquele contrato de arrendamento estava afetado pela inoponibilidade prevista no artigo 819.º do Código Civil e se essa inoponibilidade prejudica o direito de preferência do recorrente na compra, enquanto arrendatário rural há mais de três anos.
6ª O contrato de arrendamento rural dos autos teve o seu início em 01 de maio de 2017 e veio a terminar na data da aquisição dos prédios rústicos, que constituíam o seu objeto, pelo aqui Autor (…), em 29 de abril de 2022, data em que a qualidade de arrendatário e de proprietário se consolidou na mesma pessoa, originado a sua extinção por confusão, nos termos do artigo 868.º do Código Civil.
7ª À data da outorga da escritura de compra e venda dos prédios rústicos dos autos, o recorrente (…) era arrendatário dos prédios em causa há mais de três anos e, nessa qualidade, titular do direito de preferência na sua aquisição, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 31.º do Regime do Arrendamento Rural, aprovado pelo Decreto Lei n.º 294/2009, de 13 de outubro.
8ª Decorre do disposto no artigo 819.º do CC que, são inoponíveis à execução os atos de disposição, oneração ou arrendamento de bens penhorados.
9ª Mas, o que resulta daquele preceito é que a penhora gera, apenas, a indisponibilidade do bem penhorado relativamente ao processo executivo.
10ª Tal inoponibilidade tem, como única consequência, que o contrato de arrendamento em nada pode obstar ou afetar a finalidade da ação executiva e não a sua invalidade.
11ª Sendo o contrato de arrendamento dos autos válido e tendo o Réu, por via da sua qualidade de arrendatário, o legítimo direito legal de preferência na sua esfera jurídica, não se vê como o exercício legítimo desse direito possa afetar a execução.
12ª Há que distinguir o direito à manutenção do contrato de arrendamento para além da venda executiva/judicial, de outra questão, completamente diferente, relacionada com o direito legal de preferência do arrendatário rural.
13ª Nos termos do disposto n.º 2 do artigo 31.º do Regime do Arrendamento Rural que, o arrendatário agrícola cujo contrato de arrendamento vigore há mais de três anos, goza do direito de preferência na venda ou dação em cumprimento dos prédios rústicos objeto do contrato, estando verificado nos autos este requisito temporal.
14ª Assim, estando em causa o exercício do direito de preferência do aqui recorrente, enquanto arrendatário rural, esse direito, porque pré-existente à venda, sempre implicaria que os prédios dos autos lhe fossem vendidos, pois tal direito de preferência apenas está dependente da verificação do requisito temporal previsto no referido n.º 2 do artigo 31.º do Regime do Arrendamento Rural.
15ª No caso, o contrato de arrendamento de que era titular o Réu iniciou-se em 01 de maio de 2017, portanto há mais de três anos em relação à data da venda dos prédios, que ocorreu em 29 de abril de 2022, mantendo-se em vigor até essa data, pelo que, está preenchido o requisito temporal previsto no aludido n.º 2 do artigo 31.º do Regime do Arrendamento Rural.
16ª Questão diferente é a da caducidade do contrato de arrendamento em caso de concretização da venda a terceiro, atento o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.
17ª Aqui, sendo o contrato de arrendamento posterior à penhora averbada sobre os prédios dos autos, efetivamente, com a venda a terceiro tal contrato caducaria automaticamente, pois a função de garantia da penhora visa assegurar a viabilidade da venda executiva dos bens e direitos sujeitos à penhora.
18ª Com esta indisposição jurídica relativa, pretende-se que a faculdade de disposição do direito penhorado que incide sobre o bem apreendido, e que o executado mantém na sua esfera jurídica, não possa ser exercida de modo a privar a venda do seu objeto.
19ª Por conseguinte, se, após a penhora, o executado dispuser, onerar, ou der de arrendamento, o bem penhorado, o negócio jurídico é meramente inoponível no âmbito da execução, mantendo, porém, a sua validade e eficácia extra execução.
20ª Não podendo ser oposto na execução, ao menos se e na medida em que contenda com direitos e interesses de partes ou intervenientes no processo.
21ª De tal forma que, se a penhora se extinguir por venda, adjudicação ou remição, o ato de oneração ou alienação ou arrendamento caducará por impossibilidade superveniente, pelo que, a validade do contrato de arrendamento e os direitos dai decorrentes, mormente, o de preferência, apenas cessam com a venda executiva do bem penhorado a terceiro, o que não aconteceu no caso dos autos.
22ª Já que o recorrido (…) nunca foi parte ou interveniente na execução em que ocorreu a venda dos prédios dos autos, mantendo-se, portanto, válido o contrato de arrendamento até à venda e extinguindo-se nesse ato por confusão.
