Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
184/22.7 GBMMN-B.E1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
FORTES INDÍCIOS
MEDIDA DE COAÇÃO
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Quando na fase de inquérito, para a fixação da medida de coacção da prisão preventiva, se alude, como no art.º 202.º, n.º 1, als. a) a e) a fortes indícios o que se pretende é inculcar a ideia de que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma «base de sustentação segura» quanto aos factos e aos seus autores que permita inferir que o arguido poderá por eles vir a ser condenado e que, por conseguinte, essa base de sustentação deverá ser constituída por «provas sérias», provas que deixem uma impressão já nítida da responsabilidade do arguido objectivadas a partir dos elementos recolhidos.”( acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de agosto de 2018 (Processo n.º 142/17.3JBLSB-A.S1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt):
O crime de violência doméstica atinge como bem jurídico a dignidade da pessoa humana, no seu bem-estar físico, psíquico e moral, no âmago da saúde emocional, integrando a criminalidade violenta a que alude o artigo 1.º, al. j), do Código de Processo Penal.

Mal compreenderia a comunidade que uma pessoa possa perseguir a ofendida, ofendê-la na sua honra e ameaçar a vida daquela e dos filhos, e que pudesse continuar a movimentar-se e/ou a aceder livremente às vítimas, ou esta continuasse sujeita aos desmandos e vontades do arguido, sem que nenhuma medida, que efetivamente acautelasse esse perigo, fosse tomada pelo Estado no sentido de prevenir e acautelar a normal vivência social.

A comunidade exige e reclama proteção das vítimas e dela própria, face a estes comportamentos desviantes e violentos.

Existindo fortes indícios da prática de quatro crimes de violência doméstica e o fundado receio de continuação da atividade criminosa, é de recear que a libertação do arguido, e a possibilidade de circular livremente pela cidade, acedendo às vítimas, continuando a perpetrar os factos, possa causar alarme à sociedade em geral.

Como forma de consciencialização da necessidade de se manter fiel ao direito e de acautelar o perigo de perturbação de inquérito e de continuação da atividade criminosa entende-se que qualquer medida de coação não privativa da liberdade não se afigura no presente caso suficiente. Com efeito, o nível de violência física é particularmente assinalável, sendo acompanhado de uma referência constante a ameaças de morte dirigidas à esposa do arguido e aos seus filhos, o que, em conjugação e potenciado ainda pelo consumo de álcool, poderá levar a que o arguido consume tais ameaças.

Isto é, e por outras palavras, existe um claro e manifesto perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, não apenas olhando (em abstrato) para este tipo de criminalidade (cada vez mais presente na nossa sociedade e que urge combater eficazmente), mas também analisando, em concreto, a natureza e as circunstâncias do crime indiciado nos autos.

As demais medidas, como injunções ou proibições, apresentações periódicas ou outras menos gravosas, revelam-se insuficientes, na medida em que não obstam à continuidade da atividade criminosa, sendo apenas a privação da liberdade, ainda que em regime de permanência na habitação, a única via que pode acautelar este concreto perigo.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora
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I- Relatório

AA veio recorrer do despacho que (em 24-8-2022) lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva (entretanto substituída por OPHVE, de acordo com o previsto no despacho), suscitando as seguintes questões:

- inexistência de indícios fortes da prática dos crimes e violação do in dúbio;

- inexistência dos perigos previstos nas als. b) e c) do art. 204º CPP;

- aplicação de medida menos gravosa (prevista no art. 200º CPP).

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O MP respondeu pugnando pela improcedência do recurso.

Nesta Relação, o Exº PGA emitiu parecer no mesmo sentido.

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II- Fundamentação

Despacho recorrido (parte relevante)

“Consideram-se fortemente indiciados os seguintes factos concretamente imputados ao arguido:

1. O arguido e BB contraíram matrimónio no dia 12-06-2008 e fixaram residência no …, o que sucedeu até ao início do mês de abril de 2020, data em que passaram a residir na localidade de …, …, área desta comarca.

2. Fruto do aludido relacionamento nasceram os filhos menores do casal, CC, em …-…-2015, DD, em …-…-2017, e EE, no dia …-…-2020.

3. O aludido período de coabitação terminou no dia 12-06-2022, data em que a ofendida abandonou o domicílio comum, levando consigo as crianças.

4. Em data não concretamente apurada, que se localiza em meados no ano de 2017, foi diagnosticado a CC a doença de diabetes.

5. A partir da referida data, o arguido começou a desinteressar-se pela saúde do seu filho e nunca o acompanhou às consultas médicas.

6. Após o nascimento de DD, no dia …-…-2017, o arguido começou a ingerir bebidas alcoólicas com frequência, começou a encetar discussões com a ofendida e em data não concretamente apurada desferiu-lhe um soco na face, o que motivou a apresentação de queixa pela ofendida, no âmbito de processo de inquérito que correu os seus termos no …, que acabou por ser arquivado, tendo a ofendida abandonado o domicilio comum durante cerca de 6 meses.

7. Em meados do ano de 2018 a ofendida regressou ao domicílio comum.

8. Em datas não concretamente apuradas, mas cerca de 6 ou 7 meses após terem reatado a relação amorosa, o arguido após a ingestão de bebidas alcoólicas, no interior do domicilio comum, o que sucedeu em número de vezes não concretamente apurado, mas que ocorreu em várias ocasiões distintas, voltou a encetar discussões com a ofendida, dirigindo-lhe as seguintes expressões: “se eu te agarro, nem sabes o que eu te faço, puta, vaca taurina e vaca, dizendo-lhe que tinha amantes.”.

9. Nas mesmas ocasiões, o arguido dirigia as seguintes expressões aos seus filhos menores: “filhos de uma puta, vão para o caralho.”

10. No decurso de tais discussões, o que sucedeu em número de vezes não concretamente apurado, o arguido arremessou loiça e comida quente na direção da ofendida, provocando-lhe cortes, queimaduras e hematomas.

11. Numas dessas ocasiões, o arguido atingiu a ofendida junto do olho.

12. Nas mesmas ocasiões, em número de vezes não concretamente apurado, o arguido arrancou os fios e brincos que a ofendida tinha posto, o que lhe provocou hematomas e dores.

