Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:
1. RELATÓRIO
1.1. No processo comum n.º 81/15.2JBLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Central Criminal, Juiz 2, realizada audiência a que alude o artigo 472º, n.º 1, do Código de Processo Penal ex vi artigo 78º n.º 2, do Código Penal, relativamente ao arguido MAN, com vista à realização de cúmulo jurídico das penas parcelares em que este foi condenado nesses autos e nos processos n.º 1232/14.0PHLRS (do Juízo de Pequena Criminalidade de Loures) e n.º 428/15.1JACBR (do Juízo Central Criminal de Santarém), foi proferido acórdão, em 19/11/2021, que decidiu não proceder a tal cúmulo jurídico.
1.2. Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs recurso para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação apresentada as conclusões que seguidamente se transcrevem:
«1. O douto acórdão ora sob censura começa por enfatizar que existem “in casu” os requisitos objetivos exigíveis por lei para a formulação do necessário cúmulo jurídico (se não existissem tais requisitos certamente que o douto Tribunal não teria designado e procedido à respectiva audiência de cúmulo, com todos os intervenientes processuais: Magistrados, mandatários e arguidos)
2. Mas no decorrer da fundamentação entende (o douto acórdão) que dada personalidade revelada pelo recorrente e a natureza dos crimes que são “graves” e alguns deles punidos com prisão, este não deva ser de certo modo “beneficiado” nas regras da formulação do cúmulo, pelo que, de acordo com este severo e securitário entendimento as “contas” a fazer devem ser outras (pois que o aludido “factor de compressão – equacionado a pág. 27/28 passaria a ter ser “mais curto” fixando-se em ½ (pag. 28 do recorrido acórdão). O que tudo resultaria numa condenação do arguido numa pena ainda maior… (vide pág. 29 do decidido)
3. Ora, para encontrar as regras “normais” da formulação do cúmulo – não deve prevalecer a apurada medida do dolo ou a caracterização do crime ou a “vivência” ou o “percurso” do arguido, nem se a estes foram imputados crimes “graves” (quando este não foi julgado por homicídio”) e muito menos a alegação que algumas dessas penas foram de prisão efetiva.
4. Ao proceder desse modo – e ao contextualizar desse modo – a postura do arguido traduzida nas penas em que já foi condenado, para mais transitadas em julgado, a instância violou, por erro de interpretação o disposto no art.º 77.º e 78.º do Código Penal, fazendo de tal preceito uma interpretação materialmente inconstitucional por violação dos direitos de defesa do arguido e dos princípios estruturantes do processo penal para o arguido consignados no art.º 32.º da Constituição da República.
5. Pelo que o arguido teria sempre direito à formulação de um cúmulo jurídico nos termos legais, com a aplicação de uma pena única, inferior à soma material das penas em concurso.
6. Ao assim proceder, revogando o douto acórdão e substituindo-o por decisão que ordene a formulação do apontado cúmulo jurídico, exercerão Vossas Excelências a melhor e mais acostumada Justiça!!»
1.3. O recurso foi regularmente admitido.
1.4. O Ministério Público respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido de dever ser julgado improcedente, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«1. A decisão recorrida lançou mão do conceito de “factor de compressão” que consta do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo 634/15 em 6 de Janeiro de 2021, não se alcançando em que medida foi o mesmo mal interpretado;
2. A decisão recorrida, norteando-se pelos critérios constantes no Artº 77º, nº 1 do Código Penal – a globalidade dos factos e a personalidade do agente – entendeu que à pena parcelar mais elevada deveria acrescer, no mínimo, 1/3 das demais penas;
3. A operação aritmética resultante desse entendimento culminaria na fixação de uma pena de prisão superior à soma das penas únicas em concurso, uma vez que todas resultam de operações de cúmulo jurídicos anteriores, razão pela qual a decisão recorrida decidiu não o fazer;
4. Dos Artºs 77º e 78º do Código Penal não resulta para o agente do crime o direito a ver diminuída a pena em que foi condenado, uma vez que o limite máximo da pena única a fixar é a soma matemática de todas as penas em concurso (reduzida a 25 anos por imperativo constitucional);
5. Não foram violados quaisquer direitos de defesa do recorrente, nem nenhum princípio estruturante do processo penal.
Face ao exposto, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.»
1.5. Neste Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
1.6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não tendo havido resposta.
1.7. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
É consabido que são as conclusões extraídas, pelo recorrente, da motivação do recurso que delimitam o objeto deste último – cf. artigos 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P.
Assim, no caso vertente, face às conclusões do recurso em apreciação, a única questão suscitada é a de saber se se impunha, porque legalmente exigido, que fosse realizado cúmulo jurídico (superveniente), englobando as penas parcelares em que o ora recorrente, foi condenado no processo n.º 81/15.2JBLSB e nos procs. nº 1232/14.0PHLRS e n.º 428/15.1JACBR, por forma a ser determinada uma pena única, a aplicar-lhe.
2.2. Importa ter presente o teor do acórdão recorrido, que, na parte pertinente, para a apreciação da questão suscitada no recurso, se passa a transcrever:
«(…) É pressuposto essencial da cumulação material a prática de uma pluralidade de crimes anteriormente à condenação, com trânsito em julgado, por qualquer um deles, nos termos do disposto no artigo 77º, n.º 1 do Código Penal ou, no quadro do estatuído no artigo 78º, n.º 2 do Código Penal (que amplia o conhecimento superveniente de concurso de crimes previsto no n.º 1 do mesmo dispositivo legal) após o trânsito, desde que os factos sejam anteriores à condenação, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada no concurso de crimes.