23ª O princípio de indisponibilidade material absoluta dos bens penhorados, aplicável nas situações de contrato de arrendamento celebrado em data posterior ao da penhora do imóvel objeto do mesmo, que conduz à inoponibilidade daquele contrato em relação à execução, nos termos do artigo 819.º do Código Civil, não pode prevalecer quanto à disposição jurídica, atendendo à livre disponibilidade do direito, para efeitos de ser reconhecida a validade e eficácia da relação locatícia, mormente no que concerne à atribuição ao arrendatário rural do direito de preferência previsto no artigo 31.º, n.º 2, do D.L. n.º 294/2009 para o caso de compra e venda do prédio arrendado há mais de três anos.
24ª Por isso, o reconhecimento da validade e eficácia do contrato de arrendamento para efeitos de eventual exercício do direito de preferência legal, em nada afeta ou colide com os direitos ou interesses legalmente protegidos no âmbito da execução em relação ao exequente e demais intervenientes na execução, ou seja.
25ª A inoponibilidade do arrendamento celebrado em data posterior à da penhora, prevista no artigo 819.º do Código Civil, verifica-se apenas em relação à execução, ou seja, ao exequente, ou a qualquer outro interveniente na execução, não em relação a terceiro que invoca apenas um direito legal de preferência na aquisição dos imóveis penhorados, como é o caso do recorrido (…).
26ª Daqui outra conclusão não se pode extrair que não seja a validade do contrato de arrendamento dos autos, sendo este válido e eficaz na ordem jurídica, sem prejuízo de não poder ser oposto à exequente ou aos demais intervenientes processuais para efeitos de inviabilizar a venda judicial dos bens.
27ª Mas, sempre será oponível ao recorrido (…) para efeito de graduação dos respetivos direitos de preferência na aquisição dos prédios, já que, este não foi ali exequente ou interveniente processual, arrogando-se, apenas, de um direito de preferência legal, enquanto proprietário confinante.
28ª O artigo 819.º do Código Civil não impede a celebração de contrato de arrendamento sobre bem já penhorado, nem retira ao arrendatário o seu direito legal de preferência sobre terceiro estranho à execução, não podendo, apenas, oposto na execução se e na medida em que contenda com direitos e interesses de partes ou intervenientes no processo executivo.
29ª É isto, na nossa modesta opinião, que diz o artigo 819.º, Código Civil e não a interpretação e âmbito de aplicação que lhe foi dado pelo Mm.º Juiz a quo na sentença sob recurso.
30ª Ao ter decidido em contrário, não reconhecendo a existência e validade, para efeitos dos presentes autos, do contrato de arrendamento por prazo certo celebrado entre a (…), na qualidade de proprietário /senhorio e o recorrente (…), designadamente para efeitos de reconhecimento e oponibilidade do direito de preferência do arrendatário rural na compra de prédio arrendado há mais de três anos, a decisão recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do artigo 819.º do Código Civil e violou manifestamente as regras sobre a livre constituição de relação locatícia e a livre disposição jurídica dos bens, consagradas nos artigos 1022.º e 1305.º do Código Civil;
31ª Regras estas, que não se confundem com a inoponibilidade à execução de certos atos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados, prevista no artigo 819.º do mesmo Código.
32ª O tribunal a quo veio ainda a declarar a nulidade do contrato de arrendamento rural celebrado em 01 de Maio de 2017, entre o recorrido (…), na qualidade de senhorio, e o recorrente (…), na qualidade de arrendatário, à luz do regime da simulação previsto nos artigos 240.º a 243.º do Código Civil.
33ª O aqui recorrente não se conforma com esta decisão, em face da insuficiência da prova para o preenchimento dos requisitos da simulação, previstos no artigo 240.º do Código Civil.
34ª A sentença ora recorrida conclui pela verificação dos acima mencionados pressupostos da simulação, apenas com base na divergência entre o preço da renda acordado pelas partes aquando da celebração do contrato de arrendamento dos autos e o valor que foi atribuído na avaliação dos prédios abrangidos por aquele contrato.
35º Salvo o devido respeito, que aqui é muito, a simples diferença do valor da renda acordada e o que foi atribuído pelo sr. Perito Avaliador, não permite, por si só, desacompanhada de outros elementos de prova, concluir pela verificação dos pressupostos da simulação de negócios jurídicos.
36º Já que, a decisão alicerçada apenas na diferença do valor da renda anual contratualmente estipulada, contraria o princípio da autonomia privada, ao abrigo da qual as partes contraentes são livres para definir os termos dos seus contratos (possibilidade de celebrar ou não celebrar determinado contrato (liberdade de celebração), quer a possibilidade de fixação do conteúdo do contrato (liberdade de estipulação).
37ª A liberdade contratual, prevista no artigo 405.º do Código Civil, uma manifestação dessa autonomia, permitindo a escolha de celebrar ou não um contrato, com quem celebrá-lo e o seu conteúdo.
38ª Assim, a mera divergência entre o valor da renda acordada entre as partes e o valor locatício calculado em termos médios para os mesmos prédios à data da celebração do contrato é, salvo melhor opinião, manifestamente insuficiente, por si só e sem mais prova, para dele se extrair a verificação dos pressupostos da simulação, previstos no artigo 240.º.
39ª No caso dos autos, para se concluir, como se concluiu na douta sentença, que houve um acordo entre as partes contratantes, com o intuito de enganar terceiros e a inexistência da vontade de dar e receber de arrendamento (divergência entre a vontade real e a vontade declarada), sempre exigiria melhor prova, para além do preço da renda acordado pelas partes ao abrigo da liberdade contratual e autonomia privada.
40ª Assim, ao julgar verificados os pressupostos da simulação e julgar nulo o contrato de arrendamento rural celebrado em 01.05.2017, entre (…) e o aqui recorrente (…), tendo por objeto os prédios rústicos dos autos, apenas com base no valor da renda acordada, o tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova e errada aplicação do artigo 240.º do Código Civil».
1.9. O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
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Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II –OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser as de conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
Tendo, então, em atenção as conclusões do Recorrente são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:
1.ª: Impugnação da decisão de facto quanto aos factos provados sob os n.º 19 e 20;
2.ª: Impugnação da apreciação jurídica quanto à verificação da nulidade à luz do regime da simulação previsto no artigo 240.º e ss. do CC e quanto à aplicação e interpretação da inoponibilidade prevista no artigo 819.º do Código Civil.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O Tribunal de 1.ª Instância, com interesse para a decisão da causa, deu como provados os seguintes factos:
1. Por via da Ap. (…), de (…), encontra-se registado a favor do autor, a aquisição do direito de propriedade do prédio rústico, por sucessão hereditária, situado em “(…)”, freguesia de (…), do concelho de Campo Maior, descrito na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior sob o n.º (…) e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…), da Secção (…), encontrando-se averbada na aludida descrição predial e matriz a área total de 5,125 hectares.
2. O supra referido imóvel encontra-se situado em espaço agrícola de regadio abrangida pelo perímetro de Rega do Caia, em zona de Reserva Agrícola Nacional.
3. Em 29 de Abril de 2022, mediante a celebração de escritura pública de compra e venda, com mútuo e hipoteca, celebrada perante a Notária (…), a sociedade comercial «(…) – Leiloeiros, Lda., na qualidade de encarregada de venda nomeada nos processo executivo n.º 1219/11.4T2STC, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Execução-Juiz 1, movida contra os réus (…) e (…), declarou vender ao réu (…), que por sua vez, declarou aceitar a venda, os prédios rústicos situados na (…), freguesia de (…), concelho de Campo Maior, inscritos, respectivamente, sob o artigo (…), da secção (…), com a área de 2,2000 hectares, pelo preço de € 19.500,00 e sob o artigo (…), da secção (…), com a área de 2,0250 hectares, também pelo preço de € 19.500,00 € e descritos na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior, respectivamente, sob os n.ºs (…) e (…), em conjunto e como lote único, objecto de penhora a 20-11-2014, no âmbito no supra mencionado processo executivo.
4. Os supra referidos imóveis encontram-se situados em espaço agrícola de regadio abrangida pelo perímetro de Rega do Caia, em zona de Reserva Agrícola Nacional.
5. O prédio rústico objecto de Compra e Venda (doc. n.º 5) inscrito sob o artigo (…), da secção (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior sob o n.º (…), confina e é contíguo, pelo poente, com a parte nascente do prédio rústico identificado em 1), encostando ambos entre si, em toda a extensão do prédio identificado em 3) (artigo …), pela parte poente do primeiro com a parte nascente do segundo.
6. Os réus (…) e (…), nem prévia nem posteriormente à celebração da escritura identificada em 3), procederam à comunicação ao autor da decisão de vender os prédios em causa.
7. O autor apenas tomou conhecimento da realização da celebração da escritura identificada em 3) no decurso do mês de Setembro do ano de 2022, ao obter junto dos serviços competentes cópias de diversos documentos relacionados com aquele negócio.
8. No âmbito da celebração da escritura pública mencionada em 3), o réu (…) liquidou a título de imposto municipal de transmissões onerosas a quantia de € 1.950,00, de imposto de selo o valor de € 312,00 e de despesas com a realização da escritura pública, o montante de € 1.035,42.
9. Por via da escritura pública identificada em 3), a ré Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), C.R.L. declarou conceder ao réu (…) um empréstimo no montante de € 31.200,00.
10. Também por via aludida escritura pública, o réu (…) declarou constituir, a favor da ré Caixa de Crédito Agrícola, hipoteca sobre os imóveis objecto daquela.
11. Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior, a favor do 2º réu …, a aquisição do direito de propriedade, por compra através de negociação particular em processo de execução, do imóvel descrito sob o n.º …, por via da Ap. …, de ….
12. Relativamente ao imóvel descrito no ponto anterior, encontra-se registada, a favor da ré Caixa de Crédito Agrícola, a constituição de hipoteca voluntária com o montante máximo assegurado de € 46.488,00, por via da Ap. (…), de (…).
13. Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Campo Maior, a favor do 2º réu …, a aquisição do direito de propriedade, por compra através de negociação particular em processo de execução, do imóvel descrito sob o n.º …, por via da Ap. …, de ….
14. Relativamente ao imóvel descrito no ponto anterior, encontra-se registada, a favor da ré Caixa de Crédito Agrícola, a constituição de hipoteca voluntária com o montante máximo assegurado de € 46.488,00, por via da Ap. (…), de (…).
15. No âmbito do financiamento mencionado em 9), permanecem por liquidar as quantias de 30.819,31€, a título de capital, 10,00€, respeitante a juros e 3.000,00€ relacionados com despesas a que acrescem 690,00€ (IVA).
16. Em 01-05-2017, o réu (…), na qualidade de proprietário / senhorio e 1º outorgante, e o réu (…), na qualidade de arrendatário e 2º outorgante, subscreveram o acordo escrito, denominado «Contrato de Arrendamento Rural».
17. Do referido acordo constam as cláusulas 1ª, 2ª, 3ª e 4ª que apresentam a seguinte redacção:
«Primeira
O Primeiro Outorgante dá de arrendamento ao Segundo, duas parcelas de terreno com a área total de 4,2250 hectares, as quais fazem parte integrante dos prédios rústicos, sitos na freguesia de (…), concelho de Campo Maior, ambos inscritos na matriz sob os artigos n.ºs (…) e (…), secção (…), respectivamente, com as áreas de 2,0250 ha e 2,2000 ha, melhor identificados na planta anexa a este contrato, que vai por eles rubricada.
Segunda
O prazo inicial do arrendamento é de 30 anos, com renovações automáticas acordadas pelas partes no presente contrato, por iguais e sucessivos períodos de 30 anos, enquanto não for denunciado por qualquer uma das partes, com a antecedência mínima de 18 meses do termo da renovação.
Terceira
A renda anual e no montante de € 100,00 (cem euros), sendo sempre paga em dinheiro na residência do senhorio, até ao dia 30 de abril do ano seguinte, isto é, no final da vigência de cada ano contratual.
Quarta
Este contrato tem início na data de 1 de maio de 2017.»
18. Tendo em conta as características dos prédios em causa e da zona geográfica em que se inserem, o valor de mercado da renda a atribuir aos dois prédios com início em 2017 é de € 2.080,56 (total).
19. Aquando da subscrição do acordo escrito mencionado em 17), o réu (…) não tinha intenção de dar de arrendamento os imóveis em causa, e o réu (…) não tinha intenção de arrendar os sobreditos prévios.
20. Os réus (…) e (…) acordaram entre si emitir as declarações vertidas no acordo escrito mencionado em 17) com o intuito de enganar terceiros e condicionar o pagamento coercivo do crédito na acção executiva acima mencionada.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1.ª Questão: Impugnação da Decisão de Facto
O Recorrente veio impugnar a sentença recorrida com base, além do mais, no que sustenta nas conclusões 32ª a 40ª, referindo, designadamente, que:
«33ª O aqui recorrente não se conforma com esta decisão [declaração de nulidade do contrato de arrendamento], em face da insuficiência da prova para o preenchimento dos requisitos da simulação, previstos no artigo 240.º do Código Civil.
34ª A sentença ora recorrida conclui pela verificação dos acima mencionados pressupostos da simulação, apenas com base na divergência entre o preço da renda acordado pelas partes aquando da celebração do contrato de arrendamento dos autos e o valor que foi atribuído na avaliação dos prédios abrangidos por aquele contrato.
35º Salvo o devido respeito, que aqui é muito, a simples diferença do valor da renda acordada e o que foi atribuído pelo sr. Perito Avaliador, não permite por si só desacompanhada de outros elementos de prova, concluir pela verificação dos pressupostos da simulação de negócios jurídicos.
(…)
38ª Assim, a mera divergência entre o valor da renda acordada entre as partes e o valor locatício calculado em termos médios para os mesmos prédios à data da celebração do contrato é, salvo melhor opinião, manifestamente insuficiente, por si só e sem mais prova, para dele se extrair a verificação dos pressupostos da simulação, previstos no artigo 240.º.
39ª No caso dos autos, para se concluir, como se concluiu na douta sentença, que houve um acordo entre as partes contratantes, com o intuito de enganar terceiros e a inexistência da vontade de dar e receber de arrendamento (divergência entre a vontade real e a vontade declarada), sempre exigiria melhor prova, para além do preço da renda acordado pelas partes ao abrigo da liberdade contratual e autonomia privada».
Os fundamentos invocados nas acima transcritas conclusões traduzem uma impugnação da matéria de facto, quanto aos factos referidos na conclusão 39ª, e que se reportam aos factos provados sob os n.º 19 e 20.
Por isso, deve o sustentado nas referidas conclusões, e a impugnação nelas contida, ser apreciada em primeiro lugar, já que visam a decisão sobre a matéria de facto, cuja fixação definitiva precede, logicamente, a aplicação do direito.
