Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2774/22.9T8FAR.E1
Relator: JOSÉ LÚCIO
Descritores: ARRESTO
REQUISITOS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 – Para decretamento de um arresto exige-se, cumulativamente, a prova indiciária da existência de um direito de crédito do requerente e de um receio justificado de desaparecimento da garantia patrimonial desse crédito.
2 – A demonstração da existência desses requisitos, ainda que meramente de forma indiciária, pertence a quem requeira a providência, de acordo com as regras gerais sobre o ónus da prova.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
A requerente, AA, melhor identificada nos autos, intentou procedimento cautelar de arresto, como preliminar de acção declarativa de condenação, contra as requeridas AJTM Immobilier Portugal, Unipessoal, Lda., e ATJ – Promotion, Sucursal Portugal, também com os sinais dos autos.
Peticionou a requerente que fosse decretado o arresto de um imóvel sito na Rua ... e Rua ..., na cidade de Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º ...07, inscrito na Matriz sob o art.º ...08... – de Natureza Urbana.
Alega para justificar o seu pedido que é a dona de um prédio urbano vizinho desse e que por força de escavações efectuadas em obras no prédio que referiu o seu prédio veio a sofrer danos estruturais, que avalia em € 49.890,40, a que devem acrescer os prejuízos decorrentes do encerramento temporário do estabelecimento de alojamento local que explora no local.
Esses trabalhos de escavação, que provocaram o deslocamento de terras, foram executados em Março de 2020, no terreno então registado em nome da segunda requerida, que ali construiu um edifício, sendo certo que, entretanto, o imóvel está agora registado em nome da primeira requerida.
Conclui a requerente que está seriamente indiciado o seu direito a ser indemnizada pelos danos que referiu, e que face às dificuldades em identificar as responsabilidades de cada uma das requeridas existe também o receio justificado de perda da garantia patrimonial desse seu crédito, pelo que deve ser decretado o arresto.
Admitido liminarmente o procedimento cautelar, e produzida a prova disponibilizada pela requerente, foi proferida decisão que ordenou o arresto pretendido.
Todavia, após exercido o contraditório, surgiu a oposição das requeridas e foi produzida a prova indicada por estas, tendo nessa sequência sido proferida nova decisão em sentido contrário, que determinou o levantamento do arresto, por improcedência do pedido da requerente.
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II – O RECURSO
A requerente intentou então o presente recurso de apelação, apresentando no final as seguintes conclusões:
“A - Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida nos autos de Providência Cautelar de Arresto, que ordenou o levantamento do Arresto decretado por decisão anterior.
B) – Fê-lo a M.ª Juiz “a quo”, com total abandono das conclusões que originaram a determinação dos factos provados e não provados, constantes da decisão recorrida.
C) – Sem que, da produção de prova pelas Apeladas, tenham emergido factos, provados de forma convincente, relevantes para a alteração da decisão inicialmente adotada.
D) – Sendo certo que, “no processo judicial, os factos alegados estão sempre em dúvida, isto é, carecem de prova convincente; a afirmação da parte é insuficiente para tal efeito”. (TRE Processo n.º 571/15.7EVR-A.E1 – 2.ª Secção).
E) – Os documentos que suportam a decisão quanto à matéria de facto sob recurso são os mesmos que suportaram decisão em sentido contrário anterior;
F) – E o que se passou na audiência das testemunhas arroladas pelas Apeladas foi, tão somente, a verbalização de referências a factos, por elas alegados na sua Oposição, em moldes de “penso que”; “parece que”; “cerca de”; “à volta de”; “é possível que”.
G) – As requeridas preocuparam-se, no decurso da audiência, em deixar perante o Tribunal “a quo” uma “imagem de honestidade do seu gerente”, o que nem sequer foi posto em causa no decurso do processo, bem como a ideia – e apenas isso – de que eram – ou são – empresas responsáveis.
H) – O que está, e sempre esteve, em causa no processo, eram outras e mais importantes questões, nomeadamente,
(i) se na construção do edifício das requeridas, aqui Apeladas, foram tomadas as precauções necessárias a evitar danos nos prédios vizinhos, onde se incorpora o prédio da requerente, ora Apelante, e
(ii) se as Apeladas têm condições patrimoniais suficientes para assegurar o pagamento dos danos e prejuízos causados no prédio da Apelante, podendo esta “confiar” naquelas, sem necessidade de ser mantido o arresto que foi deferido “ab initio” nestes autos;
I) – Ambas as questões merecem resposta negativa.
J) – Para a resposta à primeira das questões foram considerados não provados os factos alegados pelas Apeladas, constantes de C, D e E dos factos não provados;
K) – A resposta negativa à segunda daquelas questões, decorre da prova produzida pelas Apeladas, da qual resulta claro que:
(i) São proprietárias do prédio edificado no terreno identificado nos autos;
(ii) Estão prometidas vender cerca de metade das frações do edifício (depoimento da testemunha BB, que se encontra registado de 1h08m40s a 1h17m40s, da gravação da audiência;
(iii) Está por executar definitivamente a permuta de algumas frações entre a primeira e a segunda Requeridas, ora Apeladas, em resultado da transmissão desta para aquela do terreno em causa;
L) – E por último, mas não menos importante, o facto de sobre o imóvel incidir uma hipoteca, no montante de dois milhões de euros, desconhecendo-se se a mesma incide sobre a totalidade das frações do edifício ou apenas sobre algumas e em que medida, mas que, pela certidão junta aos autos pela Apelante, tem de considerar-se como incidindo sobre a totalidade do imóvel.
M) – Como se observa no Douto Acórdão do TR Coimbra, de 18-06-2002, no Proc. N.º 182/02, “Estando provado que todos os prédios em relação aos quais se pode afirmar com um mínimo de segurança que são pertença da requerida se encontram hipotecados, é de concluir pelo fundado receio, por parte da requerente, da perda da garantia patrimonial do seu crédito e, consequentemente, pela manutenção do arresto”, (in www.dgsi.pt)
N) – Também releva, pela sua importância, a ausência de alegação, e prova, de factos reveladores da suficiência dos bens das Apeladas para afastar o justo receio da Apelante quanto à perda de garantia de ver reparados os danos, que foram causados no decurso da construção do prédio das Apeladas;
O) – E se foram referidos, “en passant”, sem qualquer concretização, outros projetos das Apeladas, a verdade é que estas não juntaram aos autos qualquer documento comprovativo da existência desses “novos projetos”, nomeadamente certidões prediais para prova de propriedade de quaisquer imóveis, ou certidões de aprovação por quaisquer Municípios de novos projetos a levar a cabo pelas Apeladas;
P) – As Apeladas não juntaram aos autos quaisquer documentos que validassem a alegação da sua suficiência económica e financeira, quer através da apresentação de documentação extraída da sua contabilidade, quer da apresentação de documentação oficial da qual fosse possível extrair aquela suficiência económica;
Q) – Sendo certo que: “A existência de uma faturação considerável não basta para se concluir que a requerida tem uma boa saúde financeira, pois além da faturação importa considerar a quantidade de dinheiro que entrou efetivamente na empresa …/… já que um número de vendas elevado pode não corresponder a uma entrada de dinheiro correspondente a tais vendas, o que ocorre, nomeadamente, nos casos de incumprimento do devedor”. (Acórdão da Relação de Évora, de 25-06-2020 – Proc.º 451/19.7T8SSB.E1), (in www.dgsi.pt)
R) – “Além disso, importaria ainda saber quais os custos fixos, o índice de endividamento e o lucro da empresa, elementos que a requerida não trouxe ao processo …/…” (Acórdão RE, citado na conclusão anterior);
S) – A M.ª Juiz “a quo” sustentou a sua, aliás douta, decisão, no facto, alegado pelas Apeladas, de que “tiveram necessidade de um financiamento bancário e que a instituição de crédito exigiu que fosse criada uma pessoa coletiva com sede em Portugal” referindo-se que tal “exigência” decorreria da circunstância da segunda Requerida, aqui Apelada, AJP, ser uma sociedade de direito francês.
T) – A constituição da sociedade primeira Requerida, aqui Apelada, resulta de uma decisão dos detentores do seu capital – a mesma sociedade AJP, a segunda das Apeladas – e, tal criação, em nada belisca os interesses da Apelante;
U) – Diferente é a sequência de atos celebrados entre ambas as Apeladas que consistiu na transmissão, da segunda para a primeira das Apeladas, do terreno identificado nos autos, sobre o qual foi desenvolvida a construção do edifício, que causou os danos no prédio da Apelante;
V) – Sendo que o terreno, era o único bem conhecido da segunda Apelada, e passou a ser o único bem conhecido da primeira Apelada, no qual ambas erigiram o edifício a que pertencem as frações arrestadas;
X) – Que constitui, inequivocamente, forte razão para o justo receio da Apelante de ver perdida qualquer garantia patrimonial que assegure a reparação dos danos causados no seu prédio.
Z) – A M.ª Juiz “a quo” limitou demasiado o âmbito do pedido formulado pela Apelante no requerimento inicial de Arresto, justificativa do justo receio da
Apelante de ver perdida a garantia que assegure a reposição da situação patrimonial em que se encontrava, antes da ocorrência dos factos que causaram os danos no seu prédio, adotando uma solução de sequestro de toda a matéria de facto considerada provada e fazendo emergir como “facto único” justificativo da decisão proferida “a mudança de nome da titular do terreno” (ver fls. 13 da douta sentença recorrida).
AA)–Apenas o depoimento da testemunha CC, que se encontra registado de 47m28s a 1h07m00s da gravação da audiência, abordou a questão da constituição da sociedade de direito português, imposta (sugerida) naturalmente pela entidade bancária, sem abordar razões de ordem económica ou financeira das Apeladas, deixando aberta “a estrada” pela qual a M.ª Juiz “a quo” haveria de “caminhar” na busca da avaliação que fez de tal depoimento que acabou por ser considerada relevante, muito para além dos temas abordados e do seu próprio conteúdo.
BB) – Por outro lado, refere a M.ª Juiz “a quo”, na douta sentença recorrida, a fls. 15, que não foi alegado pela Requerente que as Requeridas se encontram a desfazer de quaisquer outros bens, omitindo que em lugar algum dos autos foi referida a existência e/ou conhecimento da Apelante e do Tribunal, de outros bens das Apeladas;
CC) – Sendo, porém, a M.ª Juiz “a quo” quem refere, na continuação do texto citado, que a 1.ª das Apeladas se encontra a vender as referidas frações, pelo que não é previsível a dissipação de capital;
DD) – Só que, concluindo a M.ª Juiz “a quo” nesta parte da douta sentença, como concluiu, não teve em conta o depoimento da testemunha BB, que se encontra registado de 1h08m40s a 1h17m40s, da gravação da audiência, o qual a M.ªJuiz considerou ser “lógico e sereno que se afigurou como credível para o presente Tribunal”;
EE) – Porque se tivesse presente o conteúdo do depoimento tomaria em conta que a testemunha referiu com clareza, diga-se, que está a vender as frações do edifício, cerca de metade das quais já estão comprometidas com Contrato Promessa de Compra e Venda e também que tem preparada a documentação para celebrar a escritura de permuta entre as Apeladas de um conjunto de frações que não especificou.
FF) – O que a testemunha não referiu foi qual seria o destino dos valores a receber de tais vendas, bem como qual o tipo de ónus que incide sobre cada uma das frações do edifício.
GG) – O que obriga a citar de novo o conteúdo do (Acórdão da Relação de Évora, de 25-06-2020 – Proc.º 451/19.7T8SSB.E1), (in www.dgsi.pt), na parte que refere que: “Além disso, importaria ainda saber quais os custos fixos, o índice de endividamento e o lucro da empresa, elementos que a requerida não trouxe ao processo …/…”
HH) – Ou seja, ao contrário do que concluiu a M.ª Juiz “a quo”, o que estão as Apeladas a desenvolver é uma ação de dissipação do património, ainda que através da sua venda, desconhecendo a Apelante – e o Tribunal – qual é a situação económica e financeira das Apeladas, porque sobre isso não foi produzida qualquer prova.
II) – Como também não foi alegado pelas Apeladas, nem provada nos autos, a existência “de quaisquer outros bens”.
JJ) – O único património conhecido das Apeladas é o Edifício cujas frações se encontram arrestadas nestes autos e que assim deverão continuar.
KK) – Já no Douto Acórdão da Relação de Coimbra, de 23-01-2001, no Processo n.º 3425/00, se determinava que “A lei não exige a alegação e prova de que os bens a arrestar constituem a única garantia patrimonial do crédito. O que interessa é que os bens cujo arresto se pede figurem no património do devedor, não tendo o credor a obrigação de saber com exatidão quais os bens que integram tal património”, (in www.dgsi.pt)
LL) – Ao dar especial relevância a factos de que retirou entendimento diverso do esperado pela Apelante, a M.ª Juiz “a quo” reduziu “a cinzas” o entendimento que havia retirado dos factos alegados pela Apelante e considerados provados, na primeira decisão, que levaram ao decretamento do Arresto.
MM) – Passando ao lado da questão de fundo alegada pela Apelante e que é o seu justo receio resultante do desconhecimento dos negócios que as Apeladas irão fazer entre si e com terceiros, tendo sempre como único bem de referência, o conjunto das frações do edifício erigido no terreno identificado nos autos, e que estão arrestadas.
NN) – O que causa à Apelante enorme receio de ver dissipar-se o único património das Apeladas, atenta a urgência manifestada por elas próprias nestes autos, de ver concretizados os negócios com a celebração de escrituras de compra e venda e de permuta de frações entre ambas.
OO) – Atento o disposto no n.º 1 do artigo 362.º do CPC entende a Apelante que a manutenção do arresto, nos termos doutamente ordenados na primeira decisão, é a única forma de assegurar a composição da situação em que a Apelante se encontrava antes da produção dos danos.
PP) – Pela prova produzida em audiência e/ou pelos documentos que se encontram juntos aos autos, a decisão do Tribunal nunca poderia ser aquela que foi doutamente adotada pela M.ª Juiz “a quo”, mas antes outra que mantenha o arresto nos termos em que foi decidido na primeira decisão tomada pelo Tribunal, a qual se espera seja retomada por este Venerando Tribunal.
QQ) – Porque não foi produzida qualquer prova suscetível de afastar o justo receio da Apelante de ver perdida a garantia patrimonial que assegure a reparação dos danos causados pelas Apeladas no seu imóvel.
RR) – A sentença recorrida viola o disposto no artigo 619.º, n.º 1 do C. Civil, bem como os artigos 391.º, n.º 1; 392.º, n.º 1 e 396.º, n.º 3, todos do C. P. Civil;
Termos em que, obtido de V. Exas., Venerandos Desembargadores, o provimento para o presente recurso, espera-se a prolação de douta decisão que revogue a douta sentença recorrida, mantendo-se o Arresto sobre os bens das Apeladas, nos termos da decisão anteriormente proferidas nos autos”.
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III – DA RESPOSTA
Contra alegaram as requeridas, pugnando pela confirmação da decisão impugnada, considerando que o tribunal andou bem em por fim julgar improcedente o procedimento cautelar e ordenar o levantamento do arresto, até por no seu entender quer a matéria de facto alegada pela requerente quer a matéria de facto provada pelo Tribunal não permitiam o decretamento do arresto decidido inicialmente.
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IV - DOS FACTOS
Na decisão recorrida foram considerados indiciariamente provados os seguintes factos, considerados de interesse para a decisão do procedimento cautelar:
“1) A Requerente é dona e legítima possuidora do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de Olhão, concelho de Olhão, inscrito na matriz predial daquela freguesia sob o artigo ...30.
2) No imóvel identificado no artigo anterior, a Requerente desenvolve a atividade hoteleira, ali funcionando um Alojamento Local.
3) A 1ª Requerida, Ajmt Immobilier Portugal, Unipessoal, Lda., é dona do terreno sito na Rua ... e Rua ..., na cidade de Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o nº ...07, inscrito na Matriz sob o art.º ...08... – de Natureza Urbana.
4) O terreno referido acima, confina, entre outros, com um prédio da mesma rua, que, por sua vez, confina com o prédio da Autora.
5) Em Março de 2020, o terreno era propriedade da 2ª Requerida, Atj Promotion, Sucursal em Portugal, tendo esta iniciado no mesmo terreno a construção de um edifício, ao abrigo de Alvará de Obras de Construção com o nº 47, emitido em .../.../2020 pelo Município de Olhão.
6) Após, a 2ª Requerida, Atj Promotion, Sucursal em Portugal, necessitou de financiamento bancário, tendo-lhe sido imposto, para o efeito, pela entidade bancária, a criação de uma sociedade comercial de direito português.
7) Nesse seguimento, foi criada a 1ª Requerida, Ajmt Immobilier Portugal, Unipessoal, Lda., totalmente detida pela 2ª Requerida, Atj Promotion, Sucursal em Portugal.
8) O imóvel foi transmitido, por permuta, a troco de um número indefinido de apartamentos, da 2ª para a 1ª Requerida.
9) Antes do início da construção do edifício da 2ª Requerida, foi realizada a demolição de um Armazém que confinava com os prédios circundantes.
10) O armazém demolido confinava, por encosto de paredes, entre outros, com o referido prédio sito na Rua ... que confina com o prédio da Autora do outro lado.
11) Na demolição do armazém pré-existente, foi retirado o apoio à parede da empena poente do prédio referido no artigo anterior.
12) Não foi construída qualquer estrutura de apoio para os prédios confinantes.
13) De seguida, no mesmo local, iniciaram-se escavações do terreno.
14) As escavações ocorreram abaixo do nível do solo, sendo que nesse período continuaram a não existir paredes de contenção ou de escoramento.
15) Em resultado da demolição e escavações descritas, o prédio que confinava com o terreno cedeu nas suas fundações, afastando-se do prédio da requerente que, em consequência, sofreu igual deslocamento, resultando fissuras interiores e exteriores.
16) A Requerente pretende obter do proprietário do terreno onde foram efetuadas as escavações a reparação dos danos sofridos no seu prédio e prejuízos conexos.
17) Tendo iniciado os procedimentos nesse sentido, a Requerente constatou que, tendo o Município de Olhão emitido o Alvará de Obras de Construção em nome da 2ª Requerida, a propriedade do terreno havia sido transmitida pela 2ª, à 1ª Requerida, por permuta.
18) Neste seguimento, a Requerente solicitou ao Município de Olhão esclarecimentos sobre o facto do Alvará de Obras de Construção não ter sido emitido a pedido do proprietário do terreno onde a Obra irá ser executada, ou de um titular de direito que lhe permita a formalização do pedido.
19) O Município de Olhão não deu qualquer resposta.
20) Assim, a aqui Requerente requereu, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, intimação do Município de Olhão para que prestasse a informação pedida, tendo obtido provimento na ação intentada, conforme sentença proferida no dia 13 de maio de 2022, já transitada em julgado.
21) No entanto, e ainda assim, o Município de Olhão não emitiu certidão.
22) O que impede a Requerente de conhecer a situação concreta da Obra em execução no terreno atualmente registado em nome da 1ª Requerida, mas anteriormente, à data das condutas descritas, em nome da 2ª Requerida, de modo a que possa conhecer os verdadeiros responsáveis pela reparação dos danos causados no seu prédio, em consequência das escavações ali levadas a efeito.
23) No aviso do local da obra, constava enquanto titular do alvará a 2ª requerida.
24) No dia 18/08/2022 foi averbado na descrição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o nº ...56 da freguesia de Olhão, a constituição de tal prédio em propriedade horizontal, dividido em 20 frações autónomas.
25) As frações que compõem o prédio arrestado têm a tipologia T1, T2 e T3.
26) Já se encontram celebrados contratos promessa relativos a algumas das fracções, encontrando-se os T1 a ser vendidos por preços na ordem dos € 180.000,00. “
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V – DO DIREITO
1 - Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, a questão colocada ao tribunal de recurso, tendo em conta o conteúdo das conclusões que acima se transcreveram, resume-se em decidir, considerando o Direito aplicável, sobre o acerto da decisão impugnada, que se sintetiza na improcedência do pedido da requerente e consequente levantamento do arresto primeiramente decidido.
Todavia, e por se tratar de matéria suscitada nas alegações da recorrente, ainda se apreciará da eventual nulidade da decisão por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, uma vez que o tribunal não se pronunciou sobre a eventual redução do arresto, aludido no requerimento de oposição das requeridas.
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2 – DA EVENTUAL NULIDADE
Do art. 615º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, resulta que é nula a sentença quando “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Como é sabido, na situação prevista em primeiro lugar haverá omissão de pronúncia e na segunda parte do preceito prevê-se o vício conhecido como excesso de pronúncia.
Esta previsão legal está em íntima ligação com o disposto no art. 608º, n.º 2, do mesmo CPC, que reza o seguinte:
O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Transcrevemos a norma, para que se constate que não assiste razão legal à recorrente quando alude a hipotética omissão de pronúncia por na decisão impugnada não ser equacionada a possibilidade de redução do arresto, apesar de as requeridas na sua oposição mencionarem essa hipótese.
Porém, a verdade é que as requeridas alvitram essa eventual redução do arresto, a uma fracção do imóvel arrestado, para o caso de improceder a sua oposição ao próprio arresto.
Tendo a decisão recorrida analisado a questão principal que lhe era colocada e decidido que era improcedente o pedido da requerente e que o arresto inicial não se podia manter, ordenando o seu levantamento, ficou naturalmente prejudicada a questão secundária que era colocada para o caso de se manter o arresto (a sua redução quantitativa).
Assim, segundo os próprios termos do art. 608º, n.º 2, do CPC, não tinha o tribunal que apreciar uma questão que ficou obviamente prejudicada pela solução dada a outra que a antecedia logicamente.
Não existe, pois, a apontada nulidade por omissão de pronúncia.
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3 – SOBRE OS FACTOS
Lendo a argumentação da recorrente, exposta nas suas alegações e nas respectivas conclusões, afigura-se por vezes que aflora em algumas passagens a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto feito na primeira instância.
Todavia, a impugnação do julgamento da matéria de facto por via de recurso obedece a formalismos que estão legalmente regulados, designadamente no art. 640º do CPC.
Nessa norma estão previstos, concretamente, os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto.
Ora o certo é que percorrendo as alegações e as conclusões da recorrente em parte alguma encontramos a impugnação do julgamento feito sobre tal matéria, nos termos legais.
Nunca são indicados os concretos pontos de facto que a recorrente considera incorrectamente julgados, nem os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, nem a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Assim sendo, e não se deparando nenhuma situação que demande alteração por via oficiosa, consignamos apenas que a decisão sobre o recurso em apreço depende apenas da matéria de direito, considerando estabilizada a factualidade vinda da instância recorrida.
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4 - SOBRE O ARRESTO
Perante o quadro factual indiciariamente provado, constituído pelos factos atrás descritos, importa verificar e decidir se estão ou não preenchidos os requisitos necessários para o decretamento da providência requerida, o arresto do imóvel em causa (ou de uma parte dele).
A providência pedida consiste num arresto preventivo, matéria esta que é regulada nos artigos 619.º a 622.º do Código Civil e artigos 391.º a 396.º do CPC, e que se caracteriza como uma providência cautelar conservatória da garantia patrimonial de obrigações civis e comerciais.
Tal como acontece com os restantes procedimentos cautelares, o arresto exerce uma função instrumental relativamente ao processo declarativo ou executivo, assegurando que os bens arrestados se irão manter na esfera jurídica do devedor até que seja obtida coactivamente a realização do direito do credor.
A sua finalidade consiste na conservação da garantia patrimonial do credor, impedindo o esvaziamento do património do devedor.
Pretende-se com o arresto impedir que o perigo da demora inevitável do processo (o chamado periculum in mora) venha a impedir a futura eficácia da sentença favorável ao requerente da providência, frustrando dessa forma a satisfação do seu crédito.
Nesta ordem de ideias, estabelece o art. 619.º, n.º 1, do Código Civil que “o credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei do processo.”
E isso mesmo é reiterado, em sede adjectiva, pelo art. 391.º, n.º 1, do CPC.
Por seu turno, dispõe o n.º 2 do mesmo art. 391.º do CPC que “o arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrariar o preceituado nesta secção.”
Constitui entendimento pacífico e generalizado que neste procedimento compete ao requerente alegar e provar de forma sumária “(…) os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência”, conforme prescreve o artigo 392.º, n. º1, do CPC.
Demonstrados os requisitos necessários, o arresto será decretado, sem audiência da parte contrária (conforme o art. 393.º, n.º 1, do CPC, após serem “examinadas as provas produzidas (…) desde que se mostrem preenchidos os requisitos legais”.
Deste modo, e em síntese, resulta das normas citadas que o arresto depende da verificação de dois requisitos cumulativos:
- A probabilidade séria da existência do direito de crédito invocado pelo requerente (fumus boni iuris);
- O justo receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito (periculum in mora).
Em relação ao primeiro requisito, ele traduz-se na exigência da demonstração da aparência do direito, sem que obste à procedência do pedido saber se o crédito é líquido ou ilíquido, exigível ou inexigível, ou se já se encontra apreciado jurisdicionalmente (o citado art. 391.º do CPC menciona apenas a probabilidade ou verosimilhança da existência do crédito, sem aludir à respectiva origem, exigibilidade ou liquidez).
O segundo requisito, normalmente referido como periculum in mora, consiste num receio justificado de perda da garantia patrimonial do crédito (não basta um receio subjetivo do credor, baseado em meras conjecturas, são necessários factos positivos e concretos que demonstrem haver fundamento para tal receio).
Este segundo requisito impõe ao requerente o ónus de alegar e provar, ainda que indiciariamente, a existência de um circunstancialismo fáctico que faz antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito.
Impõe-se sublinhar que pese embora o carácter indiciário da prova a produzir para o decretamento do arresto, naturalmente menos exigente do que aquela que se exige no processo principal, não pode considerar-se postergada nesta sede a repartição do ónus da prova estabelecida no art. 342º do CPC.
Continua a ser sobre o requerente que recai o ónus de comprovar que se verificam os requisitos de que depende o decretamento da providência.
Ora percorrendo as conclusões da recorrente parece retirar-se a ideia que seriam as recorridas a ter que fazer a prova de que não estão reunidos esses tais requisitos.
Dito isto, e tendo presentes as orientações legais, resta verificar se na situação presente, tal como consta dos factos provados (que não coincidem com os mencionados no argumentário da recorrente, designadamente nas suas conclusões de recurso), estão ou não reunidos os requisitos para o decretamento do arresto.
No que respeita ao primeiro requisito, a probabilidade séria da existência do direito de crédito, considerou a primeira instância que o mesmo estava indiciariamente preenchido. Quanto ao segundo dos requisitos exigíveis, o justificado receio do desaparecimento das garantias patrimoniais para esse crédito, julgou-se que não estava demonstrado (diferentemente do que foi entendido na primitiva decisão, sem contraditório), pelo que não havia lugar ao arresto.
Como se pode ler na sentença em análise, “entende o Tribunal que a Requerente, comprovou, de forma sumária os factos que tornam provável a existência do crédito sobre as Requeridas mas não fundamentou o alegado justo receio de perda da garantia patrimonial, pelo que não se verifica demonstrado o segundo requisito dos requisitos que se escreveu serem necessários.
A recorrente não discorda da primeira dessas considerações, muito naturalmente, centrando a sua discordância na segunda e decisiva afirmação, pelo que não nos alongaremos sobre a questão do direito de crédito alegado.
Com efeito, em face da matéria de facto apresentada, haveria lugar a dúvidas mesmo sobre essa primeira questão.
Na verdade, diz-se que “resultou indiciariamente provado que, efectivamente, aquelas obras foram efectuadas e que causaram danos exteriores e interiores do prédio da requerente, pelo que, sem grandes margens para dúvidas, considera-se que se encontra preenchido o primeiro requisito, a probabilidade séria da existência de um crédito da requerente sobre as Requeridas (sendo de determinar a quota parte da responsabilidade de cada uma em sede da acção principal).
Ora a verdade é que a factualidade apurada não permite nem por aproximação conhecer qual o valor em causa (qual o valor da indemnização correspondente aos danos falados, aliás estes também referidos sem um mínimo de concretização).
Esta realidade prejudicaria, só por si, eventuais considerações sobre proporcionalidade, que também têm o seu lugar em sede de arresto (repare-se que no caso dos autos o arresto incidiu sobre um imóvel composto por vinte fracções, que a primeira requerida está a vender, sendo as mais baratas pelo preço de €180.000 – tendo a requerente indicado inicialmente o seu crédito como ascendendo a €49.890,40).
Acrescentamos, ainda, que dessa factualidade também não se extrai quem será responsável por essa hipotética indemnização. As obras aludidas terão sido executadas pela segunda requerida, em Março de 2020, em terreno que nessa data era seu (ATJ Promotion).
Mas o imóvel agora existente, e sobre o qual recaiu o arresto, pertence à segunda requerida (AJMT Immobilier), que segundo se depreende dessa mesma factualidade nem sequer existia à data dos factos lesantes.
Torna-se evidente a dificuldade de justificar o arresto de bens da AJMT como forma de garantir um eventual crédito sem que se demonstre quem é o sujeito passivo desse direito (ou seja, a responsabilidade da arrestada).
Se os bens arrestados não pertencem à alegada responsável (a dona do imóvel e da obra, na data a considerar, que era a ATJ), como poderia justificar-se e manter-se o arresto em bens que não são da devedora?
Porém, como se disse, não nos alongaremos em considerandos sobre esta questão, do falado direito de crédito, uma vez que o tema do recurso centra-se na outra questão, a existência ou não do segundo requisito exigível para o decretamento do arresto, que vem a ser o justo receio de perda da garantia patrimonial.
Ora sobre este ponto é forçoso considerar que a matéria apresentada como base para a decisão não permite concluir pela existência de qualquer conduta subjectiva das requeridas, ou qualquer circunstância objectiva, que permita afirmar como real e fundamentado o aludido receio.
Esse requisito, o chamado periculum in mora, tem que estar indiciariamente demonstrado por factos que justifiquem o receio invocado.
Ora no caso presente nada sabemos sobre a situação económica, financeira ou patrimonial das requeridas, nada encontramos provado que indicie tentativas destas em se eximirem a eventuais responsabilidades indemnizatórias, nada se encontra nos factos provados a não ser a referência às dificuldades da requerente em obter da Câmara Municipal de Olhão informação administrativa sobre os alvarás de obras emitidos por esta (o que nem pode ver-se como imputável às requeridas).
Os factos conhecidos imputáveis às duas requeridas, encontram-se no ponto 8 dos factos provados (ou seja, o imóvel inicial foi transmitido, por permuta, a troco de um número indefinido de apartamentos, da 2ª para a 1ª requerida) e aqueles imputáveis apenas à primeira requerida (que como já dissemos não coincide com a indicada como responsável pelas obras que produziram os danos apurados) localizam-se apenas nos pontos 24, 25 e 26:
- No dia 18/08/2022 foi averbado na descrição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o nº ...56 da freguesia de Olhão, a constituição de tal prédio em propriedade horizontal, dividido em 20 fracções autónomas; as fracções que compõem o prédio arrestado têm a tipologia T1, T2 e T3; já se encontram celebrados contratos promessa relativos a algumas das fracções, encontrando-se os T1 a ser vendidos por preços na ordem dos € 180.000,00.
Ora isto nada tem de irregular, anormal, de suspeito, em relação a qualquer eventual responsabilidade indemnizatória.
Aparentemente trata-se de actividade normal inerente ao ramo imobiliário, em que tais factos se enquadram, não podendo ver-se nela a demonstração do perigo afirmado pela requerente.
Perante o quadro factual disponível, acompanhamos a conclusão do tribunal recorrido quando afirma que “não se verifica, de forma certa, concretizada e objectiva o perigo de perda da garantia patrimonial para satisfazer o referido crédito da Requerente”.
Improcede, portanto, o recurso sub judice, impondo-se a confirmação da decisão que vem impugnada.
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VI - DECISÃO
Pelo exposto, julgamos improcedente a apelação, e confirmamos a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, dado o decaimento (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 2 de Março de 2023
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso