Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
556/12.5GALGS.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: FALSAS DECLARAÇÕES A AUTORIDADE PÚBLICA
CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
CRIME
Data do Acordão: 01/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Até à vigência das alterações ao Código Penal operadas pela Lei nº 19/2013, de 21/02, o condutor que se identificasse falsamente, fazendo com que a autoridade policial escrevesse, no aviso para apresentação de documentos, uma identificação falsa, com vista a esquivar-se a apresentar a prova da sua habilitação legal para conduzir, não cometia qualquer crime (nomeadamente crime de falsificação de documento, ou crime de falsidade de depoimento ou declaração).
II - Com a referida Lei nº 19/2013, a situação foi alterada, incorrendo tal condutor na prática de um crime de “falsas declarações” (artigo 348º-A do Código Penal).
Decisão Texto Integral:





I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, o arguido F M L R foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenado pela prática de:
-- Dois crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3-1, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão por cada um dos crimes; e
-- Um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1 al.ª a), do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, pena única de 3 anos e 3 meses de prisão efectiva.
#
Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
I. Na medida concreta das penas a aplicar ao arguido, deverão ter-se em consideração as exigências da prevenção geral positiva, e a culpa em concreto do agente, como espaço de resposta às necessidades da sua reintegração social.
II. Na sua concretização , deverão ter-se em atenção os fins das penas mencionados no art. 40º do C. Penal – protecção dos bens jurídicos protegidos e reintegração do agente na sociedade –, bem como os limites legais aplicáveis em função da sua culpa e das exigências de prevenção, sem esquecer todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra ele, tudo nos termos do art. 71º do C. Penal.
III. Face a todas as circunstancias descritas na sentença, o arguido considera que as penas parcelares aplicadas e depois no cúmulo jurídico das mesmas , foram excessivas.
IV. O tribunal, deveria ter dado preferência a uma pena não privativa da liberdade, já que esta realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição — protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade
V. Atentas as considerações expendidas, julga-se adequada a aplicação ao arguido das seguintes penas : 7 meses e 9 meses de prisão por cada um dos crimes de condução sem habilitação legal, p.p pelo artº 3º nº 1 e nº 2 do D.L. 2/98 de 3 de Janeiros e na pena parcelar de 7 meses, pelo crime doloso consumado de falsificação de documentos, p.p. pelo artº 256, nº 1 alinea a) do C.Penal.
VI. Os crimes acima referidos praticados pelo arguido ,encontram-se numa relação de concurso real efectivo, pelo que, nos termos do disposto no artigo 77º/1 do C:P., haverá lugar à aplicação de uma única pena, obtida através de um cúmulo jurídico.
VII. Entende-se assim como adequada, em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena unitária de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução ,com regime de prova.
VIII. Mesmo que assim não se entendesse , (suspender a pena na sua execução), deveria o tribunal , salvo melhor opinião, ter optado pela substituição da pena de prisão efectiva por trabalho a favor da comunidade, uma vez que entende o arguido que nunca deveria ter sido condenado em pena superior a dois anos.
Foram violados os artigos 40º, 50º,58, 75º, 76º, 77º, CP
Termos em que se invocando o Douto Suprimento do Venerando Tribunal , deverá o Douta decisão ser revogada e substituída por outra que tenha em consideração as questões que ora se suscitam
#
A Ex.ma Procuradora-Adjunta do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1 – O arguido não se conformando com a sentença que condenou , em cumulo jurídico, na pena única de 3 anos e 3 meses de prisão, veio interpor recurso da mesma alegando que a mesma é elevada e que deveria ser substituída ou suspensa na sua execução, ainda que com regime de prova.
2 - Contudo e conforme resulta da prova produzida e factualidade assente, que o recorrente não contesta, o mesmo agiu com dolo já conta com condenação anteriores por crimes de igual natureza, revelou personalidade avessa ao direito, indiferença pelas condenações anteriormente sofridas e falta de auto critica, sendo por isso, as exigências de prevenção especial e necessidade de punição elevadas.
