Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
84/22.0GBTMR.E1
Relator: CARLA FRANCISCO
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EXAME CRÍTICO DA PROVA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Há omissão de pronúncia, geradora da nulidade da decisão, quando na sentença final não é conhecida uma nulidade do inquérito, suscitada em audiência de julgamento, relativamente a factos que fundamentam a imputação ao arguido da prática de um crime, em que o conhecimento da nulidade invocada foi remetido para a sentença final.
Não faz o exame crítico da prova a decisão em que se elencam os elementos de prova produzidos, testemunhais e documentais, mas não se explica como é que, através desses elementos, o Tribunal deu os factos como provados e não provados, considerou credíveis e verosímeis os depoimentos de umas testemunhas em detrimento de outras ou qual foi a articulação feita entre a prova documental e a prova testemunhal produzidas.

Há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando não se apuraram factos relativos às condições sociais e económicas do arguido que permitam fundamentar a escolha pela pena de multa, o quantitativo diário de multa em que o arguido foi condenado e o montante da indemnização fixada a favor da vítima.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1 – RELATÓRIO

No processo comum singular nº 84/22.0GBTMR do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Local Criminal de …, foi proferida sentença datada de 19/02/2025, de cuja parte decisória consta:

“Pelo exposto, condena-se o arguido AA como autor material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a) do Código Penal - em concurso aparente com os crimes de injúria, p.p. pelo artigo 181º, ameaça agravada, previsto e punido pela conjugação dos artigos 153º, n.º 1, 155º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 131º, e perseguição, previsto e punido pelo artigo 154º-A, todos do Código Penal, numa pena de 2 (dois) anos e 2(dois) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e proibição de se aproximar ou contactar por qualquer meio com a ofendida; condena-se pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212º do Código Penal numa pena de 100 dias de multa e pela pratica de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203º do Código Penal numa pena de 100 dias de multa, efectuado o cumulo aplica-se a pena única de 150 dias de multa à taxa diária de €6.

Absolve-se o arguido da pratica de um crime de coacção, na forma agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 154º e 155º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.

Julga-se parcialmente procedente por provado o PIC e condena-se o arguido a pagar à demandante o montante de 5000€ (cinco mil Euros) acrescido de juros desde a notificação para contestar.(...)”

*

Inconformado com esta decisão, veio o arguido interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

“ 1. O presente recurso tem como objecto a sentença que condenou o arguido como autor material, na forma consumada de:

- um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1 al. b) nº 2; alínea a) do Código Penal - em concurso aparente com os crimes de injúria p. e p. pelo artigo 181º, ameaça agravada p. e p. pela conjugação dos artigos 153º nº 1, 155º nº 1 al. a) por referência ao artigo 131º e perseguição p. e p. pelo artigo 154º, numa pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e proibição de se aproximar ou contactar por qualquer meio com a ofendida;

- Um crime de dano p. e p. pelo artigo 212º do Código Penal numa pena de 100 (cem) dias de multa;

- E, pela prática de um crime de furto, p.e p. pelo artigo 203º do Código Penal numa penas de 100 dias de multa;

- Que, efetuado o cúmulo aplica-se a pena única de 150 dias de multa à taxa diária de 6,00 € (seis euros), perfazendo o total de 900 € (novecentos euros);

- Absolvendo-se o arguido da prática de um crime de coação, na forma agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 154º e 155º nº 1 al. a) do Código penal;

- Julgando-se parcialmente provado o pedido de indemnização e condenando-se o arguido a pagar à demandante o montante de 5000,00 € (cinco mil euros);

- Condenando-se ainda o arguido a pagar as custas do processo.

Tem como fundamentos este recurso:

2.a) A omissão de pronúncia sobre a nulidade suscitada em audiência de julgamento de 05.11.2024 e que, o douto tribunal apesar de ter relegado para a sentença, não se pronunciou, violando-se assim o disposto no artigo 379º nº 1 al. c) do CPP, que configura a nulidade da sentença;

2.b) Pois que, relativamente aos factos 24 a 26 e 51 a 53 da acusação em que se imputa ao arguido um crime de coação na forma agravada, p. e p. pelo artigo 154º e 155º nº 1 al. a) do Código Penal, mas que visa um outro ofendido que, neste processo tem a qualidade de testemunha da acusação - BB - que, não a assistente;

2.c) Testemunha que, aquando da sua audição, em sede fase de inquérito imputa novos factos ao arguido, que foram objeto desta acusação;

2.d) Tendo a “noticia de novos factos" surgido, decorridos mais de 6 (seis) meses da realização de todas as diligências de inquérito, em que AA foi constituído arguido, cinco meses antes das declarações desta “nova testemunha”;

2.e) Pelo que, teria assim AA de ser confrontado e constituído arguido sobre esta nova factualidade, não tendo sido cumpridos os elementares direitos constitucionais de defesa, contraditório e do processo penal, previstos no artigo 32º nº 1, 5, 6 e 7 da Constituição da República Portuguesa;

2.f) Acresce que, jamais existiu sobre este eventual ilícito, qualquer diligência de investigação ou de inquérito, os factos foram diretamente introduzidos na acusação, tendo por base única e exclusivamente as declarações desta testemunha que, presencialmente em julgamento, deixou sérias dúvidas sobre se tratar de alguém que padece das “normais capacidades intelectuais e cognitivas”.

2.g) Testemunha nunca ouvida na qualidade de ofendido, nunca foi notificada para eventual exercício dos direitos de se constituir assistente, deduzir pedido de indemnização civil, violando-se assim os preceitos fundamentais de direito penal e processo penal, designadamente, o disposto nos artigos 113º nº 1 CP; artigo 48º, 67-A; 58; 71 e segs. do CPP;

2.h) Pelo que se verifica a falta e insuficiência de inquérito, do respetivo procedimento criminal, cominado com nulidade insanável, nos termos do artigo 119º als. b), c) e d) do CPP e, que consequentemente implica a extinção deste procedimento criminal;

2.i) Não tendo o tribunal “ aqui” se pronunciado sobre esta suscitada nulidade, não obstante ter proferido em julgamento despacho a relegar para a sentença a sua tomada de posição, pelo que a sentença incorre em nulidade, por omissão de pronuncia, nos termos do artigo 379º nº 1 al. c) do CPP.

2.j) Nulidade que a ser sanada por este Venerando Tribunal, nos termos e de acordo com o artigo 379º nº 2 do CPP deverá decretar a anulação do julgamento e o arquivamento deste processo, considerando que é insanável, nos termos e de acordo com o artigo 119º als. b) e b) do CPP;

3.a) A falta de fundamentação da sentença, pois que não é feita uma exposição completa, ainda que concisa dos motivos, de facto e de direito que fundamentam a decisão, comunicação e exame critico das provas que serviram de base para formar a convicção do tribunal, violando-se assim o disposto no artigo 374º nº 2, o que configura também uma nulidade da sentença que aqui se invoca e para os devidos efeitos legais, nos termos do artigo 379º nº 1 al. a) do CPP;

3.b) Não basta a mera indicação de provas que serviram para formar a convicção do tribunal, exige-se um exame crítico dessas mesmas provas, o que se encontra em correspondência lógica com o processo mental desenvolvido pelo julgador na análise da prova que determinou a formação da sua convicção. A decisão terá de ser um documento auto suficiente, tem de se bastar a si própria, sendo em si mesma compreendida pelos sujeitos processuais e pelos cidadãos em geral.