13. Em consequência de tais lesões, a ofendida nunca recebeu tratamento médico por sentir vergonha.

14. Em datas não concretamente apuradas, à hora das refeições, por vezes a ofendida ingeria um copo de vinho e nessas ocasiões o arguido, quando já tinha ingerido bebidas alcoólicas iniciava discussões com a mesma, e dizia-lhe que era alcoólica, que era má mãe, que se descuidava dos meninos, que andava sempre bêbeda.

15. Em data não concretamente apurada, no interior do domicílio comum, quando ainda residiam no …, no decurso da uma discussão, o arguido exibiu uma faca de cozinha na direção da ofendida, dizendo que a matava.

16. Noutra ocasião distinta, também no interior do domicílio comum, o arguido agarrou numa cadeira e arremessou-a na direcção da ofendida dizendo: “agora é que te mato”.

17. Nesse momento, a ofendida enrolou-se no sofá como forma de se proteger das agressões que estava a sofrer.

18. Em número de vezes não concretamente apurado, quando residiam no …, no decurso de discussões que o arguido encetava com a ofendida, este desferiu-lhe murros na face, provocando-lhe cortes nos lábios e hematomas na face, no entanto, em nenhuma dessas circunstâncias a ofendida recebeu tratamento médico por sentir vergonha.

19. Em data não concretamente apurada, quando a ofendida se encontrava grávida do seu filho EE, o arguido desferiu-lhe pontapés nas pernas e tentou atingi-la na barriga, o que não conseguiu concretizar porque a ofendida colocava as mãos à frente da barriga e encolhia-se para se proteger.

20. Em meados do mês de abril de 2020, o arguido e a ofendida fixaram domicílio em …, …, área desta comarca.

21. Após, o nascimento de EE, no dia …-…-2020, o arguido continuou a encetar discussões com a ofendida e com os seus filhos menores.

22. Em data não concretamente apurada, mas após 15-04-2020 o arguido fazendo uso de um mata moscas desferiu um número não concretamente apurado de pancadas nas pernas e nas costas dos seus filhos CC e DD e de seguida desferiu-lhes bofetadas na face e empurrões.

23. Como consequência direta da conduta do arguido os ofendidos sentiram dores.

24. O arguido não providenciou pelo tratamento médico das crianças.

25. Em data não concretamente apurada, no interior do domicílio comum, quando o seu filho CC se encontrava no sofá, o arguido dirigiu-se à criança e com as duas mãos apertou-lhe o pescoço, ao mesmo tempo que dizia que o matava.

26. Como consequência de tal conduta, a criança sentiu dores e acabou por defecar e urinar nesse local.

27. Em diversas ocasiões distintas, o arguido disse ao seu filho CC que não o queria na vida dele, que lhe desejava a morte, que haviam de morrer todos.

28. Noutra ocasião distinta, em data não concretamente apurada, após o mês de abril de 2020, no interior do domicílio comum, o arguido agarrou o seu filho DD pelos pés, virou-o de cabeça para baixo, levantou-o no ar e desferiu-lhe pancadas na cabeça, ao mesmo tempo que dizia, “mato-o como se faz a um coelho.”

29. Em datas não concretamente apuradas, o que sucedeu pelo menos em cinco ocasiões distintas, quer quando viviam no …, quer quando viviam em …, o arguido, fazendo uso de paus, ou de outros objectos atingiu o corpo da ofendida, causando-lhe hematomas.

30. Noutras ocasiões distintas, em datas não concretamente apuradas, durante o período de coabitação, o arguido agarrou a ofendida pelo cabelo e arrastou-a pelo chão até à rua, dizendo: “sai daqui que isto é tudo meu, não tens aqui nada, sai daqui senão rebento contigo, sabendo que esta não tinha para onde ir.”

31. No decurso de tais discussões, em número de vezes não concretamente apurado, o arguido empurrava a cabeça e o corpo da ofendida contra a parede, o que lhe provocava dores.

32. Em datas não concretamente apuradas, durante o referido período de coabitação o arguido, fazendo uso das suas mãos, apertou o pescoço da ofendida, causando-lhe dores, ao mesmo tempo que dizia que a matava.

33. Em diversas ocasiões distintas, durante o período de coabitação, o que sucedeu em datas não concretamente apuradas, o arguido desferiu pontapés nas cadeiras, nas portas e nos móveis ao mesmo tempo que dizia aos gritos, que acabava com todos.

34. Durante o referido período de coabitação, em diversas ocasiões distintas, o arguido disse à ofendida que lhe dava um tiro nos cornos se um dia ela iniciasse uma relação amorosa com outra pessoa.

35. Noutras ocasiões distintas, o arguido após ter desferido pancadas no corpo da ofendida, trancava a porta de casa e guardava a chave consigo, impedindo que a mesma pudesse sair de casa para receber tratamento médico ou pedir ajuda.

36. Durante o aludido período de coabitação, a ofendida não exercia qualquer actividade profissional, tratando das lides domésticas e dos filhos menores, tendo que pedir dinheiro ao arguido para a gestão da casa e para as suas necessidades, que o mesmo só disponibilizava quando queria.

37. No dia 12-06-2022, o arguido chegou a casa, iniciou uma discussão com a ofendida e dirigiu-lhe as seguintes expressões: “eu não vos quero aqui, desapareçam da minha vida, saiam o mais rápido possível, eu dou cabo de vocês todos. Ninguém se fica a rir de mim.”.

38. Nessa sequência o arguido empurrou a ofendida, no entanto nesse momento a ofendida conseguiu sair de casa, levando consigo as crianças.

39. No dia 15-06-2022, após a cessação do período de coabitação, a ofendida contactou telefonicamente o arguido pedindo-lhe que assinasse uns documentos para encerramento da conta bancária comum, tendo o arguido proferido a seguinte expressão, “se te apanhar aí numa esquina com alguém, dou-te um tiro nos cornos.”.

40. No dia 03-08-2022, cerca das 08h00 o arguido dirigiu-se à residência da ofendida, sita na Rua …, …, área desta comarca e tocou a campainha de forma insistente, ao mesmo tempo que proferia as seguintes expressões: “puta, vaca, és uma ordinária, vais pagá-las um dia, não me importo de ir preso, mas tu vais pagá-las, não me importo que os filhos fiquem sem mãe”.

41. Uma vez que a ofendida não abriu a porta, o arguido tentou introduzir-se na residência da ofendida através da janela da sala.

42. No dia 15-08-2022 o arguido deslocou-se à residência da ofendida, visando contactar a mesma.

43. Decorrente das condutas acima descritas, perpetradas pelo arguido a ofendida e os seus filhos menores sentem medo e sentem-se diminuídos, tristes e coarctados no seu bem estar físico e psicológico.

44. Em todos os momentos acima descritos, o arguido quis agir como agiu como agiu, sempre com o propósito concretizado de provocar medo e humilhação na ofendida perturbando-a física e psiquicamente, impondo a sua vontade através das expressões alusivas a morte, e contra a sua integridade física, não se coibindo de fazê-lo no interior do domicilio comum, coartando a liberdade da ofendida, dirigindo-lhe palavras ofensivas da sua honra e consideração, originando-lhe um medo constante das suas reações, temendo a mesma pela sua integridade física e pela sua vida, o que quis e conseguiu, demonstrando o arguido não possuir qualquer respeito pela ofendida enquanto sua esposa e mãe dos seus filhos.

45. Em todos os momentos acima descritos, o arguido quis agir como agiu, no interior do domicílio comum, bem sabendo que era progenitor das crianças, valendo-se da relação que tinha com os mesmos, da sua superioridade física e dos laços que os uniam, bem sabendo que as crianças estavam ao seu cuidado, tendo actuado com intenção de molestá-los fisicamente, denegrindo-os e humilhando-os, o que quis e conseguiu, revelando o arguido não possuir qualquer respeito pelas crianças, enquanto seus filhos, com quem coabitava, que do mesmo dependiam e que devia proteger.

46. Em todos os momentos acima descritos, agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Condições pessoais, económicas e sociais

47. Exerce funções como agricultor.

48. Aufere, aproximadamente, € 1.000,00.

49. Reside sozinho na morada indicada nos autos, custeando uma renda mensal de € 150,00.

50. Completou o 4.º ano de escolaridade.

51. Trabalha desde os 10 anos de idade.

Antecedentes criminais

52. O arguido não tem antecedentes criminais.

ELEMENTOS PROBATÓRIOS QUE INDICIAM OS FACTOS

O Tribunal alicerçou o seu juízo indiciário quanto aos factos nos seguintes meios

- Auto de notícia, de fls. 3 e 4;

- Certificado de registo criminal de fls. 22;

- Assentos de nascimento das crianças de fls. 23 a 25; - Assento de nascimento da ofendida de fls. 29;

- Declarações para memória futura de fls. 94 a 96, bem assim como a respetiva transcrição constante de fls. 168 verso a 179 verso;

- Aditamento n.º 4 de fls. 198;

- Auto de inquirição de BB, a fls. 130 a 132, 211 a 213;

- FF, de fls. 235 a 237.

Os factos relativos à situação socioeconómica do arguido decorreram das declarações prestadas pelo mesmo a este respeito, os quais não assumem relevância do ponto de vista criminal, razão pela qual o Tribunal tomou as mesmas em consideração, sem prejuízo do que se dirá infra.

Quanto aos antecedentes criminais, relevou o certificado do registo criminal junto aos autos.

O arguido prestou declarações, sendo que a versão dos factos apresentada pelo mesmo foi amplamente infirmada pelas declarações para memória futura prestadas pela ofendida BB, as quais são conformes com as várias inquirições da mesma ao longo do processo.

O arguido confirmou que se encontra casado com a ofendida, tendo da relação resultado o nascimento de CC, em …-…-2015, DD, em …-…-2017 e EE, no dia …-…-2020.

Quanto aos maus tratos físicos e psicológicos perpetrados contra a esposa e filhos, o arguido principiou por negar os mesmos.

Contudo, relativamente ao episódio em que vergastou o filho CC com um mata-moscas, após ser confrontado pelo Tribunal com a circunstância de tais marcas poderem ter sido vistas por terceiros em contexto escolar, optou por inverter a versão apresentada, embora relativizando o sucedido. Com efeito, referiu que estaria a usar o referido objeto e que, perante a necessidade de reprender o filho CC, recorreu ao mencionado objeto para tanto, admitindo que possa ter deixado uma marca no filho. Salientou que tal ato se materializou numa única vergastada.

Ora, tal permite concluir que o arguido foi moldando o seu discurso à medida que foi sendo confrontado pelo Tribunal, bem assim como ao adquirir a consciência de que determinados episódios ocorridos não se conteriam apenas – no que tange ao seu conhecimento – ao meio familiar, podendo ser corroborados por terceiros. Ademais, tal permite ainda concluir que o recurso à violência física contra os seus filhos é uma conduta que o próprio arguido assume, embora em diferente grau.

Acresce que o arguido referiu, inicialmente e de modo genérico, que a relação com a esposa teria terminado por vontade sua e que não teria qualquer problema em que a mesma refizesse a sua vida amorosa. Contudo, instado a concretizar as circunstâncias em que a relação terminou, acabou por explicar que a relação terminou por vontade da ofendida, embora atribua o términus da relação à alegada pressão de uma técnica da Segurança Social que identificou como “GG”, a qual teria transmitido a ofendida que teria de escolher entre manter a relação com o arguido ou afastar-se do mesmo, sob pena de lhe serem retirados os filhos. Instado a explicar a razão pela qual a referida técnica da Segurança Social veria o arguido como uma fonte de perigo, não conseguiu adiantar qualquer explicação e referiu não ter qualquer conflito anterior com a menciona técnica, o que apenas corrobora que terceiros exteriores ao contexto familiar percecionam o arguido como uma fonte de perigo para os filhos.

Referiu também que não teria qualquer problema em que a ofendida refizesse a sua vida com outra pessoa. Contudo, sem que nada lhe tivesse sido perguntado a respeito de um concreto novo companheiro daquela, o arguido fez questão de transmitir ao Tribunal que a mesma já teria um novo companheiro, bem assim como as objeções que teria face à escolha do mesmo. Ora, ficou claro que o que seria, numa primeira versão apresentada pelo arguido, uma questão bastante pacífica, afinal, na prática, não o é, o que permite concluir que o arguido não aceita, nem impulsionou, o fim do relacionamento como inicialmente pretendeu fazer crer ao Tribunal.

Relativamente à primeira queixa apresentada pela ofendida quando ainda residiam no …, mencionou ter conhecimento da mesma, mas referiu que esta surgiu a conselho da madrasta da ofendida. Instado a explicar qual a razão para que a mencionada pessoa sugerisse à ofendida a apresentação de queixa, não identificou qualquer razão.

O arguido confirmou que, após a separação do casal, por três vezes se deslocou à atual residência da ofendida, sendo que uma das ocasiões a GNR chegou ao local quando ainda se encontrava no mesmo. Instado a explicar porque razão, considerando que a finalidade alegada pelo arguido para se deslocar a casa da ofendida consiste em visitar os filhos, não permaneceu no local nas duas outras ocasiões até à chegada da GNR, referiu que tinha outros afazeres. Ora, sendo que o arguido alegou que pretenderia visitar os filhos, tal explicação é manifestamente destituída de sentido e contrária às regras da experiência comum.

O arguido explicou ainda que, numa ocasião, contactou a GNR para se deslocar à habitação para que pudesse constatar que a ofendida consome álcool em excesso, bem assim como, na sequência das tentativas de visitas aos filhos, apresentou queixas na GNR e na PSP e contactou os serviços do Ministério Público para que lhe seja permitido conviver com aqueles. Com efeito, por um lado, são frequentes as tentativas de instrumentalizar os meios institucionais para criar uma aparência de verdade e assim reverter um contexto fáctico desfavorável. Ora, tais diligências por parte do arguido não logram infirmar os demais elementos de prova existentes nos autos, nem permitem concluir pela credibilidade do mesmo, em face do supra exposto.

Ora, reportando-nos às declarações para memória futura, as mesmas trazem aos autos um relato circunstanciado e bastante pormenorizado dos vários episódios de violência física, psicológica e económica, sendo que as formas de violência se traduziram em constantes ameaças perpetradas pelo arguido contra a vida da esposa e dos filhos, insultos de variada ordem e agressões físicas.

Sob prisma diverso, cumpre salientar que as emoções vivenciadas pela vítima ao longo do seu relato perante Magistrado Judicial, bem assim como os desabafos que entrecortaram o seu longo relato, são compatíveis com o teor dos factos narrados, nomeadamente no que tange à sua gravidade, bem assim como relativamente à sua duração no tempo.

Ademais, a vítima apresentou um relato objetivo, existindo trechos que permitem compreender de modo evidente que não pretendeu empolar os factos para além da gravidade que os mesmos já assumem – note-se, a título de exemplo, o modo como negou perentoriamente a violência de natureza sexual em contexto de intimidade, bem assim como reconheceu períodos de mudança comportamental positiva por parte do arguido.

Impõe-se de igual modo salientar que o relato da ofendida foi ainda marcado pela indicação da corroboração de alguns episódios por terceiros sem qualquer ligação com o agregado familiar, bem assim como as deslocações a casa da ofendida e o episódio da agressão do arguido ao filho CC com recurso a um mata-moscas são, parcialmente, corroboradas pelo arguido.

O depoimento da arguida resulta ainda parcialmente corroborado pelo aditamento n.º 4 constante de fls. 198.

Foi ainda tomado em consideração o teor dos assentos de nascimento juntos aos autos, os quais permitem comprovar as relações familiares existente, bem assim como o casamento.

O crime de violência doméstica apresenta, as mais das vezes, a dificuldade de prova decorrente de os factos ocorrerem tendencialmente no domínio das relações privadas do agressor e da vítima, longe dos olhares de terceiros, e de, não raras vezes, pelas mais diversas razões, desde a vergonha, ao medo e ao desejo de que seja uma situação isolada, a vítima não relate imediatamente os factos, não recorra a serviços hospitalares e esconda até as marcas da agressão.

Contudo, nos presentes autos, a versão apresentada pelo depoimento de FF, a qual, de modo circunstanciado e objetivo, descreveu diversos episódios de agressões físicas e verbais perpetradas pelo arguido contra a esposa e filhos. Ademais, a testemunha, progenitora da ofendida e avó dos ofendidos, e, consequentemente, pessoa próxima do centro de vida familiar do agregado no qual ocorreram os factos indiciados, mencionou também diversos episódios de consumo de álcool pelo arguido, bem assim como de violência física que não são objeto dos presentes autos, mas que permitem corroborar a personalidade violenta e o descontrolo emocional vivenciado pelo arguido.

Em suma, as declarações do arguido não nos merecem credibilidade por força da negação genérica, a ausência de conformidades das mesmas face às regras da experiência comum, bem assim como as incongruências internas e adaptação do relato numa tentativa de adequado do mesmo ao decurso do interrogatório.

Deste acervo probatório não resulta apenas um mero juízo de indiciação fundada (mera imputação) pressuposto nos artigos 197.º a 199.º do Código de Processo Penal, o qual se traduz numa convicção objectivável sobre a probabilidade da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena. Ao invés, dos elencados elementos probatórios extrai-se, com segurança, a convicção de que a conduta criminal se verificou e que o arguido foi o seu autor e que, portanto, é alta ou séria a probabilidade da sua condenação, ou seja, existem fortes indícios da prática do crime (artigos 200.º a 202.º do Código de Processo Penal).

Para efeitos da presente decisão, perfilha-se a definição de “fortes indícios” tal como esta resulta explanada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de agosto de 2018 (Processo n.º 142/17.3JBLSB-A.S1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt): “Quando na fase de inquérito, para a fixação da medida de coacção da prisão preventiva, se alude, como no art.º 202.º, n.º 1, als. a) a e) a fortes indícios o que se pretende é inculcar a ideia de que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma «base de sustentação segura» quanto aos factos e aos seus autores que permita inferir que o arguido poderá por eles vir a ser condenado e que, por conseguinte, essa base de sustentação deverá ser constituída por «provas sérias», provas que deixem uma impressão já nítida da responsabilidade do arguido objectivadas a partir dos elementos recolhidos.”.

IV.DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA

Em consonância com a qualificação jurídica aduzida pelo Ministério Público no seu despacho de apresentação, entendemos que a factualidade fortemente indiciada é suscetível de integrar a prática, em autoria material e na forma consumada, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs. 1, als. a) e c), e 2, al. a), do Código Penal, relativamente a BB e três crimes de violência doméstica, p.e.p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. e), e n.º 2, al. a), do Código Penal, relativamente às crianças CC, DD e EE.

Note-se ainda que, mercê das alterações operadas ao artigo 152.º do Código Penal, ainda que se pudesse considerar que, quanto às crianças, não seria aplicável a al. e) do n.º 1 por força das regras da aplicação da lei no tempo, sempre seriam enquadráveis na al. d) do mencionado normativo legal à luz da redação anterior do referido preceito.

Este crime é grave, sendo punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.

A violência doméstica tem assumido um crescendo na prática desta comarca e do país, de um modo geral, perpassando todos os estratos sociais e classes económicas, sendo um crime gerador de alarme social e de intranquilidade pública ante as populações, pelo que as exigências reprovação social e de prevenção geral que se fazem sentir no caso são particularmente elevadas. Basta atentar no mediatismo e revolta geral que este tipo de casos suscita.

O crime de violência doméstica atinge como bem jurídico a dignidade da pessoa humana, no seu bem-estar físico, psíquico e moral, no âmago da saúde emocional, integrando a criminalidade violenta a que alude o artigo 1.º, al. j), do Código de Processo Penal.

Inexistem nos autos indícios da existência de causas de isenção da responsabilidade do arguido ou da extinção do procedimento criminal (artigo 192.º, n.º 6, do Código de Processo Penal).

V. DA ESCOLHA E APLICAÇÃO DA MEDIDA DE COAÇÃO

Elencados os factos indiciados e os elementos que sustentam o juízo de indiciação, e por esta via preenchido o fumus comissi delicti, cumpre analisar o periculum libertatis traduzido nos vários perigos vertidos nas alíneas. a) a c) do artigo 204.º do Código de Processo Penal. A este propósito, o julgador é convocado a realizar um juízo de prognose relativamente aos perigos de fuga, de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, de continuação da atividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas. Pese embora se trate de um juízo de prognose, este não se poderá deixar de ter na sua base os factos indiciados nos autos, sob pena de se converter num mero exercício abstrato que qualquer perigo permitiria considerar verificado.

Nas ilustrativas palavras do Tribunal da Relação de Guimarães cristalizadas no seu Acórdão de 18 de abril de 2016 (Processo n.º 1131/15.PBGMR.G1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt): “Trata-se de ensaiar um juízo de prognose quanto ao comportamento futuro da arguida, conjugando elementos tão díspares como os sentimentos manifestados na prática dos factos indiciados, a preparação escolar, o relacionamento e estruturação familiar e afectiva, os meios econoìmicos disponíveis, a existência e natureza de vínculos referentes à actividade profissional, os antecedentes por factos desta natureza.”.

Em idêntico sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 4 de fevereiro de 2014 (Processo n.º 68/13.0JELSB-A.E1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt): “(...) deverá tratar-se de um perigo concreto, ou seja, de um perigo não abstratamente presumido e sim concretamente justificado”.

À exceção do termo de identidade e residência (artigo 196.º do Código de Processo Penal), a afirmação de algum dos perigos mencionados no artigo 204.º do Código de Processo Penal é requisito cuja verificação é necessária para aplicação das medidas de coação previstas nos artigos 197.º a 203.º do Código de Processo Penal. Assim, procedamos a análise individualizada dos perigos convocados pelo caso vertente.

No que concerne ao perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo (al. b) do artigo 204.º do Código de Processo Penal), este terá de atender ao tipo de prova relevante para o processo e ao estado da investigação. Como refere o Tribunal da Relação de Lisboa no seu acórdão de 8 de outubro de 2003 (Processo n.º 7002/2003-3 – disponível para consulta em www.dgsi.pt), “o perigo a que se refere este preceito é, claramente e apenas, um perigo para a prova, servindo a medida aplicada para «evitar a manipulação do material probatório já in actis ou que potencialmente aí possa estar», ou seja, para enfrentar «o perigo de inquinamento das provas»”.

Revertendo ao caso concreto, atendendo à gravidade dos factos, ao maus tratos físicos e psicológicos perpetrados pelo arguido aos filhos e esposa, bem assim como a circunstância de no passado o arguido e a esposa já se terem separado e posteriormente retomado a relação e a insistência com que o arguido tem, desde a saída da ofendida da casa e morada de família com os filhos, procurado contactar a vítima, resulta existir um perigo para a aquisição da prova, podendo o arguido levar os filhos – ainda não ouvidos em declarações para memória futura – a faltarem à verdade ou condicionar os seus depoimentos.

Assim, caso não seja aplicada ao arguido medida de coação que o impeça, de forma efetiva, por si ou por interposta pessoa, de interferir e de contactar a sua esposa e os filhos, tendo em conta a sua impulsividade e o seu descontrolo emocional, acarreta o perigo efetivo de os filhos poderem ser abordados e influenciados pelo arguido a não contribuir para a descoberta da verdade.

Considerando a personalidade do arguido, emitir um juízo de prognose de elevada probabilidade do arguido possa manipular, intimidar ou ameaçar a própria ofendida ou os filhos no decurso do processo, com vista a que a mesma altere os seus depoimentos ou a condicionar os depoimentos dos segundos, os quais assumem particular relevância neste tipo de crime.

Quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa (primeira parte da al. c) do artigo 204.º do Código de Processo Penal), deve principiar-se por salientar que a aquela se refere à prática de crimes da mesma espécie ou, dito de outra forma, que façam perigar bens jurídicos idênticos, não se visando com a referência a este perigo restringir uma personalidade que demonstre, em geral, fraca fidelidade a um comportamento conforme ao Direito. Neste sentido, o Tribunal da Relação de Évora salientou já que “o perigo de continuação da atividade criminosa, não se cingindo, é certo, à análise da pretensa identidade da natureza dos ilícitos por que foi antes condenado, manifesta-se, em concreto, nas circunstâncias dos crimes ora indiciados, reveladoras da necessidade de acrescida proteção contra atos similares” (acoìrdão de 2 de maio de 2017; Processo n.º 39/14.9GDSTC-B.E1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt).

Numa primeira aproximação, e ainda de forma genérica, podemos referir, lançando mão das palavras do Tribunal da Relação do Porto (acórdão de 11 de outubro de 2017; Processo n.º 343/17.4JAAVR-A.P1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt), que “a incapacidade do arguido de controlar os seus ímpetos” eì indício que permitirá emitir um juízo de prognose que leve a concluir que, em concreto, se verifica um perigo de continuação da atividade criminosa.

Ademais, ao tempo presente, é consabido que os crimes de violência doméstica são perpetrados de modo cíclico – designado “ciclo da violência doméstica”, marcado pelo aumento de tensão, ataque violento e lua-de-mel –, de intensidade crescente, sendo que a médio prazo, os ciclos tendem a repetir-se, a ser cada vez mais próximos entre si, aumentando igualmente a gravidade das condutas até aos desfechos trágicos, razão pela qual está sempre presente um intenso perigo de continuação da atividade criminosa.

Revertendo ao caso concreto, entende-se que existe um elevado perigo concreto de continuação da atividade criminosa, não só pela reiteração dos comportamentos ilícitos, como pela reiteração mesmo após a existência de um primeiro processo crime, bem assim como a insistência em contactar a vítima em momento posterior à separação.

A atuação do arguido, que os autos fortemente indiciam, evidencia uma personalidade de natureza obsessiva e possessiva, desprovida de capacidade de reflexão sobre o desvalor das condutas, evidenciando ainda a fortíssima probabilidade de o arguido continuar a persistir no comportamento criminoso em causa, do que é revelador a natureza e a reiteração dos seus comportamentos, incrementados pelo consumo desregrado de álcool, o que o próprio não assume.

Saliente-se que o próprio arguido referiu que procurou já a vítima na sua nova residência – recentemente – e opõe-se ao novo companheiro escolhido pela mesma, o que dá nota da personalidade do arguido. Ademais, resulta dos factos que, ao longo do relacionamento e já depois da separação, o arguido repete com elevada frequência ameaças de morte à vítima e aos filhos, referindo mesmo que não tem medo de ir preso, ou seja, da atuação do sistema de justiça, o que poderá potenciar atitudes descontroladas e motivadas pelo sentimento de impunidade ou de nada ter a perder após o fim do relacionamento, o que corresponde ao tipo de frequência em relações possessivas.

Cumpre também notar o elevado grau de violência das agressões físicas constantes dos autos, os quais remetem para um profundo descontrolo emocional após a ingestão de bebidas alcoólicas, o que poderá consubstanciar no catalisador para condutas mais graves.

No que respeita ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas (segunda parte da al. c) do artigo 204.º do Código de Processo Penal), trata-se de um perigo de análise particularmente difícil, o qual pode ser ilustrado através de um exemplo paradigmático, o qual ficou plasmado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13 de agosto de 2010 (Processo n.º 196/10.3JAFAR-A.E1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt). No mencionado aresto conclui-se que “no caso, entende-se que tal se mostra presente; os factos em causa ocorreram num meio eminentemente rural, onde rapidamente são do conhecimento geral. O arguido cometeu o crime sobre um seu trabalhador e, ao menos aparentemente, sem qualquer razão próxima e imediata que justificasse tal comportamento”. Se o primeiro elemento analisado – a velocidade de disseminação do conhecimento dos factos – não será de difícil verificação numa sociedade de informação como aquela em que vivemos, o segundo elemento – a ausência de motivação para o crime – coloca qualquer elemento da comunidade como potencial vítima do mesmo, assim se gerando a consequente intranquilidade. Mais do que o sentimento de reprovação de uma comunidade face ao crime, deve ser atribuído relevo à instabilidade que a prática do mesmo, por força da sua forma de cometimento e da personalidade do arguido, gera na vivência diária da comunidade.

Ora, no caso, existe o referido perigo. A violência doméstica tem assumido um crescendo na prática desta comarca e do país, de um modo geral, perpassando todos os estratos sociais e classes económicas, sendo um crime gerador de alarme social e de intranquilidade pública ante as populações, pelo que as exigências reprovação social e de prevenção geral que se fazem sentir no caso são particularmente elevadas. Basta atentar no atual mediatismo e revolta geral que este tipo de casos suscita.

Os factos fortemente indiciados revelam que a conduta do arguido é merecedora de acentuada e especial censurabilidade pelo cidadão comum e representam a negação de valores ínsitos à vida em sociedade, acarreta graves consequências de instabilidade social, posto que atenta fortemente contra as relações familiares e a paz social, que importa reforçar. Aliás, mal compreenderia a comunidade que uma pessoa possa perseguir a ofendida, ofendê-la na sua honra e ameaçar a vida daquela e dos filhos, e que pudesse continuar a movimentar-se e/ou a aceder livremente às vítimas, ou esta continuasse sujeita aos desmandos e vontades do arguido, sem que nenhuma medida, que efetivamente acautelasse esse perigo, fosse tomada pelo Estado no sentido de prevenir e acautelar a normal vivência social.

A comunidade exige e reclama proteção das vítimas e dela própria, face a estes comportamentos desviantes e violentos.

Existindo fortes indícios da prática de quatro crimes de violência doméstica e o fundado receio de continuação da atividade criminosa, é de recear que a libertação do arguido, e a possibilidade de circular livremente pela cidade, acedendo às vítimas, continuando a perpetrar os factos, possa causar alarme à sociedade em geral.

Isto é, e por outras palavras, existe um claro e manifesto perigo de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, não apenas olhando (em abstrato) para este tipo de criminalidade (cada vez mais presente na nossa sociedade e que urge combater eficazmente), mas também analisando, em concreto, a natureza e as circunstâncias do crime indiciado nos autos.

Uma vez analisados os perigos que o caso concreto permite vislumbrar, impõe-se elencar os princípios que presidem à escolha da medida de coação a aplicar. Desde logo deve destacar-se o princípio da legalidade consagrado no artigo 191.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, do qual a taxatividade das medidas de coação se pode considerar corolário. Dito de outro modo, a operacionalização dos demais princípios vê o seu campo de aplicação delimitado às medidas de coação previstas nos artigos 197.º a 203.º do Código de Processo Penal.

De entre o referido catálogo legal, por força do disposto no artigo 193.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a escolha da concreta medida de coação a aplicar deve ser determinada pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.

