Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4318/18.8T8STB.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
ERRO-VÍCIO
COISA DEFEITUOSA
ERRO SOBRE O OBJECTO DO NEGÓCIO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONSUMIDOR
CULPA
BOA-FÉ
DIREITO A REPARAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CUMPRIMENTO DO CONTRATO
DEVER DE PRESTAR
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - As nulidades da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.
II - Há erro sobre as qualidades do objeto quando foi a falsa representação acerca de certas propriedades da coisa que levou o agente a negociar; há erro sobre o objeto do contrato quando foi a falsa representação acerca da identidade da coisa que levou a pessoa a contratar.
III - Haverá venda de coisa defeituosa se o vendedor entrega ao comprador a coisa devida, mas a coisa sofre de qualquer dos vícios catalogados no artigo 913º do Código Civil: vício que desvalorize a coisa; vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
IV - Estando em causa um contrato de compra e venda celebrado entre os recorridos e o recorrente Banco, sociedade comercial, são aplicáveis a este contrato, para além das regras gerais previstas no Código Civil, a Lei n.º 24/96, de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor) e o regime previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08.04, na redação que lhe foi dada pelo D/L n.º 84/2008, de 21.05, o qual transpôs para o ordenamento jurídico interno a Diretiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio.
V - Se o bem de consumo entregue não for conforme ao contrato, ao consumidor são reconhecidos os direitos previstos no artigo 4º do Decreto-Lei n.º 67/2003, independentemente de culpa do vendedor no cumprimento inexato da obrigação de entregar o bem devido, conforme o contrato. São eles: o direito de reparação, sem encargos para o comprador, ou o direito de substituição, o direito à redução adequada do preço e o direito à resolução do contrato.
VI - Para além desses direitos, assiste ainda ao comprador-consumidor o direito a indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens defeituosos, nos termos do artigo 12º, nº 1, da Lei nº 24/96.
VII – Os deveres resultantes acessoriamente do próprio contrato, em paralelo com a obrigação principal e destinados a assegurar a perfeita execução desta, a ponto de a sua violação poder gerar uma situação de incumprimento, implicam a adoção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exato da prestação, com destaque para o dever de cooperação, sem o qual muitas vezes a utilidade final do contrato não é alcançada.
VIII - Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma atuação de boa-fé (art. 762º, nº, 2, do CC) entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização (sumário do relator).
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
A… e J…, instauraram a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra o Banco …, SA. e V… - Mediação Imobiliária, Unipessoal, Lda., todos com os sinais dos autos, pedindo que, na sua procedência:
a) seja o réu Banco condenado a pagar aos autores a quantia de € 50.000,00 para ressarcimento dos danos em que estes incorreram, fruto da sua atuação;
b) seja a 2ª ré condenada a pagar aos autores a quantia de € 1.963,40 para ressarcimento dos danos em que estes incorreram, fruto da sua atuação;
c) sejam ambos os réus condenados a pagar aos autores, solidariamente, a quantia de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais;
d) sejam os réus condenadas a pagar aos autores a quantia devida a título de juros de mora sobre os montantes indicados nas alíneas antecedentes, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
e) sejam ambos os réus condenados a pagar aos autores os danos futuros em que estes vierem a incorrer como consequência da sua conduta, a liquidar em execução de sentença.
Alegaram, em síntese, ter celebrado com o réu Banco um contrato de compra e venda de um prédio urbano, sito na Quinta do Anjo, Palmela, que o tinha à venda através da agência de mediação imobiliária da 2ª ré, sendo que o referido prédio tinha áreas de construção que não se encontravam licenciadas, tendo as rés omitido a falta de licenciamento apesar do respetivo conhecimento, o que causou aos autores os danos patrimoniais e não patrimoniais que descrevem na petição inicial e dos quais se querem ver ressarcidos.
Contestou apenas o réu Banco, contrapondo que adquiriu o prédio em causa no âmbito de uma ação executiva, e que só em 5 Maio de 2016 teve conhecimento do teor do alvará de licença de utilização, sendo falso que os autores desconhecessem as divergências de áreas, o que era conhecido de todos, tendo o Banco assumido os custos resultantes da regularização dessa divergência com vista a efetivação do registo definitivo, desconhecendo ainda que as construções não se encontravam licenciadas e que estavam esgotados os limites da área de construção.
Por último, refere que não responde pelas desconformidades entre a realidade física do prédio e o que consta do registo, da matriz ou quaisquer outros registos públicos, atento o teor da cláusula 2ª, nº 2, do contrato promessa de compra e venda celebrado com os autores, concluindo pela improcedência da ação.
Foi realizada a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Os autores e a 2.ª ré vieram transigir sobre o objeto da causa, sendo a transação homologada por sentença transitada em julgado.
Os autores apresentaram articulado superveniente dizendo que o D…, instituição de crédito para a qual pretendiam transferir o empréstimo veio, entretanto, cancelar a operação de transferência do crédito devido às alterações que o prédio apresenta, o que causa prejuízo aos autores por se manterem apenas a liquidar juros de mora, o que evidencia ainda que o Réu de acordo com os documentos existentes, não podia deixar de ter conhecimento das construções sem licenciamento.
O réu Banco respondeu à matéria do articulado superveniente, afirmando não terem sido alegados factos novos que devam ser apreciados pelo Tribunal, mas quanto muito tendentes a consubstanciar meios de prova, os quais, por serem extemporâneos, não deviam ser admitidos.
Foi proferido despacho a considerar que os factos invocados naquele articulado tinham interesse sobre a existência da relação controvertida e subsumirem-se aos temas da prova enunciados nos pontos 1 e 2.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento tendo sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, julgo a acção procedente, por provada, e em consequência decide-se:
a) Condenar o Réu Banco … a pagar aos Autores a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos desde esta decisão até integral pagamento.
b) Condenar o Réu Banco … a pagar aos Autores a quantia a pagar aos Autores o que se vier a apurar até ao montante de €50.000,00 (cinquenta mil euros) em ulterior incidente de liquidação no que respeita à desvalorização do prédio em consequência das construções ilegais.
c) Condenar o Réu Banco … a pagar aos Autores a quantia que se vier a apurar em ulterior incidente de liquidação correspondente a todas as despesas relativas a obras de adaptação, correcção, demolição, projectos e despesas administrativas que se vierem a revelar necessários com vista ao licenciamento das áreas ilegais.»
Inconformado, o réu Banco apelou desta decisão, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que se transcrevem:
«I. Em primeiro lugar, a Recorrente não se conforma com a decisão pois que padece, inelutavelmente, de nulidade por falta de fundamentação, nos termos da al. b) do art. 615.º do C.P.Civ..
II. O Tribunal tem o dever de motivar as decisões, conforme resulta dos arts. 607.º e 154.º do C.P.Civ, e ainda pelo comando constitucional do dever de fundamentação, definido no art. 20.º da C.R.P..
III. Ora, na sentença foi dado como provado que o Banco Réu “sabia ou devia saber que existiam construções que não estavam enquadradas na autorização de utilização do prédio”, não fazendo alusão aos meios de prova que sustentam a sua decisão mas a simples alusão a que, atendendo à estrutura do Banco, com vários tipo de apoio, contratual e jurídico, não é “crível” não tivesse notado que as divergências de áreas obrigavam ao licenciamento e obrigavam a subsequente harmonização. Sem mais.
IV. A fundamentação da decisão deve, pois, permitir o exercício esclarecido do direito ao recurso e assegurar a transparência e a reflexão decisória convencendo e não apenas impondo.
V. No caso em apreço, nada disto sucede, sendo que fica a convicção que a condenação da Recorrente se baseia numa percepção, num simples considerando… e juízo de valor do Tribunal que não está minimamente fundamentado (tanto mais que a prova produzida levaria, exactamente, em sentido inverso, como veremos).
VI. E assim, porque o Tribunal a quo não indica, de forma alguma, a motivação, pelo que a sentença enferma de nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º1, b) e, como tal, não pode manter-se.
VII. Sem prescindir, versa o presente recurso sobre decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para os efeitos do art. 640.º do C.P.Civ. e também de Direito, já que na apreciação jurídica da causa, a sentença padece erros notórios e tendenciosos.
VIII. A questão que cumpre decidir é a de saber se houve cumprimento defeituoso da prestação e que se prende com o conhecimento ou não, por banda da Recorrente, da existência de obras não licenciadas e de que estavam esgotados os limites da área de construção do imóvel vendido aos Autores, sendo certo que, como verificarão V. Ex.as, a Recorrente cumpriu as obrigações decorrentes do contrato.
IX. Desde logo, é preciso distinguir a existência de documentação do imóvel que indica uma divergência de áreas entre a Caderneta Predial Urbana e a Certidão Predial, e o conhecimento do Banco de que existiam edificações não licenciadas, sendo certo que é este o ponto, ou melhor, o facto, que determina o desfecho da acção.
X. Desde logo, a M.ma Juiz desconsiderou, quanto ao ponto 11 dos factos provados, as próprias declarações de parte, prestadas em Audiência de Julgamento, afirmando que os AA “desconheciam quaisquer desconformidades entre essa realidade física e o que constava no registo predial, na matriz predial ou em quaisquer outros registos públicos relativos ao mesmo”.
XI. Não só a Autora, ouvida na primeira sessão de julgamento no dia 19.09.2019, pelas 09:28:09 (Início de Gravação) às 10:36:12 (Fim Gravação), afirmou que tiveram acesso, antes da celebração do contrato de promessa, à documentação do imóvel, como as testemunhas dos AA., C…, que prestou depoimento na primeira sessão de julgamento no dia 19.09.2019, pelas 10:36:13 (Início de Gravação) às 11:20:52 (Fim Gravação), refere aos min. 00:29:00 que perante a divergência de áreas questionou o Banco e que este respondeu que documentação está harmonizada, sendo possível escriturar, tendo dado essa informação imediatamente aos Autores.
XII. Na verdade, os Autores sabiam, conforme consta da Cl. 2.ª do contrato de promessa e compra e venda, o estado físico e situação jurídica e administrativa do imóvel.
XIII. Tendo em conta as dúvidas levantadas pelo Tribunal sobre o alcance desta cláusula, pela testemunha A…, que prestou depoimento na sessão de dia 26.09.2019, CD – Minuto 00:00:01 a 00:28:49, foi esclarecido que esta “é uma cláusula genérica em todos os contratos que nós utilizamos, até porque eu parto do princípio, as pessoas recebem a documentação atualizada do imóvel, portanto, têm que declarar que conhecem aquilo que estão a comprar, em termos jurídicos e administrativos, portanto, receberam a CPU, receberam a CRP, receberam a licença de utilização e o certificado energético e foram ao local ver o imóvel. Portanto, o banco não vende imóveis sem que as pessoas se dirijam também ao local e conheçam aquilo que estão a comprar. Portanto, para não haver dúvidas de qual é que é o objeto do contrato, é por isso que nós mandamos a documentação atualizada.” - Min. 00:04:30 a 00:05:35
XIV. Assim, a divergência era conhecida por todas as partes, e sempre foi referido que tal facto não obstava à realização do contrato de compra e venda, razão pela qual não pode o facto 11 manter-se.
XV. No que respeita ao facto 22, isto é, “Quer Réu Banco … quer a agência de mediação imobiliária jamais comunicaram aos Autores que o problema com as divergências de áreas eram, de facto, construções nele existente não licenciadas”, importa, desde logo reter que as Rés não podiam comunicar aquilo que não sabiam.
XVI. Já quanto ao facto 29, ou seja, “Aquando da outorga dos contratos de compra e venda o Réu Banco … sabia ou devia saber que existiam construções que não estavam enquadradas na autorização de utilização do prédio”, o Tribunal faz claramente uma apreciação tendenciosa, pois só assim se compreende a redacção deste ponto que em nada é corroborado pelo depoimento das testemunhas.
XVII. A testemunha J…, que prestou depoimento no dia 19.09.2019, pelas 13:58:15 (Início de Gravação) às 14:39:37 (Fim Gravação), questionado ao min.
00:11:56 sobre a discrepância de áreas, afirma desconhecer a situação, sendo que chega a referir que a própria garantia do Banco estava em causa, como veremos adiante.
XVIII. Igualmente, a testemunha I…, que foi ouvida na Sessão de 26.09.2019 - CD – Minuto 00:00:01 a 00:16:46, Início da Gravação: 10:13:45 e fim de gravção 10:30:32 diz que “o banco tem conhecimento dessa divergência de áreas desde o início efetivamente. Mas em termos de impedimento para a escritura da casa ser feita tínhamos parecer que não haveria qualquer problema porque o que conta ali é haver harmonia na documentação, nomeadamente entre a certidão da conservatória e a caderneta das finanças, na área total e essa esteve sempre ok.” – min. 00:09:40.
XIX. Baseada em toda a documentação, a testemunha igualmente refere que o imóvel não parecia de irregularidades que não permitissem a realização do negócio, Mais referindo que estas divergências ocorrem com alguma frequência descrevendo que “muitas vezes é erros de simpatia ou erros de dígito ou da conservatória… regra geral nem é da conservatória, regra geral é mais do serviço de finanças, e portanto muitas vezes nós vamos analisar até a documentação para trás e vemos que a documentação… a documentação mais antiga, as cadernetas mais antigas até estão a referir em sintonia com a certidão da conservatória e vemos que muitas vezes foi ali na junção de freguesias, na alteração da caderneta por algum motivo que houve ali, e analisando todo o conjunto da documentação mais uma vez não achávamos que houvesse ali problema.”
XX. Também a testemunha P…, refere, aos min. 00:10:00 que “Havia uma divergência na área coberta e descoberta mas que são situações que não são impeditivas de serem escrituráveis e que, depois, na área da contratação elas são devidamente regularizadas, até porque nós temos a nossa área do crédito que depois vai validar toda essa documentação e vai ou totalmente impedir ou portanto, apontar e vai articular com a sucursal e com a nossa área da contratação, a regularização, se for mesmo obrigatória, porque há uma percentagem, de… e podia ter sido mau registo e depois então eles tratam dessas regularizações. Ela havia uma diferença na área, mas pode ser um telheiro, pode ser várias coisas que às vezes os clientes fazem e que depois mais tarde o banco recebeu o imóvel em adjudicação judicial, nem sequer também o foi conhecer e, portanto, nem tinha a perceção dessa, do que é que seria essa divergência.” Mais acrescenta que, se houver identificação de áreas não registadas, o imóvel não passa para a venda, por não ser escriturável – min. 00:16:
XXI. Já a A… confirma, aos min. 00:15:12 confirma que a Recorrente apenas teve conhecimento de um problema com o licenciamento após a realização da escritura.
XXII. De salientar que, como refere a testemunha J… aos min. 00:11:56, disse que inexistia qualquer indício que não se podia avançar com a venda, e com o empréstimo, já que simultaneamente, a Recorrente, no caso, ocupa a posição de vendedor mas também concede o mútuo com hipoteca, servindo o imóvel de garantia.
XXIII. Salienta a testemunha, quanto à garantia hipotecária, “Se houvesse algum risco de essa garantia não poder ser dada ao banco, então o banco ou não vendia, ou tinha que fazer alguma alteração…”.
XXIV. Não tem qualquer sentido afirmar-se que o Banco tinha conhecimento de que existiam edificações não legalizadas, vendendo e concedendo crédito para a compra desse imóvel, bem sabendo que era a sua própria garantia que estava em risco! Sendo que este facto foi totalmente desconsiderado pelo Tribunal a quo.
XXV. Por outro lado, sustenta o Tribunal que “a área de contratação do crédito detectado que “a licença não permite a devida correspondência com a restante documentação legal” - documento de fls.29v-, ademais o perito avaliador constatou que no local existia uma construção de garagem, não podia deixar de munir-se de toda a documentação necessária, nomeadamente os projectos de arquitectura e eventuais telas finais certificadas pela Camara Municipal de Palmela para apurar em concreto a situação. Ou seja, a Ré sabia ou devia saber que o objecto da venda não corresponde à realidade. ”
XXVI. Ora, o documento de fls.29v- foi incorrectamente interpretado pelo Tribunal a quo. Na verdade, ali se diz: (…)“3.Escritura de compra e venda anterior para substituição da Licença de Utilização, dado a Licença não permitir efetuar a devida correspondência com a restante documentação legal. Em alternativa, poderá ser enviada certidão emitida pela Câmara onde refira que para o imóvel (com a descrição e artigo atual do mesmo) foi emitida a licença n.º …; A licença enviada refere lote 17 e o lote d imóvel é Lote 18” – sublinhado nosso.
XXVII. Ou seja, a licença enviada não respeitava ao imóvel em causa, e apenas isso.
XXVIII. Ao longo dos depoimentos transcritos (doc. n.º 1), podemos dizer com toda a clareza que as testemunhas afirmam peremptoriamente que o Banco (e todas as partes) desconheciam a existência de obras ilegais, sendo certo que, e com o devido respeito, da sua leitura resulta a parcialidade das diversas intervenções da M.ma Juiz no sentido de que essas divergências se traduziam necessariamente no conhecimento das edificações…
XXIX. Acresce que, de certa forma, o ponto 29 dos factos provados colide com a al. a) dos factos não provados, isto é, que a Recorrente sabia que as construções eram insusceptíveis de legalização.
XXX. Além do mais, a expressão “sabia ou devia saber” representa um verdadeiro juízo de valor, que, no caso, se apresenta como determinante do sentido a dar à solução do litígio. Ora, tendo em consideração que o Tribunal a quo (mal ou bem, veremos) insere a questão jurídica no regime da venda defeituosa, a solução depende, inexoravelmente, do que, conclusivamente, for apurado quanto à verificação, ou não, do conhecimento das edificações não licenciadas.
XXXI. E assim, atenta a prova produzida, há que remover o ponto 22 já que a Recorrente não podia dar a conhecer aquilo que não sabia, ou, pelo menos, retirar da redacção do facto a expressão “jamais” uma vez que esta indicia o conhecimento prévio do Banco de que existiam construções no imóvel que não estavam licenciadas, o que, tendo em conta o que supra se deixou expresso, minimamente corresponde à verdade, pois o Banco não sabia nem devia saber da existência dessas edificações não licenciadas.
XXXII. Consequentemente, deverá o ponto 29 ser dado como não provado, e por isso, alterado no sentido inverso, ou seja, o Banco não sabia da existência de construções que não estavam enquadradas na autorização de utilização do prédio.
XXXIII. Por outro lado, e no que à aplicação do Direito concerne, o Tribunal a quo não teve o necessário distanciamento, deixando-se influenciar pela tese dos Autores.
XXXIV. O Tribunal enquadra a questão de direito no regime de venda defeituosa, partindo do princípio que a Recorrente conhecia a existência de obras que necessitavam de licenciamento. E ainda acrescenta que a Recorrente se exonerou das suas responsabilidades, imputando as desconformidades do imóvel aos AA., não devendo esquecer-se que nas negociações e no cumprimento dos contratos devem as partes conformar a sua actuação com o princípio da boa fé.
XXXV. A Recorrente desconhecia por absoluto que as construções no logradouro não se encontram licenciadas e muito menos, que estavam esgotados os limites da área de construção, pois, com a excepção da divergência de área, toda a documentação do imóvel, nomeadamente, a licença de utilização, estavam em conformidade com imóvel adquirido por si, em sede de execução.
XXXVI. Como supra se referiu, as partes sabiam da divergência de áreas, divergência essa que não impediu a celebração do contrato de promessa nem a subsequente escritura de compra e venda.
XXXVII. Na verdade, são os próprios AA que reconhecem que, apesar de tudo, mantinham o propósito de adquirir o imóvel, no estado em que se encontrava, isto é, uma moradia de tipologia T4, com garagem, inexistindo qualquer nexo de causalidade entre a conduta e os danos patrimoniais e não-patrimoniais.
XXXVIII. Não só assinaram o contrato de promessa de compra e venda como o contrato prometido, outorgaram os respectivos textos e devem conformar-se com a sua posição jurídica, procurando compor os seus interesses com obediência ao princípio da boa fé contratual.
XXXIX. Por outro lado, a Recorrente não omitiu aos Autores qualquer informação relevante e que fosse do seu conhecimento, tendo actuado de boa-fé e no estrito respeito pelos deveres de lealdade e informação na fase pré-negocial e negocial.
XL. Assim, a Recorrente cumpriu o estipulado nos contratos de promessa de compra e venda e contrato de compra e venda, nas precisas condições celebradas.
XLI. Por outro lado, os Autores assinaram o contrato ora posto em crise de livre e espontânea vontade, com pleno conhecimento do alcance das suas cláusulas, não havendo qualquer desajuste da coisa ao uso normal ou ao definido contratualmente.
XLII. Pelo que inexiste qualquer comportamento imputável ao devedor capaz de fazer desencadear o cumprimento defeituoso: o incumprimento da obrigação de entrega da coisa conforme com a vontade razoável do comprador expressa no contrato.
XLIII. Ainda que se aceitasse que na venda de coisa defeituosa a culpa do devedor possa ser presumida do vendedor, a verdade é que a divergência de áreas não era impeditiva da realização da escritura tendo a Recorrente provado que desconhecia a existência de obras não licenciadas.
XLIV. Tal qual foi considerado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão proferido no processo n.º 1643/10.0TBCTB.C1, de 26.11.2013, a função primacial do registo predial é publicitar as situações jurídicas reais, mas o seu efeito não é, em regra, atributivo de direitos reais; o que quer dizer que em caso de divergência entre a ordem substantiva e a ordem registal é a primeira que prevalece e que significa que a situação substantiva do prédio não é alterada se a descrição tiver uma área maior (ou menor) que a real (uma vez que a descrição predial não é um facto aquisitivo com eficácia real).
XLV. Ora, se – para o que nos interessa - a ordem substantiva prevalece sobre o registo e se os Autores bem sabiam da desconformidade, temos dificuldades em perceber como é que o Tribunal, alterando a ordem natural das coisas, vem dar prevalência ao registo, condenando o Banco em consequência.
XLVI. Por fim, entende a Recorrente que o caso em apreço não se insere no regime da compra e venda de coisa defeituosa, antes sim, no erro.
XLVII. Alegam os Autores quanto ao imóvel que pretendiam adquirir que pretendiam, ab initio, alterar o imóvel existente, “de acordo com o projecto de arquictetura que idealizaram”. Ora, se assim era tinham a faculdade de solicitar um pedido de informação prévia à competente Câmara Municipal, nos termos do n.º 1 do artigo 14.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação - DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro.
XLVIII. Podendo, enquanto interessados pedir, a título prévio, informação acerca da viabilidade de realizar determinada operação urbanística ou conjunto de operações urbanísticas directamente relacionadas, assim como acerca dos condicionamentos legais e regulamentares aplicáveis à pretensão, relativos a infra-estruturas, servidões administrativas e restrições de utilidade pública, índices urbanísticos, cérceas, afastamentos e demais condicionantes aplicáveis.
XLIX. Ora, os Autores não tentaram saber da possibilidade de concretizar as obras que idealizaram.
L. Como se referiu em sede de contestação, trata-se de uma situação de erro, como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.11.2010, proferido no Processo n.º 1998/08.6TBAVR.C1, “Se as qualidades da coisa vendida fazem parte integrante do conteúdo negocial, existe inadimplemento ou cumprimento defeituoso do contrato, pelo que o regime da venda de coisas defeituosas constitui uma hipótese de incumprimento ou cumprimento defeituoso; Se determinadas qualidades da coisa vendida, muito embora tenham motivado o comprador a adquiri-la, não entraram no conteúdo do contrato, o problema é de erro (sobre a base negocial) não de incumprimento”.
LI. Ora, tendo em consideração as declarações negociais e tendo os AA. percebido qual o seu alcance, não estão verificados os seus pressupostos, sendo por demais evidente que à data da celebração do Contrato de Promessa de Compra e Venda e do posterior Contrato de Compra e Venda, a sua vontade não se encontrava viciada.
LII. No que aos danos morais diz respeito, nos termos do disposto nos arts. 483.º e 496.º, n.º 1 do C.Civ. - só são ressarcíveis se verificados os pressupostos da responsabilidade civil e desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito.
LIII. Entendeu o Tribunal a quo, ao arrepio de tudo o quanto ficou provado que os Autores foram confrontados com uma situação com a qual não estavam a contar ! Situação essa que colocou em causa o seu projecto de vida e importunou de forma relevante o seu estado físico e psíquico causando abalo, incómodo, transtorno e frustração.
LIV. Ora, tendo em conta que em declarações de parte, a A. reconhece que antes do contrato de promessa sabia da divergência de áreas, que nunca procurou saber, junto de qualquer entidade a razão dessa divergência, foram informados de tudo e foi-lhes entregue toda a documentação que dava conhecimento da situação jurídica e administrativa do imóvel, bem sabendo os AA., porque o visitaram, da condição física do mesmo, no entendimento da Recorrente, não estão preenchidos os pressupostos previstos na lei e que justificariam a atribuição de uma indemnização.
LV. A sentença recorrida porque não aplicou correctamente o direito aos factos dados como provados, violou o disposto nos arts. 615.º, b), do C.P.Civ. 913.º e 914.º do C.Civ. 405.º, arts. 483.º e 496.º, n.º 1 do C.Civ. todos do C.Civ. e, de igual forma, violou o n.º 2 do art. 9.º do mesmo diploma, já que as exigências interpretativas plasmadas na fundamentação não têm o mínimo de correspondência nas normas putativamente violadas.»

