Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
317/18.8T8TNV.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: REGISTO DA ACÇÃO
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A venda antecipada de um prédio em processo de insolvência constitui fundamento para o cancelamento do registo de acção em que se pede a declaração de resolução do contrato de compra e venda do mesmo prédio ao insolvente, a condenação deste à respectiva restituição e o cancelamento do registo de transmissão.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 317/18.8T8TNV.E1

Relatório


(…) recorreu para o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém do despacho do Conservador do Registo Predial de Torres Novas que indeferiu liminarmente o pedido de rectificação da inscrição de aquisição decorrente da apresentação n.º (…), de 13.12.2017, da freguesia de (…), concelho de Vila Real de Santo António, e de reposição em vigor do registo de acção efectuado pela apresentação n.º (…), de 22.02.2017, oficiosamente cancelado.

O referido tribunal julgou o recurso improcedente e, dessa sentença, vem a requerente recorrer para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:

1 – A ora recorrente tinha toda a legitimidade para apresentar a registo a douta acção declarativa de condenação da massa insolvente da “(…) – Sociedade Imobiliária Lda.”, à restituição do seu direito de propriedade sobre 3/15 do prédio rústico descrito sob o n.º …/19970703 da Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António tal como o efectuou pela Ap. (…), de 22.02.2017, o que fez nos termos do disposto no art.º 146.º, art.º 141.º, n.º 2 e art.º 144.º, todos do C.I.R.E.;

2 – A autorização judicial para a venda daquele bem apreendido no âmbito do processo n.º 18711/16.7T8LSB – 1.ª Secção do Tribunal de Comércio de Lisboa não permitia o cancelamento do registo da acção supra indicada uma vez que àquele registo não se aplica o disposto no art.º 824.º, n.º 2, do Código Civil, pelo que o mesmo deveria ter sido mantido tal como judicialmente ordenado no despacho de conclusão de 13/11/2017 daqueles autos;

3 – A aquisição resultante da Ap. (…), de 13/12/2017 deveria ter sido por isso qualificada de provisória por natureza nos termos do disposto no artigo 92.º, n.º 2, alínea b), do Código do Registo Predial, ficando deste modo a aguardar a decisão final do apenso E do processo n.º 18711/16.7T8LSB pelo qual a recorrente peticionava a restituição / separação de seu direito real sobre 3/15 avos do prédio rústico em causa;

4 – A sentença recorrida viola frontalmente o disposto no art.º 141.º, n.º 2, art.º 146.º, art.º 159.º e art.º 160.º, todos do CIRE;

5- Deverá ser proferida douta sentença que cumulativamente com o exposto, ordene a rectificação da descrição n.º …/19970703 da Conservatória de Vila Real de Santo António e pela qual seja reposto em vigor o registo da acção constante da Ap. (…), de 2017/02/22 e, bem assim, seja qualificada como provisória por natureza nos termos do artigo 92.º, n.º 2, alínea b), do Código do Registo Predial, a aquisição constante da Ap. (…), de 2017/12/13 a favor de (…), fazendo-se assim Justiça.

O Ministério Público contra-alegou, concluindo no sentido da improcedência do recurso.

O recurso foi admitido.


Objecto do recurso


Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, a única questão a resolver consiste em saber se a venda antecipada de um prédio em processo de insolvência constitui fundamento para o cancelamento do registo de acção em que se pede a declaração de resolução do contrato de compra e venda do mesmo prédio ao insolvente, a condenação deste à respectiva restituição e o cancelamento do registo de transmissão.

Factualidade apurada


Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Pela Ap. (…), de 1989/03/13, foi registada a aquisição de 12/15 do prédio rústico sito na freguesia de (…), concelho de Vila Real de Santo António, inscrito na matriz sob o artigo (…), descrito na Conservatória de Registo Predial de Vila Real de Santo António sob o n.º …/19970703, a favor da sociedade “(…) – Sociedade Imobiliária, Lda.”.

2. Pela Ap. (…), de 2009/03/26, foi registada a aquisição de 3/15 do prédio identificado em 1 a favor de (…).

3. Pela Ap. (…), de 2015/05/20, foi registada a decisão judicial de transmissão, por venda, de 3/15 do prédio identificado em 1) a favor de “(…) – Sociedade Imobiliária, Lda.”, tendo como sujeito passivo (…).

4. Pela Ap. (…), de 2016/11/21, foi registada a declaração de insolvência de “(…) – Sociedade Imobiliária, Lda.”, em 2016/09/26.

5. Pela Ap. (…), de 2017/02/22, foi registada a acção proposta por (…) contra “(…) – Sociedade Imobiliária, Lda.”, onde foi formulado pedido de declaração de resolução do contrato de compra e venda aperfeiçoado com a sentença de execução especifica, bem como o antecedente contrato promessa, a condenação daquela sociedade a restituir a (…) 3/15 do prédio e o cancelamento do registo de transmissão.

6. Pela Ap. (…), de 2017/12/13, foi registada a aquisição do prédio rústico, sito na freguesia de (…), concelho de Vila Real de Santo António, inscrito na matriz sob o artigo (…), descrito na Conservatória de Registo Predial n.º …/19970703, a favor de (…), por compra em processo de insolvência.