3 – O que inviabilizou a elaboração de um juízo de prognose favorável e que possibilitasse quer a substituição da pena de prisão por outra não privativa da Liberdade, como a suspensão da pena de prisão que lhe foi aplicada.
4 - Neste sentido entendemos que não assiste razão ao recorrente, tendo a sentença recorrida feito uma boa apreciação da prova e aplicação do direito, não merecendo qualquer reparo.
5- Neste pressuposto, será de negar provimento ao recurso interposto.
#
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1p. No dia 21 de Dezembro de 2012, pelas 11 horas e 45 minutos, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de matrícula (…), entre a localidade de Bensafrim e Barão de São J, área desta comarca, quando foi interveniente em acidente de viação; conduzia, contudo, sem que fosse titular de carta de condução ou qualquer outro título válido que o habilitasse a conduzir veículos automóveis na via pública.
2p. Ao ser fiscalizado, naquela ocasião e lugar, o arguido forneceu a identidade do proprietário do veículo que conduzia, A F E D, e declarou querer apresentar, mais tarde, a carta de condução e demais documentos pessoais no Posto da Guarda Nacional Republicana de Lagos, pelo que foram preenchidos os documentos: aviso para apresentação de documentos e declaração/informação de acidente de viação com base nas informações prestadas pelo arguido e por ele assinadas.
3p. O agente fiscalizador do trânsito, porém, ao analisar o sistema da Guarda Nacional Republicana, constatou através das fotografias da carta de condução do dito A D, que a pessoa ali identificada não era a mesma que tinha fiscalizado no exercício da condução.
4p. Cerca das 16 horas e 47 minutos desse mesmo dia, o arguido conduzia, novamente, o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de matrícula (….), na rotunda da Salema, Estrada Nacional 125, área desta comarca, quando foi avistado pelo mesmo agente da Guarda Nacional Republicana e por ele fiscalizado, sendo que conduzia sem que fosse titular de carta de condução ou qualquer outro título válido que o habilitasse a conduzir veículos automóveis na via pública.
5p. O arguido foi já condenado nos seguintes processos: (….) da 1ª Secção do 1º Juízo de Beja, a 23 de Novembro de 1993, em prisão substituída por multa pelo crime de emissão de cheque sem cobertura; (…..) do 1º Juízo do Tribunal de Círculo de Portimão, a 8 de Fevereiro de 1995, em 3 anos de prisão suspensa pelos crimes de falsificação e burla; (…..) do 1º Juízo Criminal de Faro, a 25 de Março de 1998, em 14 meses de prisão pelo crime de falsificação; (…..) do 1º Juízo de Portimão, a 10 de Novembro de 1998, em 19 meses de prisão pelo crime de falsificação de documento; (…..) do 2º Juízo de Silves, a 30 de Novembro de 2011, em 22 meses de prisão suspensa pelos crimes de condução sem habilitação legal, condução em estado de embriaguez e falsas declarações; (…..) do 2º Juízo deste Tribunal, a 20 de Dezembro de 2012, em pena de multa pelo crime de condução sem habilitação legal; (……) deste 1º Juízo, a 20 de Março de 2013, em 7 meses de prisão suspensa pelo crime de condução sem habilitação legal.
6p. Ao ser identificado, o arguido sabia que os elementos sobre a sua identidade, nomeadamente o nome e a residência, que fornecera ao agente da autoridade eram falsos, por não serem os seus, mas os do dito A F E D, que é detentor de carta de condução, pretendendo o arguido eximir-se à responsabilidade criminal, por via de erro que criou e em que quis que o agente se mantivesse.
