Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2271/22.2T8STR.E1
Relator: MARIA DA GRAÇA ARAÚJO
Descritores: NULIDADE DA FALTA DE CITAÇÃO
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
A citação é nula quando ao réu são remetidas cópias ilegíveis dos documentos apresentados com a petição inicial.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

Companhia de Seguros …., S.A. propôs contra AA acção declarativa de condenação, com processo comum.

Alegou, em síntese, que: celebrou com o réu um contrato de seguro do ramo automóvel relativamente ao veículo de matrícula ..-JZ-..; porque conduzia a viatura sob influência do álcool, o réu colidiu com outro veículo, destruindo-o e causando a morte do respectivo condutor e diversas lesões na ocupante do mesmo; em consequência do acidente, a autora pagou ao Centro Hospitalar ..., EPE a quantia de 13.194,91€, indemnizou BB (ocupante do veículo e viúva do condutor) com o montante de 85.000,00€, pagou de indemnização a CC a quantia de 15.000,00€ e gastou 1.310,70€ com o processo de sinistro; em 8.2.22, interpelou o réu para proceder ao pagamento daqueles montantes.

Concluiu, pedindo que o réu fosse condenado a pagar-lhe a quantia de 114.505,61€, acrescida de juros de mora desde a data da interpelação.

O réu foi citado por carta registada com aviso de recepção, por ele assinado em 13.9.22.

Por carta registada de 19.9.22, o réu deu conhecimento ao tribunal de que, no mesmo dia, requerera o benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa/pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo, juntando a respectiva cópia.

Em 11.10.22, o réu apresentou contestação, arguindo a nulidade da citação e a violação do contraditório, uma vez que os inúmeros documentos que lhe foram enviados são ilegíveis e só no final se encontra a petição inicial. Requereu, consequentemente, que fosse de novo citado com novo prazo para exercer a sua defesa.

A autora defendeu a validade da citação.

A convite, o réu juntou a documentação recebida aquando da citação.

O tribunal indeferiu a arguida nulidade e, na ausência de contestação, considerou confessados os factos articulados pela autora e ordenou o cumprimento do disposto no nº 2 do artigo 567º do Cód. Proc. Civ..

O réu apresentou alegações sobre o aspecto jurídico da causa.

Paralelamente, interpôs recurso de apelação do despacho que indeferira a nulidade, que não foi admitido por premturidade.

Foi, então, proferida sentença, que condenou o réu nos termos peticionados.

O réu interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

a) O ora Recorrente não se conforma com a Sentença proferida pelo Tribunal a quo de 1 de Junho de 2023, a qual condenou o Réu a pagar à autora a quantia de 114.505,61€ (cento e catorze mil quinhentos e cinco euros e sessenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, calculados desde a interpelação do demandado para proceder ao pagamento desse montante, até integral pagamento;

b) Na Sentença, ora em crise, foi ainda decidido que o Réu, ora Recorrente, não apresentou contestação, e em consequência foram declarados confessados os factos articulados pela autora por despacho de 27/3/2023;

c) O Réu e ora Recorrente arguiu a nulidade de citação por falta de legibilidade dos documentos anexos à Petição Inicial e pela dificuldade que teve em localizar a própria Petição Inicial;

d) Os originais que foram remetidos ao Réu não eram perceptíveis, facto que alegou como questão prévia em sede de contestação, arguindo assim a nulidade da citação sobre os fundamentos aí vertidos;

e) O ora Recorrente, aquando da citação, teve dificuldade em localizar a Petição Inicial, pois que, primeiramente surgem documentos atrás de documentos, diga-se completamente ilegíveis, surgindo a Petição Inicial quase no final da notificação e o modo como os referidos documentos foram notificados foi na sua grande maioria ilegíveis e alguns deles não foi sequer possível aferir do seu conteúdo;