Os autores contra-alegaram, defendendo a manutenção do julgado.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questões essenciais a decidir, atenta a sua precedência lógica, consubstanciam-se em saber:
- se é nula a sentença recorrida;
- se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto;
- se a sentença enferma de erro de julgamento, por a situação em apreço ser um caso de erro vício e não de venda de coisa defeituosa.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1.ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1 - A V…, Mediação Imobiliária, Unipessoal Lda.”, é uma sociedade comercial que se dedica à promoção e mediação imobiliárias, e que se apresenta ao público e exerce a respetiva atividade comercial sob a denominação “Comprar Casa”.
2 - No mês de Agosto de 2016, os Autores dirigiram-se à loja com a designação “Comprar Casa” sita em Palmela, onde, entre outros, lhe foi mostrado o anúncio de venda de uma moradia com as características de localização, área, tipologia, e aparência por eles pretendida, pelo preço de €199.000,00, que o Banco … tinha colocado à venda.
3 - Os Autores comunicaram, então, o seu interesse por aquela moradia à mediadora que se encontrava no local, C…, tendo-lhes esta última descrito a mesma, indicado o anúncio da moradia que se encontrava publicitada na página que dispõe na Internet com o endereço https://www.comprarcasa.pt/” o qual incluía 5 (cinco) fotografias da moradia, juntas a fls. 21 a 22 dos autos, e a menção de que se tratava de uma moradia de tipologia T4, com garagem, tendo agendado com os Autores uma visita à mesma.
4 -Os Autores visitaram a moradia com o mediador imobiliário J… e, dado que o prédio reunia as características constantes do anúncio e respetivas fotografias, confirmaram estar interessados na sua compra.
5 – Aquando das visitas ao prédio, acompanhados pelo J…, os Autores constataram que o mesmo era composto por uma moradia, logradouro, garagem edificada no logradouro, e telheiros adjacentes à fachada traseira da zona de habitação.
6 - Nessas visitas o mediador J… nunca referiu que havia qualquer problema relativamente ao prédio, nunca disse que ali existiam construções que não estavam legalizadas, tendo ainda assegurado que o mesmo se encontrava em bom estado de conservação.
7 - Os Autores necessitavam de recorrer a empréstimo bancário para aquisição do Imóvel em causa e o Banco … oferecia ainda condições especiais e vantajosas de financiamento.
8 - Com vista à concessão do empréstimo bancário para a aquisição do referido imóvel, os Autores deram início, ainda em meados do mês de Agosto de 2016, aos procedimentos necessários junto do Banco ….
9 - Entretanto, por dia 19 de Setembro de 2016, o Réu Banco, na qualidade de promitente vendedor e primeira contratante, e os Autores, na qualidade de promitentes compradores e segundo outorgantes, celebraram um acordo escrito junto a fls. 22v 26 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual consta além do mais, o seguinte:
“Contrato Promessa de compra e venda
Aos 19 dias de Setembro de dois mil e dezasseis, entre
Primeiro Contratante e Promitente Vendedor
e
Segundos Contratante e Promitente Comprador
(….) Considerando que:
Primeiro- O Primeiro Contratante é atual dono e legitimo proprietário do imóvel adiante melhor identificado na cláusula primeira do presente contrato;
Segundo - O Segundo Contratante conhece e aceita, plena e integralmente, a situação física, jurídica e administrativa do referido imóvel;
Terceiro - A inalterabilidade do preço fixado constitui condição essencial do presente contrato, renunciando o Segundo Contratante a toda e qualquer faculdade de revisão ou modificação do preço, bem como à faculdade de dedução ou compensação de quaisquer despesas ou indemnizações, seja a que título for, nomeadamente por quaisquer despesas que tenha, ou venha a ter, que efetuar no imóvel para o conformar ao fim a que se destina, considerando que o mesmo tem cabal conhecimento da situação física, jurídica e administrativa do imóvel objeto do presente contrato-promessa de compra e venda sem que tal obste à sua vontade de o adquirir na exata situação em que o imóvel se encontra pelo preço aqui acordado;
Cláusula Primeira
O Primeiro Contratante é dono e legítimo proprietário do seguinte imóvel: Prédio Urbano composto por moradia de rés-do-chão, 1.º andar, sótão e logradouro, sito na Urbanização Portais da Arrábida, na freguesia de Quinta do Anjo, concelho de Palmela, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número … da referida freguesia, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …, com a Licença de Utilização nº 249/01, emitida em 23/07/2001 pela Câmara Municipal de Palmela.
Cláusula Segunda
Pelo presente contrato obriga-se a vender, devoluto de pessoas e bens e livre de quaisquer ónus ou encargos ao Segundo Contratante e este promete e obriga-se a comprar o imóvel o imóvel identificado na cláusula primeira, no seu atual estado físico e situação jurídica, que o SEGUNDO OUTORGANTE perfeitamente conhece e que, por ele, não é considerado obstáculo à compra e venda ora prometida.
2 – O Segundo Contratante declara ter conhecimento de todas as áreas do imóvel objeto do presente contrato-promessa de compra e venda, não respondendo o PRIMEIRO CONTRATANTE por qualquer desconformidade entre a realidade física do mesmo e o que constar no registo predial, na matriz predial ou em quaisquer outros registos públicos relativos ao mesmo.”
Cláusula Terceira
O preço da venda do imóvel identificado na cláusula primeira é de 193.000,00€
Cláusula Quarta
A escritura pública ou o contrato definitivo de compra e venda do imóvel objeto deste contrato realizar-se-á no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da data da assinatura do presente contrato promessa”. 10 - No prédio já à data da celebração do contrato promessa de compra e venda, como agora, (pese embora dessa cláusula do contrato promessa constar que o prédio moradia de rés-do-chão, 1.º andar, sótão e logradouro) o que ali existe e foi colocado à venda e objeto dos contratos foi uma moradia com logradouro, uma garagem edificada no logradouro, e telheiros adjacentes à fachada traseira da zona de habitação, como fazendo parte integrante de tal prédio.
11 - Aquando da assinatura do contrato promessa os Autores conheciam o imóvel e o estado físico em que o mesmo se encontrava, mas desconheciam quaisquer desconformidades entre essa realidade física e o que constava no registo predial, na matriz predial ou em quaisquer outros registos públicos relativos ao mesmo.
12 - Quer o agente imobiliário quer o Réu Banco jamais comunicaram aos Autores que existiam áreas de construção que não se encontravam licenciadas.
13 – A Ré não facultou aos Autores a planta do prédio em questão.
14 – No dia 16/09/2016, data em que foi assinado o contrato-promessa de compra e venda”, o Banco … remeteu à agência de mediação imobiliária a comunicação de fls. 27 dos autos, a qual se dá por integralmente reproduzida, com cópia da Certidão de Registo Predial, Caderneta Predial Urbana e licença de utilização para efeitos de agendamento da escritura.
15 - No decurso do processo de financiamento bancário a área da contratação de crédito à habitação remeteu ao Banco …, agência de Palmela, a comunicação junta a fls. 29V (parte inferior) e 30 dos autos, que aqui se dá por reproduzida e da qual consta, além do mais, que “ (…) escritura de compra e venda anterior para substituição da licença de utilização, dado a licença não permitir efetuar a devida correspondência com a restante documentação legal. (…) verificamos que a área coberta registada na certidão de teor é de 89,6m2 e a área que consta da caderneta predial é de 146,95m2”.
16 - Por sua vez, o Banco …, agência de Palmela, remeteu a comunicação junta a fls. 29v, parte superior, que se dá por integralmente reproduzida, dando conta que a documentação relativa ao imóvel apresentava divergências que tinham de ser esclarecidas.
17 – Nesse seguimento, o supervisor A…, advogado do Banco …, enviou ao Banco …, agência de Palmela, a comunicação de 4/11/2016, junta a fls. 29 dos autos, que se dá por integralmente reproduzida, o qual informa que “a documentação está harmonizada permitindo a realização da escritura, assim não temos nada a acrescentar face ao solicitado”.
18 - No decurso do processo de financiamento bancário foi, então, comunicado aos Autores que existia uma “divergência de áreas” entre a documentação emitida pela Conservatória do Registo Predial e a Caderneta Predial Urbana emitida pelas finanças.
19 - Nos diversos contactos mantidos entre os Autores e o Réu Banco … para preparação da documentação para efeitos da celebração da escritura de compra e venda, o Banco apresentou aos Autores o escrito particular, datado de 11/11/2016, junto a fls. 26v dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido, anexando cópia da Certidão Predial Permanente do Imóvel, e respetiva Caderneta Predial Urbana, no qual consta, além do mais, que “ (…) não há completa harmonização de áreas, na medida em que se constata haver divergência quanto á área de implantação do edifício: CPR de 89,60m2 e CPU 146,95m2 . No entanto, como a área está harmonizada -398,25m2- e esta é mais determinante para efeitos de verificação do cumprimento da harmonização de áreas, caso o M… entenda não proceder agora à atualização da área coberta, poderemos avançar com o processo no pressuposto de que se vier a ser suscitado algum pedido de suprimento de insuficiência ou de provisoriedade por dúvidas por parte da Conservatória de Registo Predial, aquando da submissão do pedido de registo de aquisição e de hipoteca, o MBCP procederá então em conformidade com o que se revelar necessário à efetivação dos registos definitivos e assumirá os encargos (…) ”.
20 - Os Autores pediram esclarecimentos à consultora C… sobre a divergência de áreas tendo esta informado que “existia uma divergência de áreas que é aceitável perante a lei”.
21 – Convictos que se tratava de uma simples divergência de áreas e mantendo o compromisso de adquirir o imóvel os Autores fizeram constar no escrito junto a 26 dos autos, de forma manuscrita, que “Damos o nosso acordo ao ponto 3 com a correção e harmonização das áreas a custos do Banco, ainda que em data posterior à escritura”.
22 - Quer Réu Banco … quer a agência de mediação imobiliária jamais comunicaram aos Autores que o problema com as divergências de áreas eram, de facto, construções nele existente não licenciadas.
23 - Na Conservatória do Registo Predial de Palmela encontra-se descrito com o número … o prédio urbano em questão constituído por moradia de rés do chão, 1º. andar, sótão e logradouro, apresenta a área coberta de 89,6m2 e descoberta de 308,65m2.
24 - Tal prédio encontra-se inscrito sob o artigo … da matriz predial urbana constando aí uma área de implantação do edifício de 146,95, uma bruta privativa de 187,60 e área bruta dependente de 65,65.
25 - A Câmara Municipal de Palmela emitiu o Alvará de licença de utilização nº. 249/01, junto a fls. 156v dos autos, que aqui se dá por reproduzido, e do qual consta que foi concedida autorização para uma habitação.
26 - O M…Banco … solicitou à Unidade de Avaliações relatório de avaliação imobiliária do imóvel, que se mostra junto a fls. 233 a 237 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, com data limite de entrega a 18/02/2016, do qual consta que o prédio em questão se insere num lote de terreno constituído por moradia com tipologia T4, alpendres, logradouro e ainda garagem e outros.
27 - Consta desse relatório que o mesmo foi elaborado sem ter sido facultado ao perito avaliador a licença de utilização.
28 - No mesmo relatório é referido que a determinação do valor de mercado do imóvel baseou-se no pressuposto que o “imóvel possua licença de utilização” que “as áreas do relatório sejam as corretas e que tenham por base as plantas da C.M.P”.
29 - Aquando da outorga dos contratos de compra e venda o Réu Banco … sabia ou devia saber que existiam construções que não estavam enquadradas na autorização de utilização do prédio.
30 - Por contrato de compra e venda, mutuo e hipoteca, celebrado perante a advogada T…, no dia 17 de Novembro de 2016, o Banco …, SA., declarou vender a A… e J…, que declararam comprar, em comum e partes iguais, pelo preço de €193.505,75, o prédio urbano composto por moradia de rés-do-chão, 1.º andar, sótão e logradouro (lote n.º 17), sito na urbanização Portais da Arrábida, da freguesia de Quinta do Anjo, concelho de Palmela, descrito na Conservatória de Registo Predial de Palmela sob o número … – Quinta do Anjo, com registo de aquisição a favor da parte vendedora pela inscrição AP.1141 de 2015/07/01, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …, com o valor patrimonial correspondente de Euros: 164.505,75.
31 – Nesse contrato de compra e venda estipulou-se que a parte compradora destina o imóvel a sua habitação própria e permanente.
32 - No seguimento da celebração do contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca e pela apr.2585 de 2016/11/17 a Conservatória do Registo Predial lavrou o registo de aquisição a favor do Autores do imóvel em questão.
33 - No dia 30 de Maio do ano de 2017, pretendendo introduzir alterações no imóvel que haviam adquirido, os Autores dirigiram-se à Câmara Municipal de Palmela para obterem a autorização para esse efeito.
34 - Os Autores inteiraram-se, então, que as construções erigidas no logradouro do prédio não se encontravam licenciadas, tendo tal informação sido prestada por escrito junto a fls. 46 dos autos, que aqui se dá por reproduzida, aí se referindo que “as construções erigidas no logradouro do lote não foram objeto de “licenciamento” /controlo prévio, pelo que deverá ser avaliado a possibilidade de legalização através de atendimento com a Área de loteamento”.
35- Face a essa situação e com o objetivo de proceder ao licenciamento das construções e também efetuarem as alterações que tinham já definido, os Autores contactaram o atelier de arquitetura, “M…, Unipessoal, Lda.”, com a designação comercial de “U… - Arquitectura e Construção”, de forma a dar início à regularização da divergência.
36 - No ano de 2018, com vista a proceder ao levantamento topográfico da moradia e do terreno adjacente à mesma deslocou-se ao Imóvel com vista a aferir as áreas do mesmo a arquiteta I…”.
37 - Após efetuar tal levantamento, a referida arquiteta teve duas reuniões na Câmara Municipal de Palmela, tendo a primeira ocorrido em 23.01.2018, com a arquiteta E… e a segunda no dia 30.01.2018 com o arquiteto J… da “Área de Loteamentos”.
38- Na sequência do estudo efetuado ao Imóvel pela arquiteta da “U…” I…, e das reuniões mantidas entre esta e os referidos arquitetos da Câmara Municipal de Palmela, aquela elaborou um documento intitulado “Viabilidade para regularização de obras de construção, alteração/ampliação”, datado de 19.02.2018, junta a fls. 46v a 58v dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
39 - Da análise efetuada pela U… veio a constatar-se que a moradia em questão “sofreu obras de alteração/ampliação ao nível do piso térreo, com a construção de uma nova divisão, com cerca de 44m2 de área bruta. No logradouro foi construída uma garagem com uma área de construção de 28,18 m2 e telheiros adjacentes à fachada traseira da habitação que perfazem uma área de 28,66m2. As novas construções e ampliação não se encontram licenciadas, bem como as alterações ao nível das fachadas da habitação.”
40 - Resulta ainda da análise efetuada pelo atelier “U…” com base na informação que foi transmitida pelos arquitetos da Câmara Municipal de Palmela, que “os índices de área de construção definidos para o lote estão esgotados. A área de telheiros e de garagens até 40m2 não são contabilizadas para área de construção, no entanto, a área ampliada da habitação vem exceder os índices permitidos. Chegando à conclusão, pelo facto dos índices de construção se encontrarem esgotados, não ser viável efetuar um pedido de alteração ao alvará de loteamento. Tendo em conta a informação, informou que seria necessário efetuar uma análise mais aprofundada ao processo para verificar, nos regulamentos em vigor, se existe alguma margem de manobra que permitisse a regularização da área ampliada, viabilizando o pedido de alteração do alvará de loteamento.”
41 - Consta ainda desse documento que o arquiteto J… da Câmara Municipal de Palmela referiu ainda que “para que os proprietários obtivessem por parte da Câmara um parecer, aconselhou efetuar-se um pedido de informação simples (e por isso de caracter não vinculativo) com o objetivo de consultar a Câmara acerca da intenção de se efetuar as construções já existentes, não assumindo assim a sua existência.”
42 - O referido arquiteto aconselhou ainda que “A escolha deste procedimento administrativo justifica-se pelo facto de este não acionar processos de fiscalização por parte da Câmara, que ao serem acionados poderão levantar contraordenações, e permitia saber exatamente o que se pode efetuar no interior do lote (…). Contudo, o pedido de informação simples não deixa de ser um risco, pois os proprietários teriam de assumir a não existência das construções/ampliações perante a Câmara e porque não existem garantias que a Câmara não efetue a verificação do local”.
43 - Na sequencia da exposição efetuada pelo arquiteto da Câmara de Palmela o atelier “U…” concluiu na sua análise que “não é viável a regularização das edificações construídas no interior do lote, tal como se encontram, dado que os índices de construção existentes excedem os previstos no alvará de loteamento, o que por sua vez inviabiliza um pedido de alteração do alvará, pois as áreas permitidas para o lote estão esgotadas.”.
44 - Os Autores abandonaram o projeto que delinearam para o imóvel que adquiriram e que passava por alterar a localização do portão da garagem, e da porta de acesso à mesma, bem como, alterar a dimensão do portão pedestre de acesso à moradia, de modo a ser possível aos Autores estacionar o automóvel dentro da propriedade.
45 - Os Autores despenderam tempo com reuniões, trocas de mensagens de correio eletrónico, contactos telefónicos e deslocações à Câmara Municipal de Palmela.
46 - Tal situação causou-lhes preocupação, sofrimento, ansiedade, tristeza e frustração.
47 - Os Autores procuravam uma casa com garagem, onde podiam aparcar o seu automóvel em segurança, como pretendiam ainda transformar a área de “open space” localizada no piso térreo – a área não licenciada- num “quarto de brincar” para os futuros filhos.
48 - O imóvel que compraram era o concretizar de um sonho e de um projeto de vida em comum, bem como, o investimento de todas as poupanças dos Autores nesse projeto.
49 - Os Autores não teriam comprado o prédio se soubessem que as divergências respeitavam a construção que não tinha sido objeto de licenciamento.
50 - O preço da venda do imóvel foi estabelecido pelo Banco Comercial Português por referência ao conjunto formado pelo terreno, moradia, e construções ali existentes.
51 – A moradia apresenta uma tipologia T4 devido a área de 44 m2 de construção sem licenciamento.
52 - Tal situação implica a redução da área útil da moradia
53 – A existência de construções sem licenciamento e que terão de ser adaptadas e parcialmente repercute-se no seu valor comercial e nas potencialidades para proporcionar bem-estar e qualidade de vida aos Autores e à sua futura família.
54 - A moradia perde aptidão comercial e reduz a qualidade de vida dos seus habitantes.
55 - Tal facto desvaloriza o prédio em quantia que não se logrou concretamente apurar.
56 – Na Conservatória de Registo Predial de Palmela, pela apr. 1141 de 2015/07/01, foi inscrita a aquisição do prédio em questão, por compra e venda judicial, - adjudicação - ocorrida no âmbito de uma ação executiva, a favor do Banco Comercial Português.
57 – Os Autores diligenciaram por obter a transferência do credito à habitação para o D… que não se concretizou por esta instituição de crédito ter detectado que “o imóvel sofreu alterações, as quais não estão de acordo com a documentação legal”.
58 – A Ré solicitou à Camara Municipal de Palmela cópia do alvará de licença de utilização, o qual lhe foi entregue em 5 de Maio de 2016.

