Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
884/15.8PBSTB.E1
Relator: ANA BACELAR
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
NOMEAÇÃO DE INTÉRPRETE
Data do Acordão: 10/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Nos atos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa. A nomeação de intérprete imposta pelo n.º 2 do artigo 92.º do Código de Processo Penal visa salvaguardar comunicação isenta de qualquer equívoco.

II - Sendo o arguido alemão e desconhecendo a língua portuguesa, não tem qualquer interesse saber se o mesmo conhece e domina a língua inglesa e se o agente da PSP que o fiscalizou é ou não desembaraçado a falar inglês.

Sumariado pela relatora.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora

I. RELATÓRIO
No processo comum n.º 884/15.8PBSTB da Secção Criminal [J5] da Instância Local de Setúbal da Comarca de Setúbal, mediante acusação pública, foi pronunciado P. Kleener, nascido a 19 de janeiro de 1959, na Alemanha, residente na Rua …, em Lisboa,

pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

O Arguido apresentou contestação escrita, onde pugna pela sua absolvição.

Invoca que não fala português e que a sua comunicação com as autoridades policiais decorreu sem nomeação de intérprete e em inglês rudimentar.

Afirma, ainda, não ter compreendido os motivos porque foi detido, nem porque foi conduzido à Esquadra da Polícia de Segurança Pública, em Setúbal.

Foi interpelado para aí se submeter a novo teste, mas não lhe explicaram ou não percebeu as razões para tanto, nem as consequências da recusa em efetuar esse teste.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e depositada em 15 de fevereiro de 2017, foi decidido:

«(…) condenar o arguido P. Kleener:

a) pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, com referência ao artigo 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do Código da Estrada, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à razão diária de € 26,OO (vinte e seis euros), o que perfaz a quantia de € 1.820,OO (mil, oitocentos e vinte euros), e na pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de cinco meses, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, aI. c), do Código Penal, devendo o arguido entregar o título de condução, que vier a ser eventualmente portador durante este período, na secretaria deste tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência - cfr. artigo 500.º, n.º 2 e 5, do C.P.P.

b) Condenar o arguido a pagar as custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, e encargos a que houver dado lugar, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Judiciais e tabela III anexa, e artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal.»

Inconformado com tal decisão, o Arguido dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:

«i. O Arguido foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 26,00 (vinte e seis euros), no montante total de € 1.820,OO (mil oitocentos e vinte euros) bem como na pena acessória de proibição de conduzir, pelo período de cinco meses.

ii. Acontece que sentença proferida não realizou um adequado e imprescindível exame crítico da prova produzida em audiência de julgamento.

iii. É manifesto o erro existente na apreciação da prova dada como provada (art.º 410.º, n.º 2, al. c), do CPP).

iv. A convicção do Tribunal a quo relativamente à matéria de facto fundou-se na análise de toda a prova produzida, nomeadamente na prova testemunhal e na declaração prestada pelo Arguido, bem como nas regras da experiência comum e a na livre convicção do Tribunal.

v. Pelo que a questão central no que ao caso sub judice diz respeito é a de apurar se o Arguido tomou efetivo conhecimento do que lhe era imposto e das consequências advenientes do não cumprimento de tal ordem.

vi. O Arguido negou de forma perentória a prática dos factos de que vinha acusado, concretamente negou que tivesse entendido as consequências de não efetuar um segundo teste de alcoolemia

vii. Inexiste prova de que se verifique a regularidade da transmissão da ordem ao destinatário, porquanto o arguido não consegue provar que não entendeu uma ordem que lhe foi transmitida e sobretudo as consequências de não acatar a mesma.

viii. No que respeita à compreensão da língua portuguesa, integram as motivações do Tribunal a quo que este "não se convenceu totalmente que o arguido não percebesse a língua portuguesa, desde logo porque, no decurso da audiência, respondeu instintivamente a algumas perguntas a si dirigidas antes mesmo de ter sido efetuada a tradução pelo Exmo. intérprete presente. Aliás, o arguido mencionou que, pelo menos desde há dois anos, passa regularmente temporadas em Portugal, superiores a seis meses, por motivos profissionais, e tem residência fixa em Portugal

ix. O raciocínio do Tribunal a quo padece de total sustento lógico uma vez que o facto de o Arguido, no decurso da audiência, ter "respondido instintivamente a algumas perguntas a si dirigidas" não permite concluir, sem mais, que à data dos factos - 08 de Junho de 2015 - também compreenderia o que lhe estaria a ser transmitido pelo Agente da PSP, na medida em que é perfeitamente verosímil, ou mesmo provável, que o domínio da língua portuguesa do Arguido tenha progredido ao longo do último ano e 6 meses,

x. Por sua vez, do depoimento prestado por PS, resultou provado que este "procedeu à fiscalização, mantendo o diálogo com o arguido na língua inglesa" e que o diálogo "mantido em inglês entre a testemunha e o arguido foi suscetível de entendimento por este até ao momento em que foi confrontado e tomou conhecimento da taxa de álcool detetada no sangue.

xi. Contudo, resulta com clareza que o Tribunal a quo confunde dois momentos chave e cruciais para a boa decisão da causa: a compreensão do Arguido relativamente à realização da análise quantitativa de álcool no sangue e a compreensão de que a sua recusa consubstanciaria um crime de desobediência.

xii. No que concerne ao depoimento da Testemunha MMS, foi apenas dado como provado que "O Arguido telefonou à sua Advogada (. .. ) e solicitou que esta falasse com um dos agentes da PSP presentes - nada mais sido dado como provado com relevância para o que se discute nos presentes autos ficando no ar o propósito deste telefonema e desvalorizando-se a sua importância no tocante à efetiva compreensão por parte do Arguido da obrigatoriedade de fazer um segundo teste de álcool e a consequência (criminal) de não o realizar.

xiii. Recorrendo à experiência comum não pode deixar de nos parecer mais credível a versão do Arguido (de que contactou a sua Advogada para falar com os agentes da PSP, mas que estes se recusaram a falar com ela; versão confirmada pela própria Advogada, que não só confirmou o telefonema que mantiveram, mas também que não chegou a falar com nenhum agente da PSP, pese embora se tenha apercebido que havia pessoas à volta do arguido no momento em que esta a contactou).

xiv. Deste modo, foi ignorado pela Sentença recorrida, um elemento que se considera de extrema importância - o facto de o Arguido ter sentido necessidade de contactar a sua Advogada que, em momento algum, conseguiu falar com os agentes da PSP - o que, certamente, teria permitido esclarecer eventuais dúvidas que o arguido apresentasse

xv. Assim, a sentença ora recorrida andou mal ao dar como não provado a al. g) dos factos não provados, porquanto estando provado o telefonema e o seu propósito (falar com os agentes da PSP), não faz sentido não retirar a consequência lógica desse mesmo telefonema, que os referidos agentes não acederam a falar com a mencionada Testemunha MMS.

xvi. Não foi porém feita prova em audiência de julgamento acerca da forma como esta ordem foi transmitida ao Arguido por forma a resultar evidente que o mesmo a entendeu, sendo a sentença omissa acerca do teor da ordem dada ao Arguido e acerca da extensão da mesma, referindo que o Arguido entendeu o que lhe era pedido à primeira (fazer o primeiro teste de álcool expirado), pelo que não pode ter deixado de entender o que lhe foi pedido depois, vindo essa ordem de um agente uniformizado.

xvii. Mesmo admitindo que o Arguido tivesse entendido que lhe estava a ser solicitado que fizesse um novo teste de álcool - o que a defesa até pode aceitar - a questão é que não entendeu o motivo pelo qual o segundo teste lhe estava a ser exigido e as consequências criminais de não o realizar.

xviii. Acresce que, o grau de proficiência da língua inglesa do agente da PSP não ficou provado, pelo que, exigir que seja o Arguido (cidadão estrangeiro) a provar que não entendeu a extensão e conteúdo de uma ordem que lhe foi transmitida por um agente da autoridade (cujo nível de inglês se desconhece) é uma diabolica probatio que configura uma inversão do ónus da prova num processo de estrutura acusatória, como é o processo penal.

xix. Não existe qualquer prova nos autos nem quanto ao conteúdo, nem quanto à extensão da ordem que lhe foi transmitida, sendo certo de que se estas existissem se devia, deitando mão do princípio in dubio pro reo, articulado com o princípio da presunção da inocência, em cujo conteúdo se integra a proibição de inversão do ónus da prova.

xx. Não foi feita pela sentença ora recorrida, uma correta aplicação deste principio, pelo que, consequentemente, foi feita uma incorreta apreciação, ponderação e avaliação da prova produzida em julgamento, relevante para a decisão, a qual impunha uma decisão diversa da recorrida.

xxi. Nesta perspetiva, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida se extrair, por forma mais que óbvia, que o tribunal optou por decidir, na dúvida, contra o arguido.

xxii. Não resulta do circunstancialismo provado que os contornos da atuação do Arguido integrem o crime de desobediência.

xxiii. De um ponto de vista objetivo, comete o crime de desobediência, previsto no artigo 348.º, n.º 1, alínea a) o condutor que, quando seja sujeito de uma ordem de autoridade de fiscalização rodoviária para se submeter às provas de deteção de álcool, se recusar a tal.

xxiv. De um ponto de vista subjetivo, tendo em consideração a prova produzida, é impossível afirmar a existência de qualquer das modalidades de dolo do tipo uma vez que o Arguido nunca teve consciência e vontade de realizar os elementos objetivos do crime de desobediência.

Xxv .Ora, ignorando o Arguido que a sua recusa não era legítima e que a mesma acarretaria a prática de um crime, não poderá a sua atuação ser considerada culposa.

xxvi. Pode-se afirmar que atua sem consciência da ilicitude do facto (e portanto age sem culpa) o agente que executa uma ação cuja ilicitude concreta se mostra discutível e controvertida, suscetível, ela própria, de corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente reconhecido e com o propósito de corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente relevante.

xxvii. Da análise do caso concreto conclui-se sem margem para dúvidas que a questão da ilicitude concreta da conduta do Arguido é discutível e controvertida.

xxviii. A conclusão não poderá ser diferente uma vez que o Arguido desconhecia em absoluto que a sua recusa acarrearia um crime de desobediência, atuando assim em erro sobre a ilicitude dos factos, não sendo a sua atuação censurável ria medida em que não revela uma atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais pelos quais devia responder.

xxix. Em suma, no quadro da atuação descrita, encontram-se manifestamente preenchidos os requisitos exigidos para a configuração da não censurabilidade do “erro sobre a ilicitude”, desde logo, porque não se evidencia uma atitude pessoal juridicamente desvaliosa relativamente ao ato praticado.

xxx. Assim, ter-se-ia forçosamente de concluir pela inexistência de censurabilidade da falta de consciência da ilicitude do facto e como tal, pela verificação de erro sobre a ilicitude nos termos e para os efeitos do artigo 17.º, n.º 1, do Código Penal.

xxxi. Ora, encontrando-se a Sentença ora em crise viciada, na medida em que os factos dados como provados são manifestamente insuficientes com a decisão da causa, deverá o Arguido ser absolvido da prática do crime de desobediência de que vem acusado.

Nestes termos e nos melhores de direito deve ser julgado procedente o recurso interposto, revogando-se a Douta Sentença em conformidade, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA!»

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

«1. O recorrente invoca, no essencial, o erro de julgamento, por o tribunal recorrido ter dado como provados os factos que levaram à sua condenação, apesar de, em seu entender, deles não ter sido feita prova bastante em julgamento.

2. Da análise da sentença ora posta em crise, resulta que, para além da indicação dos meios de prova que alicerçaram a convicção do Tribunal, a Mma, Juiz" a quo" filtrou, em suma, criteriosa e ponderadamente todos os depoimentos e os demais meios de prova.

3. E tendo aquelas sido valoradas positivamente pelo Tribunal recorrido no âmbito da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, no sentido de que os arguidos praticaram os factos dados como assentes, está, deste modo, afastada a existência de qualquer vício.

4. O recorrente não impugnou a matéria de facto provada e não provada.

5. Assim sendo, tendo em conta a matéria dada como provada e não provada, ao nível do enquadramento jurídico dos factos, dúvidas inexistem de que se encontram reunidos os elementos típicos do crime pelo qual foi acusado e condenado.

6. Em face do exposto, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e, consequentemente, manter-se a sentença recorrida nos seus exatos termos.

Neste termos, deverá negar-se provimento ao recurso, e, em consequência, ser integralmente confirmada a douta sentença recorrida, mantendo-se a condenação do arguido nos precisos termos decididos na primeira instância.

V.Exas., porém, com mais elevada prudência, decidirão como for de
JUSTIÇA!»

Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, afirmando que não ocorre o vício prevenido na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal e que a sentença recorrida não desrespeitou o disposto no artigo 127.º do mesmo Código, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito –, por obstativas da apreciação de mérito, como são os vícios da sentença previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal[[2]].

Posto isto e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância são colocadas as questões:
- da incorreta valoração da prova produzida em julgamento;
- do erro notório na apreciação da prova;
- da violação do princípio in dubio pro reo.

¯
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. No dia 08.06.2015, pelas 14h30m, o arguido conduzia o veículo de matrícula NKY --, na Avenida Luísa Todi, em Setúbal.
2. Nessa ocasião foi abordado pelos Agentes da PSP devidamente uniformizados e identificados, tendo sido submetido ao teste de pesquisa de álcool, no sangue através de ar expirado que acusou uma TAS de 0,81 g/l.

3. Em face da taxa detetada foi o arguido conduzido à Esquadra de Trânsito da PSP, em Setúbal, onde lhe foi solicitado que efetuasse o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue, o que o arguido recusou.

4. O arguido foi advertido que a recusa a efetuar o teste de pesquisa de álcool no sangue o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.

5. Apesar de devidamente advertido o arguido recusou-se a realizar tal teste.

6. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

7. O arguido não tem antecedentes criminais.

8. O arguido telefonou à sua Advogada, MMS, e solicitou que esta falasse com um dos agentes da PSP presentes.

9. O arguido assinou os documentos apresentados pelos agentes da PSP, designadamente o Termo de Identidade e Residência - documento este que se encontra redigido na língua portuguesa e inglesa.

10. O arguido nasceu e cresceu no país de origem, Alemanha, onde viveu interruptamente até há cerca de dois anos, altura em que, por motivações inerentes à profissão, fixou residência em Portugal e mantendo-se a família reconstituída em Munique.

11. Mais novo de três irmãos, o arguido cresceu num agregado familiar que não experienciou dificuldades económicas, enquadramento proporcionado pelas atividades estruturadas dos progenitores.

12. Depois de terminar o liceu, P. Kleener ingressou num curso superior na área empresarial e financeira, formação que, contudo, veio a abandonar devido às dificuldades em conciliar a atividade académica com as responsabilidades profissionais, que entretanto assumiu aos 21 anos de idade, altura em que começou a desenvolver funções de manager numa cooperação bancária de investimentos.

13. Foi neste ramo que o arguido se autonomizou, inicialmente no domínio financeiro e mais tarde na valência imobiliária, contexto que lhe foi permitindo auferir de um bom enquadramento económico.

14. No sentido de facilitar a promoção e o investimento no mercado nacional, atualmente no ramo do imobiliário e do turismo (hotelaria), o arguido fixou residência na morada indicada nos autos, imóvel adquirido e com o qual tem essencialmente despesas domésticas, que indica serem cerca de 100 euros por mês.

15. O arguido aufere quantia não concretamente apurada, sendo variável em consonância com a tipologia do negócio e permitindo fazer face aos seus encargos, subsistência e educação dos filhos.
16. O arguido mantém um contacto regular com o cônjuge e os quatro filhos, com idades compreendidas entre os quinze e os dezoito anos de idade, união que perdura há 21 anos

Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:

«Da produção da prova e discussão da causa, resultaram os seguintes factos não provados, com interesse para a decisão da causa:

a. Após o descrito em 2. dos factos provados, o arguido conduziu o seu próprio veículo automóvel, com permissão dos próprios agentes da PSP, tendo-se dirigido para o que se supõe ser a esquadra de Trânsito da PSP em Setúbal.

b. O arguido não compreendeu o motivo pelo qual estaria a ser detido, face à dificuldade de comunicação dos agentes da PSP na língua inglesa, o arguido assentiu na sua detenção.

c. Em momento algum foi explicado de forma percetível ao arguido qual o motivo da sua detenção bem como as suas opções.

d. Não foi explicado de forma percetível o porquê de tal procedimento e as consequências da sua recusa.

e. Incrédulo com tal repetição, o arguido recusou -se a efetuar novo exame sem que para tal lhe fosse explicado o motivo.

f. O facto provado 8. ocorreu por dificuldades de comunicação e de modo a que o arguido pudesse finalmente perceber o que se estava a passar.

g. Os agentes da PSP recusaram-se a falar ao telefone e afirmaram que já não seria necessário, uma vez que aparentemente estaria tudo resolvido.

h. Aliviado com o término do episódio e convencido de que tal não passaria de uma infração rodoviária, o arguido procedeu conforme descrito em 9. dos factos provados.

A restante matéria factual alegada não foi considerada provada ou não provada, por consubstanciar matéria de direito ou matéria conclusiva, designadamente o diálogo entre os agentes da PSP e o arguido foi feito maioritariamente através de um inglês rudimentar, os quais privaram irremediavelmente o arguido de compreender as consequências da sua recusa

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:

«A decisão do Tribunal tem de assentar na convicção da verdade dos factos apurados em audiência de julgamento, convicção essa formada apenas com os elementos probatórios de que é lícito recorrer-se (cfr. artigos 125.º, 126.º e 355.º do Código de Processo Penal), tendo presente as regras da experiência comum e a livre convicção do Tribunal (cfr. artigo 127.º do mesmo diploma). Cumpre, pois, proceder à análise da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, no caso sub judice, salientando o mais relevante e decisivo.

O Tribunal formou a sua convicção e assentou como provados os factos supra descritos, tendo em consideração, desde logo, o teor das declarações prestadas pela testemunha PS, agente da Polícia de Segurança Pública, que tomou conhecimento dos factos no exercício das suas funções e por causa delas. Dispensa-se a reprodução do teor das declarações prestadas em audiência de julgamento, uma vez que se encontram devidamente registadas pelo sistema de gravação sonoro.

Esta testemunha confirmou de forma consistente e segura a globalidade dos factos, por deles ter conhecimento direto, e prestou declarações espontâneas e imparciais, pelo que se reputaram as mesmas como credíveis e coerentes, tanto mais confrontando as mesmas com o auto de notícia de fls, 3, a constituição de arguido de fls, 4 e o termo de identidade e residência de fls. 5, bem assim como o fáx e cópia do "Passporte Consular da República de Panamá" de fls, 7 e ss.

O arguido P. Kleener, que quis prestar declarações, confirmou parcialmente os factos, designadamente os descritos em 1. e 2., e negou perentoriamente os demais, avançando, desde logo e para além do mais, que desconhece a língua portuguesa. Outrossim, dispensa-se a reprodução do teor destas declarações, uma vez que se encontram devidamente registadas pelo sistema de gravação sonoro.

Alegado o desconhecimento da língua portuguesa pelo arguido de nacionalidade alemã, foi nomeada pessoa idónea a exercer as funções de intérprete, no âmbito dos presentes autos. Contudo, impõe-se salientar que o tribunal não se convenceu totalmente que o arguido não percebesse a língua portuguesa, desde logo, porque, no decurso da audiência, respondeu instintivamente a algumas perguntas a si dirigidas antes mesmo de ter sido efetuada a tradução pelo Ex.mo intérprete presente. Aliás, o arguido mencionou que, pelo menos desde há dois anos, passa regularmente temporadas em Portugal, superiores a seis meses, por motivos profissionais, e tem residência fixa em Lisboa.

Assim, e desde logo, cumpre salientar que não sequer verosímil, considerando as regras da lógica e as máximas da experiência comum, a versão apresentada, em audiência de julgamento, pelo arguido, correspondendo a um indivíduo com características pessoais, sociais e culturais largamente acima do homem médio.

Ainda que assim seja de forma flagrante, ressalta inequivocamente da globalidade da prova produzida em audiência de julgamento que o agente da Polícia de Segurança Pública, ora testemunha PS, procedeu à fiscalização, mantendo diálogo com o arguido na língua inglesa; o que de resto este confirmou, embora argumentando de seguida que o agente domina o idioma de forma pouco fluente, o que alega ter comprometido a sua compreensão.

Novamente, o alegado pelo arguido não é credível, atentas as regras da lógica e as máximas da experiência comum, porquanto certo é que o diálogo mantido em inglês entre a testemunha e o arguido foi suscetível de entendimento por este até ao momento em que foi confrontado e tomou conhecimento da taxa de álcool detetada no sangue e, consequentemente, conduzido à Esquadra.

É que o arguido foi efetivamente fiscalizado e realizou o primeiro teste de pesquisa de álcool, factos descritos em 1 e 2, conforme por si igualmente admitido. Contudo, após, o arguido nada mais entendeu, o que, por isso, se estranha e compromete, uma vez mais, a versão por si apresentada, face às regras da lógica e as máximas da experiência comum. À luz destes princípios ressalta, antes indubitável, que o arguido entendeu perfeitamente o que lhe foi transmitido, mas alterou a sua atitude de modo a furtar-se à realização de análise quantitativa de álcool no sangue. É que quem percebe o que lhe é pedido à primeira, entende certamente o que lhe é pedido depois, tanto mais vindo essa ordem de um agente da PSP, devidamente uniformizado e identificado, e encontrando-se numa Esquadra.

A versão avançada pelo arguido e a postura por si assumida apresenta-se, assim, como totalmente inconsistente e incoerente, pelo que o Tribunal não se convenceu da veracidade dos factos alegados pelo arguido, considerando assim os mesmos como não provados.

Salienta-se que esta versão fora sustentada, em momento anterior, pelo depoimento da testemunha MMS, cujo discurso se reputou inequivocamente como tendencioso e parcial, sendo até contraditório, nalguns dos seus termos, com as declarações posteriormente prestadas com o arguido (cfr. nomeadamente facto não provado g.), o que compromete inequivocamente a sua credibilidade.

Nesta conformidade, as declarações prestadas pelo arguido, só por si, ou conjugadas com o teor do depoimento prestado pela testemunha não é suscetível de contrariar ou sequer descredibilizar o teor das declarações prestadas pela testemunha PS, agente da Polícia de Segurança Pública.

Assim, nos termos e pelos argumentos supra aduzidos, o tribunal convenceu -se da veracidade dos factos considerados provados, bem assim como, mediante esses factos objetivos dados como provados, relatados pelos depoentes, analisados conjunta e criticamente segundo as regras da lógica e de acordo com os princípios da experiência comum, resultam inequivocamente inferidos os factos integradores dos elementos psicológicos e volitivos com que o arguido atuou.

As circunstâncias pessoais e os antecedentes criminais do arguido ressaltam das suas próprias declarações, complementadas com o teor do relatório social e o certificado de registo criminal, ambos constantes dos autos.»

Conhecendo.

Fundamenta o presente recurso da afirmação de que o Arguido, ora Recorrente, não entendeu que lhe tenha sido dada ordem de submissão a novo teste de alcoolémia, na Esquadra da Polícia de Segurança de Setúbal, nem que tenha compreendido as consequências da recusa em realizá-lo.

E a pretexto destas circunstâncias, que entende terem ocorrido e resultarem provadas, o Recorrente diz que a sentença proferida na 1.ª Instância padece de erro notório na apreciação da prova, que quem julgou valorou mal a prova produzida em julgamento e que foi desrespeitado o princípio in dubio pro reo. E assim deixa impugnados os factos considerados como provados nos pontos 4, 5 e 6.

Importa, desde já, precisar conceitos.

Sobre o modo como pode sindicar-se a valoração da prova feita em 1.ª Instância, determinante para a fixação dos factos que aí se consideraram como provados e não provados – sindicância que pode fazer-se num primeiro momento fora e, depois, no âmbito dos vícios que devem ser aferidos perante o texto da decisão em causa [dito de outra forma, e respetivamente, no domínio da impugnação ampla da matéria de facto e no domínio da impugnação restrita da matéria de facto].

A impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto [ou aquela que se encontra fora do âmbito da previsão do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal], depende da observância dos requisitos consagrados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, ou seja:

«(...)
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.

4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(...)»

E ocorrendo impugnação da matéria de facto, com observância das regras acabadas de mencionar, o Tribunal, conforme se dispõe no n.º 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, «procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta de verdade e a boa decisão da causa

Encontramo-nos no domínio dos vícios do julgamento. No domínio do erro na “aquisição” da prova, que ocorre quando o Julgador perceciona mal a prova – porque o conteúdo dos depoimentos não corresponde ao que, efetivamente, foi dito por quem os prestou.

Erro do Julgador, no momento em que perceciona a prova, em que toma contacto com ela, e não no momento em que a avalia. Erro que pode viciar a avaliação da prova, mas que a antecede e dela se distingue.

Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, página 1131, em anotação ao artigo 412.º do Código de Processo Penal, afirma que «a especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (...)»; «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (...) mais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento».

«(...) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei nº 48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado (...).».[[3]]

De onde é lícito concluir que «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».[[4]]

Ou seja, a gravação das provas funciona como “válvula de segurança” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações limite de erros de julgamento sobre a matéria de facto.

A sindicância da matéria de facto pode, ainda, obter-se pela via da invocação dos vícios da decisão [e não do julgamento] – impugnação restrita da matéria de facto –, de conhecimento oficioso, que podem constituir fundamento de recurso, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito [n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal].

Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, reportando-se aos fundamentos do recurso:
«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.

2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
(...)»
Tais vícios, que se encontram taxativamente enumerados no preceito legal acabado de mencionar, terão de ser evidentes e passíveis de deteção através do mero exame do texto da decisão recorrida [sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes do processo], por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher.

Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.

Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”[[5]]

A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão ocorre quando se deteta «incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.

Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.» [[6]]

O erro notório na apreciação da prova constitui «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.» [[7]]

Não pode incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efetuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência – valoração que aquele Tribunal é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código Penal.

Mas tal valoração é, também, sindicável.

O que equivale a dizer que a matéria de facto pode ainda sindicar-se por via da violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Neste preceito legal consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante[[8]], pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas exceções decorrentes da “prova vinculada” [artigos 84.º (caso julgado), 163.º (valor da prova pericial), 169.º (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) e 344.º (confissão) do Código de Processo Penal] e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova [artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, e artigos 125.º e 126.º do Código de Processo Penal] e o do “in dubio pro reo” [artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa].[[9]]

Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e quem se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevante para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.

E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.

«O ato de julgar é do Tribunal, e tal ato tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva.

Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:

- a recolha de elementos – dados objetivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;

- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz refletir, segundo as regras da experiência humana;

- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição.

Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objetivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objetiváveis).

Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a perceção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).

A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objetiváveis atinentes com a valoração da prova.

A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos atos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extratos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.

A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..

A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma perceção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.

É pela imediação, também chamado de princípio subjetivo, que se vincula o juiz à perceção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.

Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão [[10]]

E, seguindo tais ensinamentos, não resta senão concluir que não basta defender que a leitura feita pelo Tribunal da prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível, sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.

De regresso ao processo, cumpre registar que nas conclusões da motivação do recurso não se assinalam divergências entre aquilo que foi dito na audiência de julgamento e aquilo que quem julgou diz que se disse, nessa mesma ocasião.

Não obstante assim ser e quem julgou ter revelado, de modo suficiente, as razões que determinaram a seleção factual, impõe-se um reparo.

Na parte da sentença dedicada à “Motivação”, a propósito do depoimento prestado pela testemunha PS e das declarações prestadas pelo Arguido, diz-se dispensar-se a reprodução do seu teor, uma vez que se encontram devidamente registadas pelo sistema de gravação sonoro.

Semelhante atitude parece ter subjacente o entendimento do livre acesso, pelo Tribunal da Relação, ao registo da prova produzida em julgamento.

Mas assim não é.

Porque tal acesso está condicionado à verificação dos pressupostos prevenidos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º e, antes dela, à própria vontade de quem recorre em permitir que o Tribunal Superior tenha acesso ao que se passou em julgamento. E tais circunstâncias, in casu, não ocorrem.

Fechado este pequeno parêntesis, as conclusões da motivação do recurso evidenciam que o desconforto do Recorrente relativamente aos factos considerados como provados nos pontos, 4, 5 e 6 deve ser ponderado ao nível da violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal e, num segundo momento, através da verificação de algum dos vícios prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo compêndio legal.

O Arguido, ora Recorrente, é de nacionalidade alemã e alega desconhecer a língua portuguesa.

Alegação que parece ter fundamento, uma vez que lhe foi nomeado intérprete para a audiência de julgamento, cujas sessões decorreram nos dias 26 de janeiro e 2 de fevereiro de 2017. E porque o agente da Polícia de Segurança Pública que o abordou e fiscalizou, no dia 8 de junho de 2015, usou, na comunicação, a língua inglesa.

Podemos, portanto, aceitar que o Arguido, alemão, não conhece ou não domina a língua portuguesa.

Daí a necessidade de nomeação de intérprete – de pessoa que traduz a outrem, numa língua, o que ouve ou lê noutra – na comunicação com o Arguido, tal como é imposta pelo n.º 2 do artigo 92.º do Código de Processo Penal.

E atente-se que o conhecimento da língua utilizada pela pessoa que não conhece ou não domina a língua portuguesa por qualquer dos participantes processuais não obsta à nomeação de intérprete.

As opções legislativas nesta matéria são, pois, claras e inequívocas – salvaguardar uma comunicação perfeita.

Isto posto, deixamos desde já consignado que desconhecemos se o Arguido conhece e domina a língua inglesa. Tal como desconhecemos se o agente da Polícia de Segurança Pública que o intercetou e fiscalizou no exercício da condução de veículo automóvel pela via pública, no passado dia 8 de junho de 2015, é ou não desembaraçado a falar inglês.

Mas deixamos também consignado que estes aspetos não nos interessam, porque – conforme se dispõe no n.º 1 do artigo 92.º do Código de Processo Penal – nos atos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa.

Interessam-nos os acontecimentos do dia 8 de junho de 2015, de abordagem e fiscalização do Recorrente, por agente da Polícia de Segurança Pública, em ocasião de condução de veículo automóvel pela via pública.

Resulta da sentença recorrida que, nessa ocasião, não interveio intérprete e que o agente da Polícia de Segurança Pública que intercetou o fiscalizou o ora Recorrente utilizou a língua inglesa para com ele comunicar.

A utilização deste idioma não garante a comunicação que se pretende entendível e isenta de equívocos nos atos processuais penais.

O que bastaria para lançar a dúvida sobre a perceção que o ora Recorrente teve da necessidade de ser submetido a novo teste de alcoolémia na Esquadra da Polícia de Segurança Pública de Setúbal e das consequências que lhe adviriam em caso de recusa a fazê-lo.

Por outro lado, a convicção de quem julgou quanto ao discernimento que o Arguido tem da língua portuguesa é inaceitável.

Desde logo porque a lei pretende uma comunicação isenta de qualquer equívoco.

De seguida, porque tendo o Julgador um contacto fugaz com o Arguido – o que ocorre no decurso da audiência de julgamento – as suas sensações ou perceções não confirmadas por outros meios são, inevitavelmente, frágeis.

Por último, porque o tempo decorrido entre a data da prática dos factos que deram origem aos presentes autos e a ocasião em que o julgamento se realizou, conferiu ao Arguido um outro domínio de entendimento da língua portuguesa, uma vez que passa no nosso País cerca de metade do ano.

E foi este entendimento, proporcionado pelo decurso do tempo entretanto decorrido, que quem julgou entendeu já se registar cerca de um ano e meio antes – em 8 de junho de 2015.

Tudo isto para dizer que perante as circunstâncias em que ocorreu a interceção e fiscalização do Recorrente, no passado dia 8 de junho de 2015, a conjugação da prova produzida em julgamento não permite afirmar, com a certeza considerada indispensável em processo crime, que o Arguido entendeu que lhe era exigida a realização de novo exame de alcoolémia, bem como as consequências decorrentes de se recusar fazê-lo.

E esta falta de certeza, ou melhor, este estado de dúvida revela-se inultrapassável e exige a convocação do princípio in dubio pro reo.

Dito de outra forma, não podemos dar como provado que o Arguido P. Kleener tenha entendido a necessidade de realização de um novo teste de alcoolémia, quando se encontrava nas instalações da Esquadra da Polícia de Segurança Pública de Setúbal, bem como o alcance da recusa em a ele se submeter, o que não significa o contrário, mas tão só que da análise da prova produzida, no seu conjunto, não retiramos a certeza que consideramos necessária à afirmação de tais factos.

Procurando, agora, concretizar, face à factualidade em causa nos autos, diremos que da análise da prova produzida, no seu conjunto, não retiramos a certeza que consideramos necessária a afirmar que:

- o Arguido foi advertido que a recusa a efetuar o teste qualitativo de pesquisa de álcool no sangue o faria incorrer na prática de um crime de desobediência;

- apesar de devidamente advertido, o Arguido recursou-se a realizar tal teste;

- o Arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

São os factos que constam dos pontos 4, 5 e 6 dos factos provados e que devem considerar-se como não provados.

E assente a factualidade provada e não provada nos termos acabados de indicar não pode deixar de se concluir que não se encontram preenchidos os elementos constitutivos do crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e que, por isso, deve o Arguido ser absolvido da sua prática.

Procedendo o recurso, embora por razões não inteiramente coincidentes com as nele invocadas.


III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se dar provimento ao recurso e, em consequência:

1. retirar do elenco dos factos provados os que aí constam com
- o número 4 e a seguinte redação: «O Arguido foi advertido que a recusa a efetuar o teste de pesquisa de álcool no sangue o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.»;

- o número 5 e a seguinte redação: «Apesar de devidamente advertido o Arguido recusou-se a realizar tal teste.»;
- o número 6 e a seguinte redação: «O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.»

2. considerar estes factos como não provados;

2. revogar a decisão recorrida e absolver o Arguido P. Kleener da prática do crime de desobediência que lhe é imputado.

Sem tributação.


Évora, 2017 outubro 24

(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)

_________________________________
(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)

_________________________________
(Renato Amorim Damas Barroso)

__________________________________________________
[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.

[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].

[3] No mesmo sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 17.ª Edição, páginas 965 e 966.

[4] Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de dezembro de 2005 e de 9 de março de 2006, processos n.º 2951/05 e n.º 461/06, respetivamente, acessíveis in www.dgsi.pt.

[5] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª Edição – 2008, Editora Reis dos Livros, página 72 e seguintes.

[6] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 75.

[7] Simas Santos e Leal-Henriques, obra citada, página 77.

[8] O julgamento surge, na estrutura do processo penal, como o momento de comprovação judicial de uma acusação – é o momento do processo onde confluem todos os elementos probatórios relevantes, onde todas as provas têm de se produzir e examinar e onde todos os argumentos devem ser apresentados, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa.

[9] O princípio in dubio pro reo, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal.

Dito de outra forma, o princípio in dubio pro reo constitui imposição dirigida ao Juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

[10] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, relatado pelo Senhor Conselheiro Rui Moura Ramos – acessível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.