f) Facilmente se afere essa falta de legibilidade dos documentos nos presentes autos a fls. 276, 277, 278 (frente e verso), 279 (frente e verso), 280 (frente e verso), 281, 282, 283 (frente e verso), 284 (frente e verso), 285 (frente e verso), 286 (frente e verso), 287 (frente e verso), 288 (frente e verso), 289 (frente e verso), 290 (frente e verso), 291 (frente e verso), 292 (frente e verso), 293 (frente e verso), 294 (frente e verso), 295 (frente e verso), 296 (frente e verso), 297 (frente e verso), 298 (frente e verso), 299 (frente e verso), 300 (frente e verso, 301 (frente e verso), 302 (frente e verso), 303 (frente e verso), 304 (frente e verso), 305 (frente e verso), 306 (frente e verso), 307 (frente e verso), 308 (frente e verso), 309 (frente e verso), 310 (frente e verso), 321 (frente e verso), 322 (frente e verso), 332 (frente e verso), 333 (frente e verso), 334 (frente e verso), 335 (frente e verso), 336 (frente e verso), 337 (frente e verso), 338 (frente e verso), 339 (frente e verso), 340 (frente e verso), 341 (frente e verso), 342 (frente e verso), 344 (frente e verso), 345 (frente e verso), 346 (frente e verso), 347 (frente e verso), 348 (só verso), 349 (só o verso), 354 (só o verso), 355 (só o verso), 356 (só o verso), 361 (só o verso), 362 (só frente), 369 (só o verso), 370 (só frente), 371 (só o verso), 373 (frente e verso), 377 (só o verso), 378 (frente e verso), 379 (só frente), 390 (só o verso), 391 (frente e verso), 392 (frente e verso), 400 (frente e verso), 401 (frente e verso), 402 (frente e verso), 403 (frente e verso), 404 (só frente), 405 (frente e verso), 406 (só frente), 409 (só o verso), 410 (só frente), 450 (frente e verso), 451 (frente e verso), e 452 (só frente);

g) Para tanto devem ser consultados os autos originais de forma a que os venerandos desembargadores possam efectivamente constatar essa ilegibilidade, por outras palavras, para que possam ter a mesma realidade e ter a mesma percepção que teve o ora Recorrente aquando da citação;

h) O ora Recorrente, em 9 de Março de 2023, em cumprimento do douto despacho judicial do Tribunal a quo, juntou o suporte original dos documentos e Petição Inicial que lhe foram remetidos aquando da citação;

i) Por douto despacho judicial veio a ser indeferida a arguição de nulidade da citação (fundamento do despacho), com a fundamentação de que o Réu, ora Recorrente, não apresentou prova que sustentasse a falta de legibilidade dos documentos anexos à Petição Inicial objecto da citação cuja invalidade por nulidade se requereu;

j) Ora, salvo o devido respeito, não pode o ora Recorrente aceitar e conformar-se com essa decisão, e isto porque como se demonstrou, apenas alguns dos documentos são perceptíveis, tendo os restantes uma qualidade de impressão muito sofrível ou são completamente ilegíveis;

k) E esse facto (ilegibilidade dos documentos) afectou e abalou inevitavelmente o pleno exercício do direito ao contraditório pelo ora Recorrente, sendo esse princípio basilar e angular do ordenamento jurídico português, consagrado na Lei Fundamental, e no direito adjectivo civil, nomeadamente no art.º 3.º, n.º 1 e n.º 3, do Código de Processo Civil, uma vez que não se consegue ler a informação constante dos documentos anexos à Petição Inicial para que se possam contraditar os mesmos;

l) E não será pelo facto de alguns destes documentos serem legíveis e destarte compreensíveis que o ora Recorrente se encontrava, por isso, em plenas condições de exercitar de forma cabal e plenamente o seu direito ao contraditório;

m) Existe uma sequência lógica quando se analisa esses documentos, e sendo essa sequência interrompida, pelo facto de a maior parte destes documentos serem ilegíveis, tal representa um obstáculo incontornável ao cabal exercício do direito ao contraditório, pois que a informação constante nesses documentos terá que ser perceptível in totum;

n) O que nos presentes autos não sucede, uma vez a digitalização realizada a esses documentos, já por si com uma péssima qualidade de impressão, não permite sequer a sua leitura, por mais atenta que esta leitura seja feita;

o) A este respeito, refere-se o que foi entendido pelo Tribunal da Relação do Porto, no seu Acórdão de 18 de Junho de 2007, no processo n.º 0733086, e refere-se também o entendimento da Veneranda Relação de Guimarães, no Acórdão de 26 de Setembro de 2013, no processo n.º 805/13.2TBGMR-A.G1;

p) O princípio do contraditório só é correctamente observado se for de molde a que cada uma das partes possa, não apenas deduzir as suas razões, de facto e de direito, e oferecer as suas provas, mas, também, controlar as provas do adversário, discreteando sobre o valor e resultado de umas e de outras;

q) As cópias dos documentos que acompanham a citação e as notificações (art. 228º, nº 3, do CPC) têm que ser legíveis, possibilitando que o respectivo conteúdo seja totalmente perceptível para o seu destinatário, assegurando, em conformidade, a efectiva possibilidade de pronúncia àquele contra quem são opostos os meios de prova;

r) Assim, também viola o sobredito princípio do contraditório a junção, com o articulado da Petição Inicial, de meras cópias, a preto e branco, de fotografias visando ilustrar a factualidade alegada em tal articulado, o que determina a nulidade da respectiva citação, tido em conta o disposto no art. 198º, nº4, do Código Civil;

s) Nos presentes autos, resulta de forma manifesta a impossibilidade do Réu, ora Recorrente, poder contraditar os documentos juntos com a Petição Inicial, e ainda que estes pudessem hipoteticamente ser presumidos pelo Réu, estamos perante uma clara e manifesta violação do princípio do Contraditório, consubstanciando-se assim uma nulidade da citação;

t) O Tribunal a quo não recorreu, como aliás deveria, no cálculo do valor indemnizatório, quer ao dano morte, quer ao dano intercalar e também no que se refere ao dano não patrimonial, a critérios de proporcionalidade e de razoabilidade, atendendo à factualidade atinente à idade da vítima à data do seu óbito e à dos seus descendentes;

u) Em concreto, o Tribunal a quo não ponderou no cálculo do quantum indemnizatório, o facto de a vítima à data do seu óbito ter 78 anos de idade, bem como não foi também ponderado a idade dos seus descendentes todos pessoas adultas e integradas profissionalmente, factos que constam dos autos;

v) Com efeito, a Jurisprudência tem sido maioritária na forma em como o cálculo do quantum de indemnização deve ser efectuado,, ou seja, a determinação da compensação pecuniária devida pelo dano morte e correspondente lesão do direito à vida deve fazer-se com recurso à equidade, ponderando critérios de uniformidade na jurisprudência para situações similares, o que in casu não sucedeu;

w) A esse respeito, não pode o Recorrente deixar de citar e referir o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24 de Fevereiro de 2022, no processo 2374/20.8T8PNF.P1, o qual teve por Relator a Veneranda Juiz Desembargadora Judite Pires, e cita-se:

“I – A determinação da compensação pecuniária devida pelo dano morte e correspondente lesão do direito à vida deve fazer-se com recurso à equidade, ponderando critérios de uniformidade na jurisprudência para situações similares, sem descurar, todavia, a especificidade do caso concreto. Em todo o caso, nenhuma razão séria justifica que este dano, perfilando-se como lesão do bem vida, valor de dimensão absoluta e inexcedível, possa ter um tratamento de menor dignidade ressarcitória do que aquele que é conferido às lesões da saúde em geral, todas necessariamente, e por definição, de menor gravidade.

II - O dano intercalar, porque medeia entre o momento em que ocorre o acto lesivo e a morte da vítima resultante desse evento, abrange o sofrimento, designadamente pela percepção da eminência da própria morte, e dores físicas sentidas pela vítima durante o período em causa. Esse dano é atendível em termos compensatórios, devendo os respectivos valores indemnizatórios ser calculados em função do caso concreto, ponderando, designadamente, a gravidade das lesões sofridas, a intensidade das dores, o período de tempo durante a qual as dores se prolongam e eventual pressentimento da morte;

III - Na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais, resultantes do sofrimento e perda pela morte do marido e pai, em consequência das lesões resultantes de acidente de viação, está o julgador subordinado a critérios de equidade, que ponderem a situação económica dos lesados e do obrigado à reparação, a intensidade do grau de culpa do lesante, e extensão e natureza das lesões sofridas pelo titular do direito à indemnização, considerando, como ponto de equilíbrio, as próprias finalidades prosseguidas pela indemnização por este tipo de danos;

IV - O n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil contém uma enumeração taxativa das pessoas com direito a ser ressarcidas por danos não patrimoniais próprios resultantes da morte da vítima, não podendo, por isso, a ressarcibilidade ser estendida a outras pessoas para além das indicadas na norma em causa - ainda que estas pudessem ter uma apertada ligação emocional ou afectiva à vítima.

V - Na quantificação das indemnizações dos familiares por perda do contributo remuneratório da vítima falecida, haverá que ter sempre presente a figura da equidade, a qual visa alcançar a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, de forma que se tenha em conta, as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.”;

x) Como resulta cristalino do aresto supra citado, o julgador está subordinado a critérios de equidade que ponderem a situação económica do lesado e do obrigado à reparação do dano não patrimonial, e a determinação da compensação pecuniária devida pelo dano morte e correspondente lesão do direito à vida deve fazer-se com recurso à equidade, ponderando critérios de uniformidade na jurisprudência para situações similares;

y) Ora, como resulta da Sentença ora em crise, o Tribunal a quo atribuiu a indemnização peticionada pela Autora, dando para esse efeito toda a factualidade como provada, descurando por um lado, a realidade sócio económica do Recorrente, e por outro ao não ter permitido, sem que o Recorrente pudesse entender e perceber o teor dos documentos anexos à Petição Inicial, o exercício do direito ao contraditório do Réu, ora Recorrente, principio esse que é basilar e fundamental do Estado de Direito democrático, e sem o qual nem sequer o mesmo se concebe;

z) Termos em que deve a Sentença ser revogada e substituída por Acórdão que declare a nulidade da citação, com todas as devidas e legais consequências.

A autora apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1.ª A citação é nula quando “sem prejuízo do disposto no artigo 188.º, (…) não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei”, conforme artigo 191.º n.º 1 do Código do Processo Civil;

2.ª A arguida nulidade da citação não se enquadra nas situações elencadas nos artigos 188.º n.º 1 e 2 e 227.º do Código do Processo Civil;

3.ª A dificuldade na localização da Petição Inicial não consubstancia uma situação de nulidade da citação do Apelante, por falta de fundamento legal;

4.ª A Petição Inicial junta aos autos pelo Apelante é legível e identificável;

5.ª A Apelada teve necessidade de após a entrada da Petição Inicial em juízo, remeter aos autos mais três requerimentos, cada um com uma parte do documento n.º 6;

6.ª Tal circunstância terá feito com que tal documento, por ser mais recente, seguisse primeiro que a Petição Inicial, quando remetido ao Apelante, por carta registada;

7.ª O que não justifica a nulidade da citação do Apelante, sendo a situação facilmente ultrapassável por consulta do processo no CITIUS;

8.ª O Apelante só em sede de Recurso identifica os documentos que considera ilegíveis, tendo até então feito uma alegação vaga e generalista;

9.ª Os documentos juntos com a Petição Inicial encontram-se perfeitamente legíveis, identificados, numerados, e muitos deles a cores, na plataforma CITIUS;

10.ª Desde a citação a 13 de setembro, até ao indeferimento do Apoio Judiciário, a 28 de novembro, o Apelante teve tempo bastante para consultar a plataforma CITIUS, com toda a documentação associada à PI e exercer o seu direito ao contraditório;

11.ª A defesa do Apelante não ficou prejudicada, como requer o n.º 4 do artigo 191.º do Código do Processo Civil para a arguição da nulidade da citação;

