Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
211/05.2TBARL-E.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: INSPECÇÃO JUDICIAL
PODER DISCRICIONÁRIO
Data do Acordão: 11/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: A decisão de o tribunal realizar uma inspecção ao local (art.º 490.º, Cód. Proc. Civil) não assenta no exercício de um poder discricionário pelo que é susceptível de recurso (art.º 630.º, n.º 1, a contrario).
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Na presente acção ordinária, instaurada por AA e BB contra CC, «DD, Compra e Venda de Propriedades, Lda.» e «EE, Sociedade Imobiliária e Construção, Lda.», foi pelos AA. pedida a anulação de contratos de empreitada e de promessa de compra e venda celebrados com os RR. e a condenação destes no pagamento de determinadas quantias, a título de enriquecimento injustificado e de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com alegada actuação lesiva dos RR., e pelos RR. pedida em reconvenção a condenação dos AA. a pagar-lhes determinadas quantias por alegados incumprimentos contratuais.

Na sequência da normal tramitação processual, teve lugar a prolação de uma primeira sentença final que julgou improcedente a acção e parcialmente procedente a reconvenção, condenando os AA. a pagar ao 1º R. e à 2ª R. determinadas quantias (cfr. sentença de fls. 125-141), a qual foi objecto de recurso para este Tribunal da Relação, cuja decisão determinou a anulação da decisão recorrida e a ampliação da base instrutória e a subsequente realização de novo julgamento, com a ressalva de essa repetição «não abranger a parte da decisão que não esteja viciada» e de se proceder à ampliação do julgamento a outra matéria de facto «com o fim exclusivo de evitar contradições na nova decisão que vier a ser proferida (e, se eventualmente daí resultar que se torna necessário para a justa composição do litígio, uma inspecção judicial ao local, proceder à sua realização atempadamente)» (cfr. acórdão de fls. 142-172).

Em cumprimento dessa decisão, elaborou ou aditou o tribunal de 1ª instância novos quesitos à base instrutória e ampliou o objecto do novo julgamento a determinados quesitos preexistentes, dando sem efeito as respostas anteriores (concretamente, os quesitos 19º a 21º, 24º a 26º e 33º) – cfr. despacho de fls. 173-177. Em vista desse julgamento apresentaram os AA. novo requerimento probatório, no qual formularam, além do mais, pedido de realização de «inspecção judicial ao prédio em causa nos autos e observação das várias construções e habitações existentes na proximidade, para prova dos quesitos 28º-A, 32º, 32º-A, 44º, 47º, 33º, 25º e, em suma, as condições e envolvente em que o erro sobre o objecto do negócio foi induzido e mantido» (cfr. fls. 180-181).

Realizado novo julgamento, produziu-se nova sentença, que se pronunciou quanto à matéria de facto objecto dos respectivos aditamento e ampliação, e na qual se decidiu julgar mais uma vez improcedente a acção e parcialmente procedente a reconvenção, condenando os AA. a pagar, agora apenas à 2ª R., determinada quantia (cfr. sentença de fls. 204-234). Porém, no decurso dessa audiência de julgamento suscitou-se a apreciação da requerida inspecção judicial, mediante a prolação, pelo tribunal de 1ª instância, do seguinte despacho, registado na respectiva acta (a fls. 196-203):

«Requerem os autores nos autos a deslocação do tribunal para a inspecção ao local, questão cujo conhecimento o tribunal relegou para a fase final da produção de prova. Considerando a matéria de facto sobre que incidiu a presente audiência final, em virtude da decisão proferida pelo tribunal superior em sede de recurso, verifica-se que, relativamente à mesma, o meio de prova requerido em nada poderia auxiliar o tribunal na decisão a proferir, uma vez que a mesma se reporta essencialmente à questão de a construção ser ou não legal, do conhecimento que as partes tinham de tal questão, da conduta do réu perante a mesma questão e da situação relativa às reuniões com a Câmara e relativas aos pagamentos efectuados e montantes estipulados entre as partes. Quando muito o meio de prova em causa poderia apenas relevar para apreciação dos quesitos já objecto do anterior julgamento e cuja resposta foi dada sem efeito pelo tribunal apenas por mera cautela e em função do que vinha decidido pelo tribunal superior. Produzida a prova testemunhal em sede de audiência, o tribunal considera que não se justifica a realização da requerida inspecção, uma vez que na anterior decisão o tribunal ficou habilitado ao conhecimento da matéria e neste julgamento nenhuma prova nova se produziu no sentido de determinar a necessidade dessa mesma deslocação. Pelo exposto, o tribunal decide não levar a cabo a requerida inspecção.»

É desta decisão de indeferimento do pedido de inspecção judicial, proferida em audiência, que vem interposto, apenas pelo A. AA, o presente recurso de apelação (cfr. fls. 3-20), que subiu em separado, e cujas alegações culminam com as seguintes conclusões:

«I. Vem o presente recurso, antes de sentença proferida, interposto do não Douto Despacho proferido em Acta de Audiência de Julgamento no sentido de recusar a Prova Por Inspecção Judicial requerida.

II. Acta de Audiência de Julgamento esta, em cumprimento de quanto ordenado por V. Exas. em sede de recurso anterior no sentido de ser ampliada a Base Instrutória a factos essenciais demonstrativos do erro e, se necessário, para a justa composição do Litígio, ser ordenada uma inspecção ao Local.

III. Ora, neste seguimento o Tribunal a quo, não só ordenou a repetição do Julgamento quanto aos novos factos por Despacho de 13.01.2015, como afirmou ainda o mesmo Despacho, aqui bem: “Ainda na senda do doutamente decidido pelo Tribunal Superior, considerando a factualidade ora enunciada, e no sentido de evitar decisão contraditória quanto à matéria de facto, amplio o objecto do novo julgamento, ao teor dos quesitos 19.°, 20.°, 21.°, 24.°, 25.°, 26.° e 33.°, ficando sem efeito a resposta que anteriormente lhes foi dada”.

IV. Sendo que o quesito 33° corresponde a “O réu CC actuou deste modo para que os requerentes acreditassem que o terreno era edificável e a construção de licenciamento garantido e assim celebrassem os contratos constantes dos autos?”

V. Ora tendo o Tribunal a quo ordenado que ficasse sem efeito a resposta dada ao quesito 33°, não se entende como pode vir agora afastar a Inspecção Judicial essencial para a sua prova com fundamento em: “Quando muito o meio de prova em causa poderia apenas relevar para apreciação dos quesitos já objecto do anterior julgamento e cuja resposta foi dada sem efeito pelo tribunal apenas por mera cautela e em função do que vinha decidido pelo tribunal superior. Produzida a prova testemunhal em sede de audiência, o tribunal considera que não se justifica a realização da requerida inspecção, uma vez que na anterior decisão o tribunal ficou habilitado ao conhecimento da matéria e neste julgamento nenhuma prova nova se produziu no sentido de determinar a necessidade dessa mesma deslocação.”

VI. Com o devido respeito que é todo, se foi dada sem efeito a resposta anterior, não se pode agora recuperar a mesma para dizer que na anterior decisão o Tribunal ficou habilitado pois a mesma não pode renascer depois de dada sem efeito.

VII. Mais, padece ainda o Despacho de deficiente fundamentação quando afirma: “Considerando a matéria de facto sobre que incidiu a presente audiência final, em virtude da decisão proferida pelo tribunal superior em sede de recurso, verifica-se que, relativamente à mesma, o meio de prova requerido em nada poderia auxiliar o tribunal na decisão a proferir, uma vez que a mesma se reporta essencialmente à questão de a construção ser ou não legal, do conhecimento que as partes tinham de tal questão. da conduta do réu perante a mesma questão e da situação relativa às reuniões com a Câmara e relativas aos pagamentos efectuados e montantes estipulados entre as partes.”

VIII. Pois como resulta dos quesitos transcritos no artigo das Alegações, a resposta a estes é essencial e a Inspecção Judicial é o meio de lhes dar resposta, exactamente por ser por via destes, ao contrário do que sustenta o Tribunal a quo, que se demonstra ou não o conhecimento que as partes tinham de tal questão e da conduta dos Réus, importando a deslocação ao local para aferir se é razoável, face a uma zona de construção com várias casas que os adquirentes se apercebam ou lhes seja exigível perceberem que se trata de zona de construção ilegal e se, face ao contexto da zona, se admite como razoável que o vendedor induza os compradores em erro (mostrando-lhes casas circundantes como se provou em Julgamento).

IX. Sendo assim manifesto que não se pode manter esta fundamentação para afastar a realização da Inspecção Judicial.

X. Mais, o Recorrente intentou a presente acção no seguimento de procedimento cautelar que lhe foi deferido por essa Veneranda Relação nos Processos n° 2108/04-3 de 7.2.2005 da 3a Secção, ambos vindos do processo n° 218/04.7 TBARL e 839/06-2 de 16.05.2006 da 2a Secção: “Na verdade, desde que os contratos de compra e venda e de empreitada concluídos entre o Requerente marido e a 2a requerida e entre o Requerente marido e o 1° requerido foram ambos celebrados no pressuposto de que o prédio possuía capacidade construtiva, uma vez demonstrado que não é legalmente possível edificar qualquer construção nesse imóvel, tem de considerar-se perfunctoriamente provada a anulabilidade de tais negócios jurídicos, por padecerem ambos de erro sobre os motivos determinantes da vontade, nos termos do artigo 252° n° 1 do C.C. com a consequente obrigação, para os respectivos contratantes, de restituírem reciprocamente todas as prestações já efectuadas.”

XI. Intentou assim a acção pedindo a anulação do contrato-promessa de compra e venda e do contrato de empreitada, configurando a sua causa de pedir no erro que esteve na base da sua vontade de formar o negócio, a legalidade e edificabilidade do prédio em questão e atribuição da respectiva licença.

XII. Para o efeito relatou os factos que levaram à formação do negócio, pretendendo demonstrar que a sua vontade foi fundada em erro. Erro esse que resultou de um conjunto de factores, entre os quais o que lhe foi sendo transmitido pelo vendedor e empreiteiro e o próprio contexto e o local do prédio e condições em que o negócio foi celebrado. Num local desconhecido do Recorrente, por si visitado, com várias casas construídas e habitadas, com electricidade e água, num local de passagem e à beira de uma estrada principal, com contrato celebrado a um sábado, sem reconhecimento notarial ou verificarão de existência de construção. Motivo pelo qual se mostra essencial a Inspecção Judicial.

XIII. E concluindo pedindo a anulação dos negócios ou que os mesmos fossem declarados de nenhum efeito, enquadrando as várias soluções de direito nos seguintes artigos do CC que citou na sua Petição inicial: 227°, 799°, 762°, 253°, 254°, 244°, 251°, 289°, 292°, 293°, 294°, 280°, 281°, 483°, 566° e 496° – sendo que, nos termos dos artigos 511° n° 1 in fine e 664° do CPC, apenas os factos articulados limitam a decisão do Tribunal e não as várias soluções de direito que o Tribunal deve, por si, aplicar.

XIV. O que, no entender do recorrente, releva para a situação de configuração do erro em que o Recorrente fundou a sua vontade e, como tal, sempre deveria o Tribunal a quo ter permitido a produção de prova por Inspecção Judicial, o que, ao ter recusado, inviabilizou a demonstração do erro, na medida em que reduziu essa demonstração ao resultado de documentos e testemunhas, sendo que algumas das testemunhas por via de fotografia aérea mostraram dificuldade em identificar o local.

XV. Com este entendimento violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 410° e 411° do CPC, sendo a configuração da situação e local elemento determinante para formar a situação de erro e, se não constante directamente dos quesitos, é manifesto que configura facto instrumental admissível. O Recorrente requereu uma inspecção ao local a fim de o Tribunal se aperceber pessoalmente da zona e envolvente do imóvel, verificando, no essencial, a existência de várias habitações, o que o Tribunal recusou com fundamento errado, irrelevância do mesmo, por si só, ou face a anterior decisão, como se viu e não com fundamento admissível.

XVI. Sendo manifesta a essencialidade desta prova para configurar o erro que é, exactamente o que se pretendia fosse interiorizado pelo Tribunal a quo, pois em visita ao local o Tribunal a quo sempre entenderia que face à quantidade de moradias, com piscina, habitadas, existentes no local, com água e luz, sempre seria possível nos termos do artigo 612° reconstituir o processo mental, de formação do erro, que determinou o Recorrente a formar a sua vontade de celebrar os negócios aqui impugnados.

XVII. Neste sentido o Ac. STJ, 4-7-1991, in BMJ, 409°-743: “A responsabilidade por culpa na formação dos contratos tem natureza contratual e não extracontratual. A responsabilidade resulta de ter sido ofendido o princípio da boa fé que impõe o respeito pela confiança na situação que uma das partes criou e que determinou a outra parte a um conjunto de despesas em cumprimento da obrigação a que se sentiu vinculada.”

XVIII. Neste sentido ainda vide o Ac. STJ, 9-2-1993, in BMJ, 424°-607: “Demonstrada essa violação (de um comportamento negocial de boa-fé) presume-se a culpa do contraente prevaricador, nos termos do n° 1 do artigo 799° do C. Civil.”

XIX. Ainda nos termos do artigo 762°, no cumprimento da obrigação devem as partes proceder de boa fé. Sendo que agir de boa fé é “agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade e não proceder de forma oposta ao que uma consciência razoável pode tolerar”, CJ, STJ 1993, 3°-21.

XX. “A prática de actos com eficácia real deve também sujeitar-se às regras da boa fé”, A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, 824. Sendo que “A boa fé, imposta nos termos deste preceito, refere-se tanto aos deveres principais ou típicos de prestação e aos deveres secundários ou acidentais, como também aos deveres acessórios de conduta quer pelo lado do vendedor (conservação da coisa vendida e revelação dos seus segredos de funcionamento ao comprador) quer pelo lado do comprador. Não se tratando de deveres autónomos mas apenas de assegurar o cumprimento da obrigação principal”, A. Costa, Introdução, 152.

XXI. Tendo assim o Tribunal a quo errado na interpretação que fez do disposto no artigo 490° e seguintes, em articulação com os artigos 410° e 411°, ambos do CPC, devendo tal decisão ser substituída por outra que ordene a realização de inspecção judicial face ao enquadramento da factualidade sujeita a prova e essencialidade da inspecção judicial, para efeito da aplicação correcta de direito nos termos das normas decorrentes dos artigos 410° n° 3, 1225°, 428°, 623°, 227°, 251°, 252°, 253° e 254°, 244°, 247°, 289°, 292°, 293°, 280°, 281°, 294°, 483°, 799°, 566°, 496°, todos do C. Civil.»


Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC). Saliente-se, ainda, que este Tribunal apenas está obrigado a resolver as questões que sejam submetidas à sua apreciação, e não a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações (e suas conclusões) de recurso, além de que não tem de se pronunciar sobre as questões cuja decisão fique prejudicada, tudo conforme resulta do disposto nos artos 608º, nº 2, e 663º, nº 2, do NCPC.

Do teor das alegações do recorrente resulta que a matéria a decidir se resume, muito singelamente – e apesar da prolixidade das conclusões das alegações de recurso –, a apreciar do acerto da decisão constante do despacho recorrido (a fls. 202, na acta de fls. 196-203), no sentido da não-realização da diligência de prova de inspecção judicial, requerida pelos AA., e após a produção da demais prova em audiência, com fundamento em desnecessidade de tal diligência.

Cumpre apreciar e decidir.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO:

1. Estando assentes – tanto quanto resulta dos presentes autos de recurso em separado – os elementos descritos no relatório, cabe, com base neles, aferir da justeza da decisão recorrida.

Antes de mais, importa delimitar claramente o objecto do presente recurso. A dado momento das conclusões das alegações de recurso, afirma o recorrente que o despacho recorrido «padece de deficiente fundamentação» (cfr. conclusão VII) – o que pareceria sugerir uma intenção de suscitar eventual nulidade da decisão recorrida, ao abrigo do artº 615º, nº 1, do NCPC, com hipotético enquadramento na falta de fundamentação da al. b).

Porém, não foi formalizada qualquer arguição de tal nulidade – e, por isso, não será de considerar essa matéria como objecto do recurso. Em todo o caso, sempre se dirá que tal arguição de nulidade, se tivesse sido formulada, improcederia.

Com efeito, haveria que ter em conta, como dizia ALBERTO DOS REIS, perante norma de teor idêntico ao actual artº 615º, nº 1, al. b), do NCPC, que «o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 140).

Ora, no caso presente, é óbvio que não ocorre uma absoluta omissão de motivação, sendo evidente a apresentação de uma perceptível argumentação, de que o recorrente pode discordar, mas que foi produzida. E, logo, haveria que concluir pela não ocorrência daquela nulidade.

2. Vejamos então como analisar a única questão em discussão no recurso – a de saber se o tribunal a quo estava, de algum modo vinculado, a proceder à realização da diligência de inspecção judicial pedida pelos AA., apesar de entender que a mesma não permitiria obter qualquer elemento relevante para a prova de factos em que pudesse assentar a procedência substantiva da pretensão formulada pelos AA. na presente acção.

Comece-se por situar a questão nos seus precisos parâmetros.

Desde logo, está em causa uma diligência de prova que tem o seu assento legal no actual artº 491º do NCPC (de redacção idêntica ao artº 612º do pretérito CPC): «O tribunal, sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, e com ressalva da intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana, inspecionar coisas ou pessoas, a fim de se esclarecer sobre qualquer facto que interesse à decisão da causa, podendo deslocar-se ao local da questão ou mandar proceder à reconstituição dos factos, quando a entender necessária.»

Aliás, já o artº 616º do CPC de 1939 apresentava redacção semelhante, com recurso a idêntica fórmula: «(…) sempre que o julgue conveniente, pode, por sua iniciativa ou a requerimento das partes (…)». Ora, o uso dessa fórmula legislativa permitia que ALBERTO DOS REIS sustentasse a natureza discricionária do poder de determinar ou não a realização da diligência, no que seria decisiva a menção à conveniência, permitindo ao tribunal que, ainda que a parte requeresse a diligência, a indeferisse, por entender que a mesma não teria utilidade (cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 315) – o que seria decidido sem possibilidade de haver recurso de tal decisão, por se enquadrar então no artº 679º (e que foi sendo reproduzido em artigo da mesma numeração no anterior CPC e actualmente no artº 630º, nº 1, do NCPC), segundo o qual «não admitem recurso os despachos (…) proferidos no uso legal de um poder discricionário».

Afirmava, a tal propósito, esse autor: «É discricionário o poder conferido ao juiz (…) de ordenar a prova por inspecção judicial; se o juiz indeferir o requerimento em que se peça a inspecção, do despacho não cabe recurso. (…) Se o juiz indefere o requerimento, por entender que não há conveniência alguma em que a inspecção se realize, somos de parecer que o despacho não admite recurso, porque se trata então de despacho proferido no uso de poder discricionário» (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 254).

Este entendimento foi retomado por LEBRE DE FREITAS et alii, já à luz do anterior CPC, que passou entretanto a caracterizar como «proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador», conforme dispunha o artº 156º, nº 4, 2ª parte, desse CPC – numa fórmula que transitou para o actual artº 152º, nº 4, 2ª parte, do NCPC. Esses autores, em anotação ao artº 156º do anterior CPC, incluem, entre os exemplos de despachos proferidos no uso de poder discricionário, o fundado no artº 612º, nº 1, desse Código (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 299); e, em anotação ao artº 612º do anterior CPC, afirmam que «a prova por inspecção caracteriza-se pela sua oficiosidade, pois só tem lugar quando o tribunal a julgue conveniente. (…) As partes podem requerer a inspecção judicial, mas o juiz pode indeferir o requerimento por, independentemente da atinência aos factos da causa e á seriedade do requerimento, não entender verificada a sua conveniência para a formação da convicção a formar, requisito este de cariz positivo, e já não negativo, do direito à prova por inspecção judicial.» (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 559). Aliás, nesta anotação alude-se a que o próprio LEBRE DE FREITAS, em escrito anterior, «baseado na letra da lei, entendeu o poder como discricionário» (ibidem). E, ainda que com dúvidas, e dando nota de alguma divergência jurisprudencial, não deixam aqueles autores de reconhecer que «de qualquer modo, a justificação da norma é que, implicando normalmente a inspecção a deslocação do tribunal, esta só deve ter lugar quando tal se afigure útil para o esclarecimento dos factos» (idem, pp. 559-560) – o que sugere uma clara propensão dos autores para aceitar que, dada a menção a um juízo de conveniência do tribunal, se estará perante um poder discricionário, «não podendo consequentemente questionar-se em recurso a decisão de não efectuar a inspecção» (ibidem).

Perante estes elementos doutrinários, tenderíamos a propender para a não-admissão do presente recurso do despacho de indeferimento do pedido de realização da diligência de inspecção judicial, por considerarmos estar-se perante despacho proferido no uso de poder discricionário. Porém, no quadro da querela jurisprudencial a que logo aludem LEBRE DE FREITAS et alii, o certo é tem vindo a ganhar algum ascendente a orientação de que se tratará antes de um poder judicial vinculado. Essa linha de pensamento tem sido enunciada, com escassas variações, nos seguintes termos: «(…) o poder de efectuar a inspecção não é, a nosso ver, um poder discricionário ou arbitrário. É antes um poder-dever, que só poderá deixar de ser exercido no caso da diligência requerida se mostrar de todo desnecessária ou inútil para a descoberta da verdade, o que deverá constar de despacho fundamentado e susceptível de recurso, sob pena de o direito à prova por inspecção, reconhecido no art. 390º do Cód. Civil, ficar na dependência da livre vontade do juiz» (assim, Ac RP de 26/11/2013, Proc. 309/07.2TBLMG.P1, in www.dgsi.pt; e, em sentido idêntico, v. Acs. RE de 12/2/2015, Proc. 487/14.4T2STC.E1, e RG de 12/5/2016, Proc. 190/12.0TBAVV.G2, idem).

Ora, o reforço desta corrente jurisprudencial – que, aliás, se filia em aresto fundador na matéria do nosso Tribunal Supremo (cfr. Ac. STJ de 19/4/95, in CJ/STJ, ano III, tomo II, p. 43 s.) – aconselha prudencialmente a admitir alguma nota de vinculatividade (em homenagem a um direito à prova, como ainda sugerem LEBRE DE FREITAS et alii, ob. cit., vol 2º, p. 559) no exercício desse poder de decisão em relação a requerimento da parte de realização da diligência de inspecção judicial, para desse modo aceitar a recorribilidade de tal decisão.

Mas, mesmo admitindo essa nota de vinculatividade, também se nos afigura que não se deve cair no pólo oposto (em que parece incorrer alguma da mencionada jurisprudência) – o de passar a aceitar como que uma automaticidade na realização da diligência apenas porque requerida pela parte ou ser quase uma impossibilidade o indeferimento da diligência. É que não podemos olvidar que o pertinente preceito legal continua, como antes (e desde o CPC de 1939), a usar a fórmula «sempre que [tribunal] o julgue conveniente» (que já ALBERTO DOS REIS considerava decisiva, segundo a sua própria expressão) e, no fundo, a dizer que a diligência só é realizada quando o tribunal lhe reconheça conveniência para a formação da sua convicção: trata-se do tal requisito positivo, já supra mencionado (e de que falam LEBRE DE FREITAS et alii), o que só pode significar que incumbe à parte demonstrar essa conveniência, e não ao tribunal argumentar no sentido da inconveniência. Ou seja: não sendo inequívoca essa conveniência, não haverá fundamento para a realização da diligência.

Diríamos, pois, que o deferimento da diligência só deve ocorrer quando a mesma se revele manifestamente necessária e útil para a descoberta da verdade. Ou, dito de outro modo: só se impõe a realização da diligência de inspecção judicial quando, perante os elementos de prova disponíveis, seja de admitir uma possibilidade consistente de tal diligência ter relevância na formação da decisão do tribunal sobre a matéria de facto. Apenas com este critério se encontra conteúdo útil para a menção da norma em questão a um juízo de conveniência e se respeita o seu espírito, enquanto nela ainda se remete a aferição dessa conveniência para o prudente juízo do julgador.

Transpondo esta perspectiva das coisas para o caso em apreço, diremos o seguinte: está aqui em causa, afinal, saber se, já depois de produzida toda a demais prova em audiência (como se faz notar no próprio despacho recorrido), ainda seria de admitir que a realização da diligência de inspecção judicial poderia ter utilidade para a formação da convicção do julgador no sentido de ser formulada uma resposta positiva ao quesito 33º («O réu Tobias actuou deste modo para que os requerentes acreditassem que o terreno era edificável e a construção de licenciamento garantido e assim celebrassem os contratos constantes dos autos?»), com pretenderia o recorrente, tanto quanto este revela ser, no fundo, o desiderato último do seu recurso, atento o teor das conclusões IV e V.

Impõe-se, assim, formular um juízo de prognose: trata-se de nos colocarmos na posição do tribunal a quo e de indagarmos se, com o conhecimento da prova já produzida de que aquele dispunha, existiria a possibilidade de ser dado como provado aquele quesito. Como não temos acesso directo à prova produzida (nem tal seria admissível no âmbito do presente recurso), apenas podemos recorrer ao juízo que o próprio tribunal formou sobre a prova apresentada para demonstração do facto inscrito naquele quesito (e que fez constar a posteriori da motivação da decisão de facto, a fls. 218-223 da sentença de fls. 204-234). Ora, quanto às razões pelas quais o tribunal a quo considerou como não provado o quesito 33º (que surge no elenco dos factos não provados sob a al. ab)), ficaram as mesmas muito claras nessa motivação: por um lado, afirmou-se que «a versão do Autor – único a sustentar, de forma directa, a factualidade em causa – perante os restantes elementos de prova já mencionados, o Tribunal não se convenceu do seu desconhecimento relativamente às circunstâncias em que contratou com o Réu e, assim, que os negócios tenham resultado de uma actuação enganosa por parte do Réu que não encontra sustentação na prova produzida, para além das próprias afirmações do Autor»; e, por outro lado, na parte da motivação relativa ao facto não provado sob a al. g), para que o tribunal também remete a propósito da fundamentação quanto à al. ab), e depois de declarar que «independentemente do que os Autores alegam, a verdade é que sabiam, desde o início, a natureza do prédio que se propunham comprar, celebrando a escritura pública nos termos apurados», conclui-se que a «convicção do Tribunal de que o Autor sabia e pretendeu realizar os negócios celebrados nos termos em que o fez, resultantes dados elementos referidos, tornam irrelevante uma deslocação ao local, para verificação do enquadramento da construção em causa. Ainda que lá existam várias construções, concretamente casas habitadas ou prontas a habitar, tal circunstância não apaga as evidências do conhecimento que o Autor tinha da efectiva proibição de construir». Não havendo motivo para qualquer suspeição quanto à genuinidade deste juízo do tribunal a quo, tem de se aceitar como fundada a avaliação do próprio tribunal sobre a insuficiência da prova para a formulação da resposta positiva pretendida pelo recorrente.

Por aqui fica patente, ainda que por esta via indirecta, que o estado da produção da prova, e da formação da convicção do tribunal a partir dessa prova produzida, no momento em que foi considerado o requerimento dos AA. de realização da diligência de inspecção judicial, permitia concluir que a «inspecção judicial ao prédio em causa nos autos e observação das várias construções e habitações existentes na proximidade» (como se referia naquele requerimento) nada acrescentaria à decisão de facto, sendo um mero acto inútil, sem virtualidade para produzir qualquer alteração relevante na formação da convicção do tribunal. E, logicamente, ao claudicar a demonstração da conveniência da diligência, era lícito ao tribunal a quo recusar a realização da mesma, sendo congruente com esse juízo de falta de conveniência a fundamentação que se fez verter no despacho recorrido.

A rematar, diga-se ainda que essa decisão de indeferimento da diligência pelo tribunal a quo não contrariou a anterior decisão desta Relação, determinativa da repetição do julgamento, porquanto, não obstante aí se mencionar a hipótese de realização de uma inspecção judicial, não se deixou também de sublinhar que esta teria lugar eventualmente e apenas se do novo julgamento resultasse tal realização como necessária para a justa composição do litígio – ou seja, e mais uma vez, conferindo ao tribunal a quo o poder de aferição da conveniência da diligência, num integral respeito do critério do legislador de remeter essa aferição para o prudente juízo do julgador.

Neste conspecto, e por não se vislumbrar razão para pôr em crise a concreta valoração do tribunal a quo quanto à não verificação da conveniência na realização da requerida diligência de inspecção judicial, com os fundamentos que constam da decisão recorrida, entende-se não haver motivo para alterar essa decisão. E, como tal, deverá improceder integralmente a presente apelação.

3. Em suma: não merece censura o juízo decisório formulado pelo tribunal a quo, não se mostrando violada qualquer disposição legal, pelo que deve improceder integralmente a presente apelação.
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo A. apelante (artº 527º do NCPC).


Évora, 3 /11/2016


(Mário António Mendes Serrano)


(Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes)


(Mário João Canelas Brás)