No caso em apreço, e com relevo para a presente sede, verifica-se que:
I - Nos presentes autos, foi o arguido condenado pelo cometimento concursal de 3 (três) crimes de branqueamento previsto e punido pelo artigo 368.º - A do Código Penal na pena de 3 anos de prisão por cada um dos crimes praticados, pela prática de 2 (dois) crimes de furto qualificado tentado previsto e punido pelos artigos 203.º, 204.º n.º 1, alínea a) e) n.º 2, alíneas a) e g), ex vi 202.º, alínea b) e 22.º e 23.º do Código Penal na pena de 1 ano e 6 meses de prisão por cada um dos crimes praticados, por 2 (dois) crimes de furto qualificado previsto e punido pelo artigos 203.º e 204.º n.º 1, alínea e) e n.º 2, alíneas a) e g), ex vi 202.º alínea b) do Código Penal na pena de 2 anos e 2 meses de prisão por cada um dos crimes praticados, de 2 (dois) crimes de falsificação de documento agravada prevista e punida pelo artigo 256.º n.º 1, alínea e) e n.º 3 do Código Penal [matrícula ….] na pena de 1 ano de prisão por cada um dos crimes praticados, de 2 (dois) crimes de dano simples previsto e punido pelo artigo 212.º n.º 1 do Código Penal na pena de 6 meses de prisão por cada um dos crimes praticados, de 2 (dois) crimes de dano qualificado previsto e punido pelo artigo 213.º n.º 1 alínea c) do Código Penal na pena de 2 anos e 2 meses de prisão por cada um dos crimes praticados, de 1 (um) crime de dano qualificado previsto e punido pelo artigo 213.º n.º 1 alíneas a) e b) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, de 3 (três) crimes de provocação de explosão previsto e punido pelo artigo 272.º n.º 1, alínea b) do Código Penal na pena de 3 anos e 8 meses de prisão por cada um dos crimes praticados, penalidades após cumuladas entre si, aplicando-se ao arguido uma pena única de 7 (sete) anos de prisão. O acórdão condenatório mostra-se datado de 29/05/2019, tendo transitado em julgado em 6/11/2020. A factualidade ali dada por assente por referência ao arguido mostra-se temporalmente compreendida entre fevereiro e setembro de 2015;
II) No âmbito do Processo Sumário n.º 1232/14.0PHLRS, que correu termos no Juízo de Pequena Criminalidade de Loures (Juiz 2), o arguido fora condenado pelo cometimento, em 3/12/2014, de 1 (um) crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do DL n.º 2/98, de 3 de janeiro, por sentença proferida em 17/02/2015, transitada em julgado em 11/04/2016, na pena de 9 (nove) meses de prisão efetiva, da qual deu integral cumprimento (mostrando-se já declarada a sua extinção);
III) No âmbito do Processo Comum Coletivo n.º 428/15.1JACBR, que correu termos no Juízo Central Criminal de Santarém (Juiz 4), o arguido fora condenado mediante acórdão proferido em 25/01/2018, transitado em julgado em 26/02/2018, pela prática, como coautor material, na forma tentada, de 1 (um) crime de incêndio e explosões, p. e p. pelo artigo 272º, n.º 1, alínea b), 22º, 23º e 73º do Código Penal, e de 1 (um) crime de furto qualificado tentado, p. e p. pelos artigos 203º e 204º, n.º 1, alínea a), 22º, 23º e 73º, todos do Código Penal, nas penas parcelares, respetivamente, de 2 (dois) anos e 1 (um) ano de prisão, após cumuladas na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva. Os factos ali sancionados reportam-se a factualidade ocorrida em 11 de dezembro de 2015;
IV) Por outro lado, da análise do CRC do arguido emerge ainda que o mesmo sofreu condenação no âmbito do Processo n.º 232/13.1IPLLS do Juízo Local Criminal de Lisboa, por factualidade ocorrida em 5/07/2013, por via de sentença proferida em 15/12/2014, devidamente transitada em julgado, em pena única de 1 ano e 9 meses de prisão, porém suspensa na sua execução (tendo já sido tal penalidade declarada extinta).
Serão de desconsiderar, para efeito do presente cúmulo, outras condenações sofridas pelo arguido, seja por ausência de verificação de conexão temporal relevante, sendo ainda de excluir a penalidade indicada em IV) face à circunstância da mesma se reportar a pena de prisão suspensa na sua execução, tendo já ocorrido a sua extinção (solução que, sendo hoje unanimemente reconhecida pela jurisprudência dos Tribunais superiores, se assume sempre em sentido mais favorável à posição dos arguidos).
Assim, e com relevo para a presente sede, o cúmulo será a restringir aos processos identificados em I) a III).
Dito isto:
Todas as decisões ali mencionadas mostram-se devidamente transitadas em julgado, existindo entre ambas os requisitos de conexão temporal relevante (os factos são praticados em momento temporal anterior ao de ocorrência do 1º trânsito em julgado – ocorrido no Processo n.º 1232/14.0PHLRS.
São os presentes autos os competentes para apreciar novo cúmulo superveniente das penas, a abarcar as penalidades aplicadas nos presentes autos e nos Processos indicados em I) a III), isto por força do estatuído no artigo 471º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, implicando tal facto a reformulação dos cúmulos antes realizados em cada um dos citados autos.
Também inexistindo, em atenção à natureza e estado das penas em análise, quaisquer obstáculos à respetiva realização (sendo a pena já cumprida e declarada extinta a descontar à pena única a apurar).
Podemos igualmente afirmar que, de acordo com a visão supra explanada, e que ora se acolhe, o cúmulo de penas se assume como a sendo a solução que se coaduna, em pleno, com a perceção globalizante da factualidade em apreço, objetivo pretendido, em primeira linha, pelo legislador no que à regulamentação do cúmulo de penas respeita.
Termos em que importaria aprioristicamente concluir pela admissibilidade legal do cúmulo, nos termos supra expostos.
Assim, estatui o artigo 77º, n.º 2 do Código Penal que a pena a aplicar se encontrará “balizada”, no seu limite mínimo, pela mais alta das penas parcelares concretamente aplicadas (concretamente a pena parcelar de 3 anos e 8 meses aplicada – relativa a cada um dos 3 crimes de provocação de explosão em que foi condenado nestes autos), e no seu limite máximo, pelo somatório das penas parcelares aplicadas em cada uma das decisões condenatórias (e após sujeitas a cúmulo) – sendo aplicável, por apelo à soma aritmética de todas as penas parcelares, o limite máximo e intransponível a que alude o artigo 77º, n.º 2 do Código Penal (25 anos).
No que aos critérios norteadores da determinação, dentro dos indicados limites, da medida concreta da(s) pena(s), haveremos de atender, desde logo, à natureza dos ilícitos que lhe são imputados, e os valores cuja tutela jurídica importa assegurar, bem como o grau da ilicitude no cometimento dos mesmos, a modalidade do dolo e as necessidades de prevenção geral e especial que importa precaver, bem ressaltadas nas decisões parcelares.
Importará, nesse particular, atentar que as condenações em apreço nestes autos se reportam a crimes graves, cometidos contra a autoridade pública ou património, isolada ou conjuntamente com outros indivíduos, em estrutura de crime organizado, evidenciando, na interpretação mais alargada permitida inferir da análise do CRC do arguido, um percurso vivencial marcado pela evidente desvalorização dos valores de vida em sociedade, com adoção clara, consistente e reiterada de comportamentos censuráveis e ilícitos, últimos dos quais sancionados já com soluções punitivas em meio prisional.
Em benefício do arguido, será apenas de atentar a existência de perspetiva de inserção em plano normativo, quer no domínio familiar, quer em plano profissionalizante, caso o arguido, uma vez restituído à liberdade, entenda fazer por aí o seu percurso vivencial futuro.
Ora, em ponderação dos elementos informativos a que preside ao cúmulo superveniente, eis que se nos suscitará, por reporte aos critérios comummente aceites para o apuramento de nova pena única, e ponderação de fator de compressão a fazer aplicar, dúvida em redor do benefício para o condenado na sua efetivação.
Senão vejamos:
Refere a este propósito o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/01/2021 (Relator: Nuno Gonçalves – Proc. N.º 634/15, in www.dgsi.pt) o seguinte: “Constatando assinalável diversidade na determinação da pena conjunta, justificativa de incerteza jurídica, desigualdade nas consequências jurídicas do concurso de crimes, e fonte de onde brota, a jusante, considerável litigância recursória perante o STJ, desenhou-se neste Tribunal uma corrente jurisprudencial que faz intervir, dentro da nova moldura penal, operações aritméticas que devem guiar o juiz na fixação do quantum da pena conjunta. Resumidamente, na sua veste mais recente, sustenta que na determinação da medida da pena única, se deve adotar um critério consistente em adicionar à pena parcelar mais grave, que fixa o limiar inferior da moldura do cúmulo, uma fração das restantes penas, sendo a partir deste valor, consideradas as especificidades do caso concreto. Atendendo à regra ínsita no art. 77º nº 1 do Código Penal e para determinação da fração, toma em consideração principalmente o tipo de criminalidade e a dimensão das penas parcelares cumuladas e, complementarmente, a personalidade do arguido expressada nos factos ou que os factos revelam. A. G. Lourenço Martins, estudando a jurisprudência deste Supremo sobre a medida da pena, defende a adição de uma proporção do remanescente das penas parcelares que oscila, conforme as circunstâncias de facto e a personalidade do agente e por via de regra, entre 1/3 e 1/5 e acrescenta que se bem que a corrente, que se poderia designar do «factor percentual de compressão», possa relutar a um julgador cioso do poder discricionário (aqui, aliás, mais vinculado que discricionário), desde que o seu uso não se faça como ponto de partida mas como aferidor ou mecanismo de controlo, não nos parece que deva, sem mais, ser rejeitada. Representa um esforço de racionalização num caminho eriçado de espinhos, desde que afastada uma qualquer «arbitrariedade matemática» ou uma menor exigência de reflexão sobre os dados. O direito, como ciência prática e não especulativa nunca atingirá a certeza das matemáticas ou das ciências da natureza, mas a jurisprudência deve abrir-se ao permanente aperfeiçoamento, que deverá ser encontrado na pena conjunta. Sustenta-se no Ac. de 27/01/2016 deste Supremo Tribunal que “não repugna que a convocação dos critérios de determinação da pena conjunta tenha como coadjuvante, e não mais do que isso, a definição dum espaço dentro do qual as mesmas funcionam. Na verdade, como se referiu, a certeza e segurança jurídica podem estar em causa quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, conduzindo a uma indeterminação. Recorrendo ao princípio da proporcionalidade não se pode aplicar uma pena maior do que aquela que merece a gravidade da conduta nem a que é exigida para tutela do bem jurídico. Para evitar aquela vacuidade admite-se o apelo a que, na formulação da pena conjunta e na ponderação da imagem global dos crimes imputados e da personalidade, se considere que, conforme uma personalidade mais, ou menos, gravemente desconforme com o Direito, o tribunal determine a pena única somando à pena concreta mais grave entre metade e um quinto de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso (Confrontar Juiz Conselheiro Carmona da Mota em intervenção no STJ no dia 3 de Junho de 2009 no colóquio subordinado ao tema "Direito Penal e Processo Penal", igualmente Paulo Pinto de Albuquerque Comentários ao Código Penal anotação ao artigo 77). A utilização de tal critério de determinação da pena conjunta está relacionada com uma destrinça fundamental que importa estabelecer ao nível das consequências jurídicas em função de cada fenomenologia criminal. Na operação de cálculo do fator de compressão importa considerar a necessidade de um tratamento diferente para a criminalidade bagatelar, média e grave, de tal modo que, como referia Carmona da Mota, a “representação” das parcelares que acrescem à pena mais grave se possa saldar por uma fração cada vez mais alta, conforme a gravidade do tipo de criminalidade em julgamento. Na verdade, não é raro ver um tratamento uniforme, destituído de qualquer opção valorativa do bem jurídico, e este pode assumir uma diferença substantiva abissal que perpassa na destrinça entre a ofensa de bens patrimoniais ou bens jurídicos fundamentais como é o caso da própria vida. Entendimento prevalente, que nos casos de uma elevada pluralidade de crimes em concurso pode ser temperado através da intervenção do princípio da proporcionalidade, implícito no critério que vem de citar-se. Designadamente convocando a interpretação de que “na formação da pena única, quanto maior é o somatório das penas parcelares, maior é o fator de compressão que incide sobre as penas que se vão somar à mais elevada, pois, se assim não fosse, muito facilmente se atingiria a pena máxima em casos em que a mesma não se justifica perante a gravidade dos factos”, de modo a impedir que o agente do concurso de crimes resulte condenado numa pena conjunta inadequada à gravidade dos crimes e que muito dificultaria a sua reintegração na comunidade dos homens e das mulheres respeitadores/as dos bens jurídicos fundamentais. Consequentemente, o denominado «fator de compressão», funcionando sempre como critério aferidor do rigor e da justeza do cúmulo jurídico de penas, deverá adotar frações ou logaritmos diferenciados em função da fenomenologia dos crimes do concurso, com enfase agravante quando concorrem crimes contra as pessoas, crimes de terrorismo, ou, gradativamente, em casos de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de criminalidade altamente organizada - art. 1º al.ªs i) a m) do CPP, mas que no âmbito do mesmo tipo de crime devem ser idênticos, podendo variar ligeiramente em função da personalidade do arguido revelada pelos factos e do modo de execução dos crimes. E “paralelamente, à apreciação da personalidade do agente interessa, sobretudo, ver se nos encontramos perante uma certa tendência, que no limite se identificará com uma carreira criminosa, ou se aquilo que se evidencia é uma mera pluriocasionalidade”. O “comportamento global”, com o sentido assinalado - de pluralidade de crimes e de penas e já não como se se tratasse de um único crime -, que preside ao cúmulo jurídico, e à aplicação da pena única, se é certo que documenta uma atividade criminosa evidencia, sobretudo, uma personalidade mais ou menos intensamente desconforme ao modo de ser suposto pela ordem jurídico-criminal. À luz das regras da experiência, a violação, pelo agente, de vários bens jurídicos de igual importância, através da mesma ou de condutas imediatamente seguidas, exprime, geralmente, pluriocasionalidade. A reiteração espaçada de idênticas ou de diferentes condutas delituosas, à mesma luz, poderá evidenciar uma tendência, persistente vontade, ou carreira criminosa.
Sem perder de vista que, como sustenta J. Figueiredo Dias que “até ao máximo consentido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos … que vai determinar a medida da pena”. “O respeito por aquele limite é penhor bastante da constitucionalidade da solução preconizada face ao disposto nos arts. 1º, 13º -1 e 25º -1. da CRP”.
Ora, transpondo as considerações acabadas de explanar, a assumir por referenciais para o caso dos autos, e em face do percurso vivencial do arguido e análise globalizada dos factos, não se toma por admissível, à luz de um critério de necessidade e proporcionalidade, que o fator de compressão a aplicar se assuma em patamar inferior a ½ ou, no limite, de 1/3 das penas parcelares aplicáveis (excluindo já a pena parcelar mais elevada a levar ao concurso), sendo nós da opinião que a aplicação de fatores “mais curtos” de compressão (1/4 ou 1/5) se funda na existência de circunstâncias excecionais, reveladoras de uma muito significativa atenuação das exigências da condenação, isto é, fundada também ela em contextualismos muitos excecionais.
Diremos mesmo que propenderíamos para o fator mais curto de compressão (1/2) por detrimento do 1/3.
E com isto facilmente se constata que a aplicação dos referidos fatores de compressão de ½ ou 1/3 conduziria o Tribunal à fixação de penas únicas a firmar acima do quantitativo que corresponderia à soma aritmética das penas únicas antes apuradas, isto é, concretizando-se em claro prejuízo do condenado.
Senão vejamos:
→ Pena parcelar mais alta, a excluir do apuramento do fator de compressão e a configurar como limite mínimo do concurso: 3 anos e 8 meses;
→ Remanescente da moldura do concurso (excluindo a pena supra): 21 anos e 4 meses;
→ 21 anos e 4 meses: 2 = 10 anos e 8 meses; ou: 3 = 7 anos, 1 mês e 10 dias;
→ 3 anos e 8 meses + 10 anos e 8 meses = 14 anos e 4 meses; Ou:
→ 3 anos e 8 meses + 7 anos, 1 mês e 10 dias = 10 anos, 9 meses e 10 dias.
Em plano de confronto face à soma aritmética das penas únicas antes apuradas, temos que:
7 anos + 2 anos e 6 meses + 9 meses = 10 anos e 3 meses.
Temos, pois, por bem demonstrado que a efetivação de cúmulo nesta sede e momento redundaria na aplicação de pena única em quantitativo superior àquele que configuraria a soma aritmética das penas únicas antes apuradas nos cúmulos parcelares que ora somos chamados a ponderar reformular.
E perante uma tal constatação, aconselhar-se-á a efetivação de cúmulo superveniente?
Cremos manifestamente que não.
Conforme se inscreve no Aresto acima citado, “Dentro da moldura penal abstrata, o limite mínimo inultrapassável da dosimetria da pena concreta é dado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos violados ou, na expressão de J. Figueiredo Dias, “do quantum da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias” - Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 242. E o limite máximo pela medida da culpa - nulla poena sine culpa. A prevenção especial de socialização pode, sem interferir naqueles limites, fazer oscilar o quantum da pena no sentido de se aproximar de um dos limites. A pena concreta que se comporte nestes limites é uma pena necessária, imposta em defesa do ordenamento jurídico-criminal. Pena única em medida inferior colocaria em causa “a crença da comunidade na validade das normas violadas e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais”.
Mas diremos mais:
A figura do cúmulo superveniente de penalidades encerra, em si mesmo, um inerente benefício do condenado, maior ou menor conforme a visão global dos factos e da análise da conduta e culpa do condenado.
Impõe-se assim, e desde logo, a ponderação por critérios de proporcionalidade e da proibição do excesso.
Como se refere no Acórdão do STJ de 10/09/2009, Proc. n.º 26/05.8.SOLSB-A.S1 - 5.ª, “a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas. Ora, esse efeito “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos critérios da “imagem global do ilícito” e da personalidade do arguido. Proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas.” Se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fração menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta”.
Concordamos em pleno com a posição jurisprudencial supra, que também subscrevemos, sendo quanto a nós desaconselhável, diremos mesmo “chocante”, a realização de cúmulo superveniente quanto da pena única a apurar resulte o agravamento da situação punitiva pré-vigente, isto é, quanto a pena única a apurar se venha a assumir em medida superior àquela a que corresponderia a soma aritmética das penas (únicas) antes encontradas.
Diremos mesmo que tal solução, além de desajustada face aos princípios de encerram o próprio instituto do cúmulo superveniente de penalidades, consubstanciaria, além do mais, uma clara violação das expetativas criadas nos arguidos condenados, surpreendendo-os, ad hoc, com uma pena única em patamar superior àquela que haviam vido antes sedimentada por decisões condenatórias transitadas em julgado, e às quais se vem dando cumprimento.
Em face de tudo o evidenciado, conclui-se pela não realização do cúmulo superveniente de penalidades.
***
V. DISPOSITIVO:
Pelo exposto, decidem os Juízes que compõem o presente Tribunal Coletivo:
a) NÃO REALIZAR o cúmulo das penalidades parcelares aplicadas nestes autos e nos Processos n.ºs 1232/14.0PHLRS e 428/15.1JACBR, pelas razões atrás apontadas, devendo assim manter-se inalteradas as penas únicas ali apuradas;
b) Mais consignar que o presente incidente não se encontra sujeito a tributação (cfr. artigos 513º e 514º, este último a contrario, ambos do CPP).»
2.3. Conhecimento do mérito do recurso
Como se referiu supra a questão suscitada no recurso é a de saber se se impunha, porque legalmente exigido, que fosse realizado cúmulo jurídico (superveniente), englobando as penas parcelares em que o ora recorrente, foi condenado no processo n.º 81/15.2JBLSB e nos procs. nº 1232/14.0PHLRS e n.º 428/15.1JACBR, por forma a ser determinada uma pena única, a aplicar-lhe.
O recorrente defende que o Tribunal a quo não podia deixar de realizar cúmulo jurídico que englobasse aquelas penas, estando em causa o conhecimento superveniente do concurso de crimes e nos termos do disposto no artigo 78º do CP, impondo-se a efetivação de cúmulo jurídico, fixando-se uma pena única a aplicar ao ora recorrente.
Entende o recorrente que ao decidir não proceder ao cúmulo jurídico de penas, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 77º e 78º do Código Penal e fez uma interpretação inconstitucional dessas normas, por violação dos direitos de defesa do arguido e dos princípios estruturantes do processo penal, consagrados no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
Apreciando:
Na decisão recorrida, o Tribunal a quo, depois de concluir pela verificação dos pressupostos da admissibilidade legal do cúmulo jurídico entre as penas parcelares em que o ora recorrente foi condenado nesses autos e no âmbito dos Procs. n.º 1232/14.0PHLRS e n.º 428/15.1JACBR, decidiu não proceder a esse cúmulo, por considerar que tal «redundaria na aplicação de pena única em quantitativo superior àquele que configuraria a soma aritmética das penas únicas antes apuradas nos cúmulos parcelares» a serem reformulados, em prejuízo do ora recorrente.
Salvo o devido respeito, não podemos, de modo algum, concordar com o entendimento sufragado pelo Tribunal a quo, no acórdão recorrido, que determinou que tivesse decidido não realizar o cúmulo jurídico das penas em questão, verificados que estão os pressupostos para que fosse realizado, sendo acolhida uma solução que viola o disposto nos artigos 77º e 78º do CPP.
Assim, contrariamente à decisão recorrida, entendemos que o tribunal a quo deveria ter procedido ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas nos mencionados processos.
Com efeito, de harmonia com o disposto no artigo 77º, n.º 1, do CP, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.
E se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, importará também proceder à determinação de uma única pena em consonância com o disposto no artigo 77.º, do CP (artigo 78.º, n.º 1, do mesmo diploma).
O legislador penal repudiou abertamente o sistema de acumulação material de penas, para adotar, no caso de concurso de crimes, um sistema de pena conjunta, que terá de ser determinada, efetuando o cúmulo jurídico.
Como se refere no Ac. do STJ de 12/01/2022[1]:
«I - O que diferencia os sistemas da pena unitária e da pena conjunta não é, propriamente, o resultado final, traduzido, em ambos numa só pena para sancionar o concurso de crimes. Traço distintivo marcante é que ali a pena é realmente única e determina-se numa só operação, através da consideração unitária dos crimes do concurso como comportamento unificado na mesma entidade punitiva. Enquanto aqui os crimes do concurso são primeiramente tratados na sua singularidade punitiva, determinando-se-lhes uma pena própria. Seguidamente, a totalidade das penas ditas parcelares fundem-se numa pena conjunta.
II - O cúmulo jurídico é uma construção normativa, de matriz dogmática, com a finalidade de fundir numa pena única, as penas de prisão em que o mesmo agente foi condenado por ter cometido uma multiplicidade de crimes que, entre si, estão numa relação juridicamente determinada.»
No concurso de crimes existe a obrigatoriedade de realização de cúmulo jurídico de penas, desde que se mostrem reunidos os pressupostos previstos no artigo 77º, n.º 1, do Código Penal, aplicável no caso de conhecimento superveniente do concurso, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78º do Código Penal.
O arguido deve, pois, ser condenado numa pena única por todos os crimes em concurso[2], ainda que se trate de uma situação de conhecimento superveniente do concurso, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes (artigo 78º, n.º 1, do CP).
No conhecimento superveniente do concurso de crimes, como refere Lobo Moutinho[3], «a formação da pena conjunta, é, assim, a reposição da situação que existiria se o agente tivesse sido atempadamente condenado e punido pelos crimes à medida em que os foi praticando.»
Caso não se fosse realizado cúmulo jurídico, englobando todas as penas parcelares, que in casu são todas de prisão, por que o arguido foi condenado, pela prática de crimes que estão em relação de concurso, como se refere no Acórdão da Relação e Lisboa, de 18/09/2018 – ainda que a propósito do cúmulo jurídico englobando penas de prisão suspensas na sua execução que não se mostrem ainda extintas, mas sendo a argumento válido para a situação que está em causa nos presentes autos –, «estar-se-ia a tratar diferentemente os casos em que todos os crimes foram objeto do mesmo processo e aqueles em que os diversos crimes foram julgados separadamente. No primeiro caso, haveria inexoravelmente lugar à aplicação de uma pena única. No segundo, o condenado podia cumprir as diversas penas separadamente (…).», o que, além do mais, constituiria violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
E o entendimento sufragado pelo Tribunal a quo de que seria mais favorável ao arguido não realizar o cúmulo jurídico de penas, englobando as penas parcelares por que foi cominado nos processos foi condenado no âmbito dos procs. nº 1232/14.0PHLRS e n.º 428/15.1JACBR, reformulando o cúmulo jurídico anteriormente efetuado, no processo n.º 81/15.2JBLSB, por que a essa operação «redundaria na aplicação de pena única em quantitativo superior àquele que configuraria a soma aritmética das penas únicas antes apuradas nos cúmulos parcelares», em prejuízo do arguido, não é de aceitar, não só porque, salvo o devido respeito, não tem cabimento na letra da lei, postergando o critério legal enunciado no artigo 77º, n.º 1, do CP – aplicável ao conhecimento superveniente do concurso ex vi do n.º 1 do artigo 78º do CP –, que impõe a condenação do agente numa única pena, por todos os crimes que tenha praticado antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, como não é linear que, no caso concreto, essa solução fosse efetivamente a mais favorável ao arguido/condenado, ora recorrente.
Em relação a este último aspeto importa considerar o seguinte:
O «fator de compressão» enquanto critério coadjuvante de determinação da pena única, resultante do cúmulo jurídico de penas, que é apontado pelo Tribunal a quo, que se traduz em adicionar à pena parcelar mais elevada, que fixa o limiar inferior da moldura do cúmulo, uma fração – sendo usualmente correspondente a 1/3 ou a 1/2 – das restantes penas, que se vão somar à pena mais elevada, tratando-se de um critério que vem sendo adotado por certo setor da jurisprudência do STJ – por forma a conseguir alguma uniformidade jurisprudencial na determinação da pena única a aplicar em cúmulo jurídico e a desse modo garantir alguma igualdade de tratamento dos condenados[4] – está longe de ser consensual, existindo outra corrente jurisprudencial, no STJ, que rejeita a adoção daquele critério “matemático ou aritmético”, na determinação da pena única, resultante do cúmulo jurídico, defendendo nessa operação se deve atender apenas aos critérios legais, mormente, aos critérios específicos estabelecidos no artigo 77º, n.º 1, do CP.
Neste último sentido, veja-se, por todos, o Acórdão do STJ de 27/01/2022[5], cujo sumário se passa a transcrever:
«I - A doutrina, como a jurisprudência, vêm entendendo que o modelo de punição do concurso de crimes consagrado no art. 77.º do CP, sendo um sistema de pena conjunta, não é construído, porém, de acordo com o princípio de absorção puro, nem com o princípio da exasperação ou agravação, nos termos definidos, mas sim de acordo com um sistema misto, que vem sendo chamado de sistema do cúmulo jurídico.
II - A pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 71º, n.º 1, um critério especial estabelecido no art. 77.º, n.º 1, 2.ª parte, ambos do CP.
III - Os parâmetros indicados no art. 71.º do CP, servem apenas de guia para a operação de fixação da pena conjunta, não podendo ser valorados novamente, sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais fatores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes.
IV - O recorrente (…) também não indica qualquer norma que estabeleça critérios aritméticos, matemáticos, na determinação da pena única. No entanto, indica a existência de um critério jurisprudencial, que resultará da “prática jurisprudencial”, de sobre cada pena parcelar (das menos elevadas), se aplicar uma proporção não superior a ¼.
V - Existe, efetivamente uma corrente jurisprudencial que perante a constatação de grande amplitude na moldura penal do concurso, estabelece uma fração variável nas penas parcelares a somar à pena mais grave, com vista a consagrar uma alegada objetividade e igualdade entre os arguidos nas operações de fixação de penas conjuntas.
VI - Esta corrente foi já de algum modo ensaiada quando entrou em vigor o CP de 1982, para as penas singulares. Alguma jurisprudência, de que são exemplos os acórdãos do STJ de 30-11-1983 e de 19-12-1984 (cf., respetivamente, BMJ n.º 331, p. 363 e BMJ n.º 342, p. 233) também seguiu o entendimento de que face à maior amplitude dos limites máximos das penas relativamente ao CP anterior, se devia definir um ponto para determinação das penas singulares, fixando esse ponto como a média entre os limites mínimo e máximo. Assim, no caso de ausência de circunstâncias que agravem ou atenuem a conduta do agente ou, havendo-as, os respetivos agravativo e atenuativo, por serem iguais, se anularem, a pena deveria a pena ser graduada em concreto à volta da média entre os limites mínimo e máximo estabelecidos em abstrato no preceito incriminatório.
Essa corrente jurisprudencial não vingou muito tempo, consolidando-se na jurisprudência e na doutrina, o entendimento de que a fixação das penas singulares deve fazer-se de acordo com os critérios de determinação da pena estabelecidos no CP, onde não há referência a qualquer ponto médio entre os limites mínimo e máximo da pena estabelecida no tipo penal, como ponto de partida para fixação concreta dessa pena.
VI - Em sentido contrário à corrente jurisprudencial a que se arrima o recorrente, existe uma outra, que seguimos, de que a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou critérios abstratos de fixação da sua medida, não é compatível com os critérios legais.
