Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
315/10.0TMFAR-B.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
COMPENSAÇÃO
MORTE
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Até realização da partilha de bens comuns, a decisão de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos ex-cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao ex-membro do casal privado do uso daquele bem ou, alternativamente, a definição modo de repartição dos custos relacionados com o pagamento do empréstimo e outros acessórios.
2 – Após a morte do ex-cônjuge não é sede de direito de família que a situação é regulada, mas antes na esfera de protecção do direito sucessório.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 315/10.0TMFAR-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Família e Menores de Faro – J1
*
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
*
I – Relatório:
Por apenso à acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, (…) veio intentar o presente pedido de atribuição da casa de morada de família contra os herdeiros incertos de (…).
*
A Autora pedia a atribuição da casa de morada de família, alegando que, atendendo ao decesso de (…), era a única dos ex-cônjuges que daquela casa carecia, encontrando-se assim preenchido o fundamento para a sua atribuição, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1793.º, n.º 1, parte final, do Código Civil.
Em benefício da sua pretensão, a Requerente sustentava que casou com (…) em 01/01/2003, não tendo filhos em comum e que, após o casamento, ambos fixaram residência num imóvel que pertencia a este.
A Requerente adiantou ainda que, a pedido do seu marido, foi viver para o Paquistão em 24/07/2009 e que aquele imóvel foi dado de arrendamento, tendo (…) passado a residir em casa de amigos.
A Requerente afirmou que o seu marido intentou, à sua revelia, a acção de divórcio sem consentimento, o qual foi decretada. Sublinhou que é uma mulher idosa, não tem rendimentos próprios ou ajudas de qualquer natureza, não tem familiares a residir em Portugal, vive na casa de uma amiga, sita em (…), que a acolheu, mas que não pode assegurar a manutenção desse alojamento.
*
Foi citado o Ministério Público, em representação dos herdeiros incertos de (…), o qual deduziu oposição, impugnando todos os factos alegados pela Autora.
*
Por despacho, datado de 19/04/2023, foram admitidos os documentos e o rol de testemunhas e designou-se data para a realização da audiência de discussão e julgamento.
*
Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo decidiu julgar improcedente o pedido de atribuição da casa de morada de família e, consequentemente, absolveu os herdeiros incertos de (…) de todo o peticionado.
*
A requerida não se conformou com a referida decisão e as alegações apresentadas continham as seguintes conclusões, aliás extensas e prolixas e que, na sua essencialidade, transportam toda a matéria alegada para o resumo conclusivo, assumindo a mesma dimensão da parte inicial do recurso [1] [2] [3] [4] [5]:
«A. A Recorrente não se pode conformar com a Decisão proferida.
B. Dela interpondo o presente recurso perante V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, requerendo a reapreciação dos factos apresentados a discussão e revogando-se a Sentença por uma outra que atribua à Recorrente o direito à casa de morada de família.
C. A questão a decidir, no caso em apreço, circunscreve-se em saber se, a casa onde o dissolvido casal residiu e fez a sua vida em comum, poderá continuar a ser considerada como casa de morada de família, a esta data.
D. E, em caso afirmativo, se se verificam os pressupostos que determinam a atribuição da dita casa à Recorrente?
E. Embora o conceito de “casa de morada de família” possa assumir algumas fronteiras mais nublosas, a jurisprudência tem vindo a adoptar a definição do Prof. Guilherme de Oliveira, como residência ou morada da família é a sua sede: o lugar onde a família cumpre as suas funções relativamente aos cônjuges e aos filhos e que constitui a residência habitual ou principal do agregado familiar, sendo o centro principal da maioria dos interesses, das tradições e das aspirações familiares.
F. Como se refere também no Acórdão do STJ de 06/03/1986, a casa de morada de família é o centro da organização doméstica e social da comunidade familiar.
G. Por outro lado, a casa de morada de família não perde essa qualificação pelo simples facto de a família se ter desagregado e de a casa ter, assim, deixado de ser, de facto, a morada da família.
H. É o que sucede quando um dos cônjuges decide abandonar a residência da família, violando os seus deveres conjugais: a casa continua a ser o local de cumprimento desses deveres e, não sendo de facto a morada de família, mantém, contudo, essa destinação ou vocação.
