Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
234/18.1GBPSR.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica da prova, de acordo com as regras da lógica comumente aceite, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar e explicitar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão sobre a matéria de facto.
Ora, no caso destes autos, a Exmª Juíza, para decidir da matéria de facto, ponderou todas as provas de que dispunha, e avaliou-as à luz das regras da experiência comum, de acordo com juízos de normalidade, com a lógica das coisas e com a experiência da vida.

O recorrente considera ter existido errada apreciação da prova, e em breve síntese, na medida em que o Tribunal recorrido não valorou certos aspetos nos termos em que o devia ter feito, ou seja, tal Tribunal deu credibilidade às testemunhas militares da G.N.R. (que a não mereciam) e não deu credibilidade à testemunha filho do arguido (que a merecia).

Simplesmente, com tal alegação o recorrente limita-se a trazer aos autos a perceção que ele próprio teve da prova.

Da leitura da sentença revidenda verifica-se ter sido seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, ou violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas.

Assim, não foi violado o princípio da livre apreciação da prova.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) nº 234/18.1GBPSR, do Juízo de Competência Genérica de … (Juiz 2), mediante pertinente sentença foi decidido:

“- Condenar o arguido AA na pena de prisão de 10 (dez) meses e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses, pela prática de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelo artigo 348.º, número 1, alínea a), do Código Penal, com referência ao artigo 152.º, números 1, alínea a), e 3, do Código da Estrada, e ainda com a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º, número 1, alínea c), do Código Penal.

- Suspender, na sua execução, a pena aplicada ao arguido AA pelo período de 1 (um) ano.

- Condicionar a decretada suspensão da execução da pena à condição de o arguido AA:

- Frequentar a suas expensas, o Programa STOP – Responsabilidade e Segurança, ministrado pela DGRSP, ou outro, entretanto aprovado que prossiga idênticos objetivos;

- Entregar a quantia de €600,00 (seiscentos euros) ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, até ao termo do prazo da suspensão da execução da pena, a transferir para o IBAN ….

- Condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 2 UC’s, para efeitos do disposto no art.º 8º, n.º 5, e tabela III do RCP”.

*

O arguido, inconformado, interpôs recurso, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

“A. Na data de 17 de fevereiro de 2022, o ora Recorrente conheceu a douta Sentença, que o condenou pela prática de um crime de desobediência simples, previsto e punido pelos artigos n.º 69º, n.º 1, al. c) e artigo 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal e artigo 152.º, n.º 3 e 153.º, n.º 1 e 8 do Código da Estrada, por que vinha acusado.

B. Tal convicção resultou, segundo a fundamentação da decisão, da existência de elementos de prova que tivessem demonstrado a prática do crime de que foi acusado, afirmando que o Arguido recusou fazer exame para deteção de álcool no sangue, pelo que foi advertido que incorreria na prática de um crime de desobediência, o que compreendeu. Ao agir da forma acima descrita, o arguido atuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que, na qualidade de condutor, sobre ele impendia o dever legal de se submeter ao teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue e, não obstante, recusou-se a fazê-lo. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. O Recorrente não poderá conformar-se com tal decisão, da qual se recorre, entendendo que não se encontra provado, pela prova constante nos autos, que cometeu o crime do qual vem acusado.

C. Andou mal a Meritíssima Juiz de Direito, tendo considerado provado que, no dia 16 de setembro de 2018, pelas 23 horas e 25 minutos, o Arguido AA conduzia o veículo ligeiro com a matrícula … pela Estrada …, em …, quando foi abordado pela autoridade policial em ação de fiscalização de trânsito. Não é de todo correspondente à verdade, uma vez que a viatura em causa não se encontrava a circular na data correspondente, motivado por avaria mecânica, conforme pode ser provado pela testemunha BB, filho do Arguido, ao qual foi atribuído um discurso credível. Assim, nem a identificação da viatura ou as suas características são verídicas, existindo um lapso, que não foi corrigido desde a douta Acusação Pública.

D. Ouvido o depoimento da testemunha, não descortinamos razões para a não atribuição de crédito ao mesmo. Pois, considerando a forma coerente e espontânea do discurso, onde se conta a indicação de pormenores concretos que se descortinam, em consonância com as regras da experiência da vida e da normalidade, o depoimento da testemunha mostra-se credível e deve, por isso, ser considerado como prova bastante (da falta de prova) quanto ao cometimento do crime pelo Arguido.

E. Não se pode considerar a inexistência de dúvidas no discurso dos militares da Guarda Nacional Republicana. Quando o seu testemunho levantou essas dúvidas, nunca confirmaram com certeza que seria aquela viatura a circular, sendo que foi avistada já estacionada, com o arguido no interior. Assim, foi logo dado como provado um facto baseado em suposição, sem qualquer produção de prova. A verdade é que os militares perderam de vista a viatura, não podem saber como estacionou naquele local. Não analisaram se o motor da viatura estava quente ou se havia indícios da mesma ter circulado um minuto antes.

F. O Arguido não se encontrava a conduzir o veículo, pelo que, nos termos do número 1 do artigo 152.º do Código de Processo Penal, só devia ser submetido à prova para a deteção de estado sob influência pelo álcool na qualidade de condutor ou caso se propusesse a iniciar a condução. Tinha então o Arguido legitimidade para recusar se submetido uma vez que não se verificava o flagrante de nenhuma dessas possibilidades.

G. Não podemos concordar que tais depoimentos não possam ser atendidos e considerados pela Meritíssima Juiz de Direito. Consideramos assim que os depoimentos prestados por estas testemunhas impõem uma decisão diversa da proferida, nos termos e para efeitos da alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, mais precisamente a absolvição do Arguido pela prática do crime de desobediência.

H. Em suma, estavam reunidos todos os pressupostos para que o Arguido fosse absolvido do crime do qual vem acusado, pelo que o douto Tribunal violou o disposto no artigo 153º do Código Penal e o artigo 127º do Código de Processo Penal.

I. No caso vertente, o princípio da Livre Apreciação da Prova foi claramente violado, pois, resulta que da prova produzida e documentada que, ao condenar o Arguido com base em tal prova, a Meritíssima Juiz contrariou as regras da experiência comum e atropelou a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do Arguido. Sendo um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão de direito.

J. O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do Juiz acerca da matéria de direito. Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

K. Ora, o princípio da livre apreciação da prova, conjugado com o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, exige uma apreciação motivada, crítica e racional, fundada nas regras da experiência, mas também nas da lógica e da ciência.

L. A convicção, motivação e factualidade provada que vai para além da própria prova produzida em sede de julgamento, não se descortinando razões lógicas em termos de prevenção especial, tendo sido apenas fundada a decisão na própria convicção do Tribunal.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, absolvendo-se o arguido da prática do crime pelo qual foi condenado”.

*

A Exmª Magistrada do Ministério Público na primeira instância apresentou resposta ao recurso, concluindo pela total improcedência do mesmo.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Foram colhidos os vistos legais e o processo foi à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

No caso destes autos, face às conclusões retiradas pelo arguido da motivação apresentada, e em muito breve síntese, é apenas uma a questão a conhecer: saber se o arguido conduziu, ou não, o veículo em causa (considerando o recorrente que não se fez prova de tal facto, tendo o Tribunal de primeira instância apreciado mal os elementos de prova - impugnação alargada da matéria de facto -, tendo também tal Tribunal violado o princípio in dubio pro reo, e tendo ainda o mesmo Tribunal violado o princípio da livre apreciação da prova).

2 - A sentença recorrida.

No tocante aos factos (provados e não provados) e à motivação da decisão fáctica, é do seguinte teor a sentença objeto do recurso:

“Matéria de Facto Provada

Da audiência de discussão e julgamento resultou como provada a seguinte matéria de facto:

1) No dia 16-09-2018, às 23h25, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro com a matrícula … pela Estrada …, em …, quando foi abordado pela autoridade policial em ação de fiscalização de trânsito.

2) Nessa sequência, foi solicitado ao arguido que se sujeitasse a fiscalização para deteção da presença de álcool no sangue, em aparelho qualitativo.

3) Todavia, o arguido recusou-se a ser submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue.

4) O arguido foi advertido que, perante tal recusa em fazer o teste de despistagem de álcool no sangue, incorria na prática do crime de desobediência, tendo compreendido tal advertência.

5) Posteriormente, foi transportado para o posto da GNR, tendo-lhe ali sido solicitado que se sujeitasse ao exame para deteção de álcool no sangue.

6) Novamente, o arguido recusou fazer tal exame, pelo que foi novamente advertido que incorreria na prática de um crime de desobediência, o que compreendeu.

7) Ao agir da forma acima descrita, o arguido atuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que, na qualidade de condutor, sobre ele impendia o dever legal de se submeter ao teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, e não obstante, recusou-se a fazê-lo.

8) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

9) O arguido encontra-se reformado, auferindo uma pensão de reforma mensal de €280,00.

10) Vive sozinho, numa casa que é dos pais, não suportando qualquer custo com habitação e não suporta quaisquer empréstimos.

11) Dá apoio aos seus pais, que são pessoas muito idosas, precisando de deslocar-se na sua viatura para o efeito, por si conduzida, porquanto não existe rede de transportes públicos regulares que abranja a localidade onde residem.

12) O arguido padece de problemas do foro psiquiátrico, necessitando de acompanhamento médico permanente nessa área.

13) O arguido não tem outros processos pendentes em fase de julgamento.

14) O arguido AA tem averbadas ao seu registo criminal as seguintes condenações:

- Prática de um crime de homicídio por negligência, por factos praticados em 20.08.1999, por sentença transitada em julgado em 31 de maio de 2002;

- Prática de um crime de desobediência, por factos praticados em 09.08.2015, por sentença transitada em julgado em 24 de junho de 2016;

- Prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por factos praticados em 22 de junho de 2017, por sentença transitada em julgado em 15 de setembro de 2017;

- Prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por factos praticados em 28 de julho de 2016, por sentença transitada em julgado em 11 de dezembro de 2017;

- Prática de um crime de violência doméstica, por factos praticados em 22 de janeiro de 2016, por sentença transitada em julgado em 11 de dezembro de 2017.

Matéria de Facto Não Provada

Da audiência de discussão e julgamento resultaram como provados todos os factos descritos na acusação.

Fundamentação da Matéria de Facto

O Tribunal, para formar a sua convicção quanto à matéria de facto teve em conta uma análise crítica e global de toda a prova produzida em audiência de julgamento.

Os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em audiência de julgamento - CC e DD - agentes da GNR que declararam, desde logo, ter procedido à fiscalização do arguido, afiguraram-se-nos absolutamente credíveis.

Os mesmos descreveram, de forma séria, concisa e segura, que, por se terem cruzado com um veículo que circulava em sentido contrário ao seu e que vinha em ziguezague na estrada, fizeram inversão de marcha ao veículo em que seguiam, passando a circular no mesmo sentido do veículo que haviam sinalizado.

Nesse momento, vieram a encontrar o veículo parado, em cima do passeio, encontrando-se o arguido sentado no lugar do condutor, sendo que não havia nas imediações outras pessoas ou veículos, nem o arguido disse que não era o condutor, pelo que não tiveram dúvidas de que aquele era o veículo pelo qual haviam passado menos de um minuto antes, bem como não tiveram dúvidas de que o arguido era o seu condutor, dedução que se nos afigura lógica e coerente, e com a qual concordamos, pois as regas da experiência comum permitem concluir sem dificuldade neste sentido.

Mais relataram os mesmos a persistente recusa do arguido em realizar qualquer tipo de exame de pesquisa de álcool no sangue, por qualquer meio, sendo certo que foi repetidamente advertido de que a sua recusa o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.

Por último, os mesmos esclareceram que o arguido estava nervoso e revoltado, por causas que não conseguiram apurar, sendo que ficaram com a firme convicção de que o arguido entendeu tudo o que lhe foi dito, estando perfeitamente consciente de que era obrigado a fazer o teste de alcoolemia, bem como ficou ciente da prática do crime de desobediência com a sua recusa.

Os elementos clínicos juntos aos autos e os dois relatórios periciais juntos aos autos, que atestam a imputabilidade total do arguido à data dos factos, permitiram-nos concluir pelo estado de saúde daquele, bem como concluir que o mesmo à data dos factos estava capaz para entender e querer a ilicitude dos factos que praticou, tendo, igualmente, capacidade para atuar de forma a evitar a prática dos mesmos.

Saliente-se que o arguido não prestou declarações sobre os factos, pelo que as suas declarações no âmbito da realização da perícia, altura em que terá negado que fosse ele quem conduzia o veículo em causa, nunca podiam ser valoradas como meio de prova, por ser legalmente inadmissível.

De qualquer modo, dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, que se nos afiguraram inteiramente credíveis, decorre, sem dúvidas, para nós, que era o arguido quem conduzia aquele veículo.

As declarações do arguido relativamente à sua situação pessoal e económica afiguraram-se credíveis, sendo consideradas bastantes relativamente a tal matéria.

O depoimento prestado pela testemunha BB, filho do arguido, afigurou-se-nos credível.

Todavia, não tendo sido o mesmo quem fiscalizou o arguido, o seu depoimento apenas confirma que o pai estava nervoso e revoltado, naquele dia, pelo que o levou ao Departamento de Psiquiatria do Hospital de Portalegre, onde foi assistido.

Ora, como referido supra, apresentados todos os elementos clínicos relativos ao arguido, incluindo os da consulta/avaliação efetuada nesse dia, o relatório pericial foi perentório ao concluir pela imputabilidade do arguido.

O seu depoimento foi relevante na medida em que confirmou que o arguido vive efetivamente sozinho, prestando auxílio aos seus pais, pessoas idosas, sendo que para o efeito tem necessidade de se deslocar em viatura própria, pois não há transportes públicos.

O Tribunal teve, ainda, em atenção o teor dos documentos e do certificado do registo criminal do arguido juntos aos autos”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da impugnação alargada da matéria de facto.

Alega-se na motivação do recurso que o arguido não conduziu o veículo em causa, sendo certo que os depoimentos dos guardas da G.N.R. não são credíveis, e sendo também certo que a testemunha BB (filho do arguido), em depoimento credível, afirmou que o referido veículo não estava a circular na data em questão, por avaria mecânica.

Cumpre decidir.

Há que salientar, em primeiro lugar, que o recurso sobre a matéria de facto não envolve (não pode envolver) para o tribunal ad quem a realização de um “novo julgamento”, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos.

A impugnação da decisão fáctica tem por finalidade, isso sim, o reexame de erros de procedimento ou de julgamento, erros que afetem a decisão recorrida e que o recorrente indique (especificadamente), tendo ainda o recorrente de indicar, por forma também especificada, as provas que, no entender do mesmo, impõem uma decisão de conteúdo diferente.

Ora, lendo e relendo a motivação do recurso e as suas conclusões, delas decorre, inequivocamente, que está questionado o facto de o arguido ser o condutor do veículo em causa, por o tribunal a quo ter dado credibilidade aos depoimentos dos militares da G.N.R. (que intercetaram o arguido a conduzir) e por não ter dado credibilidade ao depoimento da testemunha BB (filho do arguido) - depoimentos considerados no seu todo -, ou seja, e sem mais, por a Exmª Juíza ter seguido um processo de convicção diferente daquele que é o do recorrente.

Em segundo lugar, para procedermos à pretendida alteração da decisão fáctica tomada na sentença revidenda, era necessário que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não apenas aconselhasse, ou permitisse, ou consentisse, uma tal alteração, mas, isso sim, impusesse essa alteração da decisão a que o tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto (cfr. o disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal).

Como bem se escreve no acórdão deste Tribunal da Relação de Évora datado de 15-03-2011 (relator Sénio Alves, disponível in www.dgsi.pt), “se, perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova”.

Também o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, pág. 233), em sentido similar, esclarece: “por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de um processo penal submetido predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento”.

Acrescenta ainda o mesmo Ilustre Professor, a propósito dos princípios da oralidade e da imediação (ob. citada, págs. 233 e 234): “só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar, o mais corretamente possível, da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”.

Lendo a motivação do recurso, verifica-se, facilmente, que o recorrente não atentou nestes princípios (da oralidade e da imediação), nem no princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do C. P. Penal), pretendendo que o tribunal (quer o tribunal a quo, quer este tribunal ad quem) acolha a versão dos factos que mais lhe convém.

Ora, e repetindo o acima dito, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve indicar, especificadamente, as provas que “impõem” decisão diversa da recorrida (que “impõem”, repete-se, e não que permitem ou aconselham).

A esta luz, lendo a sentença revidenda, na “Fundamentação da Matéria de Facto”, verificamos, sem dificuldade, que as provas produzidas não “impõem” uma decisão diversa daquela que foi proferida em primeira instância.

Isto é, o tribunal a quo não decidiu ao arrepio da prova produzida, ou contra tal prova, nem deu como provado determinado facto com fundamento no depoimento de uma determinada testemunha, e, analisado tal depoimento, constata-se que a dita testemunha se não pronunciou sobre tal facto, ou que, pronunciando-se, disse coisa diferente da afirmada na decisão recorrida, nem, por último, o tribunal recorrido valorou a prova produzida contra as regras da experiência, ou de modo aleatório e discricionário.

Pelo contrário, na “Fundamentação da Matéria de Facto” a Exmª Juíza fez a análise dos depoimentos prestados em audiência (depoimentos prestados pelos dois militares da G.N.R. - que intercetaram o arguido a conduzir - e pelo filho do arguido), procedendo ao exame crítico das provas, de modo claro e apreensível, tudo por forma a permitir (como permite), quer aos destinatários diretos da decisão quer à comunidade em geral, perceber os seus raciocínios (as razões pelas quais atribuiu credibilidade a uns testemunhos - os dos militares da G.N.R. - e não ao outro - o do filho do arguido -).

A título exemplificativo, vejamos o seguinte excerto da “Fundamentação da Matéria de Facto” constante da sentença recorrida: “os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em audiência de julgamento - CC e DD -, agentes da G.N.R. que declararam, desde logo, ter procedido à fiscalização do arguido, afiguraram-se-nos absolutamente credíveis. Os mesmos descreveram, de forma séria, concisa e segura, que, por se terem cruzado com um veículo que circulava em sentido contrário ao seu e que vinha em ziguezague na estrada, fizeram inversão de marcha ao veículo em que seguiam, passando a circular no mesmo sentido do veículo que haviam sinalizado. Nesse momento, vieram a encontrar o veículo parado, em cima do passeio, encontrando-se o arguido sentado no lugar do condutor, sendo que não havia nas imediações outras pessoas ou veículos, nem o arguido disse que não era o condutor, pelo que não tiveram dúvidas de que aquele era o veículo pelo qual haviam passado menos de um minuto antes, bem como não tiveram dúvidas de que o arguido era o seu condutor, dedução que se nos afigura lógica e coerente, e com a qual concordamos, pois as regas da experiência comum permitem concluir sem dificuldade neste sentido. Mais relataram os mesmos a persistente recusa do arguido em realizar qualquer tipo de exame de pesquisa de álcool no sangue, por qualquer meio, sendo certo que foi repetidamente advertido de que a sua recusa o faria incorrer na prática de um crime de desobediência. Por último, os mesmos esclareceram que o arguido estava nervoso e revoltado, por causas que não conseguiram apurar, sendo que ficaram com a firme convicção de que o arguido entendeu tudo o que lhe foi dito, estando perfeitamente consciente de que era obrigado a fazer o teste de alcoolemia, bem como ficou ciente da prática do crime de desobediência com a sua recusa. (…) Saliente-se que o arguido não prestou declarações sobre os factos, pelo que as suas declarações no âmbito da realização da perícia, altura em que terá negado que fosse ele quem conduzia o veículo em causa, nunca podiam ser valoradas como meio de prova, por ser legalmente inadmissível. De qualquer modo, dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, que se nos afiguraram inteiramente credíveis, decorre, sem dúvidas, para nós, que era o arguido quem conduzia aquele veículo”.