7. Pela Ap. (…), de 2017/12/13, foi efectuado o cancelamento oficioso do registo da acção referente à Ap. (…), de 2017/02/22.

8. Por despacho proferido em 13.11.2017, no âmbito do processo de insolvência n.º 18711/16.7T8LSB-D, que corre termos no Juízo do Comércio de Lisboa (J5), Comarca de Lisboa, foi autorizada a venda do prédio identificado em 6 antes do trânsito em julgado da decisão a proferir na acção referida em 5, com depósito do valor de 3/15 do total do produto da venda daquele prédio até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no âmbito daquela acção.


Fundamentação


A situação sub judice resume-se da seguinte forma: Em data anterior àquela em que foi declarada insolvente, a sociedade “…” tornou-se a proprietária exclusiva do prédio em questão, por aquisição dos 3/15 de que a recorrente era titular; posteriormente à data do registo da declaração de insolvência da “…”, foi registada uma acção, proposta pela ora recorrente, em que esta pediu a resolução da compra e venda do prédio àquela sociedade, a condenação da mesma sociedade à restituição do prédio e o cancelamento do registo de transmissão; após esse registo, foi efectuada, no processo de insolvência, a venda antecipada do prédio; aquando do registo desta venda, o conservador do registo predial cancelou oficiosamente o registo da acção proposta pela recorrente; no mesmo despacho em que autorizou a venda antecipada do prédio, o tribunal ordenou o depósito do valor de 3/15 do produto dessa venda até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no âmbito da acção proposta pela recorrente.

Perante esta sequência de factos, desde já adiantamos que a recorrente carece de razão, padecendo a argumentação que desenvolve nas suas alegações de vícios que a conduziram à errada conclusão de que o registo da acção não devia ter sido cancelado pelo conservador.

O primeiro erro da recorrente é o de considerar que, no momento da apreensão do prédio, a transmissão, para a “…”, dos 3/15 do mesmo prédio de que havia sido titular, não se tinha operado. Do ponto 3 da matéria de facto provada resulta precisamente o contrário. No momento da apreensão, a “…” já era a proprietária exclusiva do prédio. Logo, a venda efectuada no processo de insolvência teve por objecto a totalidade do direito de propriedade sobre o mesmo prédio.

O segundo erro da recorrente é o de supor que a procedência da acção por si proposta teria por efeito ela ser reconhecida como titular de uma quota ideal de 3/15 sobre o prédio, quota essa que seria, consequentemente, separada dos bens apreendidos. Não é assim. Já vimos que, ao contrário daquilo que a recorrente sustenta, os 3/15 do direito de propriedade sobre o prédio foram efectivamente transmitidos para a “…”, que assim se tornou a titular exclusiva daquele direito, e que, posteriormente, o comprador no processo de insolvência adquiriu a totalidade do mesmo direito. Portanto, logo à partida, é de excluir a hipótese de ser reconhecido que a recorrente nunca deixou de ser titular de 3/15 do direito de propriedade sobre o prédio. Manifestamente, deixou de o ser. Quando muito, poderia equacionar-se a hipótese de a procedência da acção determinar o regresso, ainda que com efeito retroactivo, dos 3/15 do direito de propriedade sobre o prédio à esfera jurídica da recorrente. Porém, tal hipótese é excluída pelo facto de o prédio ter sido objecto de venda antecipada no processo de insolvência, como resulta do disposto nos artigos 160.º, n.º 1, al. b), e 172.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE). Esta última afirmação carece de mais detalhada justificação.

O n.º 1 do artigo 160.º do CIRE estabelece que, se estiver pendente acção de reivindicação, pedido de restituição ou de separação relativamente a bens apreendidos para a massa insolvente, não se procede, em princípio, à liquidação destes bens enquanto não houver decisão transitada em julgado. Isto, obviamente, com vista a salvaguardar a possibilidade de execução em espécie da sentença que julgue a acção procedente. Todavia, o mesmo preceito legal prevê excepções a esta regra, uma das quais é a venda antecipada do bem (al. b)). Foi o que aconteceu na situação sub judice, pois, no processo de insolvência, foi autorizada a venda do prédio antes do trânsito em julgado da decisão a proferir na acção proposta pela recorrente e essa venda ocorreu efectivamente. A tese da recorrente é, como vimos, a de que, apesar dessa venda, o êxito da acção por si proposta lhe garantirá a titularidade de 3/15 do direito de propriedade sobre o prédio, com a consequente redução do direito de propriedade exclusiva adquirido pelo comprador para uma mera quota ideal de 12/15. Daí – conclui a recorrente – que a quantia correspondente a 3/15 do valor da venda, cujo depósito foi ordenado no processo de insolvência, se destine a ser entregue ao comprador caso a referida acção proceda, a título de compensação pela perda dos 3/15 de que se viu despojado. Ora, isto não faz sentido, desde logo, pela própria natureza das coisas. Não é crível que o comprador, em processo de insolvência como em execução singular, mantenha interesse em adquirir uma mera quota ideal de um direito real que pensava ter adquirido em exclusivo, ainda que com uma redução proporcional do preço, atentos os problemas que a situação de contitularidade de direitos reais acarreta, desde logo no que concerne ao gozo da coisa. Por isso, só são concebíveis duas hipóteses: Ou a reversão da venda, ou a manutenção desta tal qual foi efectuada. A ponderação dos fundamentos da venda antecipada (artigo 158.º, n.º 2, do CIRE) exclui, logo à partida, a primeira hipótese. Por outro lado, o n.º 4 do artigo 172.º do CIRE reforça a ideia de que a venda deve ser, em qualquer caso, salvaguardada. Estabelece-se nesta norma que, se a acção para a verificação do direito à restituição ou separação de bens for proposta depois da liquidação e de ter sido lavrado o competente termo de protesto, é mantida em depósito e excluída dos pagamentos aos credores da massa insolvente ou da insolvência, enquanto persistirem os efeitos do protesto, quantia igual à do produto da venda, podendo este ser determinado ou, quando o não possa ser, à do valor constante do inventário. Aqui, está expressamente fora de questão a reversão da venda, pois a acção foi proposta após a liquidação do bem em causa, o que significa que, através de um mecanismo idêntico ao estabelecido no n.º 3 do artigo 824.º do Código Civil, o direito que vier a ser reconhecido a quem interpôs a acção para a verificação do direito à restituição ou separação de bens será realizado, não em espécie, mas através da entrega da quantia retida nos termos do citado n.º 4 do artigo 172.º do CIRE. O mesmo é dizer que esta quantia se destina a ser entregue, não ao comprador, já que a venda subsiste incólume, mas sim a quem viu reconhecido o direito à restituição ou separação de bens mas, em consequência da venda, apenas poderá ver esse direito realizado através da atribuição de equivalente pecuniário.

Sendo esta a solução legal para a hipótese de propositura da acção para a verificação do direito à restituição ou separação de bens que já se encontrem liquidados, não poderá deixar de se concluir, por igualdade de razão, que, na hipótese de a acção ser proposta antes da liquidação de um bem que, posteriormente, seja objecto de venda antecipada (em excepção à regra de não realização da venda em tal hipótese, recorde-se), a solução não poderá deixar de ser a mesma: manutenção da venda e transferência do direito do autor vitorioso para o produto desta. Logo, ao contrário do que a recorrente sustenta, o depósito de 3/15 do produto da venda do prédio até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no âmbito da acção por si proposta destina-se a compensar, não o comprador pela inexistente perda de 3/15 do direito de propriedade que adquiriu, mas a si própria por já não poder reaver essa quota ideal. O mesmo é dizer que, em consequência da venda antecipada do prédio, a recorrente perdeu, definitivamente, a possibilidade de reaver os 3/15 do direito de propriedade sobre o prédio de que foi titular[1].

Esta última asserção conduz-nos ao passo seguinte. Tendo, em consequência da venda antecipada do prédio, a pretensão da recorrente perdido definitivamente qualquer possibilidade de produzir efeitos reais, não há fundamento substantivo para a manutenção da inscrição da acção no registo predial. Daí que o cancelamento desse registo aquando da inscrição da venda no processo de insolvência tenha inteira justificação e que inexista fundamento para que esta última inscrição fosse provisória por natureza.

Chegamos à mesma conclusão analisando a situação sub judice sob uma óptica puramente registral. Porque afecta a livre disposição dos prédios que integram a massa insolvente, a declaração de insolvência está, a par da penhora, sujeita ao registo predial, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, al. n), do Código do Registo Predial (CRP). Um dos efeitos da inscrição da declaração de insolvência no registo predial é a de a venda de um prédio que integre a massa insolvente no processo de insolvência ficar a gozar da prioridade resultante dessa inscrição, por força do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e na parte final do n.º 4 do artigo 34.º do CRP, à semelhança do que acontece relativamente à venda executiva de um bem penhorado. Daí que, na situação sub judice, a venda efectuada no processo de insolvência goze de prioridade relativamente ao registo da acção proposta pela recorrente e se justifique o seu cancelamento. Pelas razões de natureza substantiva anteriormente expostas, o funcionamento da regra da prevalência não subverte a finalidade da acção de separação. Ao invés, são as próprias normas do CIRE acima referenciadas que conduzem à solução de esta acção ficar destituída de eficácia real ainda que seja julgada procedente.

Em conclusão, o recurso improcede, devendo confirmar-se a sentença recorrida.


Sumário


A venda antecipada de um prédio em processo de insolvência constitui fundamento para o cancelamento do registo de acção em que se pede a declaração de resolução do contrato de compra e venda do mesmo prédio ao insolvente, a condenação deste à respectiva restituição e o cancelamento do registo de transmissão.

Decisão


Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Notifique.

Évora, 20 de Dezembro de 2018

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

José Manuel Barata

Conceição Ferreira

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[1] Leia-se, sobre esta matéria, LUÍS CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume I, p. 537, anotações 3 e 4 ao artigo 160.º, e p. 585-586, anotações 6 a 9 ao artigo 172.º.