I. A Lei, na parte da Subsecção que regula os efeitos do divórcio, no artigo 1793.º do Código Civil, atribui um regime especial e excepcional não a qualquer casa pertencente aos cônjuges, mas àquela que se poderá considerar a "casa de morada de família" e isto com os olhos postos na "Instituição Familiar".
J. Na protecção da habitação da família.
K. Na necessidade provocada pela separação definitiva dos cônjuges, que a Lei procura satisfazer com os olhos postos na Instituição Familiar.
L. No caso em apreço, ficou demonstrado que a Recorrente e seu ex-marido, viveram como casal no imóvel descrito em (2) dos factos provados.
M. Ali viveram, dormindo, confecionando e tomando refeições, não tendo outra casa onde se pudessem recolher.
N. A determinada altura, por motivos de ordem financeira, a Recorrente ficou algum tempo no seu país de origem.
O. Permanecendo o Sr.(…) na posse do imóvel.
P. De modo, a conseguirem colmatar e equilibrar o seu orçamento familiar.
Q. Continuando o Sr. (…) a visitar a Recorrente frequentemente, no Paquistão, ajudando-a financeiramente, e dando-lhe esperança de ser sua intenção levá-la para Portugal.
R. Assim que a situação financeira em Portugal estivesse mais equilibrada.
S. Contudo, Sr. (…) veio a falecer, em 2013, no Paquistão.
T. Sem que a Recorrente disso tomasse conhecimento.
U. Apenas em meados de 2019/2020 a Recorrente tomou conhecimento do óbito do então marido.
V. Assumindo o estado de viúva.
W. Desconhecendo que o Sr. (…) havia dissolvido o matrimónio, em Portugal, à total revelia da Recorrente. A Recorrente, por dificuldades monetárias, só conseguiu regressar a Portugal, em meados de 2020/2021. Tendo sido nessa altura, em meados de 2022, que tomou conhecimento da dissolução do matrimónio.
X. Porém, a Recorrente assume como sempre assumiu a casa sita em Faro, como centro da vida do casal, como seu centro de vida familiar.
Y. A Recorrente viveu ali com o seu marido desde o início do seu casamento, Janeiro/2003 a meados de 2009.
Z. E pretendia ali continuar a viver.
AA. Note-se que quando a Recorrente passou a residir no Paquistão, o Sr. (…) continuou a residir no imóvel de Faro, sendo indubitável, casa de morada de família. Inexistindo assim dúvidas de que a casa em questão constituiu a casa de morada do agregado familiar em causa, pelo menos até à data em que o falecido (…), ali viveu, até meados de 2013. O que é certo é que, a casa cuja atribuição agora se discute, constituía o local onde a família da Recorrente cumpria as suas funções relativamente aos cônjuges, constituindo a sede e o centro principal da maioria dos seus interesses, bem como o centro da organização doméstica e social da comunidade familiar.
BB. O facto da Recorrente ter deixado de ter contactos, directos, com imóvel, por decisão conjunta do casal, para ultrapassar a difícil situação financeira que enfrentavam, não pode resultar, que a casa tenha deixado de assumir a natureza de casa de morada de família.
CC. Nem tão pouco se diga que, pelo facto da Recorrente ter passado, transitoriamente, a residir no estrangeiro, perdera as prerrogativas que lhe atribuíam o direito à casa de morada de família.
DD. A lei não coloca nenhum limite temporal ao conceito de casa de morada de família, exige tão somente que se demonstre que o casal elegeu o lugar, como centro da sua vida familiar.
EE. Tanto assim é entendimento, que se admite a alteração à utilização da casa de morada de família, largos anos após a dissolução da relação matrimonial, atribuindo-se a mesma a quem dela, comprovadamente, mais necessite.
FF. Deste modo, é nosso entendimento, que o Tribunal a quo, com o devido respeito, fez uma interpretação muito extensiva, para lá do que o legislador, certamente, pretendeu na ratio legis.
GG. O conceito de casa de morada de família estabelece-se para acautelar os direitos dos ex-cônjuges, em resultado do termo da relação conjunta.
HH. Devendo atribuir-se ao ex-cônjuge que dela mais necessite.
II. In casu inexistem dúvidas de que é a Recorrente que dela necessita.
JJ. Sendo uma mulher idosa, com problemas de saúde.
KK. Que vive de favor em casa de terceiros, sem garantias de conseguir um tecto para o dia de amanhã.
LL. Conforme refere o Prof. Leite de Campos, in “Lições de Direito de Família e das Sucessões”, a págs. 305, “a casa de morada de família é, para uma grande parte das famílias, o único bem com algum significado económico de que dispõem”.
MM. Também Nuno de Salter Cid, in “A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português”, a págs. 8, refere que “a família precisa, naturalmente, de um espaço físico que lhe sirva de base, de sede, de um local onde possa viver e conviver, e é de algum modo essa exigência que tem em vista o artigo 65.º, n.º 1, da C.R.P., ao reconhecer a todos, para si e para a sua família, o direito a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
NN. O mesmo autor, a páginas 26, a propósito do conceito de casa de morada de família, escreve que “a expressão «casa de morada de família» é, no sentido comum imediato das palavras que a compõem, o edifício destinado a habitação, onde reside um conjunto de pessoas do mesmo sangue ou ligadas por algum vínculo familiar, e que «residência da família» é o lugar onde esse conjunto de pessoas tem a sua morada habitual, a sua sede”.
OO. A Recorrente nunca abandonou a casa de morada de família, apenas por acordo entre ambos, e como forma de minimizarem as despesas que assolavam o casal, foi temporariamente residir no Paquistão. Sempre com o móbil de regressar a Portugal, para junto do seu marido. E se, efectivamente, demorou mais tempo do que pretendia para regressar a Portugal, tal deveu-se às condições de elevada fragilidade que viveu no Paquistão, sem saber do paradeiro do seu marido, totalmente dependente de ajuda de familiares, numa cultura e políticas patriarcas, muito fechada, com imposições sérias de proibição às mulheres de prestarem serviço remunerado quando desacompanhadas de um membro masculino da sua família. Tendo sido essa a razão que levou a Recorrente a demorar tanto tempo a conseguir regressar a Portugal. Pois é ali que se sente em casa, como centro da sua vida familiar.
PP. Atendendo ao supra exposto, e considerando que se encontra provado e demonstrado que o imóvel, descrito em (2) nos factos dados como provados da Sentença recorrida se enquadra no conceito de “casa de morada de família”,
QQ. Bem assim, tendo ficado demonstrado, que a Recorrente necessita prementemente de ali residir, atendendo às dificílimas condições de vida que enfrenta, num momento de acelerada velhice.
RR. Requer a V. Exas. se dignem reapreciar a factualidade demonstrada, revogando-se a Sentença recorrida, julgando procedente o pedido apresentado pelo Recorrente, e consequentemente, atribuindo-se a casa de morada de família, do extinto casal, sita em Gaveto das (…) de (…) e (…), Lote 14, R/C Direito, em Faro, à aqui Recorrente.
Assim se fazendo a costumada e esperada Justiça!».

*
Não houve lugar a resposta do Ministério Público. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de erro de julgamento na subsunção jurídica realizada.
*
III – Dos factos apurados:
3.1 – Matéria de facto provada:
Com relevância para a acção, provaram-se os seguintes factos:
1 – (…) e (…) casaram no dia 1 de janeiro de 2003, no Paquistão.
2 – Encontra-se registado, por compra, a favor de (…), pela Ap. (…), de 21/05/1996, o prédio urbano, composto pelo rés-do-chão direito, sito em Gaveto das (…) de (…) e (…), (…), lote n.º 14, em Faro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º (…), da freguesia de Faro (Sé e São Pedro), concelho de Faro, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro com o n.º (…).
3 – Desde 2004[6], até meados de 2009, (…) e (…) residiram permanentemente no imóvel referido em 2.
4 – Em meados de 2009, (…) passou a residir na República Islâmica do Paquistão, tendo (…) permanecido em Portugal, até data não concretamente apurada.