7p. O arguido conhecia a natureza e as características da viatura e do local onde conduzia, bem sabendo que não estava legalmente habilitado a conduzir o veículo, e não obstante decidiu fazê-lo, tendo agido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
#
Fundamentação da decisão de facto:
1 - A prova resultou das declarações do agente autuante, J B, que confirma todos os factos agora provados, e que fez constar do expediente da GNR junto aos autos; segundo afirma, aceitou num primeiro momento os elementos que o arguido lhe forneceu, mas a consulta da base de dados permitiu-lhe reconhecer que não se tratava da pessoa que estava a conduzir, e que no mesmo dia voltou a interceptar, desta feita já com conhecimento de causa, confirmando então, aliás com a colaboração do arguido, que este não possui qualquer título de condução.
2 - O certificado do registo criminal junto aos autos a folhas 101 confirma os antecedentes criminais.
3 - Os documentos de folhas 35 e 36 foram assinados pelo arguido com o nome de A F E D, embora sem usar este nome completo, mas neles assumindo a identidade daquele.
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
Que, quer as penas parcelares, quer a pena única, são exageradas e esta última deve ser suspensa na sua execução ou substituída pela de prestação de trabalho a favor da comunidade.
#
Vejamos:
Começaremos por relembrar que, com base na factualidade de o arguido ter dito ao OPC que naquele momento não tinha consigo qualquer documento de identificação seu, nem a carta de condução, mas apenas o certificado de matrícula da viatura que conduzia (que engloba a informação contida no livrete e no título de registo de propriedade num só documento), e tendo-se identificado como sendo a pessoa em nome da qual estava registada a propriedade da viatura naquele certificado de matrícula, o OPC preencheu com essa identificação o aviso para apresentação de documentos que está a fls. 35 e que o arguido assinou com o nome daquela pessoa, além de ter elaborada a declaração/informação sobre acidente de viação que está a fls. 36 e que o arguido também assinou com aquele nome – foi o mesmo condenado pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1 al.ª a), do Código Penal (diploma do qual serão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem), que pune quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo.
Ora bem.
A qualificação jurídica dos factos, ainda que tal questão não seja colocada no recurso, é de conhecimento oficioso, de acordo com a jurisprudência fixada pelo STJ através do Acórdão Uniformizador n.º 4/95, de 7-6-1995, publicado no DR., I Série-A, de 6-7-1995, da qual não se vê motivo para divergir.
Assim, a questão que agora nos preocupa é a da correcção daquela imputação.
Antigamente, condutas como a do arguido estavam previstas no art.º 22.º, do Decreto-lei n.º 33.725, de 21-6-1944, que estipulava o seguinte:
Aquele que declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções, identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, será punido com prisão até seis meses.
Porém, essa norma foi revogada pelo art.º 53.º da Lei 33/99, de 18-5, que regulamentou a identificação civil e a emissão do bilhete de identidade do cidadão nacional.
Mas será que a conduta do arguido – a qual, recorde-se, data de Dezembro de 2012 – é prevista pelo art.º 256.º, n.º 1 al.ª a)?
De acordo com a definição constante do art.º 255.º al.ª a), documento é a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.
Como salienta Helena Moniz, em "Comentário Conimbricense do Código Penal", tomo II, pág. 666, a noção de documento aqui apresentado veio delimitar de forma eficaz o campo da ilicitude; de acordo com esta noção, já não integra o tipo qualquer falsificação de uma declaração, mas apenas a falsificação de uma declaração idónea a provar um facto juridicamente relevante.
Ora a função do aviso para apresentação de documentos emitido na sequência de uma fiscalização policial por o condutor não trazer consigo a carta de condução e o BI ou o cartão de cidadão não é a de assegurar ou certificar, ela própria, a autoria do facto ilícito da condução sem habilitação legal, mas tão só a de que, no acto de fiscalização, o condutor não se fazia acompanhar daqueles documentos. Daí que o condutor que se identifica falsamente e faz com que a autoridade policial escreva no dito aviso uma identificação falsa, com vista a esquivar-se a apresentar a prova de uma habilitação que não tem, não comete crime algum de falsificação de documento.
Por outro lado, o segmento normativo da alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º do CP – fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante – também apenas pode incluir a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento, e não de quem declara factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem. Esta última acção, consistente apenas em declarar facto falso para que conste em documento, extravasa a tipicidade, que exige concomitantemente a feitura do documento.Daí que o arguido não tenha cometido o crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º (no mesmo sentido: acórdãos da Relação do Porto de 25-1-2006, Colectânea de Jurisprudência, 2006, I-202; e de 3-9-2007, Colectânea de Jurisprudência, 2007, IV-210).
Por outro lado, o arguido também não cometeu o crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. pelo art.º 359.º, n.º 2, que estabelece que na mesma pena (prisão até 3 anos ou pena de multa) incorrem o assistente e as partes civis relativamente a declarações que prestarem em processo penal, bem como o arguido relativamente a declarações sobre a sua identidade, uma vez que aquando da ocorrência o recorrente não tinha ainda o estatuto processual de arguido.
Assim se conclui que à data dos factos – Dezembro de 2012 – quem se identificasse com um nome falso perante o agente da autoridade, com o intuito de se furtar à fiscalização e condenação por conduzir um veículo automóvel sem a competente habilitação legal não cometia qualquer ilícito.
A situação só veio a mudar com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 19/2013, de 21-2, que reintroduziu o crime de falsas declarações:
1 - Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.
Termos em que se conclui ser o arguido de absolver quanto ao pretenso crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1 al.ª a), e pelo qual fora condenado na pena parcelar de 1 ano e 6 meses de prisão.

Sobra assim para apreciação se cada uma das duas demais penas parcelares de 1 ano e 4 meses de prisão por cada um dos dois crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3-1, são exageradas (uma vez que, tendo desaparecido a pena parcelar referente ao crime de falsificação de documento, o cúmulo jurídico já não pode necessariamente ser o mesmo que foi fixado pela 1.ª Instância) e se a pena única que do mesmo resultar deve ser suspensa na sua execução ou substituída pela de prestação de trabalho a favor da comunidade.
O tribunal "a quo" fundamentou assim a escolha e graduação das penas (da qual esta Relação também cita a referente ao pretenso crime de falsificação de documento a fim de o texto não ficar desconexo):
1 - O arguido agiu com dolo directo, porque quis efectivamente conduzir o veículo automóvel sem ter carta de condução, aliás duas vezes em ocasiões diferentes, e quis assinar nome e indicar residência de pessoa diferente.
2 - O grau de ilicitude é elevado dentro do contexto, dado que se trata de uma multiplicidade de factos, cuja gravidade sofre, necessariamente, os reflexos, não somente do passado criminal do arguido, mas igualmente do modo natural e indiferente como foram praticados.
3 - Na realidade, não fora a acessibilidade, no caso, a elementos de natureza informática, o dano causado teria sido total, excepto pelo excesso de à vontade do arguido, que no mesmo dia se apresentou a conduzir em condições de ser detectado, novamente, pelo mesmo agente.
4 - As exigências de prevenção especial são muito elevadas, visto que o arguido possui abundantes antecedentes criminais, designadamente por crimes idênticos ao deste processo, e a sua ausência não somente o impediu de mostrar arrependimento, confessando os factos, mas demonstrou, mais do que isso, uma indiferença já bem explícita na sua provada conduta.
5 - Por outras palavras, não é possível esperar que o arguido exerça uma acção de censura das suas condutas, o que deixa em aberto um quadro de grande pessimismo pelo que respeita a prevenção geral, dado o modo como se vêem desprotegidos os valores tutelados pelas normas incriminadoras.
6 - Os antecedentes criminais do arguido, aliás, são abundantes e mostram que estas mesmas reflexões subjazem a decisões anteriormente proferidas: a pena de multa ou a suspensão da execução da pena de prisão, ou mesmo a substituição da pena de prisão por trabalho a favor da comunidade, não podem, a este ponto, produzir outro efeito, senão o de que o arguido se sinta absolvido, ou algo semelhante; e é absolutamente necessário evitar este desfecho, cujas consequências serão, em última análise, danosas para o próprio arguido.