VII - Reconhecendo que a amplitude que geralmente assume a moldura penal do concurso de penas ou seja, a distância entre os limites máximo e mínimo dessa moldura, pode provocar, e muitas vezes provoca dificuldades na determinação da pena, potenciando a produção de desigualdades ou pelo menos disparidades evidentes nas decisões de tribunais diferentes, acrescenta esta corrente, que essas dificuldades, embora maiores por vezes, não são diferentes das que os tribunais enfrentam quando se trata de aplicar uma qualquer pena cujos limites sejam também afastados. O que importa é proceder a uma aplicação muito ponderada e exigente, rigorosamente fundamentada, do critério legal da determinação da pena do concurso, com referência às circunstâncias dos crimes em presença, no seu relacionamento com a personalidade do condenado, e considerando os fins das penas.»
Por outro lado, ainda que a pena única fixada no anterior cúmulo jurídico efetuado, com decisão transitada em julgado, tenda a permanecer estável, isto é, no caso de ser realizado novo cúmulo jurídico, reformulando o anteriormente efetuado, em que venha(m) a ser englobada(s) outra(s) pena(s) parcelar(es), em princípio, do cúmulo jurídico reformulado, não deve resultar a aplicação de pena única, cuja medida concreta seja igual ou inferior à fixada em cúmulo anterior, não existe impedimento legal a que o contrário possa acontecer[6].
Não sendo essa, de modo algum, a prática seguida na jurisprudência, mormente do Supremo Tribunal de Justiça[7], nada na lei impede que reformulado o cúmulo jurídico, abrangendo outra(s) pena(s), que a pena única a encontrar possa ser igual ou mesmo inferior à anteriormente fixada para parte das penas parcelares, embora esse resultado só seja de admitir, como refere o Cons. Simas Santos[8] «em casos contados e especialmente justificados, como quando o conhecimento de mais infracções pelo agente constitui o elo perdido entre essas condutas permitindo estabelecer uma clara e franca pluriocasionalidade, até então não estabelecida, ou quando o crime que provoca o cúmulo superveniente permite concluir por uma muito menor necessidade da pena.»
Por último, e com especial relevância no caso vertente, estando extinta, pelo cumprimento, a pena de prisão de nove meses, em que o ora recorrente foi condenado no âmbito do processo n.º 1232/14.0PHLRS – que correu termos no Juízo de Pequena Criminalidade de Loures (Juiz 2) – será integralmente descontada no cumprimento da pena única que venha a ser aplicada, em cúmulo jurídico (cfr. artigo 78º, n.º 1, do CPP), sendo manifesto que será mais favorável ao condenado, que esse desconto venha a ser efetuado, na pena única que venha a ser aplicada ao ora recorrente, do que excluir essa pena do cúmulo jurídico, mesmo no caso de ser adotado o critério ou o «fator de compressão» que o Tribunal a quo, segundo refere, propenderia a acolher, na situação concreta, somando ½ dessa pena parcelar à pena parcelar mais elevada.
Seja como for, independentemente do que ao Tribunal a quo se afigure como consubstanciando a solução mais favorável ao arguido/condenado, ora recorrente, entendemos que a mesma não tem cabimento na letra da lei, violando o disposto nos artigos 77º, n.º 1 e 78, n.º 1, ambos do Código Penal.
De acordo com o regime legal estabelecido para a punição do concurso de crimes, nos artigos 77º e 78º, do Código Penal, é imperativa a realização de cúmulo jurídico de penas, devendo o arguido ser condenado numa pena única por todos os crimes em concurso.
E assim sendo, no caso concreto, não pode o Tribunal a quo deixar de realizar cúmulo jurídico, no conhecimento superveniente do concurso, englobando as penas de prisão em que o ora recorrente foi condenado no Proc. n.º 81/15.2JBLSB e nos Procs. n.º 1232/14.0PHLRS e n.º 428/15.1JACBR, em ordem a condenar o arguido numa pena única.
Consequentemente, tem de ser revogada a decisão recorrida, sendo substituída por outra que determine a realização do cúmulo jurídico, pelo Tribunal recorrido, nos termos do disposto nos artigos 77° e 78°, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, incluindo as enunciadas penas parcelares, devendo, para o efeito, ser reaberta a audiência a que se refere o artigo 472° do Código de Processo Penal.
O recurso é, pois, procedente,
3. DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, que se substitui por outra que determine a realização do cúmulo jurídico, pelo Tribunal recorrido, englobando as penas de prisão por que o ora recorrente foi condenado no Processo n.º 81/15.2JBLSB e no âmbito dos Procs. n.º 1232/14.0PHLRS e n.º 428/15.1JACBR, nos termos sobreditos.
Sem tributação.
Notifique.
Évora, 07 de junho de 2022
(Fátima Bernardes - Relatora por vencimento)
(Renato Barroso – com voto de vencido, nos termos da declaração infra)
(Gilberto da Cunha - Presidente da Secção Criminal)
Declaração de voto:
A decisão recorrida, depois de concluir, ab initio, pela existência de condições para a realização de cúmulo jurídico entre as penas dos presentes autos e as dos Procs. 1232/14.0PHLRS e 428/15.1JACBR, entendeu não proceder, em concreto, a tal operação cumulatória, na medida em que da mesma resultaria um efectivo prejuízo para o ora recorrente, já que dali sairia com uma pena única superior à soma material das penas resultantes das condenações dos três processos em causa.
Para tanto, apoiou-se em aresto do STJ e de jurisprudência conhecida do nosso mais Alto Tribunal, que analisa os critérios a utilizar para a fixação da medida concreta da pena em sede de cúmulo jurídico, nomeadamente, no que toca ao que se designa por factor de compressão, traduzido na fracção aritmética das penas em concurso que se adiciona à pena parcelar delas mais grave, para daí se alcançar o quantum da pena única.
Ora, é amplamente aceite, em termos jurisprudenciais, que tal factor se deve situar entre ½ e 1/5, em função dos tipos de crime praticados e da personalidade neles revelada pelo condenado.
