Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
440/18.9JALRA-A.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: HOMICÍDIO TENTADO
MEDIDA DE COAÇÃO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Data do Acordão: 02/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I - Como é sobejamente sabido, as decisões que aplicam medidas de coacção estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, só mantendo a sua validade e eficácia enquanto permanecerem inalterados os pressupostos em que se fundamentam. Verificada a alteração desses pressupostos, a decisão é modificável, devendo ser proferida uma outra que se mostre ser a adequada, suficiente para satisfazer as exigências cautelares e proporcional à gravidade do caso.

II – Assim, não se descortinando qualquer facto novo com aptidão suficiente para atenuar de forma significativa as exigências cautelares em que se alicerça a medida de coacção decretada – OPHMVE – a pretensão do arguido é de improceder.
Decisão Texto Integral:
I
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos autos de inquérito acima identificados, do Juiz 1 do Juízo de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, RR foi ouvido em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, findo o qual o Mm.º Juiz que a tal diligência presidiu entendeu que os autos indiciavam fortemente a prática pelo arguido de:

Ø Um crime de homicídio qualificado na forma tentada p. e p. pelos art.º 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1 e 2, 23.º, n.º 1, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2 al.ª c), e) e h), do Código Penal; e

Ø Um crime de dano simples. p. e p. pelo art.º 212.º, n.º 1, do mesmo código.
E decretou, na parte que agora interessa ao recurso, aguardasse o arguido os ulteriores termos do processo sob prisão preventiva, nos termos dos art.º 191.º, 193.º, 196.º, 202.º, n.º 1 al.ª a) e b), por referência ao art.º 1.º al.ª j) e 204.º al.ª a) e c), do Código de Processo Penal.

O despacho em que assim decidiu tem o seguinte teor, citado apenas na parte que agora interessa ao caso:
(…)

Compulsados os autos afiguram-se fortemente indiciados os seguintes factos:

No dia 9 de maio de 2018, pelas 15:00 horas, JV encontrava-se a trabalhar no terreno agrícola, sito em Rua da Escola, …, Torres Novas, propriedade de FD juntamente com o seu filho, JAV.

No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, também se encontrava o arguido, comproprietário do supra referido terreno agrícola.

Quando ali chegou, o arguido aproximou-se de JV e JAV e começou a gritar com estes, dizendo-lhes que não podiam cultivar no terreno nem estacionar a viatura no caminho que lhe dá serventia.

Devido ao comportamento agressivo do arguido, JV também começou a gritar com este.

Em ato contínuo, o arguido abandonou o local, dirigindo-se para o seu veículo automóvel de marca Volkswagen, modelo Golf, com a matrícula --AB que se encontrava estacionado junto à entrada do caminho de terra que dá acesso ao terreno agrícola.

Aí chegado, o arguido entra na sua viatura, coloca-a em funcionamento e, sem que nada fizesse prever, acelera e com a parte traseira embate violentamente na parte de trás do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Peugeot, modelo 504, com a matrícula JU----, propriedade de JV, que se encontrava estacionado no início do caminho de terra.

Devido ao embate dos veículos automóveis, os vidros da porta da bagageira de ambos partiram-se, fazendo um grande estrondo.

De imediato, JV começou a correr para o local para ver o que se tinha passado.

Quando chegou, colocou-se junto à traseira do seu veículo automóvel.

Ao vê-lo naquele local, o arguido introduziu a marcha atrás e acelerou, tendo, mais uma vez, embatido com a parte de trás da sua viatura na traseira do veículo automóvel de matrícula JU-, esmagando o corpo de JV.

De seguida, o arguido chegou o seu veículo automóvel à frente e, introduziu novamente a marchas atrás.

Sucede que, JAV que vinha atrás de seu pai começou a gritar para o arguido, dizendo-lhe para parar pois aquele já se encontrava prostrado no chão cheio de sangue.

De imediato, o arguido retirou a mudança de marcha atrás e abandonou o local rapidamente.

Devido à gravidade dos ferimentos, JV foi, de imediato, transportado para o Hospital de Abrantes, local onde ainda se encontra internado, com prognóstico reservado e muito grave.

Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, JV sofreu as seguintes lesões:

- traumatismo torácico;
- fraturas nas costelas (dorso direito);
- pneumotórax traumático direito (lesão no pulmão); e
- fratura exposta do fémur direito.

O arguido sabia que ao acelerar repentinamente o seu veículo automóvel e embatendo com o mesmo na parte traseira de outro veículo podia causar a morte a JV através de esmagamento de órgãos vitais e/ou hemorragias internas e externas.

Também sabia que a compressão de um corpo humano entre veículos automóveis é um meio particularmente perigoso para lhe causa a morte.

O arguido sabia que o facto de JV desenvolver trabalho agrícola num terreno seu em compropriedade com outras pessoas não era motivo para lhe tirar a vida, circunstância que só não se verificou por motivos alheios à sua vontade, nomeadamente rápida intervenção dos serviços de socorro dos bombeiros locais.

O ofendido nasceu em 10/09/1940.

O arguido sabia que o ofendido, em razão da sua idade claramente superior a 70 anos, tinha a sua capacidade de defesa significativamente diminuída sendo, por isso, mais difícil desviar-se do carro conduzido pelo arguido, naquelas circunstâncias, o que é do perfeito conhecimento deste.

O arguido agiu, assim, de forma deliberada, livre e consciente com o propósito não alcançado de tirar a vida a JV, através de uma conduta reveladora de especial censurabilidade, tendo em conta a futilidade do motivo.

O arguido agiu ainda de forma deliberada, livre e consciente com o propósito concretizado de provocar danos no veículo automóvel de JV.

O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
(…)
Quanto às necessidades cautelares concretas concordamos com o Ministério Público quando refere existir perigo de fuga, tendo em conta não só a gravidade dos factos e as sanções que lhe estão associadas mas também o facto de o arguido viver maritalmente com uma pessoa de nacionalidade brasileira, sendo pois de temer que o arguido possa voltar para o Brasil tendo ai o apoio da sua companheira e eventualmente da família desta.

Não se encontra demonstrada nos autos qualquer impossibilidade jurídica de o arguido regressar ao Brasil posto que este já voltou a Portugal em 2007 e ainda que por efeito de alguma pena que aí lhe tenha sido aplicada o mesmo possa ter ficado temporariamente impedido de regressar, o mais provável é que tal proibição tenha já caducado atentos os mais de 10 anos decorridos.

Existe também perigo de continuação da actividade criminosa e perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas tendo em conta a natureza dos factos que aqui se conhecem e que demonstram uma personalidade violenta, com baixa tolerância à frustração e pouco controle de impulsos por parte do arguido.

De igual modo se nota que estes factos emergem de conflitos entre o arguido e seu irmão relacionados com partilhas nos quais o ofendido foi (apanhado) pois amanhava um terreno em litígio com autorização do irmão do arguido.

Tais conflitos ainda não estão resolvidos pelo que situações como as dos autos poderão voltar a repetir-se.

Notamos também que estes factos, dirigidos contra um ofendido com 67 anos de idade e praticados num meio pequeno e rural geram grave perturbação na ordem e tranquilidade públicas que podem vir mesmo a redundar em atitudes de Justiça popular com a possível prática de novos crimes.

Tudo ponderado entendemos como o Ministério Público que apenas a contenção física da liberdade do arguido será suficiente para acautelar estes sérios perigos.

No entanto, e porque o arguido tem residência em local distante do da prática dos factos entendemos que caso se verifiquem os pressupostos legais e técnicos para a vigilância electrónica, as necessidades cautelares poderão ser satisfeitas mediante a medida de permanência na habitação prevista no artigo 201º, n.º1 do C. P. Penal.

No entanto e até que tais pressupostos sejam positivamente aferidos, a única medida adequada e suficiente para o caso dos autos será a prisão preventiva. Termos em que se decide ao abrigo dos artigos 191º, 193º, 196º, 202º, n.º1, al. a) e b) por referência ao artigo 1º, al. j) e 204º al.s a) e c), todos do C. P. Penal determino que o arguido aguarde os restantes termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.

O arguido não recorreu desta decisão.

Esta medida de coacção de prisão preventiva foi posteriormente, em 30-5-2018, convertida na de obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica (OPHMVE), o que foi feito através do seguinte despacho:

Foi aplicada ao arguido RR a medida de coacção de prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos 191°, 193º, 202°, n.º 1, als. a) e b) por referência ao artigo 1°, al. j) e 204°, als a) e c) todos elo Código Penal, indiciado pela prática em autoria material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, tendo em conta os perigos de fuga, continuação da actividade criminosa e perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas que emergem dos factos em causa.

Foi no entanto ponderada a possibilidade desta medida ser substituída pela medida de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica (OPHVE), caso os seus pressupostos técnicos e jurídicos se verificassem, tendo sido solicitado à DGRSP a respectiva informação.

Foi assim junta a informação de fls 157 a 159 que dá conta de que se mostram reunidas as condições objectivas para a substituição da medida de coacção de prisão preventiva pela medida de OPHVE, em local distante do da prática dos factos e da residência do ofendido e sua família.

Foi também recolhido o consentimento das pessoas que habitam na morada indicada.

O M.º P.º nada teve a opor à substituição da medida de coacção vigente pela OPHVE.

Esta medida afigura-se-nos pois adequada e suficiente para colmatar as necessidades cautelares suscitadas, mostrando-se agora demonstrