Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
941/17.6T8BNV.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 05/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
A usucapião, sendo uma forma originária de aquisição de direitos, pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime jurídico que proíbe o fracionamento de prédios rústicos por ofensa à área de cultura mínima.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


O Ministério Público instaurou ação declarativa com processo comum contra BB e mulher cC, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém (Juízo Local Cível de Benavente) pedindo que seja anulada a escritura de justificação notarial lavrada no dia 09 de Julho de 2015, no Cartório Notarial de Clara Maria Pereira dos Santos Rodrigues, sito em Salvaterra de Magos, fls. 6 a 9/v do livro de notas para escrituras diversas, n.º 140-a, mediante a qual se operou o fracionamento dos quatro prédios rústicos que identifica, bem como seja ordenado o cancelamento do registo na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos da aquisição a favor dos réus das parcelas descritas na escritura de usucapião.
Alega, para sustentação do peticionado, em síntese:
- Os réus foram outorgantes de escritura de justificação notarial, em que declararam serem donos e legítimos possuidores de 4 prédios rústicos, que adquiriram por doação verbal em 1974, prédios que veem ocupando, e que adquiriram por usucapião;
- Os referidos prédios, são partes de outros, procedendo, assim os RR. ao fracionamento dos prédios originários;
- Tendo em conta as culturas praticadas nos mesmos, tratam-se de terrenos de sequeiro, sendo a unidade de cultura de 4 hectares, sendo que devido ao fracionamento todos ficaram com área inferior à unidade de cultura.
Citados os réus, veio o 1.º réu apresentar contestação, afirmando a aquisição dos prédios por usucapião, sendo que com a escritura não pretenderam dividir o terreno, mas obter documento que legitimasse a propriedade das parcelas, entendendo que é possível reconhecer a divisão dos prédios, ao contrário do que defende o autor.
Concluindo pede a improcedência da ação.
Saneado o processo e realizada audiência final, veio a ser proferida sentença que julgou improcedente a ação e absolveu os réus do pedido.
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Inconformado, veio o autor interpor recurso, terminando nas suas alegações por formular as seguintes conclusões:
1. Através de escritura de justificação notarial lavrada em 9.07.2015, no Cartório Notarial de Clara Maria Pereira dos Santos Rodrigues, Sito em Salvaterra de Magos, que consta de fls. 6 a9/v do livro de notas para escrituras diversas, número 140-A, operou-se o fracionamento ilegal de quatro prédios rústicos;
2. Dispondo o artigo 1287° do Código Civil, que a usucapião opera, “salvo disposição em contrário”, deverá entender-se que tal disposição em contrário é a constante do art° 1376° do Código Civil, que impede o fracionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura.
3. Nos termos do citado preceito legal, a aquisição da propriedade por usucapião não pode contrariar disposições legais imperativas.
4. Por sua vez, o artigo 1376º, nº 1, do Código Civil, que tem cariz imperativo e de interesse público, dispõe que “os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País”.
5. Cada uma das parcelas fracionadas tem área inferior a 0,4 hectares, - valor mínimo da unidade de cultura prevista na Portaria n°202/70 - logo não pode a usucapião ser reconhecida como eficaz, dado que não prevalece sobre norma imperativa de proibição de fracionamento, contida no artigo 1376°, n°1, do Código Civil.
6. In casu, não se encontram reunidos todos os pressupostos para a aquisição do direito de propriedade por usucapião, uma vez que o disposto no artigo 1376º, nº 1, do Código Civil também se aplicada às situações de usucapião quando dela resulta fracionamento de prédios e, no caso concreto, tal normativo não se mostra respeitado.
7. Nestes termos, deve a decisão proferida ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente o presente processo.

Apreciando e decidindo

O objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso (artºs 635º n.º 4, 639º n.º 1 e 608º n.º 2 ex vi do artº 663º n.º 2 todos do CPC).

Assim, a questão nuclear em apreciação consiste saber se a situação de prescrição aquisitiva, de que os réus se arrogam beneficiar, permite que se lhes reconheça a propriedade sobre as parcelas de terreno em causa, apesar de estas terem área inferior à unidade de cultura.
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Na sentença recorrida foi considerado como provado o seguinte quadro factual:
A. Os Réus foram outorgantes, na qualidade de justificantes, na escritura de justificação notarial lavrada em 9 de Julho de 2015, no Cartório Notarial de Clara Maria Pereira dos Santos Rodrigues, sito em Salvaterra de Magos, que consta de fls. 6 a 9/v do livro de notas para escrituras diversas, número 140-A.
B. Na escritura acima mencionada, os Réus, na qualidade de primeiros outorgantes, declaram o seguinte:
Que, são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, dos seguintes imóveis:
I) Prédio rústico, sito em Serra das Caveiras, Glória do Ribatejo, pertencente à união das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, composto por terreno de cultura arvense, com a área de vinte mil cento e noventa e um metros quadrados, que confronta do norte com Bernardino …, do Sul com Manuel …, do nascente com rua Fajarda e do poente com João …, prédio este ainda não descrito na Conservatória do registo Predial de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob parte do artigo … da secção …, que proveio com o mesmo artigo e secção, da extinta freguesia de Glória do Ribatejo, pendente de resolução, a que atribuem o valor de quinhentos euros;
II) Prédio rústico, sito em Briosa, Glória do Ribatejo, pertencente à União das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, composto por terreno de cultura arvense, com a área de vinte mil seiscentos e nove metros quadrados, que confronta do norte com António …, do Sul com Modesto … e outros, do nascente com rua Fajarda e do poente com João …, prédio este ainda não descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob parte do artigo … da secção …, que proveio com o mesmo artigo e secção, da extinta freguesia de Glória do Ribatejo, pendente de resolução, a que atribuem o valor de quinhentos euros;
III) Prédio rústico, sito em Briosa, Glória do Ribatejo, pertencente à União das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, composto por terreno de cultura arvense, com a área de oito mil quatrocentos e nove metros quadrados, que confronta do norte com Pedro …, do Sul com estrada pública, do nascente com Cristóvão … e do poente com Helena …, prédio este ainda não descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob parte do artigo … da secção …, que proveio com o mesmo artigo e secção, da extinta freguesia de Glória do Ribatejo, pendente de resolução, a que atribuem o valor de quinhentos euros; e
IV) Prédio rústico, sito em Alto dos Corsos, Glória do Ribatejo, pertencente à União das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, composto por terreno de cultura arvense, com a área de dezasseis mil e cinquenta a nove metros quadrados, que confronta do norte com Herdeiros de Alexandre …, do Sul com Francisco … e caminho público, do nascente linha de caminho-de-ferro CP e do poente com Matias …, prédio este ainda não descrito na Conservatória do Registo Predial de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob parte do artigo … da secção …, que proveio com o mesmo artigo e secção, da extinta freguesia de Glória do Ribatejo, pendente de resolução, a que atribuem o valor de quinhentos euros. (…)
Que adquiriram os mencionados prédios por volta do ano de mil novecentos e setenta e quatro, em dia em que não podem precisar, sempre há mais de vinte anos, através de doação verbal que lhes foi feita: o prédio identificado em I), pelos pais da justificante mulher, Manuel … e mulher Maria … (…) atualmente falecidos; e os prédios identificados em II), III) e IV), pelos pais do justificante marido, António … e mulher Helena …, (…) ambos falecidos, nunca tendo sido reduzidos a escrito os contratos, (…) tendo os justificantes, desde logo, entrado na posse e fruição dos prédios em nome próprio. (…) Que, desde as referidas “doações”, até hoje, os justificantes têm possuído e usado aqueles prédios, objeto do direito que agora justificam, tendo sempre e desde então agido como proprietários exclusivos dos mesmos, e nunca como compossuidores ou comproprietários dos prédios originários, respeitando rigorosamente as suas estremas e divisórias, com total exclusividade e independência, e sempre praticaram sobre os mesmos todo os atos de posse de que estes eram suscetíveis, tais como amanhando-os, colhendo os seus frutos, plantando árvores, cortando e roçando matos, e pagando as respetivas contribuições, tudo na convicção de exercerem um direito próprio, sem qualquer interrupção, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, sendo por isso uma posse pública, pacífica, contínua e de boa-fé, pelo que adquiriam os mencionados prédios por usucapião, que invocam, na impossibilidade de comprovar o referido domínio e posse pelos meios extrajudiciais normais.
Que, suprem, desta forma, a inexistência de titulo para efeitos de registo, obtendo assim titulo adequado para proceder ao registo dos citados prédios na competente Conservatória do Registo Predial, por forma a que a realidade material já existente há muito mais de vinte anos seja refletida e publicitada, após o cumprimento das demais formalidade legais.”
C. Os Réus não apresentaram por ocasião da celebração da escritura pública, parecer favorável da Direção Regional de Agricultura.
D. Todos os prédios acima mencionados são apenas parte de outros prédios.
E. Com efeito, o originário prédio rústico, sito em Serra das Caveiras, Glória do Ribatejo, pertencente à união das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob o artigo … da secção …, tinha a área de 4,004 hectares.
F. O originário prédio rústico, sito em Briosa, Glória do Ribatejo, pertencente à União das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob o artigo … da secção …, tinha a área de 9,620 hectares.
G. O originário prédio rústico, sito em Briosa, Glória do Ribatejo, pertencente à União das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob o artigo … da secção …, tinha a área de 3,960 hectares.
H. O originário prédio rústico, sito em Alto dos Corsos, Glória do Ribatejo, pertencente à União das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob o artigo … da secção …, tinha a área de 3,314 hectares.
I. À data da escritura de usucapião, no prédio rústico, sito em Serra das Caveiras, Glória do Ribatejo, pertencente à união das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob o artigo … da secção …, a cultura praticada eram eucaliptos.
J. No prédio rústico, sito em Briosa, Glória do Ribatejo, pertencente à União das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob o artigo … da secção …, a cultura praticada eram eucaliptos e pinheiros.
L. No prédio rústico, sito em Briosa, Glória do Ribatejo, pertencente à União das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob o artigo … da secção …, a cultura praticada eram eucaliptos e pinheiros mansos; e
M. No prédio rústico, sito em Alto dos Corsos, Glória do Ribatejo, pertencente à União das freguesias de Glória do Ribatejo e Granho, concelho de Salvaterra de Magos, inscrito na matriz cadastral da referida união de freguesias sob o artigo … da secção …, a cultura praticada era pinheiros mansos, vinha e pomar, estando em mais de metade do terreno plantados pinheiros mansos.
N. Todos os terrenos acima mencionados estão inseridos em zona rural, estando o último inclusive integrado na Reserva Agrícola Nacional.
O. No prédio sito em Alto dos Corços, o R. e a sua mulher, desde 1972 que cultivam trigo, batatas, abóboras, couves e têm um poço.
P. O terreno tem árvores de fruto, como pereiras, ameixoeiras e marmeleiros.
Q. Plantaram uma vinha.

Foram considerados não provados os seguintes factos:
1. Todos os prédios se encontram demarcados por meio de marcos de cimento.
2. No prédio sito na Serra das Caveiras, o R. e a sua mulher praticaram os seguintes actos: a) entre 1967 e 1970 apanhavam azeitona, semeavam aveia e cuidavam das oliveiras.
3. A plantação de eucalipto ocorreu no ano de 1970, e foi em metade do prédio, e nos restantes, 10000m2, o R. e a sua esposa semeavam trigo, centeio e aveia, até ao ano de 1990. Só em 1990, plantaram eucalipto.
4. No prédio sito em Briosa, com 20609m2, o R. e a sua mulher, cortam o mato que existe junto dos eucaliptos, procedem à limpeza e desbaste dos eucaliptos, e de 10 em 10 anos procedem ao corte destas arvores para venda.
5. No ano de 1972, já existiam eucaliptos plantados.
6. No prédio sito na Briosa, desde 1972 até 1990, o R. e a mulher semearam milho e aveia, e em 1990 plantaram eucaliptos e desde então, até aos dias de hoje, cortam o mato que cresce junto dos mesmos, e de 10 em 10 anos cortam os mesmos para venda.
7. A vinha produz uvas para consumo próprio e para produzir vinho, também para consumo próprio.


Conhecendo da questão
A questão em apreciação, suscitada pelo Ministério Público, já foi apreciada, por este Tribunal da Relação, em vários acórdãos, indo, segundo cremos, a maioria, não obstante a diversa argumentação, no sentido defendido pela decisão recorrida, apesar de haver posições divergentes.
Está em causa a aplicabilidade, ou não, ao caso, dos seguintes preceitos legais:
- Art. 1287º do CC no qual se dispõe “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião”;
Artº 1376º n.º 1 do CC no qual se dispõe “os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País…”;
Art.º 1379.º n.º 1 do CC, na versão vigente à data da celebração da escritura de justificação, no qual se dispõe “São anuláveis os actos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, bem como o fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos.”
Artº 1º da Portaria 202/70 de 21/04 que fixa a unidade de cultura para Portugal Continental no qual se dispõe que “a área da unidade de cultura é fixada” para as regiões Norte do Tejo “Lisboa e Santarém” para os terrenos de regadio arvenses em 2,00 ha; para os terrenos de regadio hortícolas em 0,50 ha e para os terrenos de sequeiro em 4,00 ha;
No acórdão desta Relação proferido em 08/06/2017 no processo 1011/16.0T8STB.E1, disponível em www.dgsi.pt, defendeu-se que beneficiando os réus de uma situação configurada como prescrição aquisitiva relativamente a determinada parcela de terreno, deve ser-lhe reconhecida a propriedade, apesar de a sua área ser inferior à unidade da cultura, prevalecendo as regras que contemplam a aquisição da propriedade por usucapião em detrimento das que impedem o fracionamento de prédios rústicos aquém daquela unidade de cultura, tendo este entendimento sido sufragado pelo STJ, em acórdão proferido em 01/03/2018,[1] que apreciou a revista interposta do mesmo.
No acórdão desta Relação proferido em 26/10/2017 no processo 7859/15.5T8STB.E1 (cuja decisão, no entanto, veio a ser revogada por Acórdão do STJ de 03/05/2018), seguindo fundamentação idêntica à constante no acórdão desta Relação proferido em 25/05/2017 no processo 1214/16.7T8STB.E1 (acórdãos disponíveis em www.dgsi.pt), defendeu-se a posição oposta, dando-se prevalência às normas que impedem o fracionamento dos prédios rústicos em detrimento da prescrição aquisitiva, por se entender que as normas jurídicas que proíbem o fracionamento defendem o interesse público, sendo que, quando a lei proíbe obtenção de um determinado resultado, tem de proibir necessariamente todos os meios adequados para o atingir.
Não obstante a argumentação consignada nestes referidos acórdãos do TRE de 26/10/2017 e de 25/05/2017, entendemos ser de acolher a posição expressa no citado acórdão de 08/06/2017, cuja fundamentação iremos seguir de perto, efetuando, no entanto, as modificações necessárias, relacionadas com o caso concreto em apreciação e com a jurisprudência que se vem firmando no sentido propugnado, tal como já foi, por este coletivo, defendido em acórdão proferido em 22/11/2018 no âmbito da apelação 916/18.8T8STB.E1, disponível em www.dgsi.pt.
No caso em presença, o recorrente não põe em causa que os autores tivessem provado os requisitos atinentes à prescrição aquisitiva, apenas defendendo que o fracionamento pretendido se deve ter por ilegal, atento o disposto no artº 1376º n.º 1 do CC, pelo que não podem beneficiar da prescrição aquisitiva, para verem reconhecido o seu direito.
Pois, conforme emerge do teor da petição e é referido pelo Julgador a quo na sentença recorrida “o Ministério Público não põe em causa a verificação dos referidos requisitos legais para a aquisição do direito por usucapião, entende que esta aquisição tem que respeitar o disposto no art.º 1376.º do CC, que foi violado, razão pela qual requer que seja anulada a escritura”.
No caso, não está implicada na usucapião pretendida valer qualquer situação de loteamento ilegal que ponha em causa o verdadeiro interesse público, mas apenas, e tão-só, a extensão das áreas abrangidas por essa usucapião, que se mostram reduzidas face à área mínima da unidade de cultura respetiva, e respeitantes a parcelas de terreno integradas em prédios rústicos e que manteve essa natureza rústica.
Se, se pode afirmar que as normas (cfr. Portaria nº 202/70 e anteriormente Dec. n.º 16731 de 13/04/1929) que fixam essa área mínima ainda são normas de direito público (ainda que o mesmo já não se possa dizer da proibição de fracionamento, que essa já é de direito privado, por prevista apenas no artº 1376º do C. Civil), o certo é que os interesses que se visam acautelar com tal fixação já não relevam do domínio da ordem pública (como, ao que se julga, os relativos a loteamentos ilícitos), sendo antes de cariz essencialmente económico, na medida em que se prendem com o desenvolvimento e competitividade da atividade agrícola nacional (como se pode ver, até, do preâmbulo do Decreto-Lei nº 384/88, de 25/10, diploma que regia sobre o emparcelamento rural e cujo Regulamento, aprovado pelo Decreto-Lei nº 103/90, de 22/3, manteve, no seu artº 53º, os valores das unidades de cultura constantes daquela Portaria de 1970 – situação ainda inalterada, à luz do novo regime da estruturação fundiária, aprovado pela Lei nº 111/2015, de 27/8, que revoga aquela legislação anterior). Nesse conspecto, deve entender-se que as normas impeditivas do fracionamento não se situam, manifestamente, em plano de prevalência sobre as relativas à usucapião.
Se é de conceder que o instituto da usucapião deva ceder perante normas imperativas públicas de especial relevo (e que, designadamente, impeçam expressamente a usucapibilidade), também é certo que a generalidade da jurisprudência sustenta solução inversa à que o Ministério Público, enquanto autor apelante, aqui propugna.
Com efeito, a avaliar pelos arestos publicados dos diferentes tribunais superiores, pode considerar-se praticamente pacífico o entendimento de que a usucapião prevalece sobre o regime do artº 1376º, nº 1, do C. Civil.
Começando pelo Supremo Tribunal de Justiça, citem-se, a título exemplificativo, os Acs. de 19/10/2004 e de 40/02/2014 (Procs. 04A2988 e 314/2000.P1.S1, respetivamente, idem). No primeiro (que se louva noutros arestos), discorre-se como segue: «Mesmo que houvesse fracionamento ilegal, nos termos do art. 1376, nº1, do C.C., desde que esteja invocada a usucapião e se verifiquem os respetivos pressupostos, procede a aquisição do direito de propriedade, com base na usucapião, relativamente ao prédio dos autores. É que a usucapião constitui uma forma de aquisição originária. A lei, ponderando determinados aspetos que considerou relevantes, assumiu que certas situações de facto pudessem converter-se em verdadeiro direito, como acontece quando a posse se prolonga por um período de tempo significativo. A usucapião é o instrumento capaz de se sobrepor a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais, relativamente a atos de alienação ou de oneração de bens. Através da usucapião, o sistema jurídico, provada que seja a realidade substancial de que depende, confere a legitimidade de que carecia o possuidor, independentemente da natureza do vício que afeta a sua posição face ao bem. Consequentemente, só resta concluir que, das regras da usucapião, decorre que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo e, por isso, está imune aos vícios que anteriormente pudessem ser apontados (…)». E no segundo, na mesma linha, conclui-se: «(…) o reconhecimento judicial da mencionada usucapião deve sobrepor-se e prevalecer sobre o fracionamento ilegal do prédio, que, porventura, tenha estado na respetiva génese, já porque em causa está um direito não transmitido, mas constituído “ex novo”, já porque, esgotado o decurso do tempo necessário à respetiva verificação, com o inerente alheamento da autoridade pública ou interessado a quem incumba a prevenção/repressão ou arguição da correspondente violação, deixou de fazer sentido, afrontando as conceções dominantes na comunidade, a tardia salvaguarda do subjacente interesse público, devendo a Ordem Jurídica absorver a situação ocorrente e consolidada».
Por sua vez, são de assinalar vários arestos dos diferentes tribunais de 2ª instância, a começar por esta Relação, em que avulta relevantemente o Ac. do TRE de 26/10/2000 (in CJ, tomo IV, pp. 272 ss.), assim sumariado: «São usucapíveis as parcelas com área inferior à unidade de cultura, resultantes de divisão, efetuada por partilha verbal, de um prédio rústico apto para fins agrícolas».
Mencionem-se ainda os Acs. do TRC de 25/2/2014 e de 3/3/2015 (Procs. 1350/11.6TBGRD.C1 e 5730/06.0TBLRA.C1, respetivamente, idem). No primeiro, que contém extensa referência a outros arestos, sintetiza-se assim a sua doutrina: «Fora das situações em que o legislador avulso impede a “usucapibilidade” de certos bens - por ex. o caso dos baldios - artigo 2.º do do Dec. Lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro, por sua vez, o Decreto-Lei nº 40/76, de 19 de Janeiro - e dos bens culturais classificados ou em vias de classificação - Lei 107/2001 de 8/09 - que, através do seu artigo 34.º, torna insuscetível de aquisição, por usucapião, são afloramentos de tal princípio -, os Tribunais têm dado preferência à usucapião, como forma originária de aquisição, em detrimento de certas exigências de âmbito administrativo e limitações legais. (…) Concorrendo os requisitos da usucapião, aferidos pelas características da posse, os vícios anteriores e as vicissitudes ligadas ao ato ou negócio causal, não afetam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes. (…) A usucapião não só se abstrai, como inclusivamente se sobrepõe a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais relativamente a atos de alienação ou oneração de bens ou até mesmo à prática de atos que originariamente pudessem considerar-se ilegais ou até mesmo violadores dos direitos de outrem». E o segundo regista no seu sumário a seguinte afirmação: «A usucapião é uma aquisição originária, genética e endógena baseada na sua causa (posse). Não se pode, pois, dizer, com rigor, que pela invocação da aquisição do direito (usucapião) se realize um destaque, um loteamento, uma divisão em prédios com área inferior à unidade de cultura: já que a coisa é possuída como autónoma e é essa posse dessa coisa possuída, como autónoma, que é causa de usucapião».
Também destacamos, no mesmo sentido, o Ac. do TRL de 15/10/2015 (Proc. 1737/11.4TBALM.L1-6, idem), com a seguinte declaração: «(…) vem sendo pacificamente entendido, tanto doutrinária como jurisprudencialmente, que a dita proibição do fracionamento da propriedade rústica em áreas inferiores à unidade de cultura não obsta à aquisição das mesmas por usucapião, uma vez que, decorrendo das regras deste instituto que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo, originariamente, está imune aos vícios que lhe pudessem ser anteriormente apontados»
Mais recentemente o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdãos de 01/03/2018, 03/05/2018 e de 01/07/2018,[2] apreciando decisões desta Relação de Évora, relacionadas com ações idênticas à presente, instauradas pelo Ministério Público na Comarca de Setúbal, decidiu pela prevalência da usucapião, verificados os respetivos requisitos, sobre a proibição de fracionamento contida no artº 1376º n.º 1 do CC.
No aludido acórdão de 01/03/2018, concluiu-se que a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura fixada na Portaria n.º 202/70, de 21/04, prevalece sobre a proibição contida no art. 1376º, nº 1 do C. Civil, não operando a anulabilidade do ato de fracionamento previsto no nº 1 do art. 1379º do C. Civil e no que se refere aos interesses de natureza pública, na defesa do aproveitamento e viabilidade económica das explorações agrícolas, que afetam toda uma comunidade, que a recorrente invoca que esta norma visa salvaguardar, a fim de a fazer prevalecer sobre a usucapião, salienta-se, também no acórdão:
E nem se argumente, como o faz o recorrente, que o interesse público que a norma do art° 1376° n°1 do CC visa salvaguardar - estruturação fundiária nacional e o ordenamento territorial em termos socialmente adequados - deve prevalecer sobre os interesses subjacentes à usucapião.
É que também as regras da usucapião são determinadas por razões de interesse público.
Com efeito, como refere Durval Ferreira, a usucapião não visa satisfazer um interesse individual do possuidor, mas, antes, o interesse público de «assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer, através do usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e á sua titularidade».[3]
Do mesmo modo, não colhe o argumento no sentido de que a sanção de nulidade, agora, imposta pelo art. 1379º, n.º 1 do C. Civil, na redação dada pela Lei nº 111/2015, para os atos de fracionamento violadores da unidade de cultura, é bem elucidativa da vontade do legislador reafirmar o caráter imperativo dessa norma e confirmar a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fracionamento, tanto mais, que ficando sujeita ao regime estatuído nos art.ºs 294º e 286º, ambos do C. Civil, pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado e pode até ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
Desde logo, porque, como já ensinava Manuel de Andrade, «o princípio de que a nulidade absoluta pode, por via de ação, ser invocada a todo o tempo, não prevalece sobre a doutrina da prescrição aquisitiva»[4]
No mesmo sentido, afirma Mota Pinto que a possibilidade da invocação perpétua da nulidade, pode ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva (usucapião).[5]
Também no referido acórdão de 03/05/2018 se defende que a usucapião invocada prevalece sobre as regras proibitivas do fracionamento, pelo que mesmo que, a posse tenha sido em termos de propriedade sobre uma parcela inferior à unidade de cultura vigente, ter-se-á de admitir que foi uma posse boa para usucapião do direito de propriedade da (s) parcela (s), não podendo a mesma ser impedida por ação de anulação ou declaração de nulidade fundada na violação de preceito legal que não impunha, em qualquer circunstância, a nulidade dos atos e negócios praticados em sua violação.
No mesmo sentido vai o acórdão do STJ de 12/07/2018 ao concluir pela prevalência da usucapião em detrimento da proibição de fracionamento, numa situação idêntica à dos autos ao salientar que casuisticamente e não aprioristicamente, devem os tribunais apreciar a validade dos atos de divisão e fracionamento da propriedade rústica, em casos como o versado no recurso: considerando a natureza da posse exercida pelos Réus e sendo a usucapião um instituto do direito privado com enorme relevância jurídica na estabilização e consolidação de situações baseadas numa posse digna de relevância no âmbito do direito real de propriedade e atendendo a que a proteção da segurança e a da confiança na atuação dos possuidores é inerente a um direito que, nascendo ex novo, sobrepuja e desconsidera atuações, ainda que ilícitas, que não afetam retroativamente a posse relevante e boa para a usucapião, concluímos que os Réus adquiriram o direito de propriedade originariamente pela via da usucapião.
No caso em apreço o fracionamento dos imóveis teve origem em doações verbais (negócios que embora nulos por falta de forma não deixam de poder constituir uma situação possessória a favor dos ora réus) realizadas por volta do ano de 1974, na sequência da qual os réus passaram a usufruir e dispor como verdadeiros proprietários das parcelas de terreno em questão, estando verificados os requisitos para poderem beneficiar da prescrição aquisitiva, a que alude o art.º 1287º do CC, na senda do que salientam Pires de Lima e Antunes Varela[6] se, através de um negócio jurídico nulo (v. g., por falta de forma) se realizar um fracionamento ou uma troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.°, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais.Também Castro Mendes[7], defendia que não obsta à aquisição por usucapião de parte de prédio, dividido verbalmente pelos anteriores comproprietários, o facto de a sua superfície ser inferior a meio hectare, tendo em conta o valor da unidade de cultura fixado pela Portaria 202/70, de 21/4, mantida em vigor pelo art.º 53.º do Dec. Lei n.º 103/90, de 23/3.
No mesmo sentido vai Menezes Cordeiro ao salientar que, “a usucapião é uma forma originária de aquisição de direitos. Assim, quando opere, cessam todos os encargos que antes oneravam a coisa desde que, naturalmente, a posse prescricional tivesse operado sem esses encargos. Desta natureza autossuficiente da usucapião resultam consequências importantes (…) Admite-se a usucapião duma gleba, separada dum baldio, assim como se admite a usucapião de áreas inferiores às de cultura ou de parcelas que legalmente não seriam separáveis”.[8]
De salientar que ao contrário do defende o recorrente (cfr. conclusão 2ª) a expressão “disposição em contrário” ressalvada naquela norma legal - artº 1287º do CC - não abarca a situação prevista no artº 1376º do CC epigrafada de fracionamento, na medida em que inexiste qualquer norma excecional que estabeleça taxativamente, que a posse mantida sobre a parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião, cujos efeitos se retrotraem, por força do disposto no artº 1288º do CC, à data do início da posse,[9] que se identifica com a data em que ocorreu o fracionamento no âmbito das doações verbais realizadas por volta do ano de 1974, sendo que a escritura de justificação, com alegação da usucapião, destinada ao estabelecimento de trato sucessivo, não configura ato translativos da propriedade, não constituindo verdadeiro atos de fracionamento, designadamente para efeitos previstos no artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil.[10]
Donde, no caso em apreço, não estando em questão a situação em que a posse das parcelas em causa é mantida pelos réus, desde o ano de 1974, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, faculta-lhes, a possibilidade do exercício do direito que corresponde a sua atuação, por via do instituto da usucapião que prevalece sobre o fracionamento ilegal do prédio, que não constitui, só por si, fundamento para obstar à aquisição originária do correspondente direito de propriedade.[11]
Ademais, seguindo o entendimento de Luís Carvalho Fernandes[12], “a aquisição por usucapião é, assim, efeito da posse reiterada de um direito real, não integrando qualquer negócio jurídico que possa ser passível de invalidade jurídica [nulidade ou anulabilidade], por se tratar de uma forma de adquirir de facto um direito real.
No balanço dos pontos de vista em confronto, propendemos, sem qualquer dúvida, para a orientação dominante na jurisprudência que vimos de explanar. Afigura-se-nos decisivo o mencionado argumento fundado na aquisição originária da propriedade como decorrência da usucapião. E acresce o seguinte: essa constituição ex novo do direito de propriedade, por efeito da usucapião, configura o reconhecimento da estabilidade de uma situação jurídica duradoura, em que o beneficiário legitimamente confiou, por ser tutelada pelo direito, e cuja afetação, por aplicação de regras de fundamento economicista, seria injustamente penosa para o beneficiário.
Em conformidade, entende-se merecer adesão a solução adotada pelo tribunal a quo, no sentido de recusar a prevalência das regras relativas ao fracionamento rural sobre o instituto da usucapião – e de que resultou a improcedência da presente ação.
Nestes termos irrelevam as conclusões do apelante, não se mostrando violadas as normas legais cuja violação foi invocada, sendo de confirmar a sentença recorrida.
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DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público, enquanto autor apelante (art.os 527º do NCPC e 4º, nº 1, al. a), do RCP).

Évora, 02 de maio de 2019
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Maria da Graça Araújo

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[1] Disponível, para além do site do ITIJ, na Col. Jur. Tomo I, 2018, 81.
[2] Respetivamente, nos processos1011/16.0T8STB.E1.S2; 7859/15.5T8STB.E1 e 7601/16.3T8STB.E1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] In Posse e Usucapião, 3ª edição, 494.
[4] In Teoria da Relação Jurídica, vol. II, 418.
[5] In Teoria do Direito Civil, 470.
[6] In Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, 269.
[7] In Teoria Geral, 1979, Vol. II, pág. 235,
[8] In A POSSE Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª edição, 130-131.
[9] Cfr. Ac. do STJ de 01/03/2018 no processo 1011/16.0T8STB.E1.S2, disponível em www.dgsi.pt
[10] Cfr. Acs. do TRE de 25/01/2018 no processo 7651/16.0T8STB.E1; de 25/01/2018 no processo 7601/16.3T8STB.E1; de 22/03/2018 no processo 6000/16.1T8STB.E1 e de 07/06/2018 no processo 145/16.5T8CCH.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt
[11] Cfr. Ac. do TRE de 26/04/2018 no processo 418/15.4T8ALR.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[12] In Lições de Direitos Reais, 3.ª Edição, p. 230.