Quanto ao princípio da necessidade, este estabelece a ponte entre as exigências de natureza cautelar e a aplicação das medidas de coação. Na verdade, numa fase processual em que vigora ainda a presunção de inocência, a legitimidade para a restrição de direitos fundamentais – mormente, a liberdade – terá de se fundar, exclusivamente, nas exigências de natureza cautelar, estando estas relacionadas com os perigos (artigo 204.º do Código de Processo Penal) que se visam evitar.

No que concerne ao princípio da adequação, este representa uma aproximação ao caso concreto. Com efeito, trata-se de saber se, em face das exigências cautelares que o caso suscita, determinada mediada de coação será suficiente para aplacar os perigos identificados.

Por fim, relativamente ao princípio da proporcionalidade, este exigirá que as medidas de coação a aplicar sejam proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas. Este princípio conhece ainda manifestações em vários dos artigos atinentes às medidas de coação de que é exemplo a exigência de fortes indícios – e não apenas indícios – da prática do crime para a aplicação da proibição ou imposição de condutas, obrigação de permanência na habitação e prisão preventiva.

Valendo-nos da síntese vertida no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13 de julho de 2017 (Processo n.º 10/17.9PALGS-B.E1 – disponível para consulta em www.dgsi.pt), será “de salientar, por outro lado, que o princípio da presunção de inocência (afirmado no artigo 11.º, da DUDH, no artigo 6.º n.º 2, da CEDH, no artigo14.º n.º 2, do PIDCP e no artigo 32 n.º 2, da CRP) impõe a aplicação, entre as admissíveis, da medida de coacção menos gravosa, e com respeito pelos princípios da necessidade, da adequação, da proporcionalidade (artigo 193.º n.º 1) e da intervenção mínima, segundo um critério dito de concordância prática. Por que assim, supõe-se uma adequação qualitativa (aptidão à realização dos fins cautelares visados) e quantitativa (quanto à duração da medida), e impõe-se que a medida de coação seja proporcional à gravidade do crime e à sanção que, previsivelmente, venha a ser aplicada ao arguido”.

Aqui chegados, deve ainda ter-se presente o princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 193.º, n.º 2, do Código do Processo Penal. Deste decorre que as medidas de coação não privativas da liberdade devem preferir às medidas de coação privativas da liberdade, acrescentando o n.º 3 do citado artigo que, devendo ser aplicada uma destas últimas, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação em detrimento da prisão preventiva, contanto que aquela satisfaça de forma suficiente as exigências cautelares no caso verificadas.

O Ministério Público promoveu a aplicação da medida de coação de prisão preventiva. O Ilustre Defensor do arguido referiu que apenas deveria ser aplicada a medida de coação de TIR, já prestada.

O crime de violência doméstica é punido, in casu, com pena de prisão de 2 a 5 anos e atinge como bem jurídico a dignidade da pessoa humana, no seu bem-estar físico, psíquico e moral, no âmago da saúde emocional, integrando a criminalidade violenta a que alude o art. 1.º, al. j), do Código de Processo Penal.

Revertendo ao caso concreto, o arguido não tem antecedentes criminais, estando inserido a nível profissional.

Ora, no caso, resultam inadequadas e insuficientes quaisquer das medidas de coação previstas nos artigos 197.º a 200.º do Código de Processo Penal, por serem incapazes de remover os perigos acima referidos.

Como forma de consciencialização da necessidade de se manter fiel ao direito e de acautelar o perigo de perturbação de inquérito e de continuação da atividade criminosa entende-se que qualquer medida de coação não privativa da liberdade não se afigura no presente caso suficiente. Com efeito, o nível de violência física é particularmente assinalável, sendo acompanhado de uma referência constante a ameaças de morte dirigidas à esposa do arguido e aos seus filhos, o que, em conjugação e potenciado ainda pelo consumo de álcool, poderá levar a que o arguido consume tais ameaças.

Ademais, o arguido tem procurado a vítima na sua nova residência após a separação, o que dá nota de que tem já conhecimento de onde poderá localizar a mesma e consumar novas agressões ou escalar o grau de violência. Cumpre salientar que uma das agressões que o arguido pratica com mais frequência consiste em apertar o pescoço das vítimas, sendo ténue a linha entre a agressão e a consumação do homicídio, o que urge acautelar.

As demais medidas, como injunções ou proibições, apresentações periódicas ou outras menos gravosas, revelam-se insuficientes, na medida em que não obstam à continuidade da atividade criminosa, sendo apenas a privação da liberdade, ainda que em regime de permanência na habitação, a única via que pode acautelar este concreto perigo.

Sob prisma diverso, atento o número de crimes imputados ao arguido, a respetiva moldura penal e moldura penal do concurso, considerando ainda a postura do mesmo que torna inviável formular um juízo e prognose positivo ainda que lhe fosse aplicada pena inferior a cinco anos, a mencionada medida de coação é adequada e proporcional.

Assim, e caso se efetivem as condições necessárias para a vigilância eletrónica (artigos 4.º e 7.º, n.º 2 da Lei n.º 33/2010, de 02/09), entende o Tribunal que poderá o arguido aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com utilização desses meios.

Enquanto tais consentimentos não forem prestados e não forem instalados os meios de vigilância eletrónica, tal medida, só por si, não assegura adequadamente o perigo acima identificado, porquanto não é possível, tal como as medidas de coação não detetivas, fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao cumprimento da aludida medida de coação sem utilização dos mesmos, pelo que o arguido deverá aguardar os ulteriores termos processuais em prisão preventiva até se reunirem os pressupostos para a implementação de obrigação de permanência na habitação, mediante vigilância eletrónica, situação em que se manterá caso os consentimentos não sejam prestados ou a instalação não seja possível (artigos 1.º, al. j), 202.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 16.º, n.º 1 da Lei n.º 33/2010, de 02/09).

VII. DECISÃO

Em face de todo o exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 191.º a 194.º, 196.º, 201.º, n.ºs 1, 2, 3, 202.º, n.º 1, b), 204.º, als. b) e c) do Código de Processo Penal, e artigo 31.º, n.ºs 1, al. d) e 3, 35.º e 36.º, n.º 7, da Lei n.º 112/2009, de 26/09, e artigo 16.º, n.º 1 da Lei n.º 33/2010, de 02/09, determina-se que o arguido AA aguarde os ulteriores trâmites processuais sujeito às seguintes medidas de coação:

a) Termo de identidade e residência, já prestado;

b) Prisão preventiva, sem prejuízo da sua substituição pela medida de obrigação de permanência na habitação, fiscalizada por meios de vigilância eletrónica, assim que se mostrem satisfeitas as condições necessárias à instalação dos meios de vigilância eletrónica (artigos 4.º, n.º 4, e 7.º, n.º 2 da Lei n.º 33/2010, de 02/09).

Comunique, pela via mais célere, a presente decisão à vítima. *

Comunique nos termos do estatuído no artigo 35.º, n.º 3, da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto.

Solicite à DGRSP, com nota de muito urgente, a fim da imediata implementação da vigilância eletrónica na habitação, no prazo máximo de 48 (quarenta horas) horas, a informação prévia a que alude o artigo 7.º, n.º 2, da Lei n.º 33/2010, de 02/09, e a recolha dos consentimentos legais a que alude o artigo 4.º, n.º 4, da Lei n.º 33/2010, de 02/09, informando que o arguido se encontra no Estabelecimento Prisional e deu o seu consentimento para a aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica (artigo 4.º, n.º 2, da Lei n.º 33/2010, de 02/09)”.

*

Apreciando

No presente recurso insurge-se o arguido contra a medida de coacção de prisão preventiva (entretanto já substituída por OPHVE) que lhe foi aplicada, por entender que não se verificam indícios fortes dos factos que lhe são imputados (tendo sido violado o princípio do in dúbio pro reo), nem os perigos elencados no art. 204º CPP.

Pugna, finalmente, pela aplicação de medida menos gravosa (a prevista no art. 200º CPP).

Alega, entre o mais, que não estão indiciados com grau de certeza razoável, que o arguido tenha praticado os factos de que vem indiciado e muito menos que em concreto lhe venha a ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos, nem tão pouco factos concretos da personalidade do arguido que indiciem com também igual razoabilidade, a sua propensão para a prática de crimes da mesma natureza.

E que mesmo que assim se não entenda, em obediência ao primado do princípio da liberdade sobre a segurança, excepcionalidade e subsidiariedade da prisão preventiva, in casu, atentos os factos supra aduzidos, a personalidade do arguido, as exigências cautelares do processo, são suficientes as medidas previstas no art.º 200.º CPP, pelas quais se requer seja substituída a medida aplicada.

Contudo, tais invocações surgem-nos sem qualquer fundamento que validamente as estribe e desfasadas da realidade processual.

No tocante aos indícios fortes dos factos que lhe são imputados, para aferir da sua falta de razão, basta atentar nas parcelas assinaladas a negrito no despacho transcrito acima, encontrando-se as conclusões retiradas pelo Tribunal a quo perfeitamente estribadas nos meios de prova indicados e, tão pouco, se detectando qualquer violação do princípio in dúbio pro reo, pois que, avaliados os indícios segundo as regras da experiência e o princípio da livre apreciação, não se revela a existência de qualquer dúvida no espírito do tribunal sobre a forte indiciação dos mesmos, tendo sido formulado um juízo para além da dúvida razoável.

Sendo patente no presente caso que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um substrato racional de fundamentação e convicção, não se detectando a existência de qualquer situação de dúvida, sendo certo que tal princípio seguramente não será aplicável às dúvidas que o tribunal não teve mas que deveria ter tido na opinião do recorrente.

Não há, pois, que o censurar pela não aplicação do princípio in dúbio pro reo.

Já no tocante aos perigos previstos no art. 204º CPP, entendeu o despacho recorrido verificarem-se o perigo de perturbação do decurso do inquérito, o perigo de continuação da actividade criminosa e o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas (als. b) e c) do art. 204º CPP).

Ora, o decretamento de qualquer medida de coacção, com excepção do TIR, está sujeito aos requisitos enunciados no art. 204.º, os quais devem verificar-se em concreto, não sendo cumulativos, bastando a ocorrência de um destes pressupostos para justificar a restrição cautelar das liberdades fundamentais de um cidadão.

Artigo 204º

Requisitos gerais

Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:

a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

E, no presente caso, perante o teor do despacho recorrido, estão aqui em causa, desde logo a alínea c) do art. 204º e, igualmente, a al. b) do mesmo dispositivo.

Alínea c) essa que na vertente relativa ao perigo de continuação da actividade criminosa, resulta evidente in casu (bastando atentar para o efeito na sucessão de factos fortemente indiciados) e já é, em si mesma, bastante para justificar a aplicação da medida de prisão preventiva ou de OPHVE por que a mesma foi já substituída.

Acresce que tão pouco se nos afigura passível de censura a prognose efectuada, igualmente, no despacho no tocante à verificação ao perigo de perturbação do inquérito, sendo, porventura, mais duvidosa a verificação da perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, o que resulta irrelevante in casu.

Finalmente, os factos fortemente indiciados são graves tal qual se apreende da moldura da penas previstas para o tipo de crimes aqui em causa.

Não merece por isso qualquer reparo a decisão recorrida, nem por ter considerado verificados os requisitos previstos nas alíneas b) e c) do artigo 204° do CPP, esta última no tocante ao perigo de continuação da actividade criminosa, nem por ter considerado a prisão preventiva ou a OPHVE como as únicas medidas coactivas adequada ao caso, máxime para obviar aos perigos em causa.

Com efeito, a simples medida coactiva de proibição ou imposição de condutas (art. 200º CPP), no presente caso e perante este arguido em concreto e o respectivo historial decorrente da factologia fortemente indiciada, resultaria claramente inadequada para obviar aos assinalados perigos.

Ora, o que aqui está em causa é afastar de vez a possibilidade de repetição de comportamentos semelhantes.

Daí que apenas as medidas de prisão preventiva ou OPHVE se mostrem adequadas e proporcionais nesta situação, face à especial gravidade dos ilícitos fortemente indiciados (bem espelhada na moldura penal abstracta cominada para os mesmos - pena de 2 a 5 anos de prisão) e aos justificados perigos supra-referidos.

Acrescem ainda no caso as acentuadas exigências de prevenção geral que se fazem sentir relativamente a este tipo de crime, evidenciando-se assim como manifestos os requisitos da necessidade, adequação e proporcionalidade a que alude o art. 193°., n°.1 do CPP.

Falece, por conseguinte, o presente recurso.

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III- Decisão

Termos em que se nega provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.

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Évora, 14/3/2023