A propósito do ónus de impugnação da matéria de facto, dispõe o artigo 640.º, n.º 1, do NCPC que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição» «a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
Estas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», por forma a «impedi[ir] que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, pág. 129).
Pese embora as conclusões do Recorrente quanto à errada apreciação da prova se mostre contida na impugnação da aplicação do direito no que respeita ao regime da simulação e concretizada de forma pouco explícita, o cumprimento dos ónus previstos no citado artigo 640.º, como refere o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 12/2023, de 14 de Novembro, ainda que deva ser «necessariamente avaliado de modo rigoroso», não pode «deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada».
Deste modo, é possível perceber que o Recorrente:
. entende que existiu errada apreciação da prova no que toca à «existência de acordo entre as partes contratantes, com o intuito de enganar terceiros» e quanto à «inexistência da vontade de dar e receber de arrendamento (divergência entre a vontade real e a vontade declarada)»;
. fundamenta a discordância na circunstância da «mera divergência entre o valor da renda acordada entre as partes e o valor locatício calculado em termos médios para os mesmos prédios à data da celebração do contrato» ser «manifestamente insuficiente, por si só e sem mais prova, para dele se extrair a verificação» daqueles factos.
Não se suscitam dúvidas de que a «simulação, desde que não [seja] invocada pelos próprios simuladores entre si, pode provar-se por qualquer meio de prova admissível em direito e, portanto, por prova testemunhal ou por meras presunções judiciais (artigo 394.º, n.ºs 2 e 3, do CC)». Não está, por isso, submetida a prova vinculada, «mas à regra geral da livre apreciação das provas pelo tribunal» (ac. do STJ proferido no Proc. n.º 122/1998.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, os factos em causa reportam-se a matéria do foro subjectivo (a intenção na prática de um acto, a determinação da vontade real dos declarantes) cujo conhecimento pode ser obtido directamente, mas que por regra não são objecto de prova directa, mas sim indiciária, obtida a partir de comportamentos ou circunstâncias conhecidas, ponderadas à luz das regras de experiência comum, e que permitem chegar, por dedução lógica, à demonstração dos factos desconhecidos.
Como melhor sintetiza o Ac. do TRL de 25.03.2003 (rel. Abrantes Geraldes; disponível em www.dgsi), «a prova de factos do foro interno, … (tal como ocorre com a simulação contratual condicionada pela prova do acordo simulatório e da intenção de prejudicar terceiros), constitui uma das mais espinhosas tarefas a cargo da parte sobre quem recai o ónus probatório».
Na verdade, «a natureza subjectiva dos factos constitui um factor que indubitavelmente complica essa tarefa mas que, apesar disso, não deve servir para negar tutela a direitos cujo exercício dependa da prova desses factos. Por isso, desde que na motivação da decisão se justifiquem os fundamentos concretos da convicção, o juiz deve usar um critério tanto menos rigoroso quanto maior for a dificuldade de reunir os elementos de prova adequados. (…)
Referia Manuel de Andrade, reportando-se às dificuldades de prova dos pressupostos normativos da simulação contratual, que não é natural a existência de uma contra-declaração assinada pelas partes em que fixem a verdadeira intenção subjacente às declarações negociais, justificando-se, assim, a formação da convicção com base na apreciação de factos circunstanciais à luz das regras da experiência comum. (…)
Ganham, assim, especial relevo as presunções definidas pelo artigo 349.º do CC como “ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”, e que incluem ainda as presunções judiciais ou “ad hominem”.
Condicionadas a uma utilização prudente e sensata, isenta de excessivo voluntarismo, as presunções judiciais constituem um instrumento precioso a empregar, quando necessário e quando tal for legalmente admitido (artigo 351.º do CC), na formação da convicção que antecede a resposta à matéria de facto, o que se torna premente quando se trata de proferir decisão que, como ocorre relativamente à impugnação pauliana, se tornam dificilmente atingíveis através de meios de prova directa.
Conquanto nem sempre resulte explícita a sua intervenção na formação da convicção jurisdicional, constituem um importante mecanismo que pode levar o Tribunal a afirmar a verificação de certo facto controvertido, suprindo as lacunas de conhecimento ou de informação que não possam ser preenchidas por outros meios de prova; podem servir ainda para valorar os meios de prova produzidos» (fim de citação).
Veja-se, ainda, a este propósito o Ac. do TRG de 02.02.2017, proferido no Proc. n.º 6420/14.6T8VNF-A.G1 (disponível em www.dgsi.pt), no qual se ponderou que “a prova directa dessas intenções é rara (v.g. confissão) pelo que quase sempre terá que ser feita por meio de indícios/presunções. Verifica-se o mesmo tipo de dificuldade na prova de outros factos do foro interno designadamente no requisito da má fé na impugnação pauliana (artigo 612.º)».
Assim, quer «na simulação quer na impugnação pauliana, impõe-se a indagação de condutas humanas em que a motivação tem um papel essencial como elemento propulsor. O simulador actua de forma planeada com o intuito de se esquivar a um determinado efeito jurídico ou adverso aos seus propósitos. O motivo ou interesse que determinam a actuação do simulador constitui a causa simulandi, a qual corresponde assim ao interesse que leva as partes a celebrar um contrato simulado ou o motivo que as induz a dar aparência a um negócio jurídico que não existe ou a apresentá-lo de forma diversa da que genuinamente lhe corresponde». Contudo, para «que se conclua pela existência da simulação não é obrigatório que se prove uma causa simulandi. A causa simulandi constitui um indício tipicamente axial no sentido de que a presença da mesma, só por si, não permite construir definitivamente a presunção mas constitui um catalisador heurístico que pode resultar da prova de outros indícios da síndrome simulatória. Ou seja, perante o apuramento de uma concreta causa simulandi, ficará facilitada a prova da simulação porquanto a causa simulandi operará como fio condutor na averiguação e interpretação dos demais factos sob julgamento».
Em suma, porque raramente se logra a prova directa das intenções das partes na celebração de um negócio aparente (seja por confissão, seja por testemunhas que tenham assistido ao acordo dos simuladores), essa prova é comummente feita por via indirecta, por meio de indícios ou presunções, através de ilações que o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido (entre outros, são habitualmente identificados como relevantes indícios que permitem apurar a existência da simulação o indício affectio, o indício pretium villis, o indício locus, o indício sigillum, o indício necessitas, o indício pre-constitutiopara mais detalhe veja-se a síntese dos indícios ou factos base de presunções judiciais que permitem prova indirecta dos requisitos da simulação em Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2012, Almedina, págs. 224-235, na qual se referem os acima citados, entre outros).
Um dos indícios mais frequentes e relevantes para a prova indirecta do acordo simulatório é o indício pretium vilis: o preço irrisório ou abaixo dos valores de mercado do negócio (que abrange não só o preço em sentido estrito como a toda a contraprestação susceptível de valorar-se em dinheiro).
E «“o convencimento do tribunal pode ser logrado apenas e unicamente com base em elementos indiciários, mesmo quando também promanem da parte a quem aproveitam, os quais são também entre nós, apreciados livremente pelo tribunal. (…) O que é necessário assegurar é que o quantum do resultado probatório atinja o limiar suficiente para a formação racional e justificada da convicção do julgador.
Deste modo, há – desde logo – que abandonar uma postura secundarizadora da prova por presunção, sendo que em múltiplas situações ela assume um protagonismo decisivo» (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, Almedina, 2014, págs. 361-362).
Vertendo agora ao caso dos autos, das conclusões apresentadas resulta, como vimos, que o recorrente discorda do juízo feito pelo Tribunal a quo quando deu como provados os factos n.º 19 e 20, sustentando que a «mera divergência entre o valor da renda acordada entre as partes e o valor locatício calculado em termos médios para os mesmos prédios à data da celebração do contrato» é «manifestamente insuficiente, por si só e sem mais prova, para dele se extrair a verificação» desses factos.
Os factos provados sob os n.º 19 e 20 são os seguintes:
«19. Aquando da subscrição do acordo escrito mencionado em 17), o réu (…) não tinha intenção de dar de arrendamento os imóveis em causa, e o réu (…) não tinha intenção de arrendar os sobreditos prévios.
20. Os réus (…) e (…) acordaram entre si emitir as declarações vertidas no acordo escrito mencionado em 17) com o intuito de enganar terceiros e condicionar o pagamento coercivo do crédito na acção executiva acima mencionada».
E o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à prova desses factos nos seguintes termos:
«Quanto aos factos contidos nos pontos 19) e 20) o Tribunal assentou a sua convicção na conjugação do valor da renda anual acordada entre os réus – € 100,00, cfr. ponto 17), o respectivo valor de mercado – € 2.080,56, vide ponto 18) – com as regras da experiência comum.
Na verdade, face à discrepância dos valores em causa (o valor de mercado afigura-se vinte vezes superior à renda acordada), infere-se inequivocamente que não existiu qualquer racional económico / lucrativo na realização do negócio em crise.
Note-se que a renda estipulada entre as partes conferiria um rendimento mensal ao réu (…) de € 8,33, o que, segundo um prisma de rentabilidade, se perspectiva como irrisório.
Destarte, conclui o Tribunal que a celebração do negócio em causa só poderá ter tido a intenção de condicionar a marcha do respectivo processo executivo, onerando ficticiamente aqueles imóveis e gerando consequências jurídicas, designadamente no que concerne ao regime do direito de preferência por força do contrato de arrendamento em causa».
