Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
361/12.9GDPTM.E2
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 03/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário:
A detenção, para venda, de 0,715g de cannabis (resina), de 6,735g línguas de cannabis, de um pedaço de cannabis com o peso de 43,850g, de quatro pedaços de cannabis (resina) com o peso líquido de 1,537g e de 280 € provenientes de vendas anteriores, consente a integração no crime de tráfico de menor gravidade do art. 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93.
Decisão Texto Integral:
Processo nº 361/12.9GDPTM.E2

Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo n.º 361/12.9GDPTM do 1º Juízo Criminal do Tribunal de Portimão foi proferido acórdão em que se decidiu condenar o arguido A como autor de um crime de tráfico de estupefacientes dos arts 21º, nº 1, do D.L. 15/93, na pena de 6 (seis) anos de prisão, e a arguida B como autora de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º, nº 1 do D.L. 15/93, na pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão suspensa na execução com regime de prova.
Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:
“1º Vem o presente recurso interposto do douto acórdão que condenou o arguido, ora recorrente, A, pela prática, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº. 21º, nº1 , do Decreto-Lei nº. 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 6 ( seis) anos de prisão.
2º O presente recurso prende-se com a impugnação da decisão sobre a Matéria de Facto e de Direito.
3º No entendimento do arguido, ora recorrente, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não permitia dar como provada, como foi, a matéria constante da douta acusação, que acabou por ser transposta para pontos 1. a 4., 6. e 37. do douto acórdão recorrido, na qual assenta a condenação daquele.
4º Na verdade da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, designadamente dos depoimentos testemunhais, não podem fundamentar a matéria de facto dada como provada, sendo tais conclusões forçadas e desprovidas de fundamento.
5º Efectivamente, do depoimento da testemunha de acusação C (cfr. depoimento gravado em suporte digital 00:00:01 a 00:08:27), apenas resulta que o arguido, ora recorrente, estava a fazer publicidade de qualquer coisa, que trincou, tendo esta concluído que era droga. De facto, a testemunha não o viu transaccionar qualquer mercadoria nem o viu receber dinheiro.
6º Do depoimento da testemunha de acusação D (cfr. depoimento gravado em suporte digital 00:00:01 a 00:13:20), resulta de não tem certeza de nada e não conseguiu em audiência de discussão e julgamento recordar-se de forma inequívoca do que alegadamente terá visto em momento anterior. De facto, no início do seu depoimento declarou que nada viu, nada sabe (não viu qualquer comportamento suspeito por parte do arguido, nem o viu passar nem receber dinheiro e que este se terá deslocado uma ou duas vezes ao local do comboio onde são transportadas as bicicletas, não sabendo exactamente precisar) para, posteriormente, por forte orientação do Tribunal “ a quo”, declarar que aquele terá ido várias vezes a esse local e que viu uma nota na mão não sabe de quem, nem podendo afirmar com segurança que fosse de 20 Euros, por não se recordar).
7º Pelo que se impõe decisão diversa no que à matéria de facto ora impugnada tange, devendo, assim serem alterados estes pontos dos factos provados para os seguintes termos: ser dado como não provado que - No dia 18 de Maio de 2012, de manhã, os arguidos, agindo de comum acordo, em comunhão de esforços e na sequência de prévio acordo, no interior do comboio que efectuava o trajecto Vila Real de Santo António » Lagos, procediam à venda de haxixe - A quantia monetária de Euros 280,00 ( duzentos e oitenta euros) que a arguida trazia consigo era produto da venda de canabis; - Por sua vez, o arguido procedia à entrega do estupefaciente aos compradores, designadamente a estudantes de hotelaria, e recebia o dinheiro do respectivo preço, deslocando-se para o efeito até ao compartimento do comboio onde eram transportadas as bicicletas; -Em tais circunstâncias de tempo e lugar, o arguido propôs a venda de haxixe aos referidos estudantes; - Eram estudantes de hotelaria, que viajavam no comboio, as pessoas a quem os arguidos vendiam, no comboio, o canabis ( resina).
8º Face aos depoimentos supra referidos impunha-se a absolvição do arguido, ora recorrente, pelo que ao valorar as provas produzidas de forma diversa incorreu o Tribunal “ a quo” em erro notório de apreciação da prova, estando pois o presente acórdão ferido do vício previsto na al. c), nº 2 do artº 410º do CPP..
9º Ademais, no mesmo passo, violou ainda o Acórdão condenatório, o Princípio da Livre Apreciação da Prova, constante do artº 127º do CPP, o qual não se pode confundir com qualquer poder discricionário por parte do julgador mas, antes, se baseia nas regras da lógica e da experiência para a apreciação da prova cujo valor probatório não seja determinado pela lei substantiva, como por exemplo na prova testemunhal (artº 396º do Código Civil).
10º Ao dar como provados estes factos, sem que nenhuma prova o sustente de forma inequívoca, violou o Tribunal “ a quo” a Constituição da República Portuguesa, no artº 32º, nº2, dando como provada uma mera presunção, sendo certo que as presunções não são meios de prova num Estado de Direito.
Padece, em nosso entender, e salvo melhor opinião, de insuficiência para decisão da matéria de facto provada, nos termos do artº 410, nº 1 al. a) do CPP.
11º Apontam os dados disponíveis, tais como a decisão conjugada com as regras da experiência comum que, pelo menos, deveria ter sido criada ao Tribunal “ a quo” uma dúvida razoável, que impusesse outra decisão : a absolvição do arguido, ora recorrente, por força do princípio incontornável do “ in dubio pro reo”, pedra basilar do processo penal no Estado de Direito. Tendo assim o acórdão recorrido violado, igualmente, o Princípio in dúbio pro reo segundo o qual, tendo o Tribunal dúvidas sobre a verificação ou não de determinado facto, sempre há-de decidir de acordo com o que se mostrar mais favorável ao arguido, ora recorrente, o que não sucedeu no caso em apreço.
12º Da consideração do circunstancialismo – caso se entenda existirem actos de tráfico, consubstanciado na venda de produto estupefaciente – sempre o mesmo se integraria no denominado “tráfico de rua” que deve ser destrinçado e valorado de forma diversa dos demais casos de “ tráfico grave”.
13º Constitui entendimento doutrinal e jurisprudencial dominante que o ilícito p. e p. no artº 25º do Decreto-Lei Nº. 15/93, de 22 de Janeiro, consubstancia um “ crime privilegiado relativamente ao previsto no artº 21º do mesmo diploma, a partir do grau de ilicitude e não da culpa “ (Ac. STJ de 20/03/02, proferido no Proc. 121/02).
14º As circunstâncias e modalidade da acção, meios utilizados, a quantidade e qualidade de produto estupefaciente em causa, são barómetros da subsunção do facto a um ou outro dos tipos legais de crime.
15º Revelador da teologia ínsita ao aludido dispositivo legal é o supra identificado acórdão, onde se decide que; “ É assim claro que a conclusão sobre elemento típico da considerável diminuição da ilicitude do facto terá de resultar de uma valoração global deste, tendo em conta não só as circunstâncias que o artigo enumera de forma não taxativa, mas ainda outras que, atendíveis na sua globalidade, sejam significativos para a conclusão sobre a existência ou não da efectiva diminuição da ilicitude. Resulta ainda evidente que esse elemento da considerável diminuição da ilicitude de facto, tem de ser aferido face à ilicitude que é típica do art. 21º, expressa, além do mais na moldura penal abstracta que lhe corresponde. (…)
16º Como elemento de referência elucidativa do grau considerável de diminuição de ilicitude indispensável à integração do tipo do art. 25º, devem ter-se ainda em atenção as molduras penais abstractas que a lei estabelece. E nesse ponto, para além da graduação que, em função dos estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, as als. a) e b) permitem, importa atentar que nas hipóteses da alínea a), o mínimo da moldura penal abstracta é já de um ano e máximo de cinco anos de prisão, o que é expressivo, face ao (…) quadro do nosso sistema sancionatório penal, de uma já muito apreciável ilicitude 17º Não se deve entender o tráfico de menor gravidade previsto no art. 25º como tráfico de gravidade necessariamente diminuída.
18º A tipificação do art. 25º parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal, relativamente a crimes desta natureza (de elevada gravidade considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e frequência desta), encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativa da punição do art. 21º e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no art. 25º. Resposta que nem sempre seria variável e ajustada através dos mecanismos gerais de atenuação especial da pena (…) cuja possibilidade de aplicação não podia ter deixado de estar presente no espírito do legislador ao decidir pelo tipo privilegiado do art. 25º” (cit. Ac.) .
19º Em conformidade com esta corrente jurisprudencial, os actos de tráfico de estupefacientes são passíveis de subsunção legal tripartida, o que é aconselhável pelos fins de prevenção geral e especial e de uma justiça equitativa.
20º Portanto, a conduta dos grandes e médios traficantes seria enquadrável na previsão do art. 21º do citado diploma legal, a dos pequenos traficantes na previsão do art. 25º e a dos indivíduos que visam com tais actos obter substâncias para seu consumo, na previsão do art. 26º.
21º No caso dos presentes autos e face à matéria de facto dada como provada, a actividade de tráfico do arguido, ora recorrente (consubstanciada apenas pela detenção já que o produto foi apreendido antes da venda, não tendo este sido surpreendido na posse de qualquer produto) desenvolveu-se com recurso a meios simples (contacto directo com o consumidor), sem qualquer sofisticação.
22º Não se logrou provar que os dois telemóveis dos arguidos eram utilizados por estes no desenvolvimento da respectiva actividade de narcotráfico, nem que se provou qualquer móbil de lucro, nem que a venda de estupefaciente constituía o seu único modo de vida e de sobrevivência.
23º Tendo em consideração o exposto, tal permite-nos concluir que a ilicitude da conduta do arguido, ora recorrente, mostra-se consideravelmente diminuída devendo, por tal razão e em consequência, subsumir-se a mesma à previsão do art. 25º do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
24º E atendendo à sua integração profissional, social e familiar, entende-se que a mera ameaça da pena satisfarão, in casu, as necessidades de prevenção geral e especial e constituirão elemento dissuasor, evitando que o arguido, ora recorrente, volte a delinquir.
25º Pelo que se considera que o Tribunal “ a quo” deveria ter integrado a sua conduta na previsão do art. 25º do supra identificado diploma legal, e dentro da moldura penal abstracta ali prevista, aplicando-lhe uma pena próxima do respectivo limite mínimo, devendo a mesma ser suspensa na sua execução.
26º Ainda que assim se não entenda, o que por mera cautela de patrocínio se pondera mas não se concede, sempre se dirá
27º A pena concreta aplicada ao arguido situa-se muito acima do mínimo legal, não tendo o douto Tribunal “a quo” valorizado suficientemente que o arguido, ora recorrente, tem vontade de introduzir mudanças positivas na sua vida nem as suas condições pessoais, quer a nível familiar, social e laboral .
28º As condições de vida do arguido, ora recorrente, podem ser aferidas da matéria de facto dada como provada no douto Acórdão, suportada pelo Relatório Social de fls 374 a 377 das quais se realça o facto de arguido estar inserido familiarmente ( o agregado familiar do arguido, ora recorrente, é constituído por si, pela sua companheira de há 8 anos e dois filhos menores de 1 e 6 anos de idade; provém de uma família estruturada com fracos recursos económicos, mas que mesmo assim auxiliam o seu agregado familiar) e laboralmente ( exerce actividade profissional : nos últimos 3 anos na construção civil e actualmente na pesca) ; ser o pedra basilar para o sustento dos seus filhos ( a companheira está desempregada), ter vontade de introduzir mudanças positivas na sua vida ( abandonou, após os factos constantes na acusação, o convívio com amigos e conhecidos com práticas de consumo de drogas e parece ter-se concentrado na educação dos filhos e assumiu crenças adequadas quanto a comportamentos socialmente desajustados, bem como uma compreensão e respeito pela intervenção do sistema de justiça criminal, mostrando-se bastante intimidado com o presente processo).
29º O arguido, ora recorrente, não deverá ser condenado na pena de prisão superior a 5 anos que deverá ser suspensa na sua execução.
30º Nos termos do disposto no nº1 do artº. 50º do C.P., o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e as ameaças da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.
31º Este preceito consagra agora um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos, sendo certo que a suspensão da pena é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico (Ac. STJ, de 27 de Junho de 1996; in CJ, Acs. do STJ, IV, tomo 2, 204).
32º Entendemos que é possível fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização (em liberdade) do arguido, o qual, aliás, não tem necessariamente de assentar numa certeza, bastando uma expectativa.
33º Se é certo que o arguido, ora recorrente, foi, por acórdão de 18/04/2012, proferido no processo nº. 377/09.2TAOLH, do 3º. Juízo do Tribunal de Comarca de Olhão, e transitado em julgado em 08/05/2012, condenado na pena de 2(dois) anos e 6 (seis) meses) de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, pela prática, em 21/02/2010, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº. 25º, al. a) do D.L. nº. 15/93, também é certo que o início de 2012 foi um período muito difícil da sua vida, no qual andava desorientado.
34º Resulta, de forma clara, do seu Relatório Social junto aos autos que o arguido, ora recorrente, quer, de forma determinada, mudar o rumo da sua vida, justificando esta atitude que lhe seja dada nova oportunidade.
35º De facto, o arguido, ora recorrente, demonstrou ter vontade de introduzir mudanças positivas na sua vida, tomando consciência não só de que não poderá cometer novos crimes, assim como interiorizou a circunstância de ter filhos de tenra idade que de si dependem.
36º Tais factos constituem factores positivos, sendo que, com toda a segurança, este último facto determinará no arguido, ora recorrente, uma responsabilização acrescida para que trilhe, no futuro, um percurso afastado da criminalidade, arrepiando caminho, orientando a sua conduta no respeito pelos valores de direito, excluindo daquela riscos de fractura social, familiar, laboral e comportamental.
37º A medida adequada a afastar o arguido, ora recorrente, da criminalidade será a suspensão da pena de prisão, pois só essa possibilitará a reintegração deste na sociedade, sendo certo que tem a virtualidade de, além do mais, dar expressão a que a prisão (e a sua execução) constitui “ ultima ratio” da punição (no mesmo sentido art. 18º nº2 da CRP).
38º Face aos factos supra expostos, é determinante que a pena aplicar em concreto, se aproxime do limite mínimo abstracto, o que não resulta do douto Acórdão ora em recurso que, por não os ter considerado, violou o disposto nos artigos: - Artº 71º nº2 d) e e) do Código Penal, ao decidir aplicar pena de prisão efectiva, sem que fosse atenuada, em consideração a todo o circunstancialismo pessoal do arguido, ora recorrente, que não podia ter deixado de ser atendido; - Artºs 72º e 73º do Código Penal, ao não considerar a conduta do arguido posterior aos factos; - Artº 50º do Código Penal, ao decidir, perante tudo o supra referido, aplicar pena de prisão efectiva, quando tudo justificava somente a ameaça da pena, que deveria ser suspensa na sua execução..”
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo:
“1ª – A convicção do Tribunal formou-se com base na prova testemunhal, cujos relatos eram já por si indiciadores do tráfico praticado pelo recorrente, mas e também nos autos de apreensão e de busca, no depoimento da arguida B, na reportagem fotográfica e nos relatórios periciais, todas conjugadas entre si, prova apreciada segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.
2ª – Da conjugação dos depoimentos com as apreensões, nomeadamente a quantidade de droga que a arguida, companheira do recorrente, transportava quando da viagem no comboio e o dinheiro que trazia é reveladora que ambos se dedicavam ao tráfico de estupefacientes.
3ª – As conclusões consubstanciadas nos factos provados são o corolário do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do CPP, encontrando-se devidamente fundamentadas e explicadas num raciocínio claro, objectivo e perfeitamente sindicável que transmitem a visão global do tráfico feito pelo recorrente e a sua companheira, a arguida, mostrando clara e inequivocamente que actuavam mancomunados, em conjugação de esforços e intenções.
4ª – A detenção de droga em poder da arguida, acrescido à venda no interior do comboio e à considerável quantidade de produto estupefaciente que foi apreendido em casa (43,850g+1,537g de canabis (resina)) traz à evidência que o Tribunal não se baseou em presunções, mas em factos, não obstante, as presunções judiciais serem um meio de prova lícito nos termos dos artigos 349º e 351º do CC e, por isso, admissíveis no processo penal nos termos do artigo 125º do CPP.
5ª – A convicção do Tribunal alicerçada nos elementos de prova que conduziram à certeza da condenação não se opõe ao princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º nº 2 da CRP, pois ultrapassou-o com a própria condenação, daí não haver também e consequentemente violação do princípio in dubio pro reo.
6ª – Os invocados vícios do erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para decisão da matéria de facto provada não resultam do texto do Acórdão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, pelo que os mesmos não se verificam.
7ª – A ilicitude do facto não se mostra consideravelmente diminuída, tendo em conta a quantidade das substâncias traficadas e a traficar, o já ter sido realizada, com a venda do haxixe, razoável importância em dinheiro e o facto de o recorrente traficar em comunhão de esforços e intenções com a sua companheira e fazê-lo com considerável à vontade.
8ª – Tendo em conta o grau de ilicitude e de culpa que resultam da considerável quantidade de droga apreendida e que se destinava à venda a terceiros, bem como todas as circunstâncias que constam do nº 2 do art. 71º do Código Penal, nomeadamente as acentuadas exigências de prevenção geral, mas também as necessidades de prevenção especial e simultaneamente a reintegração do condenado, ainda a circunstância de não ter mostrado qualquer arrependimento e ter sido recentemente condenado por crime de idêntica natureza levam a que a pena aplicada é justa, adequada e proporcional.
9ª – A pena aplicada é insusceptível de ser suspensa na sua execução por força do disposto no artigo 50º nº 1 do Código Penal, em todo o caso, mesmo que não o fosse, sempre obstaria à suspensão a falta de um juízo de prognose favorável, sendo importante realçar que os factos que levaram à condenação neste processo ocorreram em pleno período de suspensão da pena de prisão por crime de natureza idêntica, o que mostra que o ter sido condenado com suspensão da pena não teve para si qualquer significado.
10º - O Acórdão fez uma correcta aplicação dos artigos 50º, 71º nº 2 alíneas d) e e), 72º e 73º do Código Penal.”
Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência parcial do recurso, desenvolvendo que a sentença deve ser confirmada na parte relativa à matéria de facto, à qualificação jurídica dos factos provados e à efectividade da prisão, mas que a medida da pena aplicada merece sofrer redução.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:
“1. No dia 18 de Maio de 2012, de manhã, os arguidos, agindo de comum acordo, em comunhão de esforços e na sequência de prévio acordo, no interior do comboio que efetuava o trajeto Vila Real de Santo António / Lagos, procediam à venda de haxixe.
2. Para o efeito, a arguida transportava consigo, no interior da carteira, dentro de uma onça de tabaco, 0,715g (zero vírgula setecentas e quinze gramas) de canabis (resina) e, no interior do soutien que trazia vestido, línguas de canabis (resina) com o peso líquido (total) de 6,735g (seis vírgula setecentas e trinta e cinco grama) e a quantia monetária de €280,00 (duzentos e oitenta euros), esta última sendo produto da venda de canabis.
4. Por sua vez, o arguido procedia à entrega do estupefaciente aos compradores, designadamente a estudantes de hotelaria, e recebia o dinheiro do respectivo preço, deslocando-se para o efeito até ao compartimento do comboio onde eram transportadas as bicicletas.
5. E trazia consigo um canivete utilizado para o corte do haxixe.
6. Em tais circunstâncias de tempo e lugar, quando o arguido propôs a venda de haxixe aos referidos estudantes, chegou mesmo a dizer-lhes: “isto é material do bom”.
7. Nesse mesmo dia (detetado por busca realizada entre as 12h e as 13 h) os arguidos guardavam, na sua residência, sita na Estrada Nacional nº 125, Bias do Sul, Monte Valeira, em Olhão:
- Um pedaço de cannabis (resina), com o peso líquido de 43,850g;
- Cinco canivetes contendo resíduos de cannabis;
- Quatro pedaços de cannabis (resina), com o peso líquido de 1,537g;
8. Agiram os arguidos de forma livre, deliberada a consciente, com perfeito conhecimento da natureza estupefaciente do canabis que detinham e destinavam à venda, bem sabendo que a respetiva detenção ou cedência é proibida, e ainda assim quiseram deter tal substancia, conforme fizeram, com o propósito de a venderem.
9. A arguida B provém de uma família estruturada e, economicamente equilibrada.
10. Durante o seu processo de crescimento usufruiu de ambiente familiar normativo, pautado por consistentes sentimentos de pertença e de cooperação familiar.
11. Após ter concluído 6º ano de escolaridade, abandonou os estudos, obtendo mais tarde o 9º ano, em regime noturno.
12. Tem um percurso laboral relativamente contínuo, mas pautado por alguma precariedade contratual, desenvolvendo essencialmente actividade como empregada comercial, para diferentes entidades.
13. Iniciou união de facto com o co-arguido A há cerca de 8 anos, da qual nasceram dois filhos, atualmente com 1 e 6 anos de idade.
14. Neste contexto, iniciou o consumo haxixe, por influência do companheiro e durante a vigência marital, de reduzido significado em termos de aditividade.
15. À data dos factos, tal como agora, vivia com o companheiro, co-arguido A e os dois filhos menores em casa arrendada (pagando 250€/mês, de renda), sita em meio rural, vindo o casal posteriormente a ser despejado do imóvel, pela arrendatária.
16. Desde o passado mês de Outubro que o casal reside em casa arrendada com adequadas condições de habitabilidade, pagando €160,00 (cento e sessenta euros) por mês de renda.
17. O casal passou, há cerca de 3 anos, por um clima de acentuada conflituosidade conjugal associado aos hábitos de consumo de álcool e estupefacientes do companheiro, levando a ser objeto de acompanhado pela CPCJ de Olhão.
18. Atualmente e na sequência dos acontecimentos subjacentes ao presente envolvimento judicial, foi reaberto o processo junto da CPCJ, registando-se, de momento, uma evolução positiva ao nível da reorganização das vivências quotidianas da arguida, companheiro e respetivos filhos menores, assumindo a avó materna um papel preponderante na supervisão do processo educativo dos netos.
19. Laboralmente a arguida encontra-se desempregada desde há vários meses, coadjuvando desde então o companheiro na atividade piscatória, dispondo, para o efeito, de pequeno barco que lhe foi cedido pelo sogro.
20. A situação económica é descrita ainda como bastante precária, beneficiando no entanto o casal do apoio económico dos pais de ambos, e recentemente do apoio da Santa Casa da Misericórdia em termos de alimentação.
21. Face aos factos objeto do presente processo, a arguida revela uma atitude crítica e de respeito pelos bens jurídicos em causa.
22. A arguida não tem antecedentes criminais.
23. O arguido A provém de uma família estruturada mas de fracos recursos económica.
24. Frequentou a escola na idade própria, tendo concluído o 9º ano de escolaridade.
25. Após concluiu o curso profissional de pintor da construção, tem vindo a desenvolver esta atividade de forma regular.
26. Nos últimos três anos tem desenvolvido pequenos trabalhos na construção civil, dedicando-se, nos últimos meses, à pesca, em barco oferecido pelo pai.
27. O casal beneficia de apoio económico dos pais de ambos.
28. Durante o ano de 2010, o arguido A manteve o consumo de cocaína, que diz ter deixado.
29. O arguido A não interiorizou a gravidade dos factos objeto do presente processo, nem se mostrou arrependido da sua prática.
30. Por sentença de 13/12/2010, proferida no processo nº 639/10.6GAOLH, do 2º Juízo do Tribunal de Comarca de Olhão, e já transitada em julgado, o arguido A foi condenado nas penas de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros) e em 3 (três) meses de inibição de conduzir veículo motorizados, pela prática, em 12/12/2011, de um crime de condução sob influência do álcool.
31. Por acórdão de 18/04/2012, proferido no processo nº 377/09.2TAOLH, do 3º Juízo do Tribunal de Comarca de Olhão, e transitado em julgado em 08/05/2012, o arguido A foi condenado na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, pela prática, em 21/02/2010, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº 25º, al. a) do D.L. nº 15/93.
32. O pedaço de cannabis (resina) com o peso líquido de 43,850g encontrava-se acondicionado no interior de uma caixa de jogo guardada dentro de um móvel colocado na parede da sala da habitação;
33. Os quatro pedaços de cannabis (resina), com o peso líquido de 1,537g, encontravam acondicionados no interior de duas caixas de metal colocadas em cima da mesa da sala;
34. Os arguidos guardavam em casa, ainda (o que foi detetado pela busca supra referida):
a) Doze sementes de cannabis sativa L,
b) Um telemóvel da marca e modelo «LG FCC», com o IMEI 354693036195612, pertença da arguida B;
c) Um telemóvel da marca e modelo «Nokia 2720-2», com o IMEI 352679040079555, pertença do arguido A.
35. A situação ocorrida no comboio foi comunicada à GNR de Lagoa, tendo uma patrulha dessa força se dirigido à Estação de Comboios de Estombar e aí intercetado os arguidos.
36. Nesta sequência, foram os arguidos sujeitos a revista, tendo sido detetada a posse, pelos mesmos, das substâncias, valores e objeto referidos, respetivamente, em 2., 3. e 5.
37. Eram estudantes de hotelaria, que viajavam no comboio, as pessoas a quem os arguidos vendiam, no comboio, o canabis (resina).
Foram consignados como não provados os factos seguintes:
“Não se provou qualquer outro facto com relevância para a decisão da causa, nomeadamente que:
- a atividade de venda de estupefacientes por parte dos arguidos já ocorria antes de 18/05/2012 e desde há algum tempo;
- os dois telemóveis dos arguidos eram utilizados por estes no desenvolvimento da respetiva atividade de narcotráfico;
- a venda de estupefacientes constituía o único modo de vida e de sobrevivência dos arguidos;
A matéria de facto encontra-se motivada como se segue:
“a) Quanto aos factos provados: O Tribunal fundou a sua convicção, quanto aos factos que resultaram provados constantes da acusação, nos depoimentos da arguida, que os confessou quase no essencial, e das testemunhas de acusação C e D, prestados em sede de julgamento, nos autos de apreensão de fls. 18 a 20, nos autos de busca, apreensão e pesagem de fls. 27 a 36, no croquis de fls. 34, na reportagem fotográfica e fotografias de 36 a 41, nos relatórios periciais de fls. 199, 203 e 205, bem como na conjugação entre si de todos os referidos elementos de prova e na sua conjugação com as regras da experiência comum e análise à luz destas.
Desde logo, a arguida confessou em julgado ser seu o estupefaciente apreendido, quer em casa, quer no comboio. A testemunha C, que seguia no comboio, como passageira, relatou ao Tribunal ter presenciado o arguido a oferecer estupefaciente aos passageiros, tendo-se queixado ao revisor, a quem relatou o sucedido e indicou o arguido. O revisor (D), depondo em julgamento, confirmou tal relato, e bem assim, as idas do arguido para o local onde se situam as bicicletas e, nesse local, o arguido com outra pessoa, estando um deles com uma nota (de vinte euros) na mão.
Os autos de apreensão confirmam que a arguida levava consigo haxixe e que os arguidos também guardavam em casa haxixe.
Os depoimentos das testemunhas C e D, quer pela forma circunstanciada e isenta como relataram ao Tribunal a factualidade que presenciaram, quer pela razão de ciência ambos (respetivamente passageiro e revisor do comboio), quer ainda pela ausência de interesse direto no desfecho da causa, mereceram a credibilidade do Tribunal.
Quanto à natureza e quantidade do produto estupefaciente apreendido, baseou-se o Tribunal nos relatórios periciais acima referidos, os quais, por provenientes do Laboratório de Polícia Científica, entidade que pela sua isenção e reconhecido valor científico, nos mereceu credibilidade, bem como nos autos de apreensão acima citados e reportagem fotográfica, elaborados pelos militares da GNR que procederam busca e apreensão, que pela isenção da entidade que os elaboraram, nos mereceram igualmente credibilidade.
Relativamente à finalidade do estupefaciente apreendido, tal resulta da conjugação de diversos factos entre si e com as regras da experiência comum.
Desde logo, e para além do supra referido, temos o facto de o estupefaciente apreendido no comboio se encontrar dividido em doses (“línguas”), preparado e pronto para ser comercializado (conforme documenta o respetivo auto de apreensão em conjugação com fls. 7, e se tratar-se de elevada quantidade, a guardada pelos arguidos em sua casa. A que acresce o facto de que os arguidos se encontravam, efetivamente, a proceder à venda de estupefaciente no comboio, no que foi presenciado pelas duas supra referidas testemunhas, cujos depoimentos se complementaram (uma viu a venda e outra o pagamento, conforme acima referimos).
A própria arguida, nas suas declarações prestadas em audiência, “fugindo-lhe a boca para a verdade”, acabou por confessar que as testemunhas não puderam ver o estupefaciente a ser transacionado, ao invés de negar a prática dos factos. E, ao dizê-lo, adotou expressões faciais e ar trocista e de “gozo”, no que só a imediação permite apreender, levando o Tribunal a reforçar a sua já forte convicção de que os arguidos se encontravam efetivamente a vender haxixe no comboio e que a arguida estava convicta de que se não provariam os factos por si praticados.
Por outro lado, que o dinheiro apreendido constitui produto da venda de estupefaciente resulta, não só de a arguida o guardar, escondido no soutien e juntamente com o estupefaciente ainda não vendido, mas também do facto de a arguida não exercer atividade profissional de onde pudesse provir tal quantia, nem ter comprovado a, por si, alegada proveniência (lícita) do dinheiro, não obstante puder e dever fazê-lo, bastando para tanto que arrolasse como testemunha o seu pai, de quem disse ter sido a pessoa que lho deu. Nem tão-pouco documento que juntou na audiência (extrato de conta bancária), que nem refere o titula da conta a que se refere o extrato, permite, sequer indiciariamente, demonstrar que o dinheiro em poder da arguida provém de tal conta. Assim, não fazendo a arguida a demonstração de que tal dinheiro provém do seu pai, e face às supra referidas circunstâncias concordantes, à luz das regras da experiência comum, fácil é de concluir que o dinheiro apreendido provinha da venda do haxixe, nenhuma credibilidade merecendo, portanto, a tese ensaiada pela arguida e que certamente o seu pai não se terá prestado a vir a Tribunal falsamente sustentar.
No que concerne à situação pessoal, familiar, profissional e social dos arguidos, ao seu percurso de vida e atitude perante dos factos, baseou-se o Tribunal nos relatórios sociais dos arguidos, juntos aos autos, cuja finalidade é precisamente o apuramento da situação pessoal e social dos arguidos, são provenientes de entidade isenta, elaborados com recurso a conjunto de fontes e diligências aptas ao apuramento dos factos referidos, e nenhum outro elemento de prova constante dos autos contraria ou infirma os factos que o Tribunal deu como provados com base nos referidos relatórios, pelo que os mesmos nos mereceram credibilidade. Quanto à atitude dos arguidos perante os factos, acudiu ainda à formação da convicção do coletivo de julgadores, a postura dos arguidos em julgamento, constatada pelo Tribunal, na audiência.
Quanto aos antecedentes criminais, o Tribunal baseou-se nos mais recentes certificados de registo criminal do arguido e da arguida constantes dos autos.
b) Quanto aos factos não provados: No que concerne aos factos não provados, assim se decidiu porquanto, nenhuma prova se produziu a respeito dos mesmos.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto
- Erro de subsunção
- Medida e espécie de pena

Da Impugnação da matéria de facto
A opção dos recorrentes por uma impugnação ampla da matéria de facto por via do recurso efectivo nos termos do art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal, exige o exame do acórdão através de um controlo para lá do texto.
Para tanto, impõe o art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas. Essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta indicando o recorrente concretamente as passagens em que se funda a impugnação (nº4).
Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” segundo jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).
O recorrente procedeu à transcrição dessas passagens, que são excertos de dois depoimentos, prestados por C e por D, respectivamente “passageira” e “revisor” no comboio da ocorrência dos factos.
O ónus de especificação dos “pontos de facto” foi cumprido com a indicação dos enunciados descritos em 1. a 4., 6. e 37. de factos provados do acórdão.
Ou seja, o recorrente refuta que tenha sido produzida prova suficiente de que estivesse a proceder à venda de cannabis no comboio em causa.
Cumprindo então sindicar o acórdão com vista à eventual detecção do erro de facto, adianta-se que da leitura das transcrições em confronto com a motivação da matéria de facto resulta logo que o tribunal ouviu (e ouviu bem) todas os depoimentos ora especificados. A prova oral mostra-se devidamente escutada, e também ponderada ainda em conjunto com toda a restante prova, pessoal e real, como sempre se impõe (concretamente, declarações de arguidos, apreensões, exames, perícias).
Todos estes contributos probatórios se mostram apreciados de um modo inteiramente racional e lógico, não cumprindo repetir, ou dizer de modo diverso, aquilo que ali tão bem se explicitou.
Na verdade, o concreto episódio de vida tratado no acórdão, na extrema singeleza que o tribunal apreendeu, é o resultado de uma avaliação das provas, de todas as provas, produzidas em julgamento e nas quais se integram também as agora especificadas e retiradas do conjunto das restantes.
A apreciação das provas é sempre a avaliação de todas as provas, não apenas daquelas que os recorrentes escolhem e pretendem desafectar do conjunto das restantes. Mas mesmo as provas especificadas apontam no sentido apreendido pelo tribunal, particularmente o depoimento de C.
Esta testemunha começou logo por afirmar que viu o arguido no interior do comboio “a meter-se com jovens que lá estavam” e que ele “estava declaradamente a fazer venda de droga”. Ouviu-o também dizer, aos jovens a quem se dirigia, “que era bom material”. E “viu-o a trincar qualquer coisa”.
Alega, agora, o arguido que apenas se provou que estaria a “fazer publicidade de qualquer coisa, que trincou”. Mas que coisa seria essa, que o recorrente nem identificou nem tinha consigo aquando da sua detenção, que não estupefaciente (como o apreendido logo, junto ao corpo da co-arguida e, depois, na residência de ambos)?
Os factos (objectiva e subjectivamente) praticados foram, na sua extrema linearidade, devidamente demarcados e compreendidos pelo tribunal. A prova produzida em julgamento sustem as conclusões de facto a que se chegou no acórdão. Pelo que se finaliza com um juízo, claro e evidente, de ausência de detecção do erro de facto.

Do erro de subsunção
O arguido pugna pela alteração da qualificação jurídica dos factos para crime de tráfico de menor gravidade, do artigo 25º do Decreto-Lei 15/93.
Pune o artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93 (de 22 de Janeiro) quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III”.
O art. 25º do mesmo Decreto-Lei trata como tráfico de menor gravidade os casos dos artigos 21º e 22º em que a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.
Em anotação ao art. 25º (in Comentário das Leis Penais Extravagantes, II, Org. P.P.Albuquerque, J. Branco, p. 509) e citando o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.11.2007, Vaz Pato expõe que “não estamos perante um tipo de crime autónomo, nem um tipo de crime construído a partir de um tipo base aditado de um elemento complementar, descritivo ou meramente normativo, que exprima por si só um menor conteúdo de ilícito, mas antes perante uma forma de atenuação especial (próxima da que decorre do art. 72º do CP), de uma regra especial de medida judicial da pena, que envolve a modificação do tipo em sede de pena, ou simplesmente de uma regra de aplicação de pena.
(…) A jurisprudência vem salientando que é relevante a imagem global dos factos em questão na perspectiva do seu grau de ilicitude. As circunstâncias referidas no artigo 25º – “meios utilizados, modalidade ou circunstâncias da acção, qualidade ou quantidade das substâncias” – indicadas de forma não taxativa – “nomeadamente” – revelam, juntamente com outras circunstâncias, na apreciação dessa imagem global”.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2009, analisado por Lourenço Martins em “Medida da Pena, Finalidades Escolha, Abordagem Crítica de Doutrina e Jurisprudência” (pp. 276-275), considera-se que o art. 25º encerra um específico tipo legal de crime, que pressupõe a sua caracterização como uma variante dependente privilegiada do tipo de crime do art. 21º.
Também aqui se chama a atenção para a necessidade de “proceder à valorização global do episódio, não se mostrando suficiente que um dos factores interdependentes indicados na lei seja idóneo em abstracto para qualificar o facto como menos grave ou leve, devendo valorar-se complexivamente todas as circunstâncias” (loc. cit. p. 275).
No presente caso, provou-se que os arguidos detinham 0,715g de cannabis (resina), línguas de cannabis com o peso líquido (total) de 6,735g, um pedaço de cannabis com o peso líquido de 43,850g, quatro pedaços de cannabis (resina), com o peso líquido de 1,537g, e 280 € provenientes de vendas anteriores.
Nada mais se apurou de relevante, sendo inviável precisar melhor um eventual papel do arguido numa eventual cadeia do tráfico de estupefacientes.
Assim, a qualidade e a quantidade de estupefaciente apreendido, bem como algum estupefaciente não concretamente determinado já colocado em circulação (atenta a comprovada proveniência do dinheiro também apreendido), são reveladores de um ilícito global ainda susceptível de enquadramento normativo no crime de tráfico de menor gravidade.
Aceita-se que, neste, a ilicitude se possa situar numa zona limite ou de fronteira, já próxima do tipo de crime base, mas ainda não ao ponto de fazer cair a situação sub judice no tráfico do art. 21º.
A ilicitude será de considerar acentuada, mas quando enquadrados os factos dentro do tipo de crime de menor gravidade, do art. 25º. E o seu peso relevará, então, em sede de determinação concreta da pena.
Na integração jurídica do episódio de vida a subsumir juridicamente, cremos ser este o referente que é de colher da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, e que não pode ser excluído do processo de determinação do sentido normativo dos preceitos em causa, sobretudo em casos de tipos com algum grau de indeterminação, como o crime presente.
Essa jurisprudência encontra-se acessível em www.dgsi.pt, está também coligida por Lourenço Martins, e também por Vaz Pato, nas obras citadas (a pp. 266-275 e a pp. 512-513, respectivamente).
Aí se analisam vários acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça em que comportamentos semelhantes ao apurado nos autos, quer no que respeita à qualidade e quantidade de estupefacientes, quer à actividade desenvolvida, quer ao posicionamento do próprio agente numa cadeia de tráfico de estupefacientes, são tratados como crime de menor gravidade.
Assim acontece, por exemplo, no acórdão STJ de 24.01.2001 (detenção isolada de 200g de haxixe), no acórdão STJ de 07.05.2003 (detenção ocasional de 71 g de haxixe).
Mas também de decidiu de modo idêntico, quanto a drogas ditas “duras”, no acórdão de 27.11.2008 (acto isolado de venda de 21 panfletos de heroína com o peso de 27,212 g e de 25 panfletos de cocaína com o peso de 10,926 g), no acórdão de 08.11.2007 (detenção de 47 g de heroína), no acórdão de 18.05.2006 (detenção de 27 g de heroína e cocaína); no acórdão de 09.04.2008 (11 g cocaína e 8 g de heroína), no acórdão de 05.03.2009 (43 doses de heroína com o peso de 15,798 g e de 31 doses de cocaína com o peso de 9,803 g).
O recurso será de proceder, pois, nesta parte, considerando-se que os factos provados realizam, não o crime do art. 21º do Decreto-Lei 15/93, mas sim o crime do art. 25º – al. a) do Decreto-Lei 15/93.

Da medida e espécie de pena
Pretende o recorrente a redução da pena e a substituição da prisão por pena suspensa na execução.
Nesta Relação, a Sra. Procuradora-geral Adjunta acompanhou o arguido em parte, aceitando que a pena possa ser reduzida mas devendo manter-se efectiva. E tem razão.
A redução da pena resultará logo da alteração da qualificação jurídica dos factos, agora operada. Mas a pena proferida no acórdão mostrava-se já algo desajustada, mesmo à luz da moldura prevista para o crime da acusação.
A nova moldura penal, resultante da integração jurídica dos factos no art 25º, al. a) do Decreto-Lei 15/93 é a de prisão de 1 a 5 anos.
Aludimos ao elevado grau da ilicitude do facto, situado na fronteira com o crime do art. 21º do Decreto-Lei 19/93 como dissemos. A quantidade de estupefaciente detido, a potencial e a efectiva dispersão de substâncias no quadro de actuação provado (“às claras”, como se destaca no acórdão) acentuam as exigências de prevenção geral.
E se essa avaliação beneficiou o arguido no momento prévio da integração dos factos em crime de menor gravidade, não pode deixar de pontuar agora na direcção oposta, dentro da nova pena abstracta.
No mesmo sentido se posicionam as exigências de prevenção especial. O desrespeito por condenação anterior pela prática de crime idêntico, e em pena de prisão suspensa na execução, revela que tal pena se revelou de nulo efeito dissuasor.
A pena dever-se-á situar acima do ponto médio da moldura penal, fixando-se em 3 anos e 6 meses de prisão.
A necessidade da efectividade da pena resulta também das considerações expostas.
Mas expressa ponderação deve merecer o art. 50º, nº1 do Código Penal, que obriga a específica fundamentação da efectividade da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos.
Dos factos apurados não é possível concluir que a simples ameaça da pena e a censura do facto sejam suficientes para garantir as finalidades da punição, assumindo neste momento do processo aplicativo a prevenção especial um papel dominante, embora não exclusivo. As exigências de prevenção geral concorrem no caso, e ao mesmo nível, com as acentuadas exigências de prevenção especial, como já se disse. E a favor do arguido, verdadeiramente, pouco milita.
Lembrando a lição de Anabela Rodrigues, o “desvalor do facto deve ser valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização” do agente (A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995). E que “a sociedade tolera uma certa perda do efeito preventivo geral – isto é, conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas, quando a sua aplicação possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão” (em “Estudos em Homenagem ao Professor Eduardo Correia”).
E são grandes tanto as exigências de prevenção geral, já destacadas no acórdão e não colocadas em crise no recurso, bem como, ou sobretudo, as de prevenção especial.
Justifica-se o afastamento da pena de substituição, devendo a prisão manter-se efectiva.

Da alteração oficiosa da pena correspondente ao crime cometido pela arguida não recorrente
A co-arguida B, que se conformou com o acórdão, encontra-se condenada como autora de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º, nº 1 do D.L. 15/93, na pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na execução com regime de prova.
Os factos que lhe foram imputados são os mesmos que levaram à condenação do arguido, configurando até, todos factos provados, mais uma situação de “co-autoria” do que de “autoria paralela”, como se tratou no acórdão (questão de que não se conhecerá, por não ter sido objecto de recurso e por nada alterar na questão de que ora se irá cuidar oficiosamente, já que o “autor” e o “co-autor” são puníveis com a mesma pena abstracta).
O art. 403º, nº 3 do Código de Processo Penal preceitua que “a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida”.
Os factos provados integram o crime do art. 25º al. a) do Decreto-Lei 15/93, logo também no que respeita à arguida não recorrente. Não pode, por isso, manter-se a condenação desta nos moldes proferidos em 1ª instância, cumprindo reponderar a pena à luz da nova moldura (prisão de 1 a 5 anos).
De específico para a pessoa da arguida, considerou-se no acórdão: “… temos que, a pena aplicada à arguida é susceptível de suspensão, por não ultrapassar 5 anos. Por um lado, a arguida não regista antecedentes criminais. Por outro lado, confessou parcialmente os factos de que vinha acusada, colaborando, de alguma forma (se bem que mitigada) para a descoberta da verdade. Por outro lado, ainda, o facto de ter dois filhos menores para cuidar, poderá constituir factor de protecção, com o despertar para a necessidade de enveredar por uma conduta conforme ao Direito. Por último, não tendo ainda sido condenada em qualquer pena e muito menos em pena de prisão, permite a conclusão de que, desta vez, censura do facto e a ameaça da pena servirão para a afastar da criminalidade. Assim, a execução da pena aplicada à arguida será suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses, obrigatoriamente sujeita a regime de prova, atenta a sua duração”.
Verificando-se aqui as mesmas exigências de prevenção geral, já supra destacadas a propósito do co-arguido, sendo no entanto menores as exigências de prevenção especial, bem como o grau de culpa da arguida, fixa-se agora a pena (necessariamente suspensa) em 2 anos e 9 meses de prisão.
O regime de prova será de manter, já não por estrita imposição do art. 53º, nº 3 do Código Penal, mas por se continuar a entender que se revelar concretamente adequado ao cumprimento das finalidades da punição. No quadro pessoal apurado, o acompanhamento da arguida, a vigilância e o apoio da D.G.R.S. mantêm-se apropriados à prevenção da reincidência.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal em:
- Julgar parcialmente procedente o recurso;
- Alterar a qualificação jurídica dos factos provados, revogando a condenação por crime do art. 21º do Decreto-Lei nº 15/93, antes condenando os dois arguidos como autores de um crime do art. 25º al. a) do Decreto-Lei 15/93,
- Reduzir as penas de prisão, para 3 (três) anos e 6 (seis) meses, a do arguido A, e para 2 (dois) anos e 9 (nove) meses suspensa com regime de prova, a da arguida B;
- Manter, no mais, o acórdão.
Évora, 11.03.2014

Ana Maria Barata de Brito
Maria Leonor Vasconcelos Esteves