7 - Daqui decorre que se imporão ao arguido penas de prisão condizentes com as suas condutas, penas essas a cumular nos termos do artigo 77º do Código Penal.
8 - a - Nestas condições, escolher-se-á para o arguido, por cada um dos crimes de condução sem habilitação legal, a pena parcelar de um ano e quatro meses de prisão, e pelo crime de falsificação a pena parcelar de um ano e seis meses de prisão.
b - Procedendo ao cúmulo jurídico das penas parcelares, nos termos do artigo 77º do Código Penal, escolher-se-á para o arguido a pena única de três anos e três meses de prisão, que o arguido efectivamente deverá cumprir.

No tocante à escolha e graduação da pena que a um arguido há-de ser imposta, é a medida da sua culpa que condiciona decisivamente a pena concreta a aplicar-lhe.
Para além de ser fundamento, a culpa concreta é o máximo de condenação possível e nunca, em caso algum, as razões de prevenção poderão impor uma pena que ultrapasse essa culpa concreta do agente (Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, pág. 238 e ss.).
Do que se trata é de sancionar um delinquente concreto que, num determinado circunstancialismo, cometeu um facto jurídico-penalmente relevante, desvalioso, merecedor de censura penal.
Deve assumir-se a pena como sanção adequada, proporcionada aos factos e ao agente, e, procurando-se com ela dar satisfação aos fins de prevenção-ressocialização do agente, evitar-se que outros cometam infracções semelhantes.
Há que ponderar, na situação concreta, como elementos ou factores a reflectirem-se na culpa, a gravidade da ilicitude, a intensidade do dolo e, em suma, em todo o demais condicionalismo mencionado não só no corpo como nas respectivas alíneas do n.º 2 do art.º 71.º do Código Penal.
No tocante aos presentes autos, temos de nos nortear por este normativo e ponderar o grau de ilicitude dos factos, o passado criminal do arguido, com condenações em duas penas de prisão efectivas, uma de prisão substituída por multa, três de prisão de execução suspensa e uma de multa, a desfaçatez de ter praticado os dois crimes de condução sem habilitação legal a que se reportam os presentes autos no mesmo dia, com 5 horas de diferença entre um e outro.
Aliás que o arguido:
Foi condenado no processo (….), do 2º Juízo de Silves, por sentença de 30-11-2011, em 1 ano e 10 meses de prisão suspensa por idêntico período pelos crimes de condução sem habilitação legal, condução em estado de embriaguez e falsas declarações.
Mas menos de um mês depois, em 20-12-2011 cometeu novo crime de condução sem habilitação legal, pelo qual foi nesse mesmo dia julgado no processo (…..) do 2º Juízo deste Tribunal, e condenado em pena de multa.
E no dia seguinte, 21-12-2011, ou seja, no dia a seguir àquela condenação, cometeu os dois crimes de condução sem habilitação legal a que se reportam os presentes autos!
Atendendo ainda a que o arguido também foi condenado no processo (….) do 1º Juízo de Lagos, a 20-3-2013, em 7 meses de prisão suspensa por um outro crime de condução sem habilitação legal cometido em 19-3-2013 – e temos que no período de suspensão da execução da pena do processo (…..), o arguido cometeu, com os dois destes autos, quatro crimes de condução sem habilitação legal…
Pelo que, tudo visto e ponderado, numa moldura punitiva abstracta que é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, e sendo evidente que a pena de multa já não tem qualquer efeito no arguido, se tenham por justas e adequadas as penas parcelares que na 1.ª Instância foram fixadas para cada um desses crimes de condução sem habilitação legal: um ano e quatro meses de prisão. Em cúmulo jurídico, sopesando a globalidade dos factos e o percurso criminal do arguido, fixa-se a pena única em dois anos de prisão.
Pena única que o arguido aspira que seja suspensa na sua execução ou substituída pela de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Vamos ver.