5 – Por sentença, datada de 30/03/2011, proferida nos autos principais, transitada em julgado, foi dissolvido por divórcio, fundamentado na separação de facto por um ano, sem oposição do outro cônjuge, o casamento de (…) e (…).
6 – Nos autos referidos em 5, (…) foi citada editalmente e não contestou.
7 – (…) faleceu em 29 de Setembro de 2013, na República Islâmica do Paquistão, no estado de divorciado de (…).
8 – (…) aufere o valor mensal de € 189,66, a título de Rendimento Social de Inserção, não exerce qualquer actividade laboral, não tem familiares a viver em Portugal e reside, desde Março de 2022, em casa de uma amiga, a título gratuito, no (…), em (…), não podendo a mesma assegurar a manutenção desse alojamento por mais tempo.
*
3.2 – Matéria de facto não provada[7]:
Não se provaram os demais factos alegados, designadamente:
a) …, em meados de 2009, tenha passado a residir na República Islâmica do Paquistão, a pedido e com concordância de (…).
b) … tenha visitado (…) entre Setembro e Outubro de 2010 e entre Setembro e Outubro de 2012, no Paquistão.
*
IV – Fundamentação:
4.1 – Questão prévia:
A recorrente afirma que pretende a reapreciação dos factos apresentados a discussão. Porém, analisado o conteúdo e a estrutura da impugnação por via recursal, não é suscitada a modificação de qualquer ponto concreto da factualidade e, ainda que existisse essa intenção, não foi prosseguido o procedimento estabelecido no artigo 640.º[8] do Código de Processo Civil e isso implica a rejeição do recurso quanto a essa pretensão.
Depois, o recurso assenta num conjunto de proposições fácticas que não têm respaldo na matéria de facto provada e que constituem meras petições de princípio que não podem ser acolhidas pelo Tribunal ad quem, designadamente quando se pretende transmitir a ideia das visitas frequentes ao Paquistão, da consensualidade na separação de facto e da existência de motivo justificado para adiar o retorno a território português, entre outras justificações.
Nestes termos, mostra-se assim perfeitamente consolidada a matéria de facto apurada e é com base na mesma que será realizada a operação de subsunção ao direito.
*
4.2 – Erro na apreciação do direito:
A casa de morada de família goza de protecção especial, revelada e suportada em diversos instrumentos legais destinados a preservar os interesses dos ex-cônjuges e filhos consigo conviventes, através da ponderação do destino da casa de morada de família e dos termos da sua atribuição, que poderá inclusivamente passar pela constituição judicial de um arrendamento a favor de um dos ex-cônjuges, independentemente da natureza de bem comum ou próprio do outro[9].
A fixação judicial da regulação provisória da utilização da casa de morada da família é caracterizável como um procedimento especialíssimo ou incidente do processo de divórcio, distinto do processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada da família, configurando o primeiro uma antecipação dos efeitos da composição definitiva do litígio que se alcançará no último[10].
Pese embora esta dicotomia procedimental, no plano substantivo existe uma comunhão dos critérios a que o juiz deverá atender para atribuição da casa de morada de família e que são os referidos no artigo 1793.º[11] do Código Civil. Assim, aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do supra mencionado preceito, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deve deduzir o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.
O artigo 1793.º do Código Civil visa a protecção da casa de morada de família e do cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, não se destinando, pois, a sancionar o culpado pelo divórcio ou a compensar o inocente, nem a nela manter ou dela expulsar o cônjuge ou o ex-cônjuge que nela está, nem a desalojar um para nela ficar o outro.
Nos termos da legislação vigente cabe ao Tribunal decidir tendo em conta a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos e quaisquer outras razões atendíveis.
A lei não estabelece qualquer hierarquia entre os factores ou elementos contido na enunciação legal, mas isso não significa que uma certa diferenciação hierárquica não haja de ser estabelecida pelo Tribunal, em cada caso concreto e segundo aquilo que o bom senso indicar como solução mais justa[12].
A casa de morada de família deverá ser atribuída em função das necessidades de cada um dos (ex) cônjuges, assumindo particular relevância o «interesse dos filhos», devendo privilegiar-se, na ausência de prova da situação patrimonial das partes, aquela a quem os filhos menores do casal se encontram confiados e com quem residem[13] [14].
Compete ao ex-cônjuge que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo que a necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta (e não eventual ou futura), a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso[15].
Até realização da partilha de bens comuns, a decisão de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos ex-cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao ex-membro do casal privado do uso daquele bem ou, alternativamente, a definição modo de repartição dos custos relacionados com o pagamento do empréstimo e outros acessórios.
Tal como ressalta da decisão recorrida, a Requerente e (…) foram casados entre si e viveram no imóvel aqui em discussão entre 2004 e meados de 2009, passando, nessa data, (…) a residir no Paquistão, enquanto (…) permaneceu em Portugal, até ao momento da sua morte.
Com acerto foi afirmado pelo Tribunal recorrido que «o dissolvido casal já não reside nessa casa há catorze anos, o ex-cônjuge faleceu há já dez anos e a ex-cônjuge esteve cerca de dez anos no estrangeiro, sem contactos relevantes com Portugal e sem qualquer notícia do destino daquela casa».
Não existe, assim, casa de morada de família. Mais, na hipótese judicanda, não nos encontramos já no domínio do direito da família, mas antes na esfera de protecção do direito sucessório, à qual não é aplicável a disciplina normativa chamada à colação.
Deste modo, ainda que existam dificuldades económicas e mesmo que haja a necessidade de uma habitação por parte da requerente, face à causa de pedir aqui em discussão, não sobra aqui qualquer possibilidade para julgar procedente o pedido de atribuição da casa de morada da família.
Assim, confirma-se a decisão recorrida e julga-se improcedente o recurso apresentado.
*
V – Sumário: (…)
*
VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, julga-se improcedente o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
*
Processei e revi.
*
Évora, 25/01/2024
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Vítor Sequinho dos Santos
Anabela Luna de Carvalho


__________________________________________________
[1] Artigo 639.º (Ónus de alegar e formular conclusões):
1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.
[2] Na visão de Abrantes Geral, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª edição, Almedina, Coimbra 2016, pág. 130, «as conclusões serão complexas quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o n.º 1 (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse (inocuidade) ou que constituem mera repetição de argumentos anteriormente apresentados».
[3] No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 137/97, de 11/03/1997, processo n.º 28/95, in www.tribunalconstitucional.pt é dito que «A concisão das conclusões, enquanto valor, não pode deixar de ser compreendida como uma forma de estruturação lógica do procedimento na fase de recurso e não como um entrave burocrático à realização da justiça».
[4] O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2013, in www.dgsi.pt assume que «o recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida)».
[5] No caso concreto, não se ordena a correcção das conclusões ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 639.º do Código de Processo Civil por que, na hipótese vertente, tal solução apenas implicaria um prolongamento artificial da lide e, infelizmente, no plano prático, a actuação processual subsequente constitui na generalidade dos processos uma mera operação de estética processual que não se adequa aos objectivos do legislador e do julgador.
[6] O facto de (…) e (…) residirem desde 2004 (até meados de 2009) permanentemente no imóvel melhor identificado em 2, constitui um facto complementar / concretizador do alegado pela Requerente no ponto n.º 9 da petição inicial, que resultou da instrução da causa, em particular das declarações prestadas pela Requerente (cfr. artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil).
[7] Relativamente aos factos não provados ficou consignado na sentença que «não sendo aqui de considerar a matéria de mera impugnação, conclusiva e de direito, que deverá ser ponderada em sede própria (…)».
[8] Artigo 640.º (Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto):
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
[9] Conforme acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/06/2017, in www.dgsi.pt.
[10] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26/04/2012, de 13/10/2016, de 23/11/2017, publicados em www.dgsi.pt.
[11] Artigo 1793.º (Casa de morada da família):
1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3. O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.
[12] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/11/2008, in www.dgsi.pt.
[13] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/05/2015, in www.dgsi.pt.
[14] Pereira Coelho, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, n.º 122, Ano 1989-1990.
[15] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/04/2015, in www.dgsi.pt.