Nesta medida e aplicando tais critérios, considerou a decisão recorrida, atentos os ilícitos praticados pelo recorrente e ainda a sua personalidade neles reflectida, que o factor de compressão in casu, não poderia ser inferior a ½ de cada uma das penas parcelares ou, no limite, 1/3, determinação que me parece inteiramente correcta, tendo em conta, quer o número de penas em concurso, quer, principalmente, a sua dimensão e a gravidade dos crimes em questão, atendendo ainda, aos critérios de necessidade e proporcionalidade que devem presidir à fixação de uma pena única.
Nesta medida, não creio que o arguido, atenta a dimensão e natureza da criminalidade que está em causa, possa, justificadamente, esperar que o critério a adoptar na operação cumulatória lhe fosse mais benéfica, ou seja, ¼ ou 1/5 das restantes penas a adicionar à sua pena mais grave, que é de 3 anos e 8 meses.
O mais, é o resultante de uma mera operação aritmética.
Quer o referido factor de compressão fosse o de ½, quer fosse o de 1/3, em qualquer caso, as penas únicas assim obtidas sempre seriam superiores à mera soma material das penas únicas a cumular, ou seja, e respectivamente, 14 anos e 4 meses de prisão, ou 10 anos, 9 meses e 10 dias de prisão, sendo certo que por aquela soma material se atinge a soma de 10 anos e 3 meses de prisão.
Assim sendo, se a pena única resultante da soma aritmética das penas únicas apuradas nos processos a cumular seria sempre inferior à pena única resultante da reformulação cumulatória agora em causa, parece evidente que a realização efectiva do cúmulo de acordo com tais critérios culminaria no agravamento da situação jurídico-penal do condenado.
Pelo que, como se disse, na decisão recorrida, “a figura do cúmulo superveniente encerra, em si mesmo, um inerente benefício do condenado, maior ou menor conforme a visão global dos factos e da análise da conduta e culpa do condenado”, razão pela qual, acertadamente, não se procedeu à realização do cúmulo jurídico já que o mesmo, em concreto, iria prejudicar o ora recorrente.
Nesta medida, não vejo - nem o recorrente o explica, apesar de, singelamente, o alegar - em que medida o tribunal recorrido interpretou, indevidamente, o decorrente daquela decisão jurisprudencial, nem que o assim decidido viole o estatuído nos Artsº 77 e 78, ambos do C. Penal, ou os direitos de defesa do arguido e os princípios estruturantes do processo penal consagrados no Artº 32 da Constituição da República Portuguesa.
No que respeita, aliás, aos mencionados preceitos do Código Penal, concordo, por completo, com o exposto pelo MP na sua resposta e que aqui se transcreve:
“…o recorrente contesta este entendimento partindo do princípio errado e que nem tão pouco fundamenta, que o cúmulo jurídico de conhecimento superveniente, tem como objectivo beneficiar o agente do crime.
Não é este o fundamento da figura jurídica em causa, embora essa seja em regra a sua consequência. Não resulta do disposto nos Artºs 77º e 78º do Código Penal que, numa situação como a dos autos – em que se pretende cumular duas penas que já resultam, cada uma delas, de um cúmulo jurídico – o condenado tem o direito indiscutível a ver diminuída a sua condenação.
O que resulta destas normas é que o agente do crime deve ser condenado numa pena única, quando verificados os requisitos para o efeito (e que aqui não estão em causa), fixando os critérios que presidem a tal operação e os limites mínimo e máximo de tal pena.
Não resulta da norma que o condenado tenha o direito indiscutível de ver reduzida a pena que efectivamente tenha que cumprir, e é exactamente por essa razão que o limite máximo da pena única é a soma matemática de todas as penas em concurso, reduzida a 25 anos de prisão.
Ora, num caso como o dos autos, em que o cúmulo a fazer parte de penas que já são elas próprias, cúmulos de outras, é expectável que aquilo a que a decisão recorrida chama “factor de compressão” se agrave, porque se acrescentam ao cenário crimes que integram a definição de crime violento e organizado, o que altera igualmente a avaliação da personalidade do condenado.”
Em suma, entendo nada haver a apontar à decisão recorrida, quer no estabelecimento das penas a cumular, quer na definição dos pressupostos pelos quais se atingiria a pena única a aplicar ao arguido, quer, por fim, na decisão de assim não ter procedido, para não o prejudicar.
Nesta medida, entendo que não deveria ter sido concedido provimento ao recurso, pelo que, consequentemente, se deveria manter o acórdão recorrido.
(Renato Barroso)
___________________________
[1] Proferido no processo n.º 695/17.6T9LRS.S1, acessível in www.dgsi.pt
[2] Constitui entendimento consolidado na jurisprudência do STJ que apenas devem ser excluídas do cúmulo, as penas de prisão suspensas na sua execução, já declaradas extintas pelo decurso do prazo da suspensão e as penas prescritas, na medida em que se tais penas entrassem no cúmulo interviriam como fator de dilatação da pena única, sem qualquer benefício para o condenado, por não haver nenhum desconto a realizar, na pena única que visse a ser aplicada. Neste sentido, cfr., por todos, Ac. do STJ de 27/01/2022, proc. n.º 5175/20.0T8LRS.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[3] In Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, edição da FDUC, 2005, pág. 1324.
[4] Cfr., entre muitos outros, Ac. do STJ de 12/01/2022, processo n.º 695/17.6T9LRS.S1, in www.dgsi.pt.
[5] Proferido no processo n.º 129/13.5TASEI.C1.S1, in www.dgsi.pt
[6] Cfr., entre outros, Acs. do STJ de 06/11/2008, proc. 08P2843, in www.dgsi.pt e de 10/09/2014, in CJ, Acs. STJ, XXII, tomo III, 167.
[7] Sobre a matéria vide Artur Rodrigues da Costa, Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ, in Julgar, n.º 21, Setembro-Dezembro de 2013, págs. 191 a 195.
[8] As penas no caso de concurso de crimes, pág. 9, in https://repositorio.ismai.pt/bitstream/10400.24/224/1/SS4.pdf |