Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1609/12.5TBCTX.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: LITISPENDÊNCIA
Data do Acordão: 05/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Considera-se haver litispendência quando, com os mesmos intervenientes processuais, seja ainda idêntico o núcleo substancial das pretensões formuladas e das causas de pedir que as consubstanciam – assim se prescindindo, portanto, de uma coincidência formal absoluta.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes nesta Relação:

Os Autores/apelantes AA e mulher, BB e CC vêm interpor recurso do douto despacho que foi proferido em 30 de Outubro de 2015 (agora a fls. 821 a 823 dos autos), e que absolveu da instância os Réus/apelados “Massa Insolvente de DD Lda.”, “aqui representada pela Administradora da Insolvência, doutora EE, e “Banco S.A.”, nesta acção declarativa de condenação, com processo ordinário, que haviam instaurado no 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca (com o fundamento que é aduzido no douto despacho de que se verifica a excepção de litispendência, por identidade de pedidos e de causas de pedir, entre esta acção e “o processo que corre termos na Comarca sob o n.º 354/09.03TBCTX”, pois “quer numa, quer noutra acção, os Autores pretendem que se declare a nulidade das hipotecas que oneram as fracções G, H e I do prédio descrito sob o n.º 3502 da freguesia, o efeito jurídico pretendido é exactamente o mesmo quer numa, quer noutra acção”, e que, quanto à causa de pedir, “em ambas as acções os factos derivam da mesma conduta dos Réus e, apesar de alguma diferença de exposição, [os factos são praticamente os mesmos em ambos os articulados] a pretensão dos Autores, no fundo, baseia-se na desconformidade da descrição do prédio feita na escritura de constituição das hipotecas, imputando aos Réus o conhecimento dessa desconformidade”, aduz-se –, intentando a sua revogação e alegando, para tanto e em síntese, que discordam do assim decidido, pois que naqueloutra acção a causa de pedir “tem como facto constitutivo a nulidade da escritura de permuta, por a coisa permutada não corresponder à declarada, pois nela consta a coisa permutada como futura, quando o seu objecto era coisa bem presente e concreta, na outorga da mesma: a coisa era constituída pelo segundo piso do prédio já implantado e construído no lote destacado e, ainda, os ilícitos que tornaram possível a mesma escritura”. Ao contrário, esta acção “abarca um prédio não dado de hipoteca, por não abranger o prédio destacado, mas tão-somente o prédio nº 1965, já residual, pelo que são nulas, por falta de título, as (hipotecas) existentes no prédio n.º 3502”. Em consequência, “as duas causas de pedir, apesar de interligadas, são independentes por emergir de factos distintos”. São, assim, termos, concluem, em que se deverá vir a dar provimento ao recurso e ser julgada improcedente a excepção de litispendência.
O Réu/apelado “Banco, S.A.” vem apresentar contra-alegações (fls. 888 verso a 891 verso dos autos) para dizer, ainda em síntese, que os apelantes não têm razão, pois que, ao contrário do que aduzem, “lendo as duas petições iniciais, resulta claro que a causa de pedir em ambas é idêntica, assente na alegada prestação de falsas declarações, sendo que, na presente acção, apenas é acrescentado um facto, referente à alegada falsificação de documentos” – facto que, no entanto, “os recorrentes tinham a possibilidade de ter alegado aquando da interposição da primeira acção e não fizeram”, não podendo, agora, “interpor nova acção assente num facto não alegado, mas que deriva da mesma situação”. Termos em que deverá vir a manter-se o douto despacho recorrido, remata.
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Provam-se os seguintes factos com interesse para a decisão:

1) Em 26 de Fevereiro de 2009 os AA AA e sua esposa, BB, e CC, instauraram acção declarativa de condenação, que tomou o n.º 354/09.3TBCTX, no 1.º Juízo do Tribunal Judicial, contra os RR “DD, Lda.” e “Banco Espírito Santo, S.A.”, pedindo a condenação destes a “ver declaradas nulas as hipotecas constituídas por escritura de 13 de Outubro de 2014, lavradas no Cartório Notarial, de fls. 57 a fls. 59 verso do livro 125F, por serem falsas as declarações aí vertidas”, bem assim como “os registos a que se referem as apresentações números C1 Ap.03/20041213, e C2 Ap.04/20041213, do prédio descrito na Conservatória sob o número 3502/20041203, e na matriz sob o artigo 6356º, da mesma freguesia”, ou “quando assim se não entenda, as hipotecas e respectivos registos reduzidas na sua extensão de modo a salvaguardar os direitos dos Autores e relativos a todo o 2º andar a que correspondem as fracções G, H e I do prédio sito na Avenida e descrito na Conservatória sob o nº 3502/20041203 e inscrito no artigo 6356º da matriz predial urbana, da freguesia” (vide o douto articulado que constitui fls. 830 a 849, e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, estando a data de entrada aposta a fls. 852 dos autos).
2) Em 30 de Outubro de 2012, os AA AA e sua esposa, BB, e CC, instauraram a presente acção declarativa de condenação, que tomou o n.º 1609/12.5TBCTX, no 2.º Juízo do Tribunal Judicial, contra os RR “Massa Insolvente DD, Lda.”, “aqui representada pela Administradora da Insolvência, doutora EE”, e “Banco, SA” pedindo a condenação destes a “verem declaradas nulas as hipotecas e os consequentes registos das fracções G, H e I do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3502, da freguesia” (vide o douto articulado que constitui agora fls. 3 a 26, e cujo teor aqui se dá igualmente por reproduzido na íntegra, estando a data de entrada aposta a fls. 161 dos autos).
3) Logo na douta petição inicial da presente acção (deduzida em segundo lugar) os Autores alertaram para a existência da primeira acção, e justificaram a instauração da segunda (vide o respectivo articulado a fls. 4 a 8 dos autos).
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber se afinal se verifica a invocada excepção da litispendência – maxime quanto à discutida identidade de causas de pedir – entre esta acção e aqueloutra instaurada em 1º lugar (354/09.3TBCTX). Tal colocará naturalmente a questão de equacionar se deverá ou não manter-se a solução dada ao processo na primeira instância, de julgar procedente a correspondente excepção dilatória, e absolver os RR da instância, ou permitir a continuação da lide. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões do recurso apresentado.
Vejamos, pois.

O douto despacho sub judicio veio a considerar procedente a excepção da litispendência, por identidade de pedidos e de causas de pedir, entre esta acção e “o processo que corre termos na Comarca sob o n.º 354/09.03TBCTX”, pois “quer numa, quer noutra acção, os Autores pretendem que se declare a nulidade das hipotecas que oneram as fracções G, H e I do prédio descrito sob o n.º 3502 da freguesia”, concluindo, assim, que “o efeito jurídico pretendido é exactamente o mesmo quer numa, quer noutra acção”, e ainda porque, já quanto à causa de pedir, “em ambas as acções os factos derivam da mesma conduta dos Réus e, apesar de alguma diferença de exposição, [os factos são praticamente os mesmos em ambos os articulados] a pretensão dos Autores, no fundo, baseia-se na desconformidade da descrição do prédio feita na escritura de constituição das hipotecas, imputando aos RR o conhecimento dessa desconformidade”, aduz-se.
Os Apelantes vêm contrapor que sendo, afinal, as partes as mesmas e os pedidos formulados idênticos em ambos os processos, “as duas causas de pedir, apesar de interligadas, são independentes por emergirem de factos distintos”.
Já os Apelados aduzem que “lendo as duas petições iniciais, resulta claro que a causa de pedir em ambas é idêntica, assente na alegada prestação de falsas declarações, sendo que na presente acção apenas é acrescentado um facto, referente à alegada falsificação de documentos”.
Então, quid juris?

Admitimos que a questão ora se possa não apresentar totalmente líquida; porém, ao Tribunal competirá, como sempre, mediante a devida justificação, vir a optar pelas soluções que repute mais adequadas e justas ao caso concreto – o que não deixará, aqui, naturalmente, de fazer.

E, assim, nos termos que vêm estabelecidos no n.º 1, ab initio, do artigo 580.º do Código de Processo Civil, a excepção dilatória (vide o seu artigo 577.º, alínea i)) da litispendência pressupõe uma repetição de causas – instaura-se uma estando outra ainda pendente de julgamento no Tribunal.
[A ideia é, então, segundo o n.º 2 daquele primeiro preceito legal citado, a de evitar que o Tribunal venha a ser colocado perante uma alternativa incómoda para todos: a de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.]
E repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, segundo o artigo 581.º, n.º 1, daquele mesmo Código.
Haverá identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica (cit. artigo 581.º, n.º 2), identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (seu n.º 3) e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico (seu n.º 4) – prevendo este último, ainda, que a causa de pedir, nas acções de anulação, é “a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.

[No dizer de Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª Edição, 1985, anotação 2, págs. 301, “A excepção da litispendência começa exactamente por pretender evitar um duplo dispêndio (desnecessário) de tempo, de dinheiro e de esforços”.]

No caso vertente, é apenas trazida à consideração deste Tribunal ad quem a discussão e decisão sobre a identidade de causas de pedir – “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico”, reza o já mencionado artigo 581.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
[Pois que, quanto à identidade dos pedidos que vêm formulados, as partes não encontram divergências, e também estão de acordo que são os mesmos os intervenientes nas duas acções, “do ponto de vista da sua qualidade jurídica”: os Réus na 1ª acção, “DD, Lda.” e “Banco Espírito Santo, S.A.”, passaram, na 2ª acção, a “Massa Insolvente DD, Lda.”, “aqui representada pela Administradora da Insolvência, doutora EE”, e “Banco, S.A.”, por decorrência normal das suas respectivas vidas societárias e sem qualquer implicação nesta questão das partes serem afinal idênticas “do ponto de vista da sua qualidade jurídica”, como exige a lei.
Resta, assim, a problemática da identidade de causas de pedir.]