Pergunta-se: com que base, com que prova, e até com que legitimidade (substantiva, obviamente) pode este tribunal ad quem, ouvindo gravações (meros registos sonoros de declarações e de depoimentos), ultrapassar estes raciocínios formulados pela Exmª Juíza, que assistiu à produção da prova (em comunicação imediata, viva, física e interativa com a prova), e que, de modo pormenorizado, claro, transparente e assertivo, nos fornece uma análise e uma visão totalmente coerentes e fundamentadas da prova?

Com o devido respeito pelo alegado na motivação do recurso, esta instância recursiva, ponderando todos os elementos de prova (indicados na motivação do recurso, e descritos e analisados na sentença sub judice), e em conformidade com tudo o que acima se disse (nomeadamente sobre a oralidade e a imediação), não pode, com o mínimo de fundamento válido, alterar a lógica do raciocínio do tribunal a quo (lógica que se mostra razoável, pertinente e percetível) ou contrariar as razões da sua convicção (convicção, por um lado, bem explicitada e fundamentada, e, por outro lado, obtida a partir da imediação com a prova).

Ora, sendo apenas dessa lógica e dessa convicção (alcançadas pelo tribunal a quo e explicitadas na sentença revidenda) que, em substância, o recorrente discorda, logo se conclui que o presente recurso, nesta vertente (impugnação da decisão fáctica), não merece provimento.

Posto o que precede, é de improceder esta primeira vertente do recurso interposto pelo arguido, considerando-se, em consequência, definitivamente fixada a matéria de facto dada como provada em primeira instância.

b) Da violação do princípio in dubio pro reo.

Invoca o recorrente que na sentença recorrida foi violado o princípio in dubio pro reo.

Cabe analisar e decidir.

O princípio in dubio pro reo (um dos princípios básicos do processo penal) significa, em síntese, que, para conduzir à condenação, a prova deve ser plena, sendo imprescindível que o tribunal tenha formado convicção acerca da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, a formação da convicção é um processo que “só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para que pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse” (Prof. Figueiredo Dias, ob. citada, pág. 202).

Quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual consubstancia princípio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção da inocência (constitucionalmente consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa).

Com efeito, dispõe a C.R.P. (no nº 2 do seu artigo 32º) que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, preceito que se identifica genericamente com as formulações do princípio da presunção de inocência constantes, além do mais, do artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e do artigo 6º, nº 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.

Assim, “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 4ª ed., 2007, pág. 519).

O princípio in dubio pro reo apresenta-se, pois, como forma de suprir a ausência de ónus de prova, em sentido próprio, no direito processual penal.

Na verdade, apesar de toda a prova recolhida, é possível que todos os factos relevantes para a decisão não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, e que, por isso, não possam considerar-se como provados.

É evidente que as dúvidas do julgador quanto à prova produzida têm de ser racionais (no sentido de razoáveis), jamais podendo assentar, como parece entender o recorrente, na mera existência de versões contraditórias entre si.

Na opinião expressa na motivação do recurso, existindo contradição entre os depoimentos prestados pelos militares da G.N.R., que afirmam ter intercetado o arguido a conduzir o veículo em questão, e o depoimento prestado pela testemunha BB (filho do arguido), que, de modo credível, relatou que a viatura em análise não podia ter sido conduzida na data dos factos, por estar imobilizada devido a uma avaria mecânica, teria de funcionar o princípio in dubio pro reo, devendo dar-se como não provado o ato de condução em causa e absolvendo-se o arguido.

Ora, a solução para a decisão fáctica a tomar nos presentes autos não é essa (não pode ser essa), pois que, a proceder a argumentação do recorrente, estaríamos perante uma mera operação aritmética, de cariz silogístico (como existem duas testemunhas a afirmar um ato de condução por banda do arguido e uma testemunha a negar esse ato, deve ser aplicado o princípio in dubio pro reo, considerando-se esse ato como não provado).

Com efeito, os depoimentos das diferentes testemunhas possuem, em si mesmos, uma consistência e uma credibilidade que varia de uns para outros, tendo o tribunal que decidir da maior consistência de alguns depoimentos, em detrimento de outros.

Assim sendo, no presente caso, e como acima se expôs (quando analisámos a impugnação da decisão fáctica), não restam quaisquer dúvidas (razoáveis) de que os factos foram, efetivamente, praticados pelo arguido, nos precisos termos dados como provados na sentença revidenda (não existindo possibilidade ou viabilidade de tais factos não terem ocorrido).

Dito de outro modo: o tribunal a quo não teve dúvidas na valoração da prova, fazendo um juízo seguro acerca dos factos imputados ao recorrente, e, perante a prova, também este tribunal de recurso com nenhuma dúvida fica relativamente à prática de tais factos por banda do recorrente.

Por conseguinte, e ao contrário do alegado na motivação do recurso, não foi violado o princípio in dubio pro reo.

Face ao que vem de dizer-se, e também neste segmento, é de negar provimento do recurso.

c) Da violação do princípio da livre apreciação da prova.

Alega-se na motivação do recurso que o Tribunal de primeira instância, com a decisão fáctica proferida, violou o princípio da livre apreciação da prova.

Há que decidir.

Dispõe o artigo 127º do C. P. Penal: “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

A propósito desse princípio da livre apreciação da prova, refere o Prof. Figueiredo Dias (ob. citada, Vol. I, pág. 202) que “o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida”.

E acrescenta o mesmo autor (ob. citada, págs. 202 e 203) que a liberdade de apreciação da prova tem limites inultrapassáveis: “a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada «verdade material» -, de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e de controlo”.

Como bem diz Maia Gonçalves (in "Código de Processo Penal Anotado", 9ª ed., pág. 322), “a livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do Homem médio suposto pela ordem jurídica”.

Em jeito de síntese: a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica da prova, de acordo com as regras da lógica comumente aceite, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar e explicitar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão sobre a matéria de facto.

Ora, no caso destes autos, a Exmª Juíza, para decidir da matéria de facto, ponderou todas as provas de que dispunha, e avaliou-as à luz das regras da experiência comum, de acordo com juízos de normalidade, com a lógica das coisas e com a experiência da vida.

O recorrente considera ter existido errada apreciação da prova, e em breve síntese, na medida em que o Tribunal recorrido não valorou certos aspetos nos termos em que o devia ter feito, ou seja, tal Tribunal deu credibilidade às testemunhas militares da G.N.R. (que a não mereciam) e não deu credibilidade à testemunha filho do arguido (que a merecia).

Simplesmente, com tal alegação o recorrente limita-se a trazer aos autos a perceção que ele próprio teve da prova.

Da leitura da sentença revidenda verifica-se ter sido seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, ou violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas.

Assim, não foi violado o princípio da livre apreciação da prova.

E, por isso, também nesta última vertente o recurso não merece provimento.

Por tudo o que se deixou dito, o recurso interposto pelo arguido tem forçosamente de improceder.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso do arguido, mantendo-se, consequentemente, a douta sentença revidenda.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 13 de julho de 2022

João Manuel Monteiro Amaro (relator)

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia (adjunto)

Maria Fernanda Pereira Palma (presidente da Secção)