Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
315/15.3GCSLV.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: CRIME DE BURLA
ELEMENTOS DO TIPO DE CRIME DE BURLA
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A burla é um crime de dano (só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro) e de realização vinculada (a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma particular forma de comportamento, a qual se encontra descrita no tipo).
A burla caracteriza-se igualmente como um crime material ou de resultado, que apenas se consuma com a saída dos bens ou dos valores da esfera de “disponibilidade fáctica” da vítima.

A burla qualifica-se ainda como um crime de resultado parcial ou cortado, caracterizando-se por uma “descontinuidade” ou “falta de congruência” entre os tipos objectivo e subjectivo, na medida em que, embora se exija, no âmbito deste último, que o agente actue com intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, a consumação do crime não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento da vítima (cfr. Fernanda Palma/Rui Pereira, RDFL, 1994, página 323).

Assim, para que se mostre preenchido o tipo subjectivo do crime de burla torna-se necessário que o agente actue com consciência e vontade de praticar os elementos objectivos do tipo supra referidos, isto é, consciência e vontade de determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, através de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou.

Na falta da indicação daquilo que o arguido comunicou ao ofendido em tal contexto, torna-se impossível saber se se serviu de algum meio artificioso para induzir o seu interlocutor, sendo que só nessa hipótese, não confirmada, a falsa representação formada pelo ofendido poderia relevar para a integração de um crime de burla, e, nesse sentido, fica esvaziada de significado a referência ao «artifício» criado pelo arguido, feita no artigo 8º da peça processual em análise.

No plano subjectivo, o libelo acusatório não contém a alegação do facto constitutivo do elemento intencional, que, no caso concreto, seria ter o arguido actuado movido pelo propósito de obter um benefício económico a que não tinha direito, concretizado no recebimento da quantia de € 320, sem abrir mão de contrapartida, sendo que o elemento subjectivo em falta não é preenchido pelas afirmações genéricas contidas na acusação.

Nesta conformidade, teremos de concluir que os factos alegados no libelo acusatório não integram a totalidade dos elementos constitutivos da tipicidade do crime de burla p. e p. pelo art. 217º nº 1 do CP, o que constitui fundamento da sua rejeição liminar, nos termos do art. 311º nºs 2 al. a) e 3 al. d) do CPP.

Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório

No inquérito nº 315/15.3GCSLV, foi deduzida pelo MP acusação pública, para julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, contra o arguido E…, imputando-lhe a prática de um crime de burla p. e p. pelo art. 217º nº 1 do CP.

O processo foi distribuído para julgamento ao Juízo de Competência Genérica de Silves do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, tendo o Exº Juiz desse Juízo proferido, em 17/5/2019, um despacho do seguinte teor:

«Autue como processo comum, com intervenção do Tribunal singular.

*

O Tribunal é competente.

A forma de processo é a devida.

O Ministério Público detém legitimidade para promover a acção penal.

*

O Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido E… imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de burla simples, previsto e punido pelo art. 217.º, n.º 1, do Código Penal.

De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 217.º do Código Penal, comete o crime de burla quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.

A burla é um crime de dano (só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro) e de realização vinculada (a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma particular forma de comportamento, a qual se encontra descrita no tipo).

A burla caracteriza-se igualmente como um crime material ou de resultado, que apenas se consuma com a saída dos bens ou dos valores da esfera de “disponibilidade fáctica” da vítima.

A burla qualifica-se ainda como um crime de resultado parcial ou cortado, caracterizando-se por uma “descontinuidade” ou “falta de congruência” entre os tipos objectivo e subjectivo, na medida em que, embora se exija, no âmbito deste último, que o agente actue com intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, a consumação do crime não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando para o efeito que, ao nível do tipo objectivo, se observe o empobrecimento da vítima (cfr. Fernanda Palma/Rui Pereira, RDFL, 1994, página 323).

Assim, para que se mostre preenchido o tipo subjectivo do crime de burla torna-se necessário que o agente actue com consciência e vontade de praticar os elementos objectivos do tipo supra referidos, isto é, consciência e vontade de determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, através de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou.

Por outro lado, para o preenchimento do tipo subjectivo do crime de burla, mostra-se necessário a verificação do elemento subjectivo especial ou dolo específico traduzido na “intenção do agente de obter, para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo”.

Ora, compulsada a factualidade imputada ao arguido na acusação pública deduzida nos autos, constata-se que o arguido é acusado de, através de uma suposta conduta astuciosa no âmbito de um negócio de compra e venda através da internet, ter levado o ofendido a entregar ao arguido o valor monetário de € 320,00, de que o arguido se apropriou, sem que o arguido tenha entregado ao ofendido o objecto vendido (um telemóvel).

Sucede que não consta dos factos da acusação que o arguido tenha actuado com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo, aquando da sua conduta alegadamente astuciosa traduzida no negócio de compra e venda celebrado com o ofendido através da internet.

Com efeito, embora se alegue no art. 7.º da acusação que o arguido acabou por se apropriar da quantia de € 320,00 que lhe foi entregue pelo ofendido, de forma consciente e voluntária (cfr. art. 9.º da acusação), apesar de saber que tal quantia não lhe pertencia, não decorre da acusação que o arguido tenha agido perante o ofendido logo ab initio (i.e., quando publicitou na internet o negócio de venda do telemóvel, e quando celebrou com o ofendido, através da internet, o negócio de compra e venda do telemóvel) com intenção de enriquecimento ilegítimo para si ou terceiro, dado que, desde logo, face ao teor da acusação, o arguido poderia inicialmente ter a intenção de entregar o telemóvel em causa ao ofendido e, só posteriormente, uma vez chegado o dinheiro à sua posse, ter mudado de ideias e decidido apropriar-se de tal dinheiro sem entregar o objecto vendido ao ofendido, ainda que com consciência de que a quantia recebida pertencia ao ofendido; além de que, por absurdo, o arguido poderia não saber que, ao apropriar-se da quantia de € 320,00 entregue pelo ofendido sem lhe entregar o telemóvel vendido, estava a enriquecer ilegitimamente, faltando-lhe possivelmente essa intenção específica de enriquecimento ilegítimo, que nunca se poderá presumir na falta da sua alegação pelo Ministério Público.

Assim se aferindo que a circunstância de o arguido, segundo a acusação, se ter apropriado da quantia de € 320,00 do ofendido, de forma consciente e voluntária, não significa necessariamente que o arguido tenha agido com intenção de enriquecimento ilegítimo aquando da sua conduta alegadamente astuciosa perante o ofendido que é descrita na acusação nos pontos 1.º a 6.º.

Sendo certo que, independentemente de tais considerações, a verdade é que, conforme já referimos, não foi alegado na acusação pelo Ministério Público que o arguido tenha agido com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo, faltando em tal libelo tal elemento subjectivo especial (ou dolo específico) do crime de burla.

Pelo que, em suma, se conclui que a factualidade imputada ao arguido na acusação pública deduzida nos autos não preenche a totalidade dos elementos subjectivos do tipo de ilícito do crime de burla simples de que o mesmo está acusado nos autos.

Ademais, em bom rigor, a factualidade imputada ao arguido na acusação pública também não preenche a totalidade dos elementos objectivos do tipo de ilícito do crime de burla, porquanto para tal era necessário que pudéssemos univocamente considerar, face ao mero teor da acusação, que a conduta do arguido perante o ofendido descrita na acusação consistia num erro ou engano causado astuciosamente pelo arguido com vista a levar o ofendido a lhe entregar quantias pecuniárias.

No entanto, na acusação não foi alegado que o negócio de venda do telemóvel publicitado pelo arguido na internet na realidade não era verdadeiro nem real, e que o mesmo se tratava de um mero esquema criado pelo arguido com vista a obter dinheiro dos potenciais interessados na compra do telemóvel publicitado, e que assim nunca existiu qualquer intenção por parte do arguido em vender (nem em entregar) qualquer telemóvel (nomeadamente ao ofendido).

Ora, na falta de tal alegação, e perante os meros factos descritos na acusação, não se vislumbra, com clareza, que haja qualquer tipo de conduta astuciosa do arguido que tenha induzido o ofendido em erro ou engano de modo a obter do mesmo quantias pecuniárias – apesar de, de forma totalmente conclusiva e sem qualquer concretização, ser alegada a existência de um artifício criado pelo arguido no art. 8.º da acusação –, antes verificamos existir uma mera situação de incumprimento contratual de um contrato de compra e venda por parte do vendedor (ora arguido), que, apesar de ter recebido do comprador o preço do bem vendido, não chegou a cumprir a sua obrigação de entregar ao comprador o bem vendido, sendo que tal situação não constitui qualquer crime, mas antes faculta apenas ao contraente fiel (o comprador ora ofendido) o recurso aos tribunais civis com vista a exigir o cumprimento integral pelo vendedor do contrato de compra e venda, ou uma indemnização pelo respectivo incumprimento.

Donde resulta, em suma, que mesmo que viessem a ser dados como provados, em sede de julgamento, todos os factos imputados ao arguido na acusação pública deduzida nos autos, nunca se poderia concluir que o mesmo praticou o crime de burla simples de que vem acusado nos autos, previsto e punido pelo art. 217.º, n.º 1, do Código Penal.

Vide, neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7/3/2018, relator Orlando Gonçalves, processo n.º 189/14.1PFCBR.C1, in www.dgsi.pt.

Deste modo, e não constituindo os factos relatados na acusação pública um crime, essa circunstância torna a acusação deduzida nos autos manifestamente infundada, o que conduz necessariamente à rejeição da acusação (cfr. art. 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), por referência ao art. 1.º, al. a), ambos do Código de Processo Penal) e ao consequente arquivamento dos autos (cfr. acórdão supra citado).

O que se decidirá.

*

Nos termos expostos, rejeito a acusação pública deduzida nos autos pelo Ministério Público contra o arguido E…, com o consequente e oportuno arquivamento dos autos.

Sem custas, por o Ministério Público se encontrar isento das mesmas (cfr. art. 522.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).

Notifique.

*

Após trânsito em julgado, oportunamente arquive os autos».

Inconformado com o despacho proferido, o MP interpôs dele recurso, devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1º Vem o presente recurso interposto do, aliás, douto despacho pelo qual foi decidido rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Publico por esta se mostrar manifestamente infundada, ao abrigo do disposto pelo art. 311º, nº2, al. a) e nº 3, al. d), do C.P.P.;

2º Ora, “manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, por a insuficiência de indícios ser manifesta e ostensiva, no sentido de inequívoca, indiscutível, fora de toda a dúvida séria, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para o arguido, em clara violação dos princípios constitucionais”. (Ac. da Relação de Lisboa de 16.05.2006, disponível in www.dgsi.pt);

3º O M.mo Juiz recorrido considerou a acusação manifestamente infundada, por dela não constarem factos que preencham o elemento subjectivo do crime, e ainda pelo factos de não se mostrarem preenchidos todos os elementos objectivos do crime de burla;

4º Discorda-se desse douto despacho porque, conforme resulta dos pontos 7º, 8º, 9º e 10º da acusação, dela constam os seguintes factos:

a) O arguido quis, criando em erro, de forma astuciosa, levar o ofendido a adquirir um telemóvel, que acreditava existir, ser real, e que lhe seria enviado, por forma a obter um enriquecimento, como obteve;

b) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente;

c) Bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida e que a mesma era punida por lei.

5º Não extrair estes factos da acusação é uma conclusão absurda, abusiva, não correspondente com a realidade dos factos, fazendo-se, por essa via, tábua rasa do que ali vem descrito;

6º A acusação não só não é completamente desprovida de factos, de forma clara e evidente, como também se verifica que da mesma constam factos que preenchem, de forma suficiente e bastante, o elemento subjectivo;

7º Destes factos, que constam da acusação, resulta que a conduta do arguido consistiu na criação de um erro ou engano, causado de forma astuciosa, com a intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo, que o arguido representou os factos, e resolveu praticá-los, não restando dúvidas que se encontram alegadas na acusação a vontade e a intenção do arguido de cometer o crime que lhe vem imputado;

8º Por último, temos para nos que cabe ao juiz de julgamento apurar a verdade material dos factos, e não cingir-se a uma visão formal do objecto da acusação;

9º O que o Juiz não pode é antecipar-se ao julgamento, como

fez o M.mo Juiz a quo – “o mérito da acusação só em julgamento pode e deve ser apreciado” (Acs. da Rel. Coimbra de 27.04.1994 e de 15.02.1995, in BMJ 436 e 444, págs. 455 e 721, respectivamente);

10º Termos em que, decidindo como decidiu, o M.mo Juiz recorrida violou o disposto pelo art. 311º, nº2, al. a), e nº 3, al. d), do C.P.P.

Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, o douto despacho ora recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine a remessa dos autos para julgamento, com a designação de data para realização da audiência de julgamento.

Com o que se fará inteira JUSTIÇA!

VOSSAS EXCELÊNCIAS, COMO SEMPRE, MELHOR DECIDIRÃO!

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito devolutivo.

A motivação do recurso foi notificada ao arguido E…, que não exerceu o direito ao contraditório.

Pelo Digno Procurador-Geral Adjunto em funções junto desta Relação foi emitido parecer sobre o mérito recurso, pugnando pela respectiva improcedência.

O parecer emitido foi notificado ao arguido, a fim de se pronunciar, o qual nada disse.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação

Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

A sindicância da decisão recorrida, que transparece das conclusões da recorrente, centra-se na reversão do juízo de rejeição, que recaiu sobre a acusação pública, formulado no despacho impugnado, com base, sinteticamente, na asserção de que o libelo acusatório contém a alegação factos idóneos ao preenchimento de toda a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de burla p. e p. art. 217º nº 1 do CP, cuja prática foi imputada ao arguido.

O art. 311º do CPP é do seguinte teor:

1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

d) Se os factos não constituírem crime.

A norma que tipifica o crime de burla é o nº 1 do art. 217º do CP:

Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

Para melhor compreensão, iremos transcrever o teor da acusação deduzida pelo MP contra E…, sobre a qual incidiu o despacho sob recurso:

«l° No dia 26 de Maio de 2015, o ofendido J…, melhor id. nos autos, encontrava-se no… da freguesia de …, deste concelho de …;

2° Quando efectuou um contacto, através da plataforma de venda online OLX com o ora arguido, o qual se identificou como sendo "E…", com o n º de telemóvel … e contactável através do email … ;

3ª Pretendia o ofendido adquirir um aparelho de telemóvel da marca "Sony", modelo "Z3", que o arguido publicitava para venda online pelo preço de 320,00 € (trezentos e vinte euros);

4º Depois de dialogarem um pouco, de tal modo ficou o ofendido convencido de que o arguido era o real proprietário desse telemóvel, e que este lho iria enviar, que logo efectuou o pagamento da quantia de 320,00 € (trezentos e vinte euros), através da ENTIDADE …, REFERÊNCIA …, no dia 26 de Maio de 2015, pelas 14 horas e 51 minutos;

5º Esperou o ofendido até ao dia 30 de Outubro de 2015 pelo envio do telemóvel, mas o que é certo é que o mesmo não mais chegou;

6º O Ofendido ainda tentou entrar em contacto com o arguido, mas este não mais o atendeu;

7º Integrou, assim, o arguido aquela quantia de 320,00 € (trezentos e vinte euros) no seu património, gastando-a em proveito próprio, não obstante saber que a mesma não lhe pertencia;

8 ° O que só conseguiu em virtude do artifício por si criado;

9° O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente;

10º Bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida, e que a mesma era punida por lei.

Pelo exposto, cometeu o arguido, em autoria material, um crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217°, n º 1, do Código Penal, na redacção dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro».

O tipo criminal da burla pode ser desdobrado nos seguintes elementos constitutivos, objectivos e subjectivos:

a) Uma falsa representação sobre factos no espírito do burlado;

b) A instalação dessa falsa representação pelo agente, por processo artificioso;

c) Um prejuízo no património do burlado ou de outrem;

d) O nexo de causalidade entre o prejuízo e a falsa representação;

e) O dolo do agente;

f) O elemento intencional, consistente no propósito de obter para si ou para terceiro um benefício patrimonial a que não tem direito.

A factualidade descrita na acusação é apta a integrar alguns dos elementos constitutivos do crime de burla, mas não a totalidade deles.

Desde logo, mostram-se reunidos o prejuízo no património do ofendido J…, originado por ter aberto mão da quantia de € 320 sem ter recebido a correspondente contrapartida, e a falsa representação sobre factos, concretizada na convicção de que o arguido era o verdadeiro proprietário do telemóvel identificado na acusação e que lhe o entregaria contra o pagamento da referida importância.

No artigo 4º da peça acusatória, alega-se que o ofendido formou a referida convicção depois de ter dialogado com o arguido.

Contudo, desse diálogo, a acusação fornece-nos apenas a convicção que ofendido dele retirou, mas não aquilo que o arguido disse ao ofendido no sentido de convencer, que seria o relevante, estando em causa a imputação de um crime de burla.

Na falta da indicação daquilo que o arguido comunicou ao ofendido em tal contexto, torna-se impossível saber se se serviu de algum meio artificioso para induzir o seu interlocutor, sendo que só nessa hipótese, não confirmada, a falsa representação formada pelo ofendido poderia relevar para a integração de um crime de burla.

Nesse sentido, fica esvaziada de significado a referência ao «artifício» criado pelo arguido, feita no artigo 8º da peça processual em análise

A factualidade descrita no artigo 7º é de todo redundante para o preenchimento do tipo criminal da burla e a sua alegação só poderia ter sentido se estivesse em causa, por exemplo, a imputação de um crime de abuso de confiança (art. 205º do CP).

No plano subjectivo, o libelo acusatório não contém a alegação do facto constitutivo do elemento intencional, que, no caso concreto, seria ter o arguido actuado movido pelo propósito de obter um benefício económico a que não tinha direito, concretizado no recebimento da quantia de € 320, sem abrir mão de contrapartida.

O elemento subjectivo em falta não é preenchido pelas afirmações genéricas contidas no artigo 9º da acusação, como parece pressupor o Digno Recorrente.

O artigo 10º da mesma peça processual corresponde à chamada «consciência da ilicitude» e é inócuo para o efeito que nos interessa.

Nesta conformidade, teremos de concluir que os factos alegados no libelo acusatório não integram a totalidade dos elementos constitutivos da tipicidade do crime de burla p. e p. pelo art. 217º nº 1 do CP (ou de qualquer outro que nos ocorra), o que constitui fundamento da sua rejeição liminar, nos termos do art. 311º nºs 2 al. a) e 3 al. d) do CPP.

Assim, terá o recurso de fracassar.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e manter o despacho recorrido.

Sem custas.

Notifique.

Évora 17/12/20 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Povoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)