Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
| Processo: |
| ||
| Relator: | TOMÉ DE CARVALHO | ||
| Descritores: | RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE DIREITOS | ||
| Data do Acordão: | 11/21/2025 | ||
| Votação: | RELATOR | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | 1 – Constitui despacho de mero expediente aquele que, proferido pelo juiz, não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, se destina principalmente a regular o andamento do processo. 2 – Se os despachos de mero expediente afectarem os direitos dos sujeitos processuais são recorríveis, por força dos artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. (Sumário do Relator) | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 2310/24.2PAPTM-A.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Instrução Criminal de Portimão – J2 * I – Relatório: O Ministério Público veio reclamar do despacho de não admissão do recurso por si interposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal. * No âmbito dos presentes autos foi requerida, pelo Ministério Público, a prestação de declarações para memória futura da vítima (…). * Em 10/10/2025, o Mm.º Juiz de Instrução Criminal proferiu o seguinte despacho: «Defiro a tomada de declarações para memória futura à menor (…). Tenda em vista designar data para a inquirição, vão os autos ao M.º P.º para elencar a matéria de facto que pretende ver questionada à depoente». * O Ministério Público pronunciou-se, dizendo que ««salvo melhor opinião, pretende-se que o Ministério Público defina um objecto que decorre já dos autos. E, o que não decorre, é precisamente, o objecto que se pretende obter em sede de tomada de declarações para memória futura. Face ao exposto, com o devido respeito por diverso entendimento, nada há a elencar quanto à matéria de facto que se pretende ver questionada à ofendida, (…)». * A 20/10/2025, após ter tecido algumas breves considerações a respeito da direcção do inquérito, o Mm.º Juiz de Direito decidiu devolver os autos ao Ministério Público, com a seguinte argumentação: «(…) a tomada de declarações para memória futura uma antecipação da fase de Julgamento, não pode deixar de ter um formalismo mínimo semelhante, sendo que ali, como aqui, o objecto da inquirição é previamente fixado pelo M.º P.º. Não existindo objecto de inquirição e uma vez que o signatário não é o detentor da acção penal, não podendo assim delimitar o objecto da inquirição a uma testemunha, devolva os autos ao M.º P.º. A diligência (que já se mostra deferida) será agendada quando o detentor da acção penal fixar o objecto da inquirição. Devolva». * O Ministério Público interpôs recurso desta decisão. * O recurso interposto não foi admitido, tendo o Meritíssimo Juiz de Instrução fundamentado o despacho da seguinte forma: «(…) O Tribunal já deferiu a tomada de declarações para memória futura (por despacho proferido em 10.10.2025). Afigura-se-nos que tal despacho é claro e não condiciona a tomada de declarações para memória futura a qualquer acto posterior ou adicional. O despacho do qual o detentor da acção penal ora recorre, ao contrário do que alega, não é uma aceitação condicional das declarações para memória futura. Estas foram aceites, de forma expressa e incondicional, através do despacho proferido no dia 10.10.2025. O despacho ora recorrido é um puro despacho de expediente, no qual não se discute qualquer matéria que bula com direitos, liberdades ou garantias, mas tão só se pede ao M.º P.º, enquanto detentor da acção penal e enquanto titular do inquérito, que indique a matéria sobre a qual versam as declarações para memória futura. Estas, reitera-se, já estão deferidas. De acordo com o disposto no artigo 152.º, n.º 4, 1ª parte, do CPC, os despachos de mero expediente são os que se destinam “…a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes”. É justamente o caso dos autos. Sendo um mero despacho de expediente, sem qualquer discussão material sobre a diligência processual ou o seu deferimento, entendemos que não é passível de recurso, sob pena de se abrir a porta à recorribilidade ilimitada de qualquer despacho processual. Destarte, decido indeferir o recurso apresentado pelo M.º P.º por ser inadmissível». * II – Dos factos com interesse para a decisão: Os factos com interesse para a justa decisão do litígio são os que constam do relatório inicial. * III – Enquadramento jurídico: Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 405.º[1] do Código de Processo Penal. É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, tal como estipula o artigo 399.º[2] do Código de Processo Penal. As decisões que não admitem recurso estão elencadas no artigo 400.º[3] do Código de Processo Penal e o Tribunal recorrido considerou que se estava perante um acto de mero expediente. É entendimento jurisprudencial consolidado que constitui despacho de mero expediente aquele que, proferido pelo juiz, não decidindo qualquer questão de forma ou de fundo, se destina principalmente a regular o andamento do processo. Caracteriza-se, assim, pela sua natureza de se limitar a dar cumprimento aos legais trâmites que devem nortear esse andamento do processo, sem envolver uma apreciação concreta que se projecte nos direitos dos intervenientes[4]. Leal Henriques e Simas Santos referem que tais despachos resumem-se, em princípio, aos despachos de carácter meramente interno que dizem respeito às relações hierárquicas administrativas entre o juiz e a secretaria, reportando-se apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres das partes[5]. Mais recentemente, Paulo Pinto de Albuquerque assumiu que os «despachos de mero expediente são actos processuais do juiz pelos quais ele regula o andamento normal do processo, sem que se pronuncie sobre o mérito da causa ou de quaisquer incidentes ou questões interlocutórias suscitadas pelos outros sujeitos processuais. Contudo, se os despachos de mero expediente afectarem os direitos dos sujeitos processuais, eles são recorríveis, por força dos artigos 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, da CRP»[6]. Também Pereira Madeira entende que «os despachos de mero expediente, porque se limitam, em regra, a ordenar os termos do processo, deixando intocados os direitos dos sujeitos processuais a que respeitam, são irrecorríveis: Não faria sentido, e falharia, mesmo, interesse em agir, para poder ser atacada, em recurso, uma decisão inócua para com os direitos dos intervenientes processuais»[7]. De igual modo, recorrendo aos ensinamentos subsidiários do processo civil, também Lebre de Freitas se pronuncia e defende que não são recorríveis os despachos internos proferidos no âmbito das relações hierárquicas estabelecidos com a secretaria e os despachos que digam respeito à mera tramitação do processo[8]. Dito isto, importa aferir se estamos perante um despacho de mero expediente, regulador do processo ou discricionário? E a resposta é negativa. Independentemente da razão que possa assistir (ou não) ao Tribunal, aquilo que está em causa é apurar se, aquando da formulação do pedido – ou supervenientemente – o Ministério Público está vinculado (ou não) a indicar o objecto da inquirição e esta matéria não se inscreve claramente no conceito de despacho relacionado com a mera tramitação do processo. Ao cabo e ao resto, apesar de ter deferido formalmente a pretensão, da conjugação entre o conteúdo decisório dos dois despachos resulta que, na prática, a devolução dos autos ao Ministério Público configura um indeferimento sucessivo de uma diligência de prova requerida, mesmo que a título transitório ou condicional, que pode afectar os direitos dos sujeitos processuais e condicionar o regular andamento dos autos. Numa linguagem mais directa, independentemente do mérito desse entendimento – que não está aqui em discussão –, tal traduz-se na afirmação «ou se faz como determinei ou não se faz» e tal visão não faz corresponder a segunda decisão tomada às características de um despacho de mero expediente. Assim, admite-se o recurso interposto, sem prejuízo da possibilidade do relator ter entendimento distinto, ao abrigo da norma consignada na 2ª parte do n.º 4 do artigo 405.º do Código de Processo Penal. * IV – Sumário: (…) * V – Decisão: Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, concede-se provimento à reclamação, admitindo-se o recurso apresentado. Sem tributação. Notifique. * Processei e revi. * Évora, 21/11/2025 José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho __________________________________________________ [1] Artigo 405.º (Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso): 1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige. 2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção. 3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação. 4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso. [2] Artigo 399.º (Princípio geral) É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei. [3] Artigo 400.º (Decisões que não admitem recurso): 1 - Não é admissível recurso: a) De despachos de mero expediente; b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal; c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º; d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1ª instância em pena de prisão superior a 5 anos; e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1ª instância; f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos; g) Nos demais casos previstos na lei. 2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada. 3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil. [4] Acórdão do Tribunal de Évora de 02/07/2019, consultável em www.dgsi.pt. [5] Leal Henriques e Simas santos, Código de Processo Penal Anotado, 2000, vol. II, pág. 671. [6] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à Luz da CRP e da CEDH, 3.ª Edição, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, pág. 1013. [7] Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, pág. 1197. [8] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 302. |