O art. 50.º dispõe que:
O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Finalidades da punição que estão enumeradas no art.º 40.º, n.º 1, e que são: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Pressuposto material da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclui por um «prognóstico favorável» relativamente ao comportamento do delinquente; trata-se de um juízo para o qual concorrerão, necessariamente e em conjugação, a personalidade do arguido e as circunstâncias do facto, «prognóstico» que terá como ponto de partida, não a data da prática do crime, antes a do momento da decisão.
Como diz Figueiredo Dias, in “As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 334, «o que está aqui em causa, não é qualquer certeza, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, (pelo que) o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco – digamos, fundado e calculado – sobre a manutenção do agente em liberdade. Havendo, porém, razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada».
Ou, nas palavras de Jescheck, em Tratado, versão espanhola, II, 1152 a 1153, o tribunal deverá correr um risco prudente, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa. Pois, além do mais, é preciso de todo o ponto que se não degrade a eficácia preventiva geral do Direito Penal.
Ora no caso dos autos e como acima se constatou, se o facto de o arguido ter sido num dia condenado por condução sem habilitação legal, ainda que a sentença não tenha, claro, transitado logo em julgado, não o dissuadiu de no dia seguinte voltar a conduzir na mesma situação e de manhã e à tarde, como se nada fosse (e por que agora responde neste processo) – e é evidente que a suspensão da execução da pena única que agora lhe é aplicada não se adequa à situação.
Pelo que estamos de acordo com a posição do tribunal recorrido em não suspender a execução da pena.

Mas o arguido alvitra ainda a sua substituição pela de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Sem nos preocupar de voltar a repetir alguns raciocínios acabados de expender acerca da pretendida suspensão da execução da pena, diremos o seguinte:
O art.º 58.º, n.º 1, estabelece que:
Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Denominador comum à aplicabilidade de qualquer das penas substitutivas é, com excepção da de em regime de semidetenção (art.º 46.º), o de que realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O art.º 40.º, n.º 1, traça as finalidades das penas e das medidas de segurança, as quais visam a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. E o n.º 2 deste preceito contém um afloramento do princípio geral e fundamental de que o direito criminal é estruturado com base na culpa do agente e a explicitação de que a medida da culpa condiciona a própria medida da pena, sendo assim um limite inultrapassável desta.
Por sua vez, os art.º 70.º e 71.º respeitam à escolha e determinação da medida da pena.
Diga-se que o art.º 70.º não vincula o julgador a uma automática preferência pela pena não privativa da liberdade, uma vez que, logo por si e em si, comporta uma condicionante limitativa dessa preferência, traduzida na necessidade de verificação, para que tal opção se imponha e justifique, de que a escolha da pena não privativa da liberdade realize “de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”: se entender que as finalidades da punição não se atingem com esta pena, não tem o tribunal que optar, forçosamente, por ela.
A escolha da pena, nos termos do art.º 70.º, ou seja entre a pena de prisão e a alternativa ou de substituição, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial.
Quanto à função e ao papel a desempenhar por aquelas exigências preventivas, há que atribuir prevalência às considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão.
A prevenção geral deve surgir sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização.
Já a determinação do quantum ou medida da pena depende fundamentalmente da culpa e nada tem a ver com a escolha da pena quando há penas alternativas ou de substituição, como é o caso; a opção pela pena alternativa da prisão terá que ser feita sempre que através dela se possam realizar as finalidades da punição.
Determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências da reprovação e da prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta. Só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas ou não detentivas. Pelo que competirá, em última instância, aos tribunais a selecção rigorosa dos delinquentes que hão-de ser sujeitos a umas e outras. Selecção rigorosa e – repete-se – sempre fundamentada, não obstante o art.º 71.º (actual art.º 70.º) parecer sugerir esta fundamentação apenas nos casos em que a preferência do legislador se dirigir a penas não detentivas – (cf. Robalo Cordeiro, «Escolha e Medida da Pena», Jornadas de Direito Criminal, publicação do CEJ, pág. 237 e ss).
A aplicação das penas de substituição não detentivas está, em qualquer caso, subordinada à desnecessidade da execução da prisão para prevenir o cometimento de futuros crimes.
A Constituição da República Portuguesa em matéria de direitos, liberdades e garantias pessoais, impõe que a lei apenas restrinja aqueles valores nos casos expressamente previstos na própria Constituição e com a limitação de que as restrições terão de se circunscrever ao necessário para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos – art.º 18.º, n.º 2.
Tal significa que em matéria de privação da liberdade, mais concretamente de aplicação de pena de prisão, esta só é admissível quando se mostrar indispensável, isto é, quando o desiderato que visa prosseguir não puder ser obtido de outra forma menos gravosa (princípio da necessidade ou da exigibilidade), quando se revelar o meio adequado para alcançar os fins ou finalidades que a lei penal visa com a sua cominação (princípio da adequação ou da idoneidade) e quando se mostrar quantitativamente justa, ou seja, não se situe nem aquém nem além do que importa para obtenção do resultado devido (princípio da proporcionalidade ou da racionalidade).
Daqui que a lei substantiva penal em matéria de aplicação das penas estabeleça um critério geral de escolha e de substituição, segundo o qual o tribunal deve preferir à pena privativa da liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição – Ac. do STJ de 16-09-2008, in processo n.º 2383/08, acessível in www.dgsi.pt .
Como explica o Professor Figueiredo Dias: “desde que impostas ou aconselhadas à luz das exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias” (“Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Lisboa, 1993, p. 333).
Ora, no caso dos autos, são evidentemente relevantes as necessidades de prevenção especial de socialização. Sobre o ritmo a que o arguido foi cometendo conduções sem carta já acima falámos. Mas além desse ilícito, praticou ainda os de emissão de cheque sem provisão, falsificações de documento, burla e condução de veículo em estado de embriaguez. E das penas de substituição, já beneficiou uma vez da de prisão substituída por multa e três vezes da de suspensão da execução da pena de prisão e nenhuma delas conseguiu o desiderato de afastar o arguido do cometimento de outros crimes.
Se é certo que a socialização do arguido deve ser uma preocupação sempre presente na aplicação de qualquer que seja a pena, ela não é o objectivo primeiro nessa delicada tarefa, pois há limites inultrapassáveis que importa observar: a socialização não pode sobrelevar a prevenção.
Na verdade, como discorre Anabela Miranda Rodrigues (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, pág. 182), embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, [só] na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade.
As anteriores oportunidades que ao recorrente a justiça foi dando, não obstante já ter sido condenado duas outras vezes em prisão efectiva, foram por ele desaproveitadas, não o dissuadiram designadamente do cometimento do crime da natureza daquele por que se acha agora condenado, não criando nele a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes; não interiorizou, como devia, a consciência dos valores que vem colocando em crise com o seu comportamento, inviabilizando, assim, qualquer juízo de prognose positivo de que a aplicação da ambicionada prestação de trabalho a favor da comunidade possa realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da pena.
Pelo que não lhe será aplicada.
IV
Termos em que, sem conceder provimento ao recurso, se decide:
1.º
Como a qualificação jurídica dos factos, ainda que tal questão não seja colocada no recurso, é de conhecimento oficioso, de acordo com a jurisprudência fixada pelo STJ através do Acórdão Uniformizador n.º 4/95, de 7-6-1995, publicado no DR., I Série-A, de 6-7-1995, da qual não se vê motivo para divergir, declara-se que os factos provados não integram a prática pelo arguido do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1 al.ª a), do Código Penal, pelo qual fora condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão – e, em consequência, absolve-se o arguido desse crime.
2.º
Mantém-se as duas penas parcelares de um ano e quatro meses de prisão em que a 1.ª Instância condenou o arguido por cada um dos dois crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3-1, e aplica-se a pena única de dois anos de prisão efectiva.
3.º
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em cinco UC’s (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).
#
Évora, 20-1-2015
(elaborado e revisto pelo relator,
que escreve com a ortografia antiga)

João Martinho de Sousa Cardoso

Ana Maria Barata de Brito