E foram considerados não provados estes factos:
A) - A 1.ª Ré sabia que as construções eram insuscetíveis de legalização.
B- Após o decurso das várias visitas que os Autores efetuaram ao Imóvel, a consultora da 2.ª Ré, C…, mostrou aos Autores a planta de uma moradia que estes constataram não ser da moradia visitada, dado que nessa planta constavam mais três quartos e a configuração da zona de entrada da moradia era diferente da constante nessa planta, além de que não contemplava uma outra divisão e a garagem.
C) - Perante a apresentação de tal planta, cuja configuração não correspondia à moradia visitada pelos Autores e que se encontrava em comercialização, a sobredita consultora da 2.ª Ré informou os Autores que a planta apresentada era “uma planta tipo” e que era “a mesma para todas as moradias da urbanização”.
D) – Nas prestações mensais do empréstimo apenas estão a liquidar juros de mora e não qualquer valor de capital.

Da nulidade da sentença
Diz a recorrente que a sentença é nula por falta de fundamentação, porquanto foi dado como provado na mesma que «o Banco Réu “sabia ou devia saber que existiam construções que não estavam enquadradas na autorização de utilização do prédio”», sem que se tenha aludido aos meios de prova que sustentam essa decisão «mas a simples alusão a que, atendendo à estrutura do Banco, com vários tipo de apoio, contratual e jurídico, não é “crível” não tivesse notado que as divergências de áreas obrigavam ao licenciamento e obrigavam a subsequente harmonização».
A causa de nulidade da sentença tipificada na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC, ocorre quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão.
Como referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira[1], «O due process positivado na Constituição Portuguesa deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais».
E, de entre os princípios através dos quais a doutrina e a jurisprudência têm densificado o aludido princípio do processo equitativo, encontra-se o direito à fundamentação das decisões.
O dever de fundamentação das decisões dos tribunais, consagrado no artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, obedece a razões que radicam, entre outros, e citando a terminologia dos mencionados autores[2], na teleológica jurídico-constitucional dos princípios processuais. Serve para a clarificação e interpretação do conteúdo decisório, favorece o autocontrolo do juiz responsável pela sentença, dá melhor operacionalidade ao heterocontrolo efetuado por instâncias judiciais superiores e contribui para a própria justiça material praticada pelos tribunais.
Com efeito, a fundamentação das decisões, quer de facto, quer de direito, proferidas pelos tribunais estará viciada caso seja descurado o dever de especificar os fundamentos decisivos para a determinação da sua convicção, já que a opacidade nessa determinação sempre colocaria em causa as funções de ordem endoprocessual e extraprocessual que estão ínsitas na motivação da decisão, ou seja, permitir às partes o eventual recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação em causa e, simultaneamente, permitir o controlo dessa decisão, colocando o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos seguros, um juízo concordante ou divergente.
É por isso que na elaboração da sentença e na parte respeitante à fundamentação, deve «o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final» - art. 607º, nº 3, do CPC.
E, nos termos nº 4 do mesmo artigo 607º, «[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência».
Ora, uma simples leitura da sentença permite concluir, sem margem para qualquer dúvida, que a Sr.ª Juíza a quo deu integral cumprimento aos aludidos comandos legais.
Com efeito, e no que à decisão da matéria de facto diz respeito, além de indicar os factos que julgou provados e não provados, a Sr.ª Juíza motivou aquela decisão fazendo uma apreciação crítica de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como da prova documental carreada para os autos, e analisou e valorou os depoimentos das testemunhas tendo em conta a respetiva razão de ciência.
Como é sabido, as nulidades da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.
Ora, o alegado pelo recorrente, como resulta, aliás, da doutrina e jurisprudência que cita, não se traduz em vício de falta de fundamentação, reconduzindo-se antes a eventuais erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607º, nº 4, 2ª parte, do CPC.
Improcede, consequentemente, este segmento do recurso.

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, prova pericial e depoimentos das testemunhas registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que o réu/recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, já que especificou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, indicou os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ele propugnados, referiu a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida e também não deixou de indicar as passagens da gravação em que funda o seu recurso, transcrevendo mesmo essas passagens no corpo das alegações[3] - e nas conclusões, onde seria desnecessário fazê-lo -, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Sr.ª Juíza a quo, o qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto direto com a prova testemunhal que melhor possibilita ao julgador a perceção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.
Infere-se das conclusões do recorrente que este discorda de decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente aos pontos 11, 22 e 29 dos factos provados, entendendo que deve ser dada como não provada a matéria deles constante.
Vejamos, pois, se lhe assiste razão.
No ponto 11 deu-se como provado que «[a]quando da assinatura do contrato promessa os Autores conheciam o imóvel e o estado físico em que o mesmo se encontrava, mas desconheciam quaisquer desconformidades entre essa realidade física e o que constava no registo predial, na matriz predial ou em quaisquer outros registos públicos relativos ao mesmo».
Diz o recorrente que este facto não é corroborado por qualquer meio de prova, incluindo, pelas próprias declarações de parte da autora e das testemunhas M…, gerente da 2.ª ré, e J…, funcionário da mesma ré, até porque os autores sabiam, conforme consta da cláusula 2ª do contrato-promessa de compra e venda, o estado físico e a situação jurídica e administrativa do imóvel, o que resulta, aliás, dos depoimentos das testemunhas P…, bancária, a qual desempenha as suas funções na área de investimento imobiliário do réu banco, e A…, bancária, funcionária do réu banco onde exerce funções na área de contratação e receção de imóveis.
Das declarações de parte da autora, porém, ficou bem claro que os autores tinham a intenção de adquirir a moradia que estava edificada no local e não a moradia “descrita” na Conservatória do Registo Predial, e que tudo o que lhes foi dito, quer pela agência imobiliária, quer pelo réu banco, foi a existência de uma simples “divergência de áreas”.
Por refletirem uma correta análise daquelas declarações, fazemos nossas as seguintes palavras da sentença recorrida:
«A Autora, ouvida em declarações de parte, aludiu, de forma sincera e coerente, às negociações, contactos, conversas, esclarecimentos e ao conhecimento que tinham do prédio. Mencionou que, através da agência de mediação imobiliária V…, visitaram o imóvel que o Banco tinha colocado em venda. Nessas visitas o imóvel foi mostrado com todas as construções ali existente, já nessa data como agora o que ali existe é uma moradia para habitação, com telheiro nas traseiras, com logradouro, com garagem no logradouro. Das conservas e esclarecimentos acerca da situação do imóvel quer com o J… quer com a C… e o Banco ficaram convencidos que o prédio estava legal. Após a celebração do contrato promessa foi dado conhecimento que existia um problema de divergência de áreas nos documentos, mostrando, para o efeito, o Réu Banco disponibilidade para custear e realizar os actos necessários para resolver a situação caso viesse a ser necessário para efectuar os registos. Também falaram com a agência de mediação imobiliária que repetiu que se tratava de simples problema de divergência de áreas permitida por lei.
Em momento algum mencionaram que no local existiam obras não licenciadas, nunca foi transmitida essa informação, e, nesse contexto, avançaram para a celebração do contrato na convicção que tudo estava de acordo com a lei, caso a Ré a tivesse informado da ilegalidade em causa não teriam outorgado o contrato de compra e venda.
Sublinhou que procuravam uma casa com garagem, onde podiam aparcar o seu automóvel em segurança, como pretendiam ainda transformar a área de “open space” localizada no piso térreo, a área não licenciada, num “quarto de brincar” para os futuros filhos.
De igual modo, sublinhou que a aquisição da moradia com uma tipologia T4 constituía para os Autores um sonho e de um projecto de vida, no qual investiram todas as poupanças.»
Por sua vez, os trechos dos depoimentos das testemunhas M… e J…, referidos pela Apelante para justificar a retirada dos factos provados da matéria vertida no ponto 11, revelam apenas que a documentação do imóvel, isto é, a certidão predial e a caderneta predial, eram do conhecimento dos autores e que «era possível escriturar», e não que os autores conhecessem as desconformidades entre a realidade física do imóvel e o que constava no registo predial, na matriz predial ou em quaisquer outros registos públicos relativos ao mesmo.
Ademais, foi dado como provado nos pontos 33 e 34, que no dia 30.05.2017, pretendendo introduzir alterações no imóvel que haviam adquirido, os autores dirigiram-se à Câmara Municipal de Palmela para obterem a autorização para esse efeito, e «inteiraram-se, então, que as construções erigidas no logradouro do prédio não se encontravam licenciadas, tendo tal informação sido prestada por escrito junto a fls. 46 dos autos, que aqui se dá por reproduzida, aí se referindo que “as construções erigidas no logradouro do lote não foram objecto de “licenciamento”/controlo prévio, pelo que deverá ser avaliado a possibilidade de legalização através de atendimento com a Área de loteamento».
Esta factualidade, que não foi impugnada pelo recorrente, reforça, aliás, o entendimento de que os autores desconheciam qualquer desconformidade entre a realidade física do imóvel e o que constava no registo predial, na matriz predial ou em quaisquer outros registos públicos relativos ao mesmo.
Também os depoimentos das testemunhas convocadas pelo recorrente para justificar a eliminação do ponto 11 do elenco dos factos provados, não assumem consistência suficiente para tal, porquanto dos mesmos não se retira que os autores conhecessem as desconformidades entre a realidade física da moradia e o que constava dos respetivos documentos aquando da celebração do contrato-promessa[4].
Assim, a testemunha P… referiu, nomeadamente, que «a divergência de áreas consta desde consta, constava, tal como eu vi, desde o primeiro dia na documentação e ela é dada ao cliente, se é que quando ele estava a ver o imóvel, a suscitou logo, a pediu, mas se não fez nesse momento, quando assinou o contrato-promessa de compra e venda, ela faz parte, consta… obrigatória do documento que o cliente está a assinar e está a ver e no próprio contrato-promessa de compra e venda ele está a dizer que dá conhecimento do estado físico, administrativo do imóvel e portanto que tem conhecimento da documentação que lhes estão a por ali à frente».
Ora, o que disse esta testemunha demonstra apenas que a divergência de áreas resulta da documentação do imóvel, sendo significativo, aliás, que a testemunha tenha referido que a sua intervenção relativamente à comercialização da moradia dos autos, consistiu unicamente na passagem do imóvel à imobiliária 2.ª ré, sem que alguma vez se tenha deslocado ao local para ver a moradia posta à venda pelo recorrente.
Também o depoimento da testemunha A… não corrobora a tese do recorrente, de que os autores não levantaram qualquer problema aquando da assinatura do contrato-promessa de compra e venda sobre a cláusula 2ª inserta no mesmo e acima transcrita no ponto 9 dos factos provados.
Esta testemunha limitou-se, no essencial, a esclarecer o procedimento efetuado pelo recorrente quando efetua a venda de um imóvel em carteira, não tendo a mesma sequer elaborado o contrato-promessa e, apesar de o ter assinado em representação do réu banco, fê-lo em momento anterior aos autores, não tendo outrossim estado presente na agência bancária onde aqueles assinaram o contrato, nunca os tendo conhecido pessoalmente e, como tal, não podia confirmar se os autores alguma vez questionaram quem quer que fosse sobre as casualidades que impendiam sobre o imóvel.
Em suma, como bem dizem os autores/recorridos nas contra-alegações, as testemunhas P… e A… não conhecem pessoalmente os autores, não estiveram presencialmente e juntamente com estes no momento da assinatura do contrato-promessa de compra e venda e na celebração da escritura de compra e venda, não foram interlocutores do recorrente na condução e conclusão do negócio e não sabem se os autores questionaram ou não as pessoas que com eles negociaram diretamente acerca das desconformidades em causa.
E, sendo assim, os meios probatórios indicados pelo recorrente não impõem de modo algum a alteração/eliminação do ponto 11 dos factos provados, o qual, consequentemente, se mantém nos seus precisos termos.

Impugna também o recorrente a decisão da matéria de facto relativa aos pontos 22 e 29 dos factos provados, que tem o seguinte teor:
«22 - Quer o Réu Banco … quer a agência de mediação imobiliária jamais comunicaram aos Autores que o problema com as divergências de áreas eram, de facto, construções nele existentes não licenciadas.
29 - Aquando a outorga dos contratos de compra e venda o Réu Banco … sabia ou devia saber que existiam construções que não estavam enquadradas na autorização de utilização do prédio.»
Quanto ao ponto 22, resulta claramente das declarações de parte da autora, nomeadamente a instâncias da Sr.ª Juíza, que em momento algum do processo negocial, quer a 2ª ré agência imobiliária, quer o banco réu, comunicaram aos autores que «o problema com as divergências de áreas eram, de facto, construções nele existentes e não licenciadas».
Também a testemunha J…, que na sua qualidade de comercial da 2ª ré fez visitas ao imóvel com os autores, foi esclarecedor no que diz respeito às construções existentes no local, referindo a esse respeito que nunca teve conhecimento que ali existiam construções não licenciadas, e que já depois de ter sido celebrado o contrato-promessa ouviu uma conversa entre a autora e a testemunha M… a respeito de uma discrepância ao nível de áreas, esclarecendo que a autora tinha em seu poder uma declaração do banco a esse respeito, não tendo sido colocada a questão de se tratar de obras ilegais.
Também a testemunha M…, gerente da 2ª ré, quando questionada pela Sr.ª Juíza se “alguma vez disseram às pessoas que essa divergência de áreas implicava que aquele prédio tinha construções não licenciadas”, respondeu: “Eu nunca disse, porque eu pessoalmente não sabia”.
Outra não podia, pois, ser a decisão senão considerar provada a matéria do ponto 22 dos factos provados, sendo, aliás, a própria recorrente a afirmar «que as Rés não podiam comunicar aquilo que não sabiam». Se assim é, então como podiam as rés, nomeadamente o réu banco, ora recorrente, comunicar aos autores que o problema com as divergências de áreas eram, de facto, construções nele existentes não licenciadas?
Mantém-se, assim, intocado o ponto 22 dos factos provados.

Quanto ao ponto 29, onde se deu como provado que o réu banco sabia ou devia saber que existiam construções que não estavam enquadradas na autorização de utilização do prédio, escreveu-se na motivação da decisão de facto da sentença recorrida:
«Não é crível que o Réu Banco, com uma estrutura técnica de apoio, designadamente no campo contratual e jurídico, não tivesse notado que as divergências de áreas obrigavam ao licenciamento e obrigavam a subsequente harmonização em face das divergências significativas constantes da matriz, do registo e até da licença de utilização, tanto mais que outra instituição de crédito – o D… – facilmente constatou as irregularidade do imóvel, conforme ressalta do documento junto a fls. 182 dos autos. Na verdade, tendo a área de contratação do crédito detectado que “a licença não permite a devida correspondência com a restante documentação legal”. documento de fls.29v-, ademais o perito avaliador constatou que no local existia uma construção de garagem, não podia deixar de munir-se de toda a documentação necessária, nomeadamente os projectos de arquitectura e eventuais telas finais certificadas pela Camara Municipal de Palmela para apurar em concreto a situação.
Ou seja, a Ré sabia ou devia saber que o objecto da venda não corresponde à realidade.
É também de notar que os Autores não têm conhecimentos nem qualquer habilitação especial e estando em causa um prédio urbano, destinado à habitação permanente, fazendo parte da carteira de imóveis do banco, que a agência de mediação imobiliária publicitava na internet, compreende-se, pois, que face à informação prestada pelo Banco e pela agencia de mediação imobiliária os Autores, certamente, confiavam na exactidão da informação e a tivessem como correcta.»
Insurge-se a recorrente contra este entendimento, sustentando que o facto em causa deve ser considerado não provado, invocando em abono da sua posição os depoimentos das testemunhas J…, bancário, funcionário do Banco réu desde 1990, o qual exerceu as funções de gerente do balcão de Palmela à data dos factos, I…, funcionária do banco réu, e das já referidas testemunhas P… e A….
Quanto à testemunha J…, questionada sobre a discrepância de áreas, limitou-se a dizer desconhecer a situação.
Já a testemunha I…, referiu que os documentos relativos ao imóvel dos autos chegaram ao banco na sequência de uma “adjudicação judicial”, referindo que o departamento onde trabalha prepara «o imóvel fisicamente, para poder seguir para a área de vendas, não é, em termos de limpeza, avaliações, certificação energética, a sintonia em termos de documentação e depois de tudo reunido, enviamos para a área de vendas», mais esclarecendo que o banco tem «uma empresa, por assim dizer, outsourcing, que faz uma preparação da documentação. Nós depois reunimos tudo, na fase de encerramento do processo, por assim dizer, reunimos tudo a partir do momento que temos ali a documentação que já foi, passe a expressão, “picada” por eles, e termos todos os nossos procedimentos em termos de limpezas, avaliação e certificação, sim, preparamos tudo e enviamos tudo».
Por sua vez, a testemunha P…, que como vimos supra trabalha na área de vendas do banco réu, referiu que no departamento de vendas, quando recebem um imóvel, «vemos a caracterização do imóvel, se é um apartamento, se é uma moradia, estarão a documentação toda preparada por via das outras áreas antecedentes, temos um preço e o que é que nós qual é a minha preocupação? É enquadrar junto da área geográfica dos parceiros que nós temos com o banco aquele que mais rapidamente vai escoar o produto com o benefício para o banco em termos de realização de valor e venda do imóvel. E foi isso que foi feito, este imóvel foi identificado nos portais da Arrábida, Arrábida, Anjo, Quinta do Anjo, Anjo, Palmela. Palmela tinha aqui várias opções de mediadores, trabalho com três ou quatro. Recaiu a escolha sobre a comprar Casa de Palmela. Com a Sra. Dª C…, foi-lhes entregue a chave, toda a documentação que fazia parte do processo para darem início à sua respetiva comercialização. Colocado no site do banco, colocado no site deles».
Por último, a testemunha A…, responsável pela área de gestão de imóveis e pela área de contratação, limitou-se a confirmar a celebração da escritura de compra e venda do imóvel e que «a conservatória fez os registos normais, não houve qualquer problema, e só passado algum tempo… agora, aqui, já não sei precisar exatamente o hiato de tempo, tivemos uma reclamação por parte dos compradores de que haveria algum problema ao nível do licenciamento do imóvel, que era desconhecido da nossa parte até à data».
Sobre esta matéria importa ainda considerar que o relatório de avaliação imobiliária junto aos autos em 25.09.2019 (ref.ª citius 4624148) - o qual foi efetuado sem que o perito avaliador do recorrente se tenha munido de toda a documentação do imóvel, nomeadamente das plantas depositadas na Câmara Municipal de Palmela -, no qual é referido o seguinte (Anexo IX Informações Adicionais):
«A visita ao interior aconteceu com o uso das chaves. As áreas foram retiradas do relatório de avaliação anterior, outras informações foram da CPU.
A determinação dos valores teve por base os seguintes pressupostos:
Que o imóvel se encontra livre e disponível, que tenha licença de habitação e que as áreas do relatório sejam as corretas, e que tenham por base as plantas da C.M.P.
A avaliação baseou-se na documentação facultada pelo cliente, nomeadamente:
· Registo da Conservatória;
· Caderneta Predial;
· Relatório de avaliação anterior.
A determinação do Valor de Mercado do Imóvel baseou-se nos seguintes pressupostos:
· Que o imóvel se encontra Livre e Disponível;
· Que o imóvel possua Licença de Utilização
(…).»
Está provado, por outro lado, que os autores diligenciaram por obter a transferência do credito à habitação para o D…, que não se concretizou por esta instituição de crédito ter detetado que «o imóvel sofreu alterações, as quais não estão de acordo com a documentação legal».
Ora, possuindo o recorrente uma estrutura organizativa com meios técnicos e humanos com conhecimentos jurídicos que não será muito diferente daquela que possui o D…, e tendo este constatado facilmente que o imóvel havia sofrido alterações que não estavam de acordo com a documentação legal, pode concluir-se, como se fez na sentença recorrida, que o recorrente sabia ou devia saber que o objeto da venda não corresponde à realidade.
Mantém-se, pois, inalterado o ponto 29 dos factos provados.
Resulta, assim, do exposto que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou a Sr.ª Juíza a quo na decisão sobre a matéria de facto, a qual, por isso, permanece intacta.

Do direito aplicável: erro-vício ou venda de coisa defeituosa
Defende o recorrente que o caso em apreço não se insere no regime de venda de coisa defeituosa, mas sim no do “erro”.
Para tanto, diz o recorrente que todos os envolvidos no negócio – recorrente, recorridos e 2ª ré – tinham conhecimento da divergência de áreas entre a documentação emitida pela Conservatória do Registo Predial e a caderneta predial urbana, o que sendo embora verdade, não tem em consideração o que está verdadeiramente em causa nos autos, que não é uma compra e venda de um imóvel com uma simples divergência de áreas, mas antes uma divergência de áreas que correspondem a construções ilegais que não são passíveis de serem legalizadas e que, por esse motivo, implicarão que parte do imóvel tenha de ser demolido, para o conformar com a legislação em vigor.
O erro sobre o negócio pode definir-se como a errada perceção das características que compreendem a razão da transação, condensadas nas cláusulas e condicionamentos que integram o seu resultado final, circunstancialismo este que motivou as partes na ultimação do contrato em obediência aos princípios da boa-fé, dos ditames da lealdade e probidade a que devem obedecer a formação e o cumprimento de todos os negócios jurídicos: há erro sobre as qualidades do objeto quando foi a falsa representação acerca de certas propriedades da coisa que levou o agente a negociar; há erro sobre o objeto do contrato quando foi a falsa representação acerca da identidade da coisa que levou a pessoa a contratar.[5]
Verificados os restantes requisitos da sua validade, o erro capaz de poder determinar a anulabilidade do negócio tem de se caracterizar como essencial para a sua ultimação, isto é, o erro-vício só gera a anulabilidade do negócio se for causal; e diz-se causal o erro «quando, a não haver ignorância ou falsa representação de certo motivo que interferiu no fenómeno volitivo, o declarante não quereria celebrar qualquer negócio, ou quereria celebrar negócio diferente, quer quanto ao seu tipo, quer quanto a algum ou alguns dos seus elementos essenciais ou acidentais».[6]
Resumindo, diremos que «[s]e o engano incide sobre a identidade ou a substância do objecto negocial aplica-se o regime geral do erro; pelo contrário, se há equívoco com respeito à qualidade daquele tipo de bem, encontram aplicação as regras do cumprimento defeituoso».[7]
Haverá venda de coisa defeituosa se o vendedor entrega ao comprador a coisa devida, mas a coisa sofre de qualquer dos vícios catalogados no artigo 913º do Código Civil [CC]: vício que desvalorize a coisa; vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
Escreveu-se com total acerto na sentença recorrida:
«A desconformidade do cumprimento pode, portanto, advir do facto de a prestação padecer de um defeito de direito, como ocorre quando não há coincidência entre a autorização de utilização e a realidade física existente no local. A compra e venda de um prédio envolve para o vendedor a obrigação de realização das diligências necessárias ao licenciamento das obras de alteração, como meio de propiciar as condições à coisa vendida para a sua função normal, ou seja, a sua cabal fruição.
De resto, esta obrigação decorre também do artº. 1 do Dec. Lei 281/99 de 25/06, na redacção introduzida pelo Dec. Lei 99/2010, de 2/09, que não podem ser realizados actos de transmissão de propriedade de prédios urbanos sem que se faça prova da existência da correspondente autorização de utilização, sendo a apresentação de autorização da utilização dispensada se a existência desta estiver anotada no registo predial e o imóvel não tiver sofrido alterações.
Esta disposição impõe a prova da existência da autorização de utilização do prédio urbano e ainda que as alterações que o imóvel tenha sofrido estejam devidamente enquadradas na autorização de utilização.
Já não se trata de simples formalidade, mas um requisito do próprio negócio imposto por lei, assumindo natureza imperativa e de ordem pública, subtraída, portanto, à disponibilidade das partes.
É manifesto que os Autores não conheciam as desconformidades entre a licença de utilização do imóvel e o edificado no local, não se tratava de um simples erro de áreas do imóvel, mas, na verdade, as desconformidades reportavam-se a construções ilegais.
E, por esse motivo, nem se diga, com base no teor dos considerandos do contrato promessa, que os Autores tomaram conhecimento e assumiram as consequências de todas as eventuais desconformidades, desvinculando-se a própria Ré proprietária, à excepção da rectificação de áreas, de toda e qualquer responsabilidade por outras desconformidades.
De realçar que nas negociações e no cumprimento dos contratos devem as partes conformar a sua actuação com o princípio da boa fé -( art.ºs 227.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2, do Cód. Civil)- daí decorrendo diversos deveres para as partes, não só de prestação como também de informação -(deveres acessórios de conduta)- de lealdade, correcção, e protecção, de uma parte à outra, por forma a salvaguardar o fim contratual tido em vista por esta última.
Não pode a Ré pretender que as divergências entre aquilo que foi objecto da venda e aquilo que efectivamente existia, nomeadamente a existência de construções sem licença lhe são completamente alheias, sendo imputáveis ao Autores as consequências daí advenientes.
O Réu Banco … como dono do prédio tem ou deve ter conhecimento das divergências entre o objecto da venda e aquilo que na realidade existia no imóvel em termos de licenciamento, e não socorrer de uma cláusula genérica para isentá-lo de toda e qualquer responsabilidade - (manifestamente desequilibrado na medida em que transfere o risco por todas as desconformidades do imóvel para a esfera jurídica da parte débil) . É que olvida certamente o Réu Banco … que nem sequer era possível celebrar o contrato de compra e venda nas circunstâncias apuradas devido a inobservância de normas legais de ordem pública, obviamente, mal andou a sua advogada quando se permitiu viabilizar o contrato.
Neste contexto, estamos, pois, perante uma venda defeituosa
Com efeito, o imóvel vendido não tem as características asseguradas pelo réu/recorrente, isto é, uma moradia de tipologia T4, com garagem, sem quaisquer ónus e/ou contingências que o afetassem de forma grave, porque os autores/recorridos terão de conformar o imóvel com a legislação vigente, o que implica, como se refere no ponto 53 dos factos provados, a adaptação e demolição parcial da construção já existente, deixando assim o imóvel de ser de tipologia T4 e deixará igualmente de ter garagem, pelo menos de forma coincidente com a edificação que consta no local.
Neste conspecto, o imóvel dos autos contempla em si mesmo uma construção ilegal e cuja legalização junto da Câmara Municipal é praticamente uma impossibilidade, como resulta da matéria de facto dada como provada nos pontos 39, 40 e 43.
Verifica-se assim uma perda de qualidades do bem vendido, consubstanciada na desvalorização do imóvel e na perda de utilidades que os autores dela esperavam, pelo que se mostra acertada a conclusão de que estamos perante a venda de uma coisa defeituosa.
Por sua vez, estando em causa um contrato de compra e venda celebrado entre os recorridos e o recorrente Banco …, sociedade comercial, nos termos do qual os primeiros adquiriram ao segundo uma moradia para ali instalarem a sua habitação permanente, moradia essa que o vendedor, pelo seu lado, lhe forneceu no exercício da atividade económica que desenvolve, tendo em vista a obtenção de lucros ou benefícios, são aplicáveis a este contrato, para além das regras gerais previstas no Código Civil acima referidas, a Lei n.º 24/96, de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor) e o regime previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08.04, na redação que lhe foi dada pelo D/L n.º 84/2008, de 21.05, o qual transpôs para o ordenamento jurídico interno a Diretiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio.
Ora, dispõe o artigo 3º, alínea a), da Lei n.º 24/96, de 31.07, que o consumidor tem direito à qualidade dos bens e serviços, estabelecendo, por sua vez, o artigo 4º que «os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor».
Já o artigo 3º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08.04, prescreve que:
«1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.
2 - As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respetivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade».
Se o bem de consumo entregue não for conforme ao contrato, ao consumidor são reconhecidos os direitos previstos no artigo 4º daquele último diploma legal, independentemente de culpa do vendedor no cumprimento inexato da obrigação de entregar o bem devido, conforme o contrato. São eles: o direito de reparação, sem encargos para o comprador, ou o direito de substituição, o direito à redução adequada do preço e o direito à resolução do contrato.
Para além desses direitos, assiste ainda ao comprador-consumidor o direito a indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens defeituosos, nos termos do artigo 12º, nº 1, da Lei nº 24/96, de 31.07.
A “conformidade/desconformidade” do bem é, nos termos do artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 67/2003, aferida através da comparação entre a prestação estipulada contratualmente e a prestação efetivamente realizada, abrangendo a noção de desconformidade quer os vícios na própria coisa objeto do contrato quer os vícios de direito.
Ora, toda a argumentação expendida pelo recorrente assenta na questão do conhecimento da divergência de áreas por parte dos autores, mas como vimos já, não é a divergência de áreas que impede o normal uso da coisa vendida, mas sim o que essa divergência não revela e que se traduz na existência de construções ilegais não passíveis de legalização, pelo que se mostra descabido ou deslocado o vertido nas conclusões XLIII, XLIV e XLV.
Sabendo o recorrente do interesse económico do contrato refletido na natureza das respetivas prestações, não poderia aquele «limitar-se a uma atuação formal, automatizada, que desconsiderasse os interesses da parte contrária», como bem referem os recorridos nas contra-alegações.
Na verdade, os contratos incluem não só as obrigações deles expressamente constantes, mas também deveres acessórios inerentes à prossecução do resultado por eles visado. Estes deveres resultantes acessoriamente do próprio contrato, em paralelo com a obrigação principal e destinados a assegurar a perfeita execução desta, a ponto de a sua violação poder gerar uma situação de incumprimento, implicam a adoção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exato da prestação, com destaque para o dever de cooperação, sem o qual muitas vezes a utilidade final do contrato não é alcançada.
Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma atuação de boa-fé (art. 762º, nº, 2, do CC) entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização[8].
Assim, tendo os autores manifestado interesse em adquirir o imóvel em causa, como vieram a fazê-lo, atentas as suas características e a sua composição e sendo uma moradia unifamiliar com as características do imóvel em causa um objetivo de vida e um investimento conjunto (cfr. pontos 47, 48 e 50 dos factos provados), perdendo o imóvel características que o levaram a ser escolhido pelos autores, o mesmo deixa de ser adequado ao fim a que se destina.
O que tem como consequência que «os autores não teriam comprado o prédio se soubessem que as divergências respeitavam a construção que não tinha sido objeto de licenciamento» (ponto 49 dos factos provados).

Insurge-se, por último, o recorrente quanto à atribuição de uma indemnização a título de danos não patrimoniais, pois «tendo em conta que em declarações de parte, a A. reconhece que antes do contrato de promessa sabia da divergência de áreas, que nunca procurou saber, junto de qualquer entidade a razão dessa divergência, foram informados de tudo e foi-lhes entregue toda a documentação que dava conhecimento da situação jurídica e administrativa do imóvel, bem sabendo os AA., porque o visitaram, da condição física do mesmo, no entendimento da Recorrente, não estão preenchidos os pressupostos previstos na lei e que justificariam a atribuição de uma indemnização».
Ora, vimos já que a questão essencial posta no recurso não se resume a uma simples questão de “divergência de áreas”, e que os autores não “foram informados de tudo”, desde logo, nem o réu banco nem a 2ª ré agência de mediação imobiliária informaram os autores que o problema com as divergências de áreas eram, de facto, construções nele existente não licenciadas (ponto 22 dos factos provados).
Assim, tendo-se provado que os autores foram confrontados com uma situação com a qual não estavam a contar, a qual colocou em causa o seu projeto de vida e importunou de forma relevante o seu estado físico e psíquico causando abalo, incómodo, transtorno e frustração, estamos indiscutivelmente perante danos cuja gravidade merece a tutela do direito, mostrando-se justa e adequada a indemnização de € 5.000,00 fixada na sentença, cujo montante não vem sequer questionado pela recorrente.
Por conseguinte, o recurso improcede.
Vencido no recurso, suportará o réu/apelante as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
*
Évora, 21 de maio de 2020
Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes Desembargadores:
Relator: Manuel Bargado
Adjuntos:
Albertina Pedroso
Tomé Ramião
_______________________________________________

[1] Constituição da República Portuguesa Anotada, I Volume, págs. 414-415.

[2] Ob. cit., pp. 526-527.

[3] O recorrente juntou, aliás, com as alegações, a transcrição integral de todos os depoimentos produzidos na audiência de julgamento.

[4] Só após a celebração do contrato-promessa, no decurso do processo de financiamento bancário, foi comunicado aos autores que existia uma “divergência de áreas” entre a documentação emitida pela Conservatória do Registo Predial e a Caderneta Predial Urbana emitida pelas finanças (cfr. ponto 18 dos factos provados), o que não é o mesmo que os autores saberem que havia uma parte da moradia que correspondia a uma construção ilegal, a qual não era suscetível de legalização na Câmara Municipal de Palmela. Isso justifica, aliás, que tenha sido dado como provado no ponto 12, que “quer o agente imobiliário quer o réu Banco jamais comunicaram aos autores que existiam áreas de construção que não se encontravam licenciadas”, facto esse com o qual o recorrente se conformou.

[5] Antunes Varela, RLJ, ano 119º, p. 125, nota 1.

[6] Carvalho Fernandes in Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 2ª ed., p.126.

[7] Pedro Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso. Em especial na Compra e Venda e na Empreitada, Colecção Teses, Almedina, 2001, p. 57.

[8] Cfr. Acórdão do STJ de 07.12.2010, proc. 984/07.8TVLSB.P1.S1, in www.dgsi.pt.