E, efectivamente, salva melhor opinião e encurtando razões, pese embora a sageza do entendimento trazido pelos recorrentes – em todo o caso, com boa dose de falta de clareza na exposição –, tudo aponta para que essa identidade de causas de pedir exista mesmo no caso em apreço, para os efeitos de se ter aqui por correctamente feita a análise encetada na douta decisão recorrida.
Naturalmente que o que os Autores/apelantes pretendem, de uma maneira ou de outra, nas duas acções que intentaram, é libertar o seu prédio da hipoteca que o onerou e continua a onerar. Ninguém parece que vá fora disso. Mas, para tal, nada aponta para que a primeira acção não seja suficiente, caso nela venham a obter ganho de causa – não se apresentando curial, logo de um ponto de vista processual, vir a intentar sucessivas acções (com as anteriores já julgadas ou por julgar), apenas com o objectivo assumido de lhes introduzir mais detalhes, uma ou outra novidade factual. Seria a maneira mais directa de protelar as decisões, guardando trunfos para apresentar na acção seguinte, caso a primeira soçobrasse ou estivesse em vias de soçobrar. Basta pensar numa infinidade de demandas à volta dum mesmo negócio, ou dum mesmo facto ilícito, que se vão deduzindo à medida que vai surgindo a necessidade de as fazer aparecer.

E, por isso, que se entende adequado considerar que haverá litispendência quando, com os mesmos intervenientes, seja ainda idêntico o núcleo substancial das pretensões formuladas e das causas de pedir que as consubstanciam – assim se “prescindindo de uma coincidência formal absoluta e das diferentes formas procedimentais utilizadas”, na linguagem usada nas anotações ao artigo 498º do anterior C.P.C., pelo conselheiro Lopes do Rego in “Comentários ao Código de Processo Civil”, 2ª edição, 2004, Almedina, volume I, a páginas 420/421. E, no dizer de Abílio Neto, in “Código de Processo Civil Anotado”, 14ª edição, 1997, na anotação 8 ao referido artigo 498º, a páginas 542, citando o Prof. Alberto dos Reis: “Importa distinguir claramente a causa de pedir dos meios de que a parte se serve para a sustentar ou demonstrar: estes são as provas e os argumentos por via dos quais se procura estabelecer a existência do facto jurídico que serve de fundamento à acção”; e na sua anotação 72 ao mesmo artigo, a páginas 549: “Para a identidade de causa de pedir, a pretensão há que procurá-la, não relativamente às demandas formuladas, mas na questão fundamental levantada nas duas acções”.

Remete-se, então, para o que se escreveu na douta decisão recorrida, com o que se concorda:
Quanto à causa de pedir, na primeira acção os Autores fundamentam a sua pretensão no facto da nulidade da ‘…descrição do prédio, tal como está elaborada, pois aquele prédio já não existia de todo...’, ‘…a descrição já não era verdadeira’, ‘…a descrição do prédio não era real’; quando as hipotecas foram constituídas o ‘prédio já não existia, mas tinha sido desdobrado em dois’ [Vide artigos 47º, 48º, 66º e 70º da petição inicial].
Nos presentes autos os Autores alegam expressamente que ‘...é falsa a descrição vertida para a escritura…, as declarações exaradas na escritura são falsas, as hipotecas foram registadas com declarações falsas...’ [Vide os artigos 28º, 34º e artigo 45º da petição inicial].
Ou seja, em ambas as acções os factos derivam da mesma conduta dos Réus e apesar de alguma diferença de exposição [os factos são praticamente os mesmos em ambos os articulados], a pretensão dos Autores no fundo baseia-se na desconformidade da descrição do prédio feita na escritura de constituição das hipotecas, imputando aos Réus o conhecimento dessa desconformidade” (sic – a fls. 822 dos autos).

Razões pelas quais, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá agora que manter intacta na ordem jurídica a douta decisão impugnada da 1ª instância, e assim improcedendo o presente recurso de Apelação.

E, em conclusão, dir-se-á:

Considera-se haver litispendência quando, com os mesmos intervenientes processuais, seja ainda idêntico o núcleo substancial das pretensões formuladas e das causas de pedir que as consubstanciam – assim se prescindindo, portanto, de uma coincidência formal absoluta.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar o douto despacho recorrido.
Cuspas pelos Apelantes.
Registe e notifique.
Évora, 5 de Maio de 2016

Canelas Brás

Jaime Pestana

Paulo Amaral