12.ª O Apelante foi interveniente direto no sinistro dos presentes autos, estando em condições de, à cautela, na Contestação apresentada, promover pela impugnação dos factos que não são do seu conhecimento, independentemente, da arguição da nulidade da citação e da legibilidade dos documentos;

13.ª Não merece consideração a arguição da nulidade da citação do Apelante, por falta de prova da circunstância alegada e pela facilidade em ultrapassar a questão através da consulta ao processo na plataforma CITIUS;

14.ª O Apelante na Contestação apresentada não impugnou os factos e documentos articulados pela Apelada, o que resultou na confissão dos mesmos, nos termos do artigo 567º, nº1, do Código do Processo Civil, e consequente condenação na totalidade do pedido;

15.ª O Apelante de forma vaga alega que o Tribunal a quo não ponderou nem recorreu a critérios de proporcionalidade e de razoabilidade no cálculo do valor peticionado relativamente ao dano morte, e também aos danos não patrimoniais, pagos às herdeiras do falecido;

16.ª No âmbito do processo-crime, que correu termos no Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., processo nº 188/18...., a Apelada celebrou com a ocupante do veículo sinistrado e esposa do condutor falecido, uma transação, nos termos da qual lhe liquidou o montante de € 85.000,00, a título de indemnização por todos os danos patrimoniais, danos não patrimoniais próprios enquanto lesada, danos não patrimoniais decorrentes do sofrimento tido pelo falecimento do esposo e o próprio dano morte;

17.ª Por sua vez, a Apelada indemnizou a filha do falecido a título de danos não patrimoniais, no montante de 15.000,00 € (quinze mil euros), por toda a angústia e sofrimento decorrentes da perda do pai;

18.ª Os valores atribuídos pelos danos indemnizados não excederam os critérios da adequação e proporcionalidade, estando as indemnizações sustentadas nos valores contemplados nos Acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça;

19.ª Em situações semelhantes à da presente ação, uma indeminização por danos não patrimoniais decorrente da perda de um pai, escala em valores que rondam entre os €20.000,00 (vinte mil euros) e € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), não sendo desproporcional o pagamento da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) a esse título tanto para a filha do falecido como para a esposa;

20.ª A esposa do falecido condutor, Sra. BB, também foi vítima no presente sinistro, tendo tido necessidade de ser assistida medicamente e de receber tratamento hospitalar, tendo ficado internada e efetuado diversas consultas, cirurgias e fisioterapia;

21.ª Na transação celebrada com a Sra. BB, estão contemplados todos os danos patrimoniais decorrentes do presente sinistro, ou seja, despesas médicas, custos do funeral, indemnização pela perda total do veículo;

22.ª A Sra. BB também sofreu danos não patrimoniais próprios, pelo que tal factualidade deve ser tida em consideração para apuramento do valor indemnizatório;

23.ª Tendo por referência as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça, é razoável fixar a indemnização pelo dano morte entre os € 50.000,00 e € 80.000,00, podendo alcançar o montante de €100.000,00;

24.ª O Tribunal a quo andou bem ao considerar os factos articulados pela Apelada provados, porque não impugnados pelo Apelante, nos termos do art. 567º, nº1, do Código do Processo Civil, e, em consequência, condenado o Apelante na totalidade do pedido, uma vez que, os valores suportados se encontram justificados documentalmente e as indemnizações adequadas à luz dos critérios de proporcionalidade e de razoabilidade aplicados pelo Supremo Tribunal de Justiça.


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A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:

1. No exercício da sua atividade, no âmbito do ramo automóvel, a autora celebrou com o réu um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatório titulado pela apólice n.º ...89.

1A. Em virtude da celebração do contrato de seguro, foi transferida para a Autora a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação automóvel do veículo de matrícula ..-JZ-...

2. No dia 5 de Maio de 2018, pelas 07:50 horas, ocorreu um acidente de viação na EN ...18, ao Km 17,400, na freguesia ..., concelho ... e distrito ....

3. Neste acidente foram intervenientes o veículo ..-JZ-.., conduzido pelo réu, e o veículo de matrícula ..-..-SG, conduzido por DD.

4. No local do acidente, a EN ...18 caracteriza-se por ser uma recta, em que o trânsito se processa em ambos os sentidos, com uma via de circulação para cada sentido, delimitadas por uma linha longitudinal mista.

5. A via possui bermas asfaltadas “e muito estreitas, sendo ladeadas por terreno baldio”.

6. No momento em que o acidente ocorreu o tempo estava bom.

7. Estando o pavimento, que se encontrava em regulares condições de manutenção, seco e limpo.

8. No local do acidente, a faixa de rodagem é visível em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 metros.

9. Sendo que a velocidade máxima permitida ascende a 90 km/h.

10. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o réu conduzia o veículo ... pela EN ...18, no sentido .../....

11. Pela via de circulação da direita, atento o seu sentido de marcha.

12. A uma velocidade não inferior a 120 Km/h.

13. O réu conduzia o veículo ... com uma taxa de alcoolemia de 1,00 g/l.

14. Ao aproximar-se do local do acidente, o réu, mercê da TAS de que era portador, súbita e inopinadamente, sem que nada o fizesse prever, flectiu a sua marcha para a esquerda, atento o seu sentido de marcha.

15. Transpôs a linha longitudinal mista delimitativa das vias de circulação.

16. E passou a circular pela via de circulação afeta ao trânsito em sentido contrário ao seu.

17. Indo colidir com a parte frontal do veículo ... na parte frontal do veículo ....

18. O veículo ... circulava na EN ...18, no sentido .../..., pela via de circulação da direita, atento o seu sentido de marcha, a uma velocidade não superior a 90 km/h.

19. Aquando do acidente, para além do condutor do veículo ..., seguia no mesmo, como passageira, a Sra. BB.

20. Em resultado do presente sinistro, o condutor do veículo ... teve que ser desencarcerado do veículo.

21. Tendo sofrido lesões traumáticas meníngeo-encefálicas e raqui-medulares, que constituíram a causa da sua morte.

22. O sinistro deu origem a um processo-crime, que correu termos no Juízo Local Criminal ..., Juiz ... (Proc. nº 188/18....).

23. Tendo o réu sido acusado pela prática de um crime de homicídio por negligência e pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência.

24. No âmbito deste processo-crime, foram deduzidos três pedidos de indemnização civil contra a autora e contra o ora réu.

25. Um, deduzido pelo Centro Hospitalar ..., E.P.E. no valor de 13.194,91 €.

26. Na sequência do sinistro, a ocupante do veículo ..., a Sra. BB, sofreu choque hemorrágico, fraturas dos 1º e 3º arcos costais direitos com lesão arterial, fratura das apófises transversas de C7, D1, L1-L2, fratura supra-condiliana do joelho direito e intercondiliana do joelho esquerdo, submetidas a osteossíntese, fratura do muro do acetábulo esquerdo e do ramo isquiopúbico homolateral, fratura de MT5, escafoide, F1D1 do pé direito e MT3 do pé esquerdo.

27. Em face destas lesões a Sra. BB foi transportada para o Centro Hospitalar ..., E.P.E., onde lhe foram prestados os necessários cuidados de saúde.

28. Tendo estes tido um custo de 13.194,91 €.

29. Em cumprimento do contrato de seguro supra identificado, a autora chegou a acordo com o Centro Hospitalar ..., E.P.E., liquidando a este o montante de 13.194,91 € (treze mil cento e noventa e quatro euros e noventa e um cêntimos).

30. O falecido condutor do veículo ... deixou como únicas herdeiras a sua esposa e ocupante do veículo ..., BB, e a sua filha CC.

31. A ocupante do veículo ..., a Sra. BB, deduziu um pedido de indemnização contra a ora autora e contra o ora réu no valor de 114.873,47 €, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência do sinistro.

32. Sendo 54.873,47 € a título de danos patrimoniais e € 60.000,00 € a título de danos não patrimoniais.

33. Em consequência do sinistro, o veículo ... ficou completamente destruído, tendo o mesmo, a essa data, o valor venal de 5.000,00 €.

34. A ocupante do veículo ..., também em consequência do sinistro, teve que ficar internada no Instituto de Ação Social ..., I.P., passando a residir num lar de idosos.

35. Tendo despendido com tal internamento, desde Maio de 2018 a Novembro de 2019, o montante de 20.646,90 €.

36. E, desde Dezembro de 2019 a Janeiro de 2021, o montante de 9.299,78 €.

37. A ocupante do veículo ... despendeu o montante de 14.471,87 € com internamento, intervenções cirúrgicas, consultas e tratamentos de reabilitação a que foi sujeita.

38. Suportou ainda a ocupante do veículo ... o montante de 5.454,92 € com as despesas de funeral do condutor do veículo ..., seu esposo.

39. Em face dos danos sofridos pela passageira do veículo ..., a ora autora, em cumprimento do contrato de seguro supra identificado, celebrou com esta uma transação, nos termos da qual lhe liquidaria o montante de 85.000,00 €, a título de indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do sinistro.

40. A filha do condutor do veículo ..., a Sra. CC, deduziu um pedido de indemnização civil contra a ora autora e contra o ora réu, peticionando o pagamento de uma indemnização no valor de 20.000,00 €, a título de danos não patrimoniais decorrentes do falecimento do condutor do veículo ..., seu pai.

41. A ora autora celebrou com a Sra. CC uma transação, nos termos da qual liquidaria a esta o montante de 15.000,00 €, a título de danos não patrimoniais sofridos com o presente acidente.

42. No dia 14/12/2021, as transações celebradas foram homologadas por sentença.

43. No dia 02/02/2022, a autora liquidou à ocupante do veículo ..., a Sra. BB, o montante de 85.000,00 € (oitenta e cinco mil euros).

44. E no dia 28/12/2021, a autora liquidou à ocupante à Sra. CC o montante de 15.000,00 € (quinze mil euros).

45. Com a averiguação, peritagens e gestão do sinistro, a autora despendeu o montante de 1.310,70 € (mil trezentos e dez euros e setenta cêntimos).

46. A autora, em 08/02/2022, interpelou o réu para proceder ao pagamento do montante despendido (total de 114.505,61 €).


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I – A primeira questão a tratar respeita à nulidade da citação.

A) “O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição” (artigo 3º nº 1 do Cód. Proc. Civ.)

A esse chamamento se dá o nome de citação (artigo 227º nº 1 do Cód. Proc. Civ.). Através de tal acto, o réu fica a saber que contra ele foi proposta determinada acção e que nela se pode defender. Assim sendo, a importância de tal acto é evidente, bem se compreendendo as exigências legais nessa matéria.

No que para o caso sub judice releva, ao citando têm de ser remetidos/entregues – isto é, têm de ser colocados na sua disponibilidade física – o duplicado da petição inicial e as cópias dos documentos que a acompanharam (artigo 227º nº 1 do Cód. Proc. Civ.), havendo tais elementos de se mostrar legíveis em ordem à plena compreensão do objecto da citação (artigo 219º nº 3 do Cód. Proc. Civ.).

Quando tal não se verifica, a citação é cominada com o desvalor da nulidade, desde que a falta cometida puder prejudicar a defesa do citando (artigo 191º nº 1 e 4 do Cód. Proc. Civ.).

B) Na situação em apreço, o réu queixou-se da dificuldade em localizar a petição inicial no imenso conjunto dos elementos que lhe foram remetidos, por a mesma figurar quase no final de inúmeros documentos.

Tal como entendeu a 1ª instância, não cremos que tal dificuldade configure irregularidade da citação, sendo certo que o réu não deixou de encontrar e identificar a referida peça processual, assim tomando conhecimento do teor da demanda que contra si foi movida.

Queixou-se, ainda, o réu da ilegibilidade dos documentos que lhe foram remetidos, situação que o tribunal a quo considerou não se verificar.

Mas, neste aspecto, sem razão.

Vejamos.

Na petição inicial, a autora referiu juntar 21 documentos. Com aquela peça, juntou, efectivamente, 20 documentos, juntando, posteriormente, o que denominou de doc. nº 6, através de três requerimentos.

A cópia junta ao processo físico - e remetida ao réu - do doc. nº 2 (“Auto de Ocorrência - Participação de Acidente de Viação”), composta de quatro páginas de texto e duas fotografias que se presumem do local do acidente, são, na sua maior parte ilegíveis, conseguindo-se apenas ler com segurança o que está escrito em letras maiúsculas.

A cópia junta ao processo físico – e remetida ao réu – do doc. nº 5 corresponde a duas fotografias, cujas imagens não se conseguem ver com um mínimo de nitidez.

O que a autora juntou como doc. nº 6 traduz-se num total de 267 páginas (várias das quais contêm mais de um documento). Nesse conjunto estão compreendidas cópias de diversas peças do processo-crime que correu contra o ora réu e cópias de documentos diversos respeitantes às consequências do acidente para a lesada BB. Todas essas cópias se apresentam “desfocadas”; e se é certo que, quanto às peças processuais do processo-crime, se consegue, ainda assim, proceder à respectiva leitura, já o mesmo não sucede com os demais documentos (facturas emitidas pelo Centro Hospitalar ..., EPE., pelo Instituto de Acção Social ..., pelo Hospital ..., por farmácias, pelo Hospital ... e pelo Serviço ...), que apresentam numerosos aspectos ilegíveis.

Pretende a apelada que a invocada ilegibilidade era facilmente ultrapassável com recurso ao Citius.

Mas nada na lei impõe – ou sequer permite – à generalidade dos citandos tal consulta. E o que é facto é que se mantém o nº 3 do artigo 219º do Cód. Proc. Civ., concomitantemente com a referida plataforma informática.

Acresce dizer que, mesmo que assim não se entendesse, o recurso ao Citius não eliminaria todos os problemas. É certo que os docs. 2 e 5 e, bem assim, as facturas emitidas pelo Centro Hospitalar ..., EPE e pelo Hospital ..., que integram o doc. nº 6, aí se revelam legíveis/visíveis. Mas subsistem dificuldades de leitura e ilegibilidades no tocante aos demais (fls. 89v a 99v, 100 a 105, 107v a 108v, 111v a 114v, 116 a 118, 120 a 122v, 126 a 127v, 131v, 132, 133v, 137 a 155v e 157 a 191v), em especial no que aos algarismos (datas, valores) concerne.

As descritas irregularidades do acto de citação têm de considerar-se susceptíveis de afectar a defesa do réu.

Com efeito, o princípio do contraditório constitui um dos principais alicerces do processo civil, assumindo posição de destaque logo no artigo 3º do Cód. Proc. Civ. e manifestando-se nas mais diversas e específicas situações processuais. Consagra-se um “direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo (…), como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, Almedina, Coimbra, 4ª edição:29.

E se a autora juntou aos autos documentos foi porque entendeu que algum valor probatório tinham; razão pela qual não pode ser negado ao réu o direito de sobre eles se pronunciar.

No sentido exposto, vejam-se os Ac. RP de 28.3.06, Ac. RP de 18.06.07 e Ac. RG de 26.9.13, in http://www.dgsi.pt, respectivamente, Proc. nº 0620940, Proc. nº 0733086 e Proc. nº 805/13.2TBGMR-A.G1.

II – Anulada a citação e anulados os termos subsequentes que dela dependem (artigo 195º nº 2 do Cód. Proc. Civ.), queda prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.


*

Por todo o exposto, acordamos em julgar procedente a apelação e, em consequência:

A) Revogamos a decisão de 27.3.23, ora se anulando a citação;

B) Como corolário, anulamos o requerimento do réu de 14.4.23 (alegações de direito) e a sentença de 1.6.23.

Custas pela apelada.

Évora, 11 de Janeiro de 2024


Maria da Graça Araújo

Maria Amélia Ameixoeira

Ana Isabel Pessoa