3.c) A fundamentação da decisão tem uma génese mais profunda e alargada que a derivada das exigências meramente processuais ou relacionadas com os direitos processuais das partes, já que é uma exigência constitucional, consagrada no artigo 205º nº 1 da CRP ditada e alicerçada nos fundamentos do Estado de Direito Democrático.

3.d) O dever de fundamentação das decisões em matéria processual penal encontra-se consagrado nos artigos 97º nº 5 e 374º nº 2 ambos do CPP. Exige-se que, o tribunal explique o porquê da decisão, porque razão os factos foram julgados provados ou não provados tendo por base aquele meio de prova; porque razão valorou o tribunal aquele meio de prova e não outro. Este dever de fundamentação implica necessariamente o exame critico da prova, consagrado no artigo 374º nº 2 do CP.

3.e) No caso presente, o tribunal “a quo” não justifica porque razão conferiu credibilidade às declarações da assistente e das testemunhas, nem sequer porque razão e em que medida o declarado pelo arguido, igualmente, relevou para a formação da sua convicção.

Limita-se a enumerar os meios de prova sem que se perceba, para além do arguido e da assistente, naturalmente, a razão de ciência das testemunhas e, em que medida, sobre que factos prestaram depoimento e porque razão foram importantes para a decisão.

3.f) Esta decisão é omissa na fundamentação da decisão de facto, não se justificando porque e em que medida tais meios de prova formaram a convicção do tribunal e porquê, pelo que se concluiu que não cumpre o dever de fundamentação mínimo e exigido que permita ao intérprete acompanhar e sindicar a formação da convicção do tribunal, nulidade que se invoca, nos termos e de acordo com o artigo 374º nº 2 do CPP.

4.a) Sem prejuízo das nulidades supra invocadas, igualmente se impugna a decisão sobre a matéria de facto, pois que existem concretos pontos de facto que estão incorretamente julgados, bem como as concretas provas impõem decisão diversa da recorrida, consubstanciando erro de julgamento e insuficiência de factos para a decisão, nos termos e de acordo com o artigo 412º nº 3 al. a) e b) do CPP;

4.b) Da análise e teor da sentença, considerando os depoimentos prestados em audiência de julgamento, entendemos que o Tribunal “a quo” errou ao proferir a decisão de facto que resulta da sentença, erro esse que em nosso entender traduz uma decisão diferente - a absolvição do arguido - .

4.c) Desde logo, um erro notório na apreciação da prova e contradição insanável dos factos e da decisão, com a repetição no elenco dos factos provados 9 e 10 e, nos não provados 9. e 10., nos termos e de acordo com o artigo 410º nº 2 als. b) e c) do CP, o que determina a nulidade desta decisão.

4.d) A ausência total de prova, pois que os factos que foram dados como provados, não o foram por referência a qualquer depoimento de testemunha ou das declarações da assistente, o que aliás, a douta decisão nem sequer explica ou indica.

4.e) A assistente com as suas declarações revelou a inexistência de qualquer sentimento de inferioridade, medo, insegurança, maltratou, insultos, ofensas, moléstia fisico ou verbal, humilhação, angustia ou medo como se refere na acusação - os factos 40 a 47 - estão totalmente ausentes de prova e de acordo com as declarações da própria assistente.

4.f) Não há qualquer prova de quaisquer danos provocados pelo arguido ou que tenha levado os bens, ou mesmo de quais os bens levados e que eram propriedade da assistente (factos 27 e 38), ninguém viu nada, a assistente nada relata de forma coerente sobre tudo isto e o arguido nega a factualidade e explica que foi a assistente que ia danificando os bens, pois que o arguido teve de abandonar a casa porque ela a vendeu sem o avisar;

4.g) O tribunal não fez as advertências legais, não cumpriu o disposto no artigo 134º do CPP, relativamente ao depoimento da filha da assistente (CC), nem do tio (DD), o que suscita a nulidade destes depoimentos, nos termos do nº 2 deste artigo;

4.f) A testemunha EE - facto 34 da acusação - “que o arguido em data não apurada ter lhe dito “que encontrou a ofendida com o FF”, refere que o arguido apenas lhe disse “eu já não ando com ela, ela anda com o FF”. (4:24) Foi no talho dele.

4.g) A testemunha GG, indicada para motivação dos factos - 33 e 37 da acusação, ou seja, que o arguido disse em voz alta “que era uma porca, nem a cona lavava, que gritava que nem uma vaca quando lhe ia ao cu e que a apanhou debaixo do FF e a quem o arguido se dirigiu e sabes que apanhei a HH, ela é uma porca não sabe fazer comida, não lava a rata. “, referiu que não conhecia o arguido e jamais relatou que ele se dirigiu a ela, não obstante o tribunal “ aqui “ dá como provado o facto provado em 37, o que não se aceita e aqui se impugna;

4.e) Testemunha que refere que apenas estava no mercado e ouviu o arguido a dizer aquelas expressões para a proprietária dos frutos secos em frente ao talho, dizendo: “Ó II porque ela anda metida com o FF, é uma porca, uma rata, uma vaca.”

4.f) Que, em julgamento se apurou que não era verdade, chamando a julgamento, ao abrigo do artigo 340º do CPP, a proprietária da banca dos frutos secos - JJ - e, não II e, por isso em alegações se peticionou que fosse extraída certidão das declarações desta testemunha GG, para eventual procedimento criminal por falsas declarações, mas sem qualquer pronúncia ou manifestação por parte do tribunal “ a quo” e do Ministério Público, pelo que também o facto descrito como provado em 37. não pode ser dado como provado.

4.g) A testemunha KK- facto 36 da acusação - que o arguido se dirigiu a ela e disse “apanhei a com o FF, é uma cabra não conheces a amiga que tens”, declarou (6:03) que nunca assistiu a nenhuma discussão, nem ao arguido a chamar nomes e repetiu por diversas vezes que, na conversa que tiveram com o arguido, ele nunca chamou nomes à assistente e que nunca o ouviu a chamar nomes, pelo que, não se vislumbra ou aceita a factualidade dada como provada em 36.

4.h) A testemunha FF e a testemunha LL - factos 9 e 10 da acusação -, esta última que refere que não conhece sequer FF e nega que alguma vez ele tivesse estado na casa dela. Assim como nega que o arguido alguma vez tivesse chamado nomes à assistente na sua presença e a testemunha FF mostrou-se totalmente incoerente, mentiu, sem conseguir explicar, negando o óbvio, que é interessado neste processo, não fala a verdade, é incoerente e os factos que lhe dizem respeito na acusação nega-os.

4.i) Pelo que, quanto a esta decisão de matéria de facto, o tribunal errou no seu julgamento e incorreu em vícios graves, pelo que terá o julgamento de ser anulado e a ser decretada a nulidade da decisão, nos termos e de acordo com o artigo 410º nº2 e 412º nº 3 do CPP;

5.a) Por fim e, relativamente, à decisão de condenação no pagamento do pedido de indemnização civil, terá igualmente de ser decretada a sua nulidade, por falta de fundamentação da sentença, erro na determinação das normas aplicáveis e a inexistência de pressupostos de facto e de direito que geram o direito a indemnização, nos termos e de acordo com o artigo 615º nº 1 al. b) do CPC, artigo 483º nº 1 e segs do CC e artigo 72 e segs. do CPP e artigo 21º nº 1 da Lei 112/2009;

5.b) A sentença é, desde logo, totalmente omissa e não é indicada a factualidade provada e não provada, bem como as testemunhas nada atestaram;

5.c) Pois, as testemunhas MM, NN e OO revelaram não ter qualquer conhecimento direto, circunstanciado, factual de quaisquer factos, danos, prejuízos ou incómodos, desconhecendo desde logo a existência de qualquer litígio entre o arguido e assistente;

5.d) Também estas testemunhas não fizeram quaisquer relatos concretos, credíveis, com conhecimento direto dos danos morais ou patrimoniais, perseguição ou de qualquer prova quanto à existência dos bens ou que tenham sido levados, ou que a assistente é a dona ou proprietária;

5.e) Pelo que também, nesta parte, consideramos que nada resultou provado e que, da sentença não se vislumbra qualquer fundamento, razão de ciência para o tribunal decidir desta forma, pelo que, o arguido terá de ser absolvido e com todas as consequências legais.

6) E, assim ser decretada a procedência do recurso e respetivos fundamentos ser feita a devida e acostumada JUSTIÇA.”

*

O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

*

A demandante HH apresentou resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

“A. A omissão de pronuncia a que o recorrente se reporta, para lá de não se verificar, uma vez que a Mss. Juiz afirma que não há nulidade, não se enquadra no disposto no artigo 379º n.º1 alínea c) do C.P.P.

B. Tal dispositivo legal respeita a ausência de posição ou decisão sobre matérias que a lei impõe expressamente ao Juiz a tomada de posição,

C. E que são as questões suscitadas pelos intervenientes processuais nos termos do disposto no artigo 608º n.º2 do C.P. Civil.

D. Ficando o arguido absolvido do crime de coação na forma agravada, a pronuncia sobre tal questão ficou prejudicada.

E. A nulidade invocada respeitante à não audição do arguido no inquérito não tem enquadramento no artigo 119º alíneas b) e c) do C.P.P., mas antes no artigo 120º n.º2 alínea d) do C.P.P., devendo ter sido arguida no prazo previsto no n.º3 da alínea c) do mesmo dispositivo legal.

F. O recorrente não o fez, não requereu sequer abertura de instrução, motivo pelo qual tal nulidade tem de se considerar sanada nos termos do disposto no artigo 121º n.º1 do C.P.P..

G. O recorrente fundamenta, alega e invoca os artigos 410º n.º2 e 412º n.º3 do C.P.P., considerando que há erros na apreciação de prova,

H. Contudo a valoração de prova feita pelo Tribunal “a quo” é irrepreensível e não é merecedora de qualquer reparo,

I. Sendo certo que o Tribunal “a quo” explicitou de forma clara, inequívoca, fundamentada e lógica a sua análise,

J. Justificando todo o processo lógico que esteve na base da convicção formada pelo Tribunal.

K. Não havendo qualquer vício notório na apreciação na prova,

L. Nem havendo provas que impunham decisão diversa dos factos considerados provados e não provados,

M. Sendo que o recorrente apenas tece considerações e crítica a valoração do depoimento das testemunhas ouvidas, o que não preenche as exigências legais nem do artigo 410º, nem do artigo 412º do C.P.P..

N. Quanto ao pedido civil, os factos atinentes aos danos morais e patrimoniais resultaram provados na matéria de facto provada, estando devidamente fundamentos,

O. Sendo certo que a sentença em recurso analisa criteriosamente os factos integradores e geradores da indemnização,

P. Aplicando concretamente o Direito à situação “subjudice”.

Q. Assim deve manter-se na íntegra a sentença recorrida.

Nos termos expostos e nos mais de Direito aplicáveis deve:

A. O recurso ser rejeitado ou, caso assim se não entenda,

B. Ser julgado improcedente,

C. Com todas as consequências legais.”

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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

“- tendo o Tribunal relegado para final a apreciação de uma nulidade invocada em sessão de julgamento, verifica-se que a douta sentença recorrida não se pronunciou, expressamente, sobre a questão, dela constando tão só que “não existem nulidades”.

- Nos termos do art. 379º nº 1 alínea c) do CPP a sentença é nula quando o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quanto a questões relativamente às quais a lei impõe que o Tribunal se pronuncie de forma expressa.

- no presente caso, a nulidade que fora invocada no requerimento apresentado pelo arguido, relacionava-se com o crime de coacção, na forma agravada que também lhe foi imputado e pelo qual veio a ser absolvido pelo que, atenta a absolvição do recorrente, nesta parte, e não tendo sido arguidas outras nulidades, a pronúncia sobre a questão que fora suscitada ficou prejudicada pelo que se afigura que não se verifica a arguida nulidade por omissão de pronúncia.

- no que se refere à invocada “nulidade de todo o processo, por falta e insuficiência de inquérito, nos termos do artigo 119º al. b) e c) do CPP, determinando assim a anulação do julgamento e o arquivamento deste processo” afigura-se não assistir razão ao recorrente.

- mesmo que se entendesse que no decurso do Inquérito tinham ocorrido as faltas apontadas, o que não se concede, as mesmas não configurariam a “falta de inquérito” prevista no artigo 119º al. d) do CPP que constitui nulidade insanável.

- quanto muito, poderia verificar-se a insuficiência de inquérito prevista no art. 120º, nº 1, al. d) do CPP que constituiria nulidade que teria que ser arguida até cinco dias após a notificação do despacho de encerramento do inquérito, tal como determina o nº 3, al. c) do mesmo preceito legal e, uma vez que o recorrente não arguiu qualquer nulidade nesse prazo, a ter existido nulidade, a mesma ter-se-ia que considerar sanada.

- nos termos do art. 134º do CPP que versa sobre recusa de depoimento “1- Podem recusar-se a depor como testemunhas: a) os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2ºgrau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação. 2 - A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento”.

- da letra da lei resulta que quem se pode recusar a depor são as pessoas que tenham as apontadas relações familiares com o arguido. Ora, no caso, as testemunhas CC e DD não são familiares do arguido, mas sim da assistente pelo que não só não poderiam recusar-se a depor como não podia o Tribunal fazer-lhes a advertência prevista no nº 2 do art. 134º do CPP.

- a motivação da decisão de facto não é nem poderia ser um substituto do princípio da oralidade nem pode ser transformada em documentação da oralidade da audiência.

- desde que a motivação indique o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao seu conteúdo inexiste falta ou insuficiência de fundamentação.

- assim sendo e no que se refere à douta sentença recorrida, afigura-se que foi indicada e analisada toda a prova produzida o que resulta da motivação.

- aí consta, a apreciação feita de toda a prova testemunhal e que permitiu que fosse dada mais credibilidade a uns depoimentos do que a outros e a formar a convicção.

- pelo que, a douta sentença recorrida não é nula por falta do requisito previsto no art. 374º, nº 2 do CPP.

- a sentença recorrida enumerou os factos provados e não provados e não se verifica carência de factos que suportem uma decisão de direito entre várias soluções possíveis, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão de direito sobre a mesma, pelo que não se verifica o invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal,

- analisando as motivações do recurso, afigura-se que o que o recorrente pretende pôr em causa não é o texto da decisão recorrida, mas antes o modo como o tribunal a quo apreciou a prova que foi produzida e fez a sua subsunção ao direito.

- a douta sentença recorrida enumerou os factos provados e não provados e não se verifica carência de factos que suportem uma decisão de direito.

- não se verificam os vícios de erro notório na apreciação da prova ou de insuficiência para a decisão da matéria de facto.

- porém, do elenco dos factos dados como provados e não provados resulta uma incompatibilidade pois que os factos descritos nos nº 9 e 10 da acusação foram dados, simultaneamente, como provados e como não provados.

- esta incompatibilidade lógica resulta de um evidente lapso de escrita na composição da sentença, sendo que, como resulta evidente da própria fundamentação, estes factos deveriam constar do elenco dos factos não provados.

- esta incompatibilidade determina vício da sentença a reparar pelo Tribunal a quo na sequência de reenvio.

- deve ser negado provimento ao recurso pelos fundamentos expostos na motivação apresentada pelo recorrente e ser determinado o reenvio para que o Tribunal a quo repare a apontada incompatibilidade no elenco dos factos dados como provados e não provados.”

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, no qual acompanhou a argumentação já apresentada pelo Ministério Público na primeira instância e pugna pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – OBJECTO DO RECURSO

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt).

À luz destes considerandos, são as seguintes as questões a decidir neste recurso:

- nulidade da decisão por omissão de pronúncia;

- nulidade de todo o processo por falta e insuficiência de inquérito;

- nulidade da decisão por falta de exame crítico da prova;

- impugnação da matéria de facto;

- falta de pressupostos da responsabilidade civil.

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3- FUNDAMENTAÇÃO:

3.1. – Fundamentação de Facto

A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:

“(…) Factos provados:

1. O arguido AA manteve uma relação análoga à dos cônjuges com HH (doravante ofendida) durante cerca de oito anos.

2. Na sequência daquela relação, o arguido passou a residir com a ofendida, na morada desta, na Rua …, n.º …, ….

3. Cerca de 2019, o arguido passou a iniciar discussões com a ofendida, entristecendo-a.

4. Em janeiro de 2022, o arguido passou a dirigir-se à ofendida e a acusá-la de traição, humilhando-a.

5. Entre o final de 2021 e o dia 18.01.2022, o arguido dizia à ofendida «que partia os cornos à anterior mulher, que nunca tinha batido à ofendida, mas que não estava longe de levar, que tinha batido e ameaçado os amantes da sua anterior mulher», amedrontando a ofendida.

6. Também entre o final de 2021 e o dia 18.01.2022 o arguido passou a manifestar um comportamento controlador para com a ofendida,

7. Na verdade, para saber se a ofendida saía de casa, o arguido colocava pedras atrás das rodas do veículo automóvel.

8. Também no mesmo período, entre o final de 2021 e o dia 18.01.2022, o arguido partia e destruía os trabalhos manuais que a ofendida fazia, como, por exemplo, as coroas destinadas aos tabuleiros (da festa dos tabuleiros, de …), causando-lhe prejuízo patrimonial e entristecendo a ofendida.

9. No dia 07.01.2022 o arguido dirigiu-se à ofendida e chamou-a «porca» e «vaca de merda» e disse que a «fendida «tinha estado com o amante o Sr. FF», «que o Sr. FF era amante da ofendida, que esta era uma porca», expressões que proferiu na presença de LL, na residência desta (sita na Rua … – ..), humilhando a ofendida.

10. Ainda no mesmo dia, na residência de LL, o arguido disse a FF, na presença da ofendida, «você é o amante desta porca», humilhando a ofendida.

11. No dia 11.01.2022 o arguido desferiu pontapés nas portas, armários e móveis da habitação e deitou os objetos que estavam nos móveis da cozinha ao chão, amedrontando a ofendida

12. E bem assim disse à ofendida «porca, vaca de merda, que tinha nojo dela, que ela não prestava para nada», humilhando-a.

13. Entre os dias 11 e 18 de janeiro de 2022, o arguido disse à ofendida «que umas garrafas que ele guardava eram um cocktail para usar se fosse preciso»

14. E, pegando em duas garrafas, atirou-as para uma fogueira, provocando uma explosão, atemorizando a ofendida,

15. Fazendo a ofendida acreditar que as garrafas «cocktail» eram dirigidas à ofendida, amedrontando-a.

16. No dia 18.01.2022, o arguido disse à ofendida «que a ofendida tinha um amante, que era uma porca, nojenta, vaca de merda», humilhando a ofendida,

17. E bem assim apontou-lhe uma arma de matar animais e premiu o respetivo gatilho, fazendo muito barulho e amedrontando a ofendida.

18. No mesmo dia, 18.01.2022, o arguido disse à ofendia «que a ia destruir, que ia deixar de ser a menina bonita da terra, que nem sabia o que ia fazer», amedrontando a ofendida,

20. Ao mesmo tempo que disse à ofendida «que a matava e que a seguir se matava a ele», amedrontando a ofendida.

21. Ora, temendo pelo comportamento do arguido, neste dia 18.01.2022 a ofendida saiu de casa e deixou de morar com o arguido.

22. Nesta sequência, a ofendida, várias vezes, pediu ao arguido para deixar de viver na habitação da ofendida, o que o arguido não fez, continuando a viver em casa da ofendida, contra a vontade desta,

23. Sendo que, o arguido apenas saiu de casa da ofendida em julho de 2022, ocasião em que a ofendida vendeu a casa.

24. Em data não concretamente apurada do ano de 2022, antes de julho, na residência propriedade da ofendida, onde o arguido residia, o arguido disse à ofendida:

a. «sua grande vaca, sua puta, isto não fica assim, se isto não for meu, não é de mais ninguém, eu corto-te aos bocadinhos, enterro-te no esterco das ovelhas»,

b. «eu mato-te», humilhando-a e amedrontando-a,

27. Entre 18.01.2022 e julho de 2022, o arguido causou vários estragos na habitação propriedade da ofendida, onde ficou a viver contra a vontade desta, destruindo, por exemplo, o reboco do exterior da habitação e prateleiras, cortou os fios dos candeeiros elétricos, partiu as fichas elétricas, cortou o fio da bomba do poço, partiu os grelhadores, encheu a canalização do gás com um material, inutilizando-a, causando prejuízo patrimonial à ofendida, peças de barro que estavam expostas para venda, causando prejuízo à ofendida,

29. Sendo que, em março de 2022 o arguido pegou num balde com tinta azul e atirou-o, com força, para o chão, deixando tudo salpicado com tinta azul.

30. Desde que a ofendida deixou de residir com o arguido e até ao final do ano de 2022 este passou a deslocar-se junto da nova morada da ofendida (na Rua …, …), durante a noite, onde ficava a fumar, com uma frequência, pelo menos, semanal, atemorizando a ofendida,

31. E bem assim, no mesmo período, o arguido passou a deslocar-se junto do local de trabalho da ofendida (na Rua …, em …), cerca de duas a três vezes por semana, perturbando-a e amedrontando-a,

32. Ainda no mesmo período, o arguido, às segundas, terças e quartas feiras, entre as 08 e as 09 horas, aguardava que a ofendida passasse apeada para a sua loja, junto da escola profissional, em …, e ficava junto da ofendida, perturbando-a,

34. Em data não apurada do ano de 2022, o arguido dirigiu-se a DD, na localidade de … (…) e disse-lhe «que encontrou a ofendida com o FF».

35. Em várias ocasiões de 2022, o arguido disse à ofendida «que a matava» e que «matava os seus amantes», atemorizando a ofendida.

36. Em data não apurada, mas que ocorreu no início do ano de 2023 o arguido dirigiu-se a KK e disse-lhe «apanhei-a com o FF, ela é uma cabra, não conheces a amiga que tens», referindo-se à ofendida.

37. Em data não apurada, o arguido dirigiu-se a GG e disse-lhe «sabes que eu apanhei a HH debaixo do FF, ela é uma porca, não sabe fazer comida, não lava a rata, anda sempre suja».

38. Quando o arguido deixou de morar na residência da ofendida levou com ele bens pertencentes e propriedade da ofendida, como lençóis, colchas, máquina de lavar roupa, tudo, num montante não concretamente apurado, integrando tais bens no seu património e fazendo-os seus, bem sabendo que, agindo do modo descrito, atuava contra a vontade da ofendida e que lhe causava prejuízo patrimonial.

39. As agressões que o arguido dirigia à ofendida ocorriam na residência comum do casal.

40. O arguido agiu com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, maltratar a ofendida, ofendendo-a na sua integridade psicológica, provocando-lhe sofrimento.

41. O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, insultar e ofender a ofendida na sua honra e consideração, bem sabendo que as expressões que utilizou eram adequadas e suscetíveis de as atingir e ofender, humilhando-a na sua qualidade de mulher e de companheira, o que pretendia, e levando-a a manter uma baixa autoestima.

42. O arguido agiu com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, ameaçar a ofendida, bem sabendo que as expressões por si proferidas eram idóneas a causar, como causaram, receio e intranquilidade à ofendida de que viesse a sofrer ato atentatório da sua vida e integridade física, não obstante quis agir da forma descrita.

43. O arguido agiu sempre com o propósito, reiterado, de, através das condutas descritas supra, deslocando-se junto da ofendida, das imediações da sua residência e local de trabalho, lhe provocar medo e a prejudicar e limitar nos seus movimentos, bem sabendo que desse modo a lesava na sua liberdade pessoal, como pretendeu e conseguiu.

44. Com as condutas supra descritas, o arguido agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava física, verbal e psiquicamente a ofendida, debilitando-a psicologicamente, prejudicando o seu bem-estar e ofendendo-a na sua honra e dignidade humanas, bem sabendo que esta era sua companheira e ex-companheira, e que por isso lhe devia respeito e consideração.

45. Ao agir do modo descrito o arguido fê-lo desprovido de qualquer justificação e de forma deliberada, livre, voluntária e consciente com o claro propósito de maltratar tanto física como psicologicamente a ofendida, querendo obriga-la a suportar a sua presença.

46. O arguido bem sabia que atuando da forma descrita, colocava a ofendida sujeita ao seu humor, provocando-lhe humilhação, angústia e medo.

47. O arguido bem sabia que debilitava física e psicologicamente a ofendida, prejudicando o seu bem-estar e ofendendo-a na sua honra e dignidade humanas, sendo que, com as suas condutas, assumiu uma posição de controlo e dominação sobre a mesma e revelou desconsideração e desprezo pela mesma.

48. O arguido bem sabia que, atuando das formas descritas, corrompia a relação de confiança existente entre si e a ofendida, enquanto casal, inviabilizando uma convivência familiar e doméstica pacífica.

49. O arguido mais sabia que as suas condutas eram reprováveis, proibidas e punidas criminalmente, tendo-se, mesmo assim, conformado com as mesmas, sem agir de outro modo, como era capaz.

50. Ao agir da forma descrita, o arguido tinha como propósito, que concretizou, causar estragos nos bens da ofendida, destruindo-as e causando prejuízo monetário à ofendida, bem sabendo o denunciado que agindo da forma acima descrita atuava contra a vontade da ofendida.

54. O arguido agiu sempre de modo consciente, livre e voluntário, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.

Factos não provados:

9. No dia 07.01.2022 o arguido dirigiu-se à ofendida e chamou-a «porca» e «vaca de merda» e disse que a «fendida «tinha estado com o amante o Sr. FF», «que o Sr. FF era amante da ofendida, que esta era uma porca», expressões que proferiu na presença de LL, na residência desta (sita na Rua …– …), humilhando a ofendida.

10. Ainda no mesmo dia, na residência de LL, o arguido disse a FF, na presença da ofendida, «você é o amante desta porca», humilhando a ofendida.

19. Sendo que, nas mesmas circunstâncias, o arguido foi buscar uma pistola e disparou um tiro para o ar,

25. Sendo que, nas mesmas circunstâncias, o arguido dirigiu-se a BB e disse-lhe «se fizeres queixa de mim eu mato-te»

26. E bem assim encostou-lhe uma faca de matar porcos à barriga dizendo-lhe «eu como-te o cu».

28. Em data posterior ao dia 18.01.2023 o arguido deslocou-se à loja que a ofendida explorava (na Rua …, em …) durante a noite, e ali entrou fazendo uso da chave, que tinha na sua posse, e partiu várias

33. No início de maio de 2022, no café do mercado Municipal de …, publicamente e em alta voz, o arguido disse, referindo-se à ofendida «que era uma porca; que nem a cona lavava; que gritava como uma vaca quando lhe ia ao cu; que a apanhou debaixo do FF», humilhando a ofendida.

51. Ao atuar da forma descrita, o arguido agiu com o propósito concretizado de utilizar aquelas expressões e de atemorizar o ofendido BB, provocando-lhe inquietação, medo e receio pela sua vida e integridade física.

52. O arguido estava consciente de que atuando daquela forma causava um sentimento de insegurança, medo e inquietação ao ofendido, limitando a sua liberdade de determinação, não se tendo, contudo, abstido de agir do modo referido.

53. Ao atuar da forma descrita, proferindo aquelas expressões, o arguido atuou com o propósito concretizado que o ofendido apresentasse queixa/ denúncia, procurando constranger e limitar a sua liberdade de determinação.

Fundamentação:

Para a formação da convicção do Tribunal foi essencial a conjugação e análise crítica de toda a prova produzida, mormente, testemunhal: 1. HH, ofendida; 2. II, 3. DD, 4. LL, 5.KK, 6. FF, 7. PP, 8. CC, 9. GG, 10. BB e documental: Auto de notícia, de fls. 28 e seguintes, Fichas RVD, de fls. 34 e seguintes, 141 e seguintes, Assentos de nascimento, de fls. 16 e seguintes, 19 e seguintes, Fichas de identificação civil, de fls. 21 e seguintes, 25 e seguintes, CRC de fls. 22, Informação sobre armas, de fls. 52. Fotografias, de fls. 74 e seguintes, 95 e seguintes, Cota de fls. 198, Auto de busca e apreensão, de fls. 222 e seguintes, folha de suporte fotográfico, de fls. 224 e seguintes, relatório de busca, de fls. 227 e seguintes, CD’s juntos à contracapa dos autos.

A ofendida descreveu quase todos os factos descritos na acusação, de forma consistente e credível. O próprio arguido nas suas declarações evidenciou a sua personalidade.

Há outros factos em relação aos quais não há qualquer prova, alguns a ofendida negou, outros a prova produzida não foi credível.

As questões atinentes ao contexto da relação e o inicio dos problemas, comportamento controlador do arguido, as pedras nas rodas no veículo, os nomes que o arguido lhe chamava decorrem do depoimento prestado pela ofendida que, reitera-se se afigurou credível, porque consistente e coerente, as garrafas, coctails para usar, que atirou para a fogueira, o episódio da arma com animais. Explicou qual o objecto, relatou os factos, já o mesmo não se diga quanto à pistola pois a arguida disse que isso não aconteceu.

As expressões proferidas e o motivo pelo qual saiu de casa decorre do depoimento da ofendida e das testemunhas, designadamente a pessoa para casa de quem esta foi morar. As testemunhas de acusação inquiridas corroboraram alguns dos factos em harmonia com o descrito na acusação.

A situação de 07.01.2022 resulta excluída por força do depoimento do FF.

Quanto ao BB não se afiguraram credíveis as suas declarações, dada a incoerencia do seu comportamento, apesar de ter atestado os pontos 25, 26 e 33 desde que gritava ate que apanhava, dada a circunstancia de manter contacto regular com o arguido, deslocando-se ao seu local de trabalho e pedindo-lhe coisas, não se afigura verosímil.

Quanto aos objectos partidos em casa, muito embora ninguém tenha visto a acontecer, certo é que só o arguido tinha acesso à casa, o mesmo não podendo dizer-se quanto à loja, enfatizando-se que de prova resulta que não tinha a sócia acesso à casa.

Quanto ao ponto 33 não há prova, nem faria sentido fazê-lo no seu local de trabalho.

A testemunha GG atestou que o arguido lhe teria mencionado o envolvimento com o FF bem como expressões menos abonatórias mas não as conseguiu descrever.

Por todo o exposto, duvidas não soçobram, que possam reputar-se razoáveis, quanto ao cometimento pelo arguido dos factos provados.”

*

Na audiência de julgamento realizada no dia 5 de Novembro de 2024, a mandatária do arguido formulou o seguinte requerimento:

“ Realizadas as sessões de julgamento e produzida toda a prova, constatamos que os factos 24 a 26 e 51 a 53 da acusação imputam ao arguido um crime de coação de forma agravada p.p pelas disposições conjugadas dos artigos 154º e 155º, nº 1, al. a) do C.Penal, mas visam um outro ofendido, que é testemunha de acusação neste processo, o Sr. BB e não à aqui assistente HH.

Constacta-se ainda que a fls. dos autos em sede de inquérito que a testemunha só chega a este processo em Maio de 2023, ou seja, decorridos mais de 6 meses da realização de todas as diligências em sede de inquérito, e nesse seu depoimento perante a GNR vem então imputar ao arguido novos factos que foram objecto desta acusação.

Ora, o senhor AA foi constituido arguido neste processo 5 meses antes das declarações desta testemunha.

Com eventual notícia de novos factos carreados por esta nova testemunha, susceptíveis de integrar outros crimes praticados pelo arguido contra outra pessoa que não a assistente, teria o arguido de ser confrontado e constituído arguido sobre esta nova factualidade que configura um novo procedimento criminal. Os elementares direitos de defesa de contraditório em lide de processo penal não foram assim cumpridos.

Acresce ainda que, relativamente a estes factos da acusação, jamais existiu qualquer diligência de investigação ou de inquérito. Os factos foram directamente introduzidos nesta acusação tendo por base única e exclusivamente as declarações desta testemunha, que presencialmente neste julgamento foi patente tratar-se de alguém que deixa sérias dúvidas sobre o que diz realmente ou fantasia.

Esta testemunha BB nunca foi ouvido na qualidade de ofendido, não foi notificado para eventual exercício dos direitos que tem de se constituir assistente no processo, deduzir pedido de indemnização, pelo que também foram violados os preceitos fundamentais do direito penal e de processo penal, designadamente o disposto no 113º, nº 1 do C. Penal, 48º 67-A, 68º, 71º e seguintes do C.P.Penal.

Termos em que entendemos se verifica a falta e insuficiência de inquérito do procedimento criminal, o que configura uma nulidade insanável nos termos do artigo 119º, al. b), c) e d) do C.P.Penal, que aqui se invoca para os devidos efeitos legais e que, consequentemente, devem implicar a extinção deste procedimento criminal, o que se requer".

Consta da mesma acta que:

“ Seguidamente, pela Mmª Srª Juíz foi proferido DESPACHO no sentido de, a final e em sede de sentença, ser tomada posição acerca do ora requerido pela Ilustre Defensora do arguido.”

*

3.2.- MÉRITO DO RECURSO

A) NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA E FALTA DE EXAME CRÍTICO DA PROVA

Como primeiro fundamento do seu recurso, vem o recorrente invocar a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia quanto ao requerimento por si apresentado na audiência de julgamento realizada no dia 5 de Novembro de 2024 e por falta de exame crítico da prova.

Vejamos se lhe assiste razão.

Quanto aos requisitos da sentença, dispõe o art.º 374º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Penal o seguinte: “1 - A sentença começa por um relatório, que contém: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis; c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido; d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada. 2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. (…)” A fundamentação da sentença penal é, assim, composta por dois grandes segmentos:

- Um, que consiste na enumeração dos factos provados e não provados; - Outro, que consiste na exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. O dever de fundamentação das decisões judiciais é hoje um imperativo constitucional, previsto no art.º 205º, nº 1 da CRP, onde se estabelece que as decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. A fundamentação deve revelar as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência, já que é através dela que se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador. É também através da fundamentação da sentença que é viabilizado o controlo da actividade decisória pelo Tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração e à impugnação da matéria de facto. O dever de fundamentação encontra-se igualmente consagrado no art.º 97º, nº 5 do Cód. Proc. Penal, onde se prevê que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. Segundo o art.º 379º, nº 1, alíneas a) e c) do mesmo diploma, é nula a sentença penal quando não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art.º 374º ou quando o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Quanto ao conteúdo do dever de fundamentação da sentença ou do acórdão, escreveu-se no Ac. RL de 18/01/2011, proferido no processo nº 1670/07.4TAFUN-A.L1-5, em que foi relator Vasques Osório, in www.dgsi.pt, em moldes que subscrevemos: “ A enumeração dos factos provados e dos factos não provados, mais não é do que a narração de forma metódica, dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, com referência aos que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda dos factos provados que, com relevo para a decisão, e não constando de nenhuma daquelas peças processuais, resultaram da discussão da causa. É esta enumeração de factos que permite concluir se o tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo. A exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa mas tem que ser concisa, contendo e enunciação das provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo tribunal – o que não exige, relativamente à prova por declarações, a realização de assentadas tendo por objecto os depoimentos produzidos em audiência – bem como a análise crítica de tais provas. Esta análise crítica deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada.” Os motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados, nem os meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência ( neste sentido cf. , por exemplo, o Ac. RP de 15/07/2009, proferido no Processo nº 1090/04.2JAPRT.P1, in www.dgsi.pt ). Ora, não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo (cfr. Acs. STJ de 12.04.2000, Proc. 141/2000, in SASTJ nº 40, 48, de 11.10.2000, Proc. 2253/2000 – 3ª, in SASTJ nº 44, 70, de 26.10.2000, Proc. 2528/2000 – 5ª, SASTJ nº 44, 91 e de 07.02.2001, Proc. 3998/00 – 3ª, SASTJ nº 48, 50). O exame crítico da prova tem como objecto apenas os factos essenciais para a qualificação jurídico-criminal do ilícito, para a definição do seu circunstancialismo relevante e para a determinação da responsabilidade do agente (cfr. Ac. STJ de 26/10/2000, no Proc. nº 2528/2000 – 5ª, SASTJ nº 44, 91). Porém, a fundamentação da sentença, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de “assentada” em que o Tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, sob pena de se violar o princípio da oralidade que rege o julgamento (cfr. Ac. STJ de 7/02/2001, no Proc. nº 3998/00 – 3ª, SASTJ nº 48, 50). Como se refere, de forma clara, no Ac. do STJ de 30/01/02, proferido no processo nº 3063/01 – 3ª, SASTJ nº 57, 69: “A disposição do artigo 374º-2 do CPP sobre o exame crítico das provas não obriga os julgadores a uma escalpelização de todas as provas que foram produzidas e, muito menos, a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão. A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”. Esse exame crítico das provas corresponde, no fundo, à indicação dos motivos que determinaram a que o Tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido, aceitando um e afastando outro, e porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substracto lógico-racional da decisão (neste sentido, Ac. STJ de 17/03/2004, proferido no processo nº 4026/03 – 3ª).

Quanto à nulidade da decisão por omissão de pronúncia, nos termos previstos no art.º 379º, nº 1, alínea c) do Cód. Proc. Penal, entendemos que a sentença ou o acórdão só têm que se pronunciar sobre matéria relevante para a decisão da causa, ou seja sobre as questões, de facto ou de direito, com incidência ou impacto directo, positivo ou negativo, na decisão. Tais questões só podem ser as que são colocadas expressamente pelos intervenientes e as de conhecimento oficioso, nisto consistindo o thema decidendum (cf. neste sentido, Fernando Gama Lobo, in “ Código de Processo Penal Anotado”, 4ª edição, Almedina, pág. 860). Neste sentido, vejam-se, entre muitos outros, os seguintes Acórdãos, todos disponíveis in www.dgsi.pt: - Ac. do STJ de 10/12/09, proferido no processo nº 22/07.0GACUB. E1.S1, em que foi relator Santos Cabral: “A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões que o juiz deve apreciar são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art. 660.º, n.º 2, do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer, independentemente da alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual. A “pronúncia”, cuja “omissão” determina a consequência prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença – deve, pois, incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou as razões alegadas. (…) - Ac. do TRL de 8/05/2019, proferido no processo nº 1211/09.9GACSC-A.L2-3, em que foi relatora Maria da Graça Santos Silva: “ A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido. O vocábulo legal -“questões”- não abrange todos os argumentos invocados pelas partes. Reporta-se apenas às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir. (…)”; - Ac. do STJ de 5/05/21, proferido no processo nº 64/19.3T9EVR.S1.E1.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves: I - A sentença ou acórdão devem ser esgotantes e autossuficientes, no sentido de conhecer da totalidade das pretensões e de conter todos os elementos indispensáveis à compreensão do juízo decisório. II - Omissão de pronúncia significa ausência de conhecimento ou de decisão do tribunal sobre matérias que a lei impõe que o juiz resolva. III - Ocorre quando o tribunal deixa de apreciar e julgar questões de facto e/ou de direito que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais ou que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos e não argumentos mais ou menos hipotéticos, opinativos ou doutrinários.(…)”

No caso dos autos, na audiência de julgamento realizada no dia 5 de Novembro de 2024, foi colocado à apreciação do Tribunal a quo um requerimento do arguido onde suscita a nulidade do inquérito em relação aos factos que fundamentam a imputação ao mesmo da prática de um crime de coação agravada p. p. pelas disposições conjugadas dos arts.º 154º e 155º, nº 1, al. a) do C. Penal. A Mmª Juiz que presidiu à audiência remeteu o conhecimento da nulidade invocada para a sentença final, não mais tendo proferido nos autos qualquer despacho sobre esta questão. Na sentença final tal nulidade não foi conhecida, o que configura efectivamente uma omissão de pronúncia que gera a nulidade da decisão. É que não se pode entender que ao proferir a expressão genérica “Não há nulidades, questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.”, o Tribunal a quo conheceu implicitamente da nulidade invocada. Aquele Tribunal foi chamado à apreciação de uma questão prévia ao conhecimento do mérito da causa e com impacto no mesmo, tanto mais que os factos objecto do requerimento em apreço implicaram a absolvição do arguido do crime de coacção agravada de que vinha acusado, sendo, por isso, relevantes. Ao não conhecer na sentença final de uma questão cujo conhecimento remeteu para esta altura, o Tribunal a quo incorreu efectivamente na prática de uma omissão de pronúncia que gera a nulidade da sentença recorrida, o que cumpre declarar.

Alega também o recorrente que a decisão recorrida é nula porque na mesma não é feita uma exposição completa dos motivos de facto e de direito que a fundamentam, nem o exame crítico das provas que serviram de base para formar a convicção do tribunal.

Analisada a fundamentação de facto da decisão recorrida, verifica-se que da mesma consta o elenco dos elementos de prova, testemunhais e documentais, que alicerçaram a convicção do julgador. Porém, não é feito na decisão o exame crítico de todas as provas e a explicação, através dos elementos probatórios, do entendimento a que o Tribunal a quo chegou quanto aos factos provados e não provados. Na verdade, o art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal não exige que se autonomize e se escalpelize a razão de decidir sobre cada facto, nem exige que em relação a cada meio de prova se descreva a dinâmica da sua produção em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível. No entanto, a decisão recorrida não explica porque é que considerou credíveis e verosímeis os depoimentos de umas testemunhas em detrimento de outras, limitando-se a dizer que depuseram de forma credível ou verosímil e referindo quem disse o quê, mas sem explicar em que medida é que o Tribunal conferiu, ou não, credibilidade aos depoimentos e porquê. Também não é feita qualquer articulação entre a prova documental e a prova testemunhal produzida, tendo o Tribunal a quo quase se limitado a elencar os meios de prova produzidos, num texto corrido, sem qualquer apreciação crítica ou reflexiva e muito menos articulada com as regras da lógica e da experiência comum. Constata-se, assim, que a decisão recorrida não explicou de uma forma lógica, racional e completa o processo de apuramento dos factos, não permitindo compreender como os factos ocorreram, nem sindicar a formação da convicção do julgador, sendo, também por isso, nula.

Em face do exposto, impõe-se ordenar o suprimento das nulidades verificadas, com a consequente revogação da decisão recorrida e a determinação de prolação de nova sentença da qual conste a apreciação do requerimento do arguido supra indicado e o exame crítico da prova.

B) Insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada

Analisada a decisão recorrida, verificamos que da mesma não consta qualquer factualidade quanto às condições pessoais, económicas e sociais do arguido, nomeadamente no que respeita à sua situação económica e financeira, encargos pessoais e antecedentes criminais.

Porém, o Tribunal a quo condenou o arguido em penas de multa, de valor diário superior ao mínimo legal, e numa indemnização a favor da vítima.

Relativamente aos vícios que importam a nulidade da decisão, estabelece o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) O erro notório na apreciação da prova.

Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, e não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.

Estes vícios são também de conhecimento oficioso, na medida em que têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16. ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6.ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).

Há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja, são insuficientes para a aplicação do direito ao caso concreto.

No entanto, tal insuficiência só ocorre quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, porque não se apurou o que é evidente e que se podia ter apurado ou porque o Tribunal não investigou a totalidade da matéria de facto com relevo para a decisão da causa, podendo fazê-lo.

Esta insuficiência da matéria de facto tem de existir internamente, no âmbito da decisão e resultar do texto da mesma.

Neste sentido decidiu o STJ no Ac. de 5/12/2007, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raúl Borges, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Ou, como se diz no acórdão deste STJ de 25-03-1998, BMJ 475.º/502, quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado; ou ainda, na formulação do acórdão do mesmo Tribunal de 20-12-2006, no Proc. 3379/06 - 3.ª, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura.”

No mesmo sentido se decidiu no Ac. do TRC de 12/09/18, proferido no processo nº 28/16.9PTCTB.C1, em que foi relator Orlando Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que: “ O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estatui que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou c) O erro notório na apreciação da prova.».

Como resulta expressamente mencionado nesta norma, os vícios nela referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida.

O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito. Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa. – Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 7/04/2010 (proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49) e os Cons. Leal- Henriques e Simas Santos , in “Código de Processo Penal anotado”, vol. 2.º, 2ª ed., pág.s 737 a 739.” Veja-se ainda, a título de exemplo, o Ac. do TRL de 22/09/20, no processo nº 3773/12.4TDLSB.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se decidiu que: “ Estabelece o artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Trata-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que, como já se adiantou, hão-de derivar do texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma. Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos …, 6.ª ed., 2007, p. 69; Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, processo 346/08.0ECLSB.L1-3, em http://www.dgsi.pt).

Na decisão recorrida não constam da matéria de facto apurada quaisquer factos relativos às condições socio-económicas do arguido, não se sabendo a composição exacta do seu agregado familiar, se está efectivamente a trabalhar, quanto é que ganha e que encargos tem, nem se tem ou não antecedentes criminais.

Compulsados os autos, verificamos que na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 25 de Junho de 2024, o arguido não quis prestar declarações.

Na ausência de declarações do arguido e da junção aos autos de documentos para prova da referida factualidade, também não ordenou o Tribunal a quo a elaboração de relatório social para apuramento da mesma.

Relativamente ao relatório social, dispõe o art.º 370º, nº 1 do Cód. Proc. Penal que:

“O tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessário à correcta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respectiva actualização quando aqueles já constarem do processo.”(sublinhados nossos)

Em face desta norma, verifica-se que o relatório social é uma fonte de informação que contribui para a determinação da pena a aplicar ao arguido e está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127º do Cód. Proc. Penal.

O relatório social é, assim, um instrumento de auxílio do juiz, que o “pode” solicitar, caso o considere necessário.

Não obstante a ausência de factos relativos às condições sociais e económicas do arguido, a decisão recorrida condenou-o em pena de multa e com um valor diário superior ao mínimo legal, considerando apenas que: “(…) Já quanto aos demais crimes julga-se adequado aplicar uma pena de 100 dias de multa por cada um deles e, efectuado o cumulo, a pena única de 150 dias de multa à taxa diária de 6€. (…)”

Também condenou o arguido no pagamento de uma indeminização, sem nada referir quanto à capacidade económica do mesmo para efectuar o pagamento da quantia fixada.

Conforme supra se referiu, há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja são insuficientes para a aplicação do direito ao caso concreto, gerando este vício a nulidade da sentença, nos termos previstos nos arts.º 374º, 379º, nº 1, als. a) e c) e 410º, nº 2, al. a) do Cód. Proc. Penal.

A verificação da ocorrência deste vício determina a necessidade do seu suprimento podendo, em última ratio, ter como consequência o reenvio dos autos à 1ª instância, caso não seja possível a renovação da prova, prevista no art.º 430º do Cód. Proc. Penal, verificados que estejam os respetivos pressupostos.

Atenta a factualidade apurada nos autos no que respeita às condições sociais e económicas do arguido, verifica-se, efectivamente, que a mesma é insuficiente para fundamentar a escolha pela pena de multa, o quantitativo diário de multa em que foi condenado e a indemnização fixada.

Quanto às condições pessoais do recorrente nada se apurou, nem consta do processo que tenham sido encetadas quaisquer outras diligências com vista a apurar quanto é que o arguido aufere, se se encontra a trabalhar e que encargos económicos tem, bem como a composição do seu agregado familiar.

Todos estes factos não podem assentar em meras presunções não alicerçadas em elementos probatórios e têm importância para a decisão da causa, quer ao nível da escolha da pena, quer na graduação da respetiva moldura concreta, atento o disposto nos arts.º 71º, nº 2, al. d) e 47º, nº 2 do Cód. Penal.

Ora, não se tendo apurado estas circunstâncias, verifica-se que a decisão recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada, neste tocante, impondo-se ao Tribunal recorrido que investigue, por todos os meios ao seu alcance e legalmente admissíveis, tal factualidade, procedendo a um novo juízo de graduação da pena e da indemnização fixada.

Em face do exposto, impõe-se proceder à anulação parcial do julgamento efectuado em 1ª instância e ordenar o reenvio do processo para novo julgamento restrito à produção de prova necessária ao apuramento das condições sociais e económicas do recorrente, incluindo a composição do respectivo agregado familiar, os rendimentos do trabalho ou outros e as despesas fixas e variáveis, bem como os seus antecedentes criminais, a fim de se poder alcançar uma decisão final, tudo em conformidade com o disposto nos arts.º 340º, 369º, 370º, 371º, 410º, nº 2, al. a), 426º, nº 1 e 426º-A todos do Cód. Proc. Penal.

Fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.

*

4. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo recorrente AA, e, em consequência:

A) declaram a nulidade da sentença recorrida e determinam a sua substituição por outra da qual conste:

- a apreciação do requerimento apresentado pelo arguido na audiência de julgamento realizada no dia 5 de Novembro de 2024 relativo à nulidade do inquérito;

- o exame crítico da prova;

B) ordenam o reenvio do processo para reabertura da audiência de julgamento pelo mesmo Tribunal, restrita à questão da determinação das condições sociais e económico-financeiras do recorrente, incluindo a composição do seu agregado familiar, os respetivos rendimentos e encargos e os seus antecedentes criminais, com vista à determinação da espécie de pena a aplicar, ao apuramento do quantitativo da pena de multa concreta a aplicar e ao apuramento dos montantes indemnizatórios a atribuir à demandante.

Sem custas (art.º 513º, nº 1 do Cód. Proc. Penal).

Évora, 10 de Julho de 2025

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

Carla Oliveira

Jorge Antunes

(Adjuntos)