Utilizou o juiz a quo o facto provado sob o n.º 18 (“tendo em conta as características dos prédios em causa e da zona geográfica em que se inserem, o valor de mercado da renda a atribuir aos dois prédios com início em 2017 é de € 2.080,56”, cuja convicção assentou no teor do relatório pericial), conjugado com o demais circunstancialismo em que o negócio (arrendamento) foi celebrado e que se extrai dos factos provados sob o n.º 1/4/5 (existência de prédio confinante), n.º 3 (os prédios foram penhorados no processo executivo em 20.11.2014 e objecto de venda judicial ao réu recorrente em 2022 mediante negociação particular), n.º 6 (os executados não deram conhecimento da venda ao proprietário confinante), n.º 16.º/17.º (documento escrito onde está vertido o contrato de arrendamento, datado de 01.05.2017), para concluir, que:
. a renda estipulada entre as partes conferiria um rendimento mensal ao réu (…) de € 8,33, o que, segundo um prisma de rentabilidade, se perspectiva como irrisório;
. face à discrepância dos valores em causa (o valor de mercado afigura-se vinte vezes superior à renda acordada), infere-se inequivocamente que não existiu qualquer racional económico / lucrativo na realização do negócio em crise.
E para extrair, por dedução lógica, que:
. a celebração do negócio em causa só poderá ter tido a intenção de condicionar a marcha do respectivo processo executivo, onerando ficticiamente aqueles imóveis e gerando consequências jurídicas, designadamente no que concerne ao regime do direito de preferência por força do contrato de arrendamento em causa.
Temos, então, que ao contrário do defendido pelo Recorrente, o tribunal a quo não se limitou a fundar a sua convicção na “divergência entre o valor da renda acordada entre as partes e o valor locatício calculado em termos médios para os mesmos prédios à data da celebração do contrato”, ainda que com essa divergência, comprovada pela conjugação do facto n.º 17 com o n.º 18 (não impugnados), se mostre, claramente, preenchido o indício pretium vilis, que, como vimos, se trata de um dos indícios mais operativos de simulação.
Fundou o tribunal a quo a sua convicção não só nesse indício, como nos que resultam dos demais factos provados acima referidos, cuja sequência, à luz das regras da experiência, revela uma efetiva vontade de criar a aparência de um arrendamento, com intuito de enganar.
E, acrescenta-se, a prova dos factos em causa retira-se ainda de outros indícios, que emergem daqueles demais factos:
. o contexto em que o arrendamento foi celebrado: quando os prédios já tinham sido penhorados em acção executiva (em 20.11.2014), penhora essa que coloca os bens à ordem do tribunal, conduzindo à sua venda judicial, sem que tenha sido apresentada qualquer justificação da razões e necessidade para celebrar aquele arrendamento. Ora, não poderá deixar de ser valorado o facto do simulador não veicular «para o processo qualquer explicação justificativa do negócio», isto é, «o silêncio pode ser valorado como indício endoprocessual em seu desfavor porquanto não se outorgam negócios sem qualquer razão justificativa» (Luís Filipe Pires de Sousa, ob. citada, pág. 225);
. foi dado ao arrendamento, no documento escrito, o prazo de duração de 30 anos (renovável por novos prazos de 30 anos), sem que seja apresentada qualquer justificação para a fixação de um prazo inusualmente longo, para mais quando os prédios estavam penhorados;
. é da experiência da vida que onerar um imóvel penhorado com um arrendamento por 30 anos e uma renda irrisória de €8,00 ao mês diminui o seu valor de venda e desincentiva eventuais compradores, o que se comprova pela circunstância de só em 2022 ter sido concretizada a sua venda (quando a penhora é de 2014), feita precisamente ao recorrente, pretenso arrendatário;
. enquanto os prédios estiveram na plena disponibilidade dos executados (2.º RR.), isto é, antes de serem objecto de penhora, aqueles não outorgaram arrendamento desses mesmos prédios por 30 anos (considerando que a sua aquisição pelos Réus executados data de 1999 para um dos prédios e de 2005 para o outro, conforme se retira da certidão do processo executivo junta com a contestação do réu recorrente);
. a coincidência de só quando já tinham decorrido mais de três anos da outorga do pretenso arrendamento é que a venda judicial veio a ser efectuada, precisamente ao réu recorrente.
Entende-se, pois, que estes indícios permitem extrair, à luz das regras da experiência, a vontade de criação de aparência de arrendamento e o intuito de enganar terceiros - como se diz na sentença recorrida “onerando ficticiamente aqueles imóveis e gerando consequências jurídicas, designadamente no que concerne ao regime do direito de preferência por força do contrato de arrendamento em causa”, logrando criar convicção segura quanto à verificação dos factos n.º 19 e 20, sendo certo que o recorrente também não invoca que outros meios de prova produzidos impediriam ou descaraterizariam aqueles indícios de modo a obstar a que deles se extraíssem as presunções dos factos objecto de impugnação (e que não se satisfaz com a mera invocação da liberdade contratual já que, como se disse, não se outorgam negócios sem qualquer razão justificativa).
Assim, e concluindo, a globalidade dos apontados indícios permitem extrair, sem grande esforço, a existência de divergência entre a vontade real e a vontade declarada e o intuito de engano nos termos dados como provados pelo tribunal a quo, mostrando-se correcto o juízo decisório declarado na sentença recorrida.
Deste modo, improcede a apelação quanto à impugnação da matéria de facto (considerando-se, do mesmo passo, definitivamente assente a matéria de facto que foi apurada pela 1ª instância e referida em III).
*
2ª Questão: Impugnação da apreciação jurídica quanto à verificação da nulidade à luz do regime da simulação previsto no artigo 240.º e seguintes do CC e quanto à aplicação e interpretação do artigo 819.º do CC.
No que respeita a esta 2ª questão colocada à apreciação deste tribunal começar-se-á por analisar a pretensão recursória quanto ao regime da simulação já que esta está directamente relacionada com a impugnação da matéria de facto analisada na questão antecedente.
Refira-se, desde já, que a pretensão de alteração da decisão de mérito quanto ao regime da simulação pressupunha a alteração da matéria de facto quanto aos factos provados n.º 19 e 20, que não se verificou.
Dispõe, a este propósito, o artigo 240.º, n.º 1, do C.C. que, «se por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado».
A simulação consiste, assim, num acordo entre o declarante e o declaratário no sentido de celebrarem um negócio que não corresponde à respectiva vontade real - ou porque não querem celebrar qualquer negócio, ou porque querem celebrar um negócio de contornos diferentes -, e no intuito de enganar terceiros.
Logo, para que exista simulação é necessário que se verifiquem os seguintes elementos:
. uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada;
. o acordo ou conluio entre as partes (pactum simulationis); e
. o intuito de enganar terceiros (animus decipiendi), ou seja, uma actuação de criar uma aparência (podendo visar-se, ou não, o prejuízo do enganado).
A simulação pode ser absoluta (quando as partes declaram querer certo acto, quando, na verdade, não querem acto nenhum); e pode ser relativa (quando as partes declaram querer certo acto, quando na verdade querem outro, isto é, quando a acto simulado encobre um acto dissimulado).
Verificada a simulação, importa atender, ao disposto no artigo 240.º, n.º 2, do C.C., segundo o qual «o negócio simulado é nulo», nulidade esta que «é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal» (de acordo com o regime geral da nulidade previsto no artigo 286.º do C.C.), subsumindo-se habitualmente naqueles «interessados» os herdeiros legitimários, os credores e os preferentes.
E, como vimos, resultou provada a divergência entre a vontade exteriorizada no documento que formaliza o contrato de arrendamento e a vontade real dos seus intervenientes, quer a actuação destes por acordo, quer a respectiva intenção de enganarem terceiros.
Ficou, assim, demonstrada a simulação, conducente à nulidade do contrato de arrendamento, inexistindo, pois, erro de julgamento do tribunal a quo quanto à aplicação do regime da simulação.
Improcede, por isso, também nesta parte, o recurso.
*
Vejamos, agora, a inoponibilidade do arrendamento à luz do disposto no artigo 819.º do Código Civil.
Sustenta o recorrente, desta feita, que à luz do artigo 819.º do C.C. o tribunal a quo concluiu pela inoponibilidade do contrato de arrendamento rural à execução, fundamentando essa decisão com o facto de o mesmo ter sido celebrado em 01.05.2017 e à data já incidia sobre os prédios rústicos dados de arrendamento uma penhora efetuada em 20.11.2014, mas o que resulta daquele preceito é que a penhora gera, apenas, a indisponibilidade do bem penhorado relativamente ao processo executivo, tendo como única consequência que o contrato de arrendamento em nada pode obstar ou afetar a finalidade da acção executiva e não a sua invalidade, mantendo a sua validade e eficácia extra execução, para concluir que sendo o contrato de arrendamento válido e tendo o Réu, por via da sua qualidade de arrendatário, o legítimo direito legal de preferência na sua esfera jurídica, não se vê como o exercício legítimo desse direito poderia afetar a execução.
Sucede que a utilidade do conhecimento desta questão pressupõe validade do contrato de arrendamento, validade essa que resulta contrariada pela sua nulidade por força da simulação, acima confirmada por este tribunal, mostrando-se inconsequente a sua apreciação.
Na verdade, só se não tivesse ficado demonstrada a simulação, cuja consequência é, como vimos, a nulidade do arrendamento, é que importaria analisar se este estaria, ainda assim, afetado pela inoponibilidade prevista no artigo 819.º do Código Civil e se essa inoponibilidade impedia o direito de preferência do recorrente na sua venda, no confronto com o autor recorrido.
Ficou, por isso, prejudicado – nos termos do artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC – o conhecimento do recurso quanto à impugnação da inoponibilidade do contrato de arrendamento à luz do artigo 819.º do Código Civil.
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V – DECISÃO
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo Recorrente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
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Custas da apelação pelo Recorrente (conforme artigo 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC, por nele ter decaído).
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Évora, 27/11/2025
Maria Isabel Calheiros (relatora)
Ana Margarida Leite (1ª adjunta)
Maria Domingas Simões (2ª adjunta)