Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
5145/18.8STB.E1-A
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO
ADMISSÃO
TEMPESTIVIDADE
OCORRÊNCIA POSTERIOR
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I – As declarações de parte, tal como o depoimento de testemunhas, não constituem ocorrências posteriores para efeitos de apresentação de documentos não juntos aos autos, com fundamento na parte final do nº 3 do artigo 423º do CPC.
II – Porém, é possível relacionar a “ocorrência posterior” com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialética que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa, o que consistirá, na generalidade dos casos, na revelação de factos instrumentais, complementares ou concretizadores.
III - Aceitando-se esta ideia, as declarações de parte ou o depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária a apresentação de um documento fora dos momentos previstos no artigo 423º, nº 1 e 2, do CPC, desde que no seu depoimento a parte ou a testemunha invoque factos que sejam novos no processo e não possam ser qualificados como factos essenciais.
IV- Não é este o caso dos autos, pois referindo a ré/recorrente que o documento em causa se destina a fazer prova do “alegado no artigo 12º da petição inicial”, matéria que não foi sequer impugnada pela ré na contestação, nada de novo existe, tratando-se de matéria já conhecida da ré, a qual nem sequer constitui um tema da prova.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
BB, Importação e Exportação, Lda., ré na presente ação declarativa de condenação que, sob a forma de processo comum, lhe move CC – Sociedade de Investimentos Imobiliários, Lda., requereu no decurso da audiência de julgamento do dia 11.04.2019, “a junção aos autos do acordo de transação celebrado entre autor e réu para a entrega do armazém objeto dos autos, celebrado em 10/11/2014”.
A autora opôs-se à requerida junção e, de seguida, foi proferido despacho que não admitiu a junção daquele documento “por considerar a mesma extemporânea, considerando que não se verificou nenhuma ocorrência posterior ao início do julgamento que tenha tornado a sua apresentação necessária”.
Inconformada, a ré apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que seguir se transcrevem:
«1ª – O despacho que indeferiu a junção aos autos de um documento intitulado “ TRANSACÇÃO com compromisso de entrega de chaves” assinado pelas partes deve ser revogado por este documento ser essencial para uma boa decisão da causa
2ª – A apelante “requereu ao abrigo do disposto do artigo 423º do C.P.C. a junção aos autos do acordo de transacção celebrado entre autor e réu para entrega do armazém objecto dos autos, celebrado em 10/11/2014 e justificou devidamente a junção do documento em audiência de julgamento alegando que se destinava à contra prova das declarações de parte do gerente da autora que afirmou que o despejo aconteceu em 2015/2016 e no alegado artigo 12º da petição inicial,
3ª – A apelada opôs-se à junção do documento, por extemporâneo e a Mª Juiz considerou a mesma extemporânea, por não se ter verificado nenhuma ocorrência posterior ao início do julgamento, que tenha tornado a sua apresentação necessária
4 ª – Assim, a apresentação era desnecessária porque a Mª Juiz “a quo” não atendeu ás declarações de parte do sócio gerente da autora, quando fala em despejo e a pergunta da Mª Juiz foi feita nesta sequência e sem relevo para a decisão da causa
5ª – Ou então a Mª Juiz “ a quo “ atendeu, e neste caso a junção aos autos do documento é essencial para a verdade material, pois não houve despejo, mas um acordo com vista a concretizar a entrega do domínio e posse total, livre e desembaraçada de pessoas e bens, do armazém identificado como fracção “A” do número um, sito na Quinta …, Baixa de Palmela , como se diz no preâmbulo do documento rejeitado.
6ª – Acresce que o depoimento do sócio gerente da Ré, aqui apelante Pedro … é claro quando diz que houve um acordo de transacção entre nós e a CC antes ainda de ter recebido todos os requisitos do processo, acordámos retirar as coisas e entregar as chaves.
Foi o que fizemos.”
7ª – A apelante invocou o artigo 12º da p.i. que diz: “Na sequência de tal decisão a Ré desocupou o locado”. Mas esta alegação tem de ser ponderada e confrontada quer com a decisão de primeira instância do Tribunal de Olhão, quer com o Acórdão deste Venerando Tribunal (Procº 886/12.6TBOLH.E 1- Secção) onde ficou definitivamente assente que existiu um contrato promessa de compra e venda do armazém, que foi declarado o incumprimento deste contrato pela Ré e por isso foi esta condenada a desocupar e deixar livre e devoluto o armazém não se podendo falar em contrato de arrendamento/ despejo, nem era pertinente juntar na altura da contestação o referido documento.
8ª – A razão fundamental e essencial para a junção do documento na audiência foi por esta se ter tornado necessária em virtude de ocorrência posterior” (nº 3 do artº 423º do C.P.C.), decorrente das declarações do sócio gerente da A. e a terminologia coincidente usada pela Mª. Juiz “a quo”.
9ª – Pelo que deve ser revogado o douto despacho que indeferiu a junção do referido documento e ser admitida a junção deste aos autos.»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir consiste em saber se devia ter sido admitida a junção do documento requerida pela apelante na sessão de julgamento de 11.04.2019.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos a considerar para a decisão do recurso são os constantes do relatório que antecede.

O DIREITO
Importa analisar se estamos perante a situação do nº 3 do artigo 423º do CPC, nos termos do qual só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, ou aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
A ré/recorrente justificou a junção do documento em causa, alegando que o mesmo «se destina à contraprova das declarações de parte do gerente do autor que afirma que o despejo acontece a 20/05/2016 e no alegado artigo 12º da petição inicial».
Em comentário ao artigo 423º do CPC do CPC escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre:[1]
«Constituem exemplos de impossibilidade de apresentação (n.ºs 2 e 3) o de o documento se encontrar em poder da parte ou de terceiro, que, apesar de lhe ser feita a notificação nos termos dos art. 429 ou 432, só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento. Acresce o caso em que o documento, com que se visa provar um facto já ocorrido e alegado, só posteriormente se tenha formado (contendo, por exemplo, uma declaração confessória extrajudicial desse facto)
A ocorrência posterior a que se refere o nº 3 não é um facto principal, pois este pode ser introduzido na causa mediante alegação em articulado superveniente ou em articulado de um incidente, como o da habilitação do sucessor no direito litigioso (arts. 351 e 356), casos já cobertos pela norma do nº 1; trata-se, antes, de um facto instrumental relevante para a prova dos factos principais ou de um facto que interesse à verificação dos pressupostos processuais, casos em que o documento que prova esse facto não pode deixar de se ter formado, também ele, posteriormente.»
Por sua vez, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[2] referem que «atualmente, na norma de dilação prevista no nº 3, esse impedimento (que se prolongou para além do prazo previsto no nº 2) apenas legitima a apresentação imediata, logo que cesse a impossibilidade de apresentação, não podendo a parte aguardar pelo derradeiro momento pressuposto pela norma de dilação – o encerramento da discussão em primeira instância (art. 425.º)».
Ora, a ré, nem no momento em que requereu a junção do documento[3], nem na sua alegação de recurso, alegou fosse o que fosse no sentido de justificar a impossibilidade de apresentação do mesmo em momento anterior (isto é, até 20 dias antes do dia 11 de março de 2019)[4], e também não o podia fazer, acrescentamos nós, pois está em causa um documento denominado “Transação com compromisso de entrega de chave”, datado de 10 de novembro de 2014, pelo que fica desde logo arredada a primeira das situações referidas.
Vejamos, pois, se no caso em apreço a apresentação do documento se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior, como parece ser o entendimento da ré/recorrente.
Será que as declarações de parte do autor podem configurar ocorrência posterior? A resposta é negativa.
Escreveu-se no acórdão da Relação de Lisboa de 06.06.2019:[5]
«Parece-nos que se perante um depoimento testemunhal, que incidisse sobre a matéria de facto dos temas da prova, pudessem, sem mais, ser apresentados documentos com o propósito de contrariar a credibilidade do mesmo, então estaríamos, passe a expressão, “a deixar entrar pela janela o que não se quis deixar entrar pela porta”. E isto até de forma mais vantajosa para a parte, que assim nem teria de pagar qualquer multa. Note-se que a razão de ser da não previsão de pagamento da multa no n.º 3 do artigo 423.º do CPC é precisamente a de que não se justifica sancionar a parte por algo que a ultrapassa: trata-se de apresentar um documento que não tinha podido obter até àquele momento ou um documento cuja junção não era necessária, mas passou a ser.
Portanto, em nosso entender, a “ocorrência posterior” não se pode bastar com uma mera intenção de contrariar a força probatória de documentos juntos aos autos com os articulados ou de descredibilização do depoimento de testemunha (aliás, para isto também existe a contradita, …).»
Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[6] referem, a respeito da junção de documentos que se «tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior», destinar-se nomeadamente à prova ou contraprova de factos ocorridos após o termo do prazo previsto no número anterior. Acrescentando que a «apresentação não se torna necessária em virtude de ocorrência posterior quando uma testemunha alude a um facto, ainda que em sentido contrário ao pretendido pelo apresentante, se se tratar de um facto essencial já alegado – ou de um facto puramente probatório».
A nível da jurisprudência, veja-se, a título exemplificativo, além do acórdão da Relação de Lisboa de 06.06.2019 acima citado, o acórdão da mesma Relação de 06.12.2017[7], em cujo sumário, além do mais, se exarou:
«– Os meios de prova, qualquer que seja a sua natureza, destinam-se à instrução da causa, a qual “tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova.”
– O depoimento de testemunhas arroladas nos autos não constitui ocorrência posterior para efeitos de apresentação de documentos não juntos aos autos, com fundamento na parte final do nº3 do artº 423 do C.P.C.»
No acórdão da Relação de Lisboa de 25-09-2018[8], avançou-se com a ideia de relacionar a “ocorrência posterior” com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialética que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa, afirmando-se que “consistirá, na generalidade dos casos, na revelação de factos instrumentais, complementares ou concretizadores”.
Aceitando-se esta ideia, «o depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária a apresentação de um documento fora dos momentos previstos no artigo 423.º, n.º 1 e 2, do CPCivil, desde que no seu depoimento invoque factos que sejam novos no processo e não possam ser qualificados como factos essenciais»[9]
No caso concreto, porém, referindo a ré/recorrente que o documento em causa se destina a fazer prova do “alegado no artigo 12º da petição inicial”, no qual a autora alegou que na sequência da sentença confirmada por acórdão desta Relação de 09.10.2014, “a Ré desocupou o locado”, nada de novo existe, tratando-se de matéria já conhecida da ré, que esta teve oportunidade de impugnar na contestação e não o fez, havendo de considerar-se tal facto admitido por acordo, nos termos do nº 2 do artigo 574º do CPC, como efetivamente veio a suceder na sentença já proferida nos autos.
Não é agora, por o gerente da autora ter dito em declarações de parte, que a desocupação ocorreu numa data de que a recorrente discorda, que podemos considerar que se tornou necessária a apresentação do documento efetuada pela ré, para além do limite temporal que resulta do disposto no n.º 2 do artigo 423º do CPC, tanto mais que a data da desocupação do locado não constitui sequer um tema da prova (cfr. fls. 112 verso).
Tanto basta para que tenhamos de afastar a aplicação ao caso do nº 3 deste artigo.
Improcedem, assim, na sua essência, as conclusões constantes das alegações da apelação da ré.
Vencida no recurso, suportará a ré/recorrente as respetivas custas – artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

Sumário:
I – As declarações de parte, tal como o depoimento de testemunhas, não constituem ocorrências posteriores para efeitos de apresentação de documentos não juntos aos autos, com fundamento na parte final do nº 3 do artigo 423º do CPC.
II – Porém, é possível relacionar a “ocorrência posterior” com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialética que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa, o que consistirá, na generalidade dos casos, na revelação de factos instrumentais, complementares ou concretizadores.
III - Aceitando-se esta ideia, as declarações de parte ou o depoimento de uma testemunha pode constituir ocorrência posterior que torna necessária a apresentação de um documento fora dos momentos previstos no artigo 423º, nº 1 e 2, do CPC, desde que no seu depoimento a parte ou a testemunha invoque factos que sejam novos no processo e não possam ser qualificados como factos essenciais.
IV- Não é este o caso dos autos, pois referindo a ré/recorrente que o documento em causa se destina a fazer prova do “alegado no artigo 12º da petição inicial”, matéria que não foi sequer impugnada pela ré na contestação, nada de novo existe, tratando-se de matéria já conhecida da ré, a qual nem sequer constitui um tema da prova.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Évora, 21 de Novembro de 2019
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

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[1] In Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, Almedina, pp 240-241.
[2] In Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014 - 2ª edição, Volume I, Almedina, p. 370.
[3] Na sessão de julgamento do dia 11 de abril de 2019.
[4] Data em que se iniciou a audiência de julgamento.
[5] Proc. 18561/17.3T8LSB-A.L1-2, in www.dgsi.pt.
[6] Ob. e loc. cit.
[7] Proc. 3410-12.7TCLRS-A.L1-6, in www.dgsi.pt.
[8] Proc. 744/11.1TBFUN-D.L1-1, in www.dgsi.pt.
[9] Cfr. acórdão da Relação de Lisboa de 26.09.2019, proc. 27/18.6T8ALQ-A.L1-6, in www.dgsi.pt.