Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
205/09.9TBABT-H.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESIDÊNCIA HABITUAL
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - No âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais, a competência internacional dos tribunais portugueses é aferida, com base no critério da residência habitual dos menores à data da instauração da acção, de acordo com o disposto no art. 8º, nº 1, do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27.11 e no art. 9º do RGPTC.
- Para efeitos de se saber qual a residência habitual, haverá que atender-se à factualidade alegada no requerimento inicial.
- Não especificando a lei o que se deve entender por residência habitual, tal conceito deve ser interpretado no sentido da residência do local onde o menor tiver maior permanência, no sentido de facilitar a reunião dos elementos necessários à defesa dos seus interesses, enquanto residência estável e duradoura.
- No caso em apreço, estando o menor em França, desde Agosto de 2017, onde se encontra habitualmente a viver e a estudar, na companhia da sua mãe, aqui requerente, forçoso é concluir que o tribunal francês está melhor colocado do que o de Portugal para a prolação de uma decisão em conformidade com o superior interesse da criança.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 205/09.9TBABT-H.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) instaurou o presente incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, na qualidade de mãe do menor (…) e a quem o mesmo está confiado, contra o progenitor (…), peticionando que este lhe pague a quota parte relativa a despesas escolares que suportou com o filho de ambos, no valor de € 188,92.
Foi realizada uma conferência de pais, na qual a mãe veio afirmar que o menor (…) está a residir consigo em França, desde finais de Agosto de 2017 até ao momento, sem qualquer interrupção.
De seguida pelo M.mo Juiz “a quo” foi proferida decisão, na qual entendeu estar verificada a excepção da incompetência do presente Tribunal em razão da nacionalidade e absolveu o requerido da instância.

Inconformada com tal decisão dela apelou a requerente, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1º - O Artigo 62º do Código do Processo Civil estabelece os critérios de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, como sejam, os critérios de domicílio do réu, da coincidência, da causalidade e da necessidade.
2º - Quer o princípio da domiciliação, quer o princípio da coincidência apontam para a competência da jurisdição nacional.
3º - Isto porque, quanto ao primeiro verificamos que o Requerido reside em Portugal e que não estamos perante nenhuma acção relativa a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos em país estrangeiro.
4º - No que se refere ao segundo, verificamos que segundo as regras internas de competência territorial são também competentes os tribunais portugueses.
5º - Sendo certo que, os critérios acima referidos são de aplicação autónoma, isto é, basta a verificação de um deles para que os tribunais portugueses sejam competentes.
6º - Para além disso, sendo França e Portugal membros da Comunidade Europeia teremos que tomar em consideração o disposto no Regulamento CE nº 2201/2003 do Conselho de 27/11/2003 em matéria de competência internacional.
7º - O referido Regulamento deve ser interpretado duma forma integrada, nomeadamente no que diz respeito ao conceito de residência habitual, pese embora o disposto no seu Artigo 8º, pois o mesmo prevê excepções a esta regra geral.
8º - Uma dessas excepções é a prevista no seu Artigo 12º direccionada para a protecção do superior interesse do menor, fazendo com que, o que seja determinante é a efectiva ligação do menor e de seus pais a Portugal.
9º - No caso dos autos, o nosso País é o da nacionalidade de todos os intervenientes, perdura em relação ao menor há mais de 16 (dezasseis) anos e o mesmo só se encontra em França há muito pouco tempo, país com o qual não tem qualquer vinculação.
10º - Fazendo com que, o critério da proximidade da criança e seus pais estabelecido no Regulamento CE nº 2201/2003 do Conselho de 27/11/2003 nos indique, salvo melhor opinião, que a competência para apreciação do caso dos autos é a dos tribunais portugueses.
11º - Impondo-se, por isso, a revogação do douto despacho recorrido e a sua substituição por outro que julgue totalmente improcedente a excepção da incompetência do Tribunal e, em consequência, deferir-se a competência para apreciação dos presentes autos ao Juízo de Família e Menores de Abrantes.
12º - O douto despacho recorrido violou os Artigos 62º do Código do Processo Civil e os Artigos 8º e 12º do Regulamento CE nº 2201/2003 do Conselho de 27/11/2003, pelo que V. Ex.cias devem fazer a costumada Justiça.
Pela Ministério Público foram apresentadas contra-alegações de recurso, nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte decisória for desfavorável à recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela requerente, ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se, residindo o menor em França, à data da instauração do presente incidente de incumprimento, o Tribunal competente, em razão da nacionalidade, para decidir esta acção não é o Tribunal Francês da área da residência do menor, mas sim o Juízo de Família e Menores de Abrantes, onde tal incidente foi instaurado.

Apreciando, de imediato, a questão suscitada pela requerente, ora apelante, importa, desde já, referir a tal propósito que resultou apurada nos autos a seguinte factualidade:
- O menor (…), filho da requerente e do requerido, está a residir com a progenitora em França, desde finais de Agosto de 2017 até ao momento, sem qualquer interrupção.
- Os presentes autos apenas foram instaurados no decurso do ano de 2019.

Como sabemos, a competência do tribunal constitui um pressuposto processual, sendo assim um dos elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a pretensão deduzida e, como qualquer outro pressuposto processual, a competência é aferida em relação ao objecto da acção apresentado pelo requerente.
Como se refere no recente Ac. do STJ de 10/10/2013, disponível in www.dgsi. que aqui seguimos de perto (relator Oliveira Vasconcelos), são normas de competência internacional aquelas que atribuem a um conjunto de tribunais de um Estado o complexo de poderes para o exercício da função jurisdicional em situações transnacionais. Vigoram na ordem jurídica portuguesa normas de fonte interna e normas de fonte supra estadual.
Destas, destacam-se, como fonte comunitária e com relevo para o caso dos autos, o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução das decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, aplicável às acções judiciais, actos autênticos e acordos posteriores a 1 de Março de 2005 – cfr. artigo 72º do Regulamento. O Regulamento é directamente aplicável a todos os Estados Membros, em conformidade com o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (arts. 1°, 68° e 76° e, em Portugal, o art. 8° da Constituição da República Portuguesa) e prevalece perante as normas reguladoras da competência internacional previstas no Código de Processo Civil.
Aliás, a actual redacção do art. 59° do C.P.C. já ressalva o que se acha estabelecido em tratados, convenções e regulamentos comunitários.
Vejamos então o que se dispõe no supra aludido Regulamento com interesse para a decisão da questão em apreço.
Ora, a regra estabelecida naquele Regulamento para a competência dos tribunais quanto à responsabilidade parental, na parte que interessa para presente decisão, consta do art. 8º, nº 1, onde se estipula que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.
Também o art. 9º, nº 1, do RGPTC, a propósito da competência do tribunal, estipula que, para decretar as providências cautelares cíveis é competente o Tribunal da residência da criança no momento em que o processo for instaurado.
Face à questão posta e tendo em conta a regra de competência internacional acima transcrita, temos, pois, que determinar qual a residência habitual do menor à data da instauração destes autos.
Já vimos que nos termos do artigo 8º do Regulamento, o que interessa para o efeito é a residência habitual do menor à data da instauração dos presentes autos. E tal dispositivo refere que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado, à data em que o processo seja instaurado no tribunal. À luz desse sistema, está vedado condicionar a atribuição da competência à emissão de um juízo sobre a natureza dos órgãos jurisdicionais do Estado, aos quais, de acordo com o seu direito interno, caberia dirimir a causa. O Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro, que entrou em vigor no dia 1 de Agosto de 1994, excepto os artºs 67º e 70º aplicáveis a partir de 1 de Março de 2005, vigorava na data em que os presentes autos foram instaurados.
Sobre o conceito de residência habitual, refere-se no guia prático para aplicação do Regulamento nº 2201/2003 elaborado pelos serviços da Comissão Europeia, que esse conceito “cada vez mais utilizado em instrumentos internacionais, não é definido pelo Regulamento, mas deve ser determinado pelo juiz em cada caso com base nos elementos de facto. O significado da expressão deve ser interpretado em conformidade com os objectivos e as finalidades do Regulamento. Deve-se sublinhar que não se trata de um conceito de residência habitual com base na legislação nacional, mas de uma noção “autónoma” de legislação comunitária. Se uma criança se deslocar de um Estado-Membro para outro, a aquisição da residência habitual no novo Estado-Membro deveria, em princípio coincidir com a “perda” da residência habitual no anterior Estado-Membro. A determinação caso a caso pelo juiz implica que enquanto o adjectivo “habitual” tende a indicar uma certa duração, não se pode excluir que uma criança possa adquirir a residência habitual num Estado-Membro no próprio dia da sua chegada, dependendo de elementos de facto do caso concreto”.
Conforme refere Carlos Melo Marinho in Textos de Cooperação Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, 2008, a página 56, “a definição de residência habitual não está vertida no Regulamento Bruxelas e não corresponde, também, a qualquer definição nativa. Deverá, antes, ser obtida pelo juiz à luz dos elementos fácticos disponíveis e dos fins e objectivos do sempre invocado Regulamento, tendo presente que se está perante um conceito autónomo emergente do Direito Comunitário. Tal conceito, de natureza flexível e alargada, permite ao julgador, por exemplo, concluir, em função das circunstâncias específicas da situação em apreço, ter a criança adquirido uma residência habitual num Estado Membro no próprio dia da chegada a esse Estado”.
À luz desse sistema, está vedado condicionar a atribuição da competência à emissão de um juízo sobre a natureza dos órgãos jurisdicionais do Estado, aos quais, de acordo com o seu direito interno, caberia dirimir a causa.
No caso em apreço, apurou-se que o menor (…), filho da requerente e do requerido, está a residir com a progenitora em França, desde finais de Agosto de 2017 até ao momento, sem qualquer interrupção.
Ora, o art. 8º do Regulamento (CE) 2201/2003, de 27/11 – em cujos termos os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado, à data em que o processo seja instaurado no tribunal – não oferece dúvidas de que, na situação concreta, o menor, filho da requerente e do requerido residia, à data da instauração dos presentes autos, em França e só depois foi intentado este incidente em Portugal.
Assim sendo, não podemos deixar de considerar que o menor tem e tinha, à data da instauração destes autos, a residência habitual em França e que as suas vindas a Portugal são inexistentes ou, quando muito, precárias, pois vive e estuda, com carácter de regularidade, em França. Por isso, a instauração destes autos, por parte da requerente, no nosso país, terá ocorrido, eventualmente, por estar convencida de que logrará obter mais benefícios do que os que lhe serão concedidos pelo tribunal francês!
Como vimo o artigo 8.º determina que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal e, por isso, a competência internacional deve aferir-se pelo critério da residência habitual do menor.
Ora, o conceito de "residência habitual", na acepção dos artigos 8.º e 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar – Acórdão da 1.ª Secção do Tribunal de Justiça da UE, de 22.12.2010, processo C-497/10 PPU: Barbara Mercredi/Richard Chaffe.
Seguindo de perto esta jurisprudência, não se vê como se possa sustentar que o menor em causa não tem a sua residência habitual em França. Com efeito, desde Agosto de 2017 que o menor sempre tem vivido, com carácter de regularidade, em França, na companhia da sua mãe, ora requerente, estando o mesmo confiado à sua guarda e cuidados.
Deste modo, forçoso é concluir que o tribunal francês está melhor colocado do que o de Portugal para a prolação de uma decisão em conformidade com o superior interesse da criança, conseguindo com maior facilidade reunir os elementos necessários à defesa dos interesses da criança, tendo em conta que o (…) lá tem vivido, com carácter de regularidade, desde Agosto de 2017, na companhia da sua progenitora – cfr., nesse sentido, entre outros, o Ac. da R.E. de 27/9/2012, o Ac. da R.G. de 12/7/2016 e os Acs. da R.P. de 21/2/2017 e 6/3/2018, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Nestes termos, atentas as razões e fundamentos supra referidos, resulta claro que o tribunal português – mais concretamente o Juízo de Família e Menores de Abrantes – tem de ser considerado internacionalmente incompetente para dirimir o pleito aqui em causa.
Por outro lado, resulta do art. 96º do C.P.C. que a infracção das regras de competência internacional, determina a incompetência absoluta do tribunal, incompetência que poderá ser arguida pelas partes ou ser do conhecimento oficioso do tribunal, implicando a absolvição da instância nos termos previstos nos arts. 99º e 577º, alínea a), do mesmo Código.
Assim sendo, dado que o recurso em análise não versa outras questões, entendemos que a decisão recorrida não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter integralmente. Em consequência, improcedem, “in totum”, as conclusões de recurso formuladas pela requerente, ora apelante, não tendo sido violados os preceitos legais por ela indicados.

***

Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pela requerente, confirmando-se inteiramente a decisão proferida pelo tribunal “a quo”.
Custas pela requerente (sem prejuízo do apoio judiciário de que é beneficiária).
Évora, 30 de Janeiro de 2019
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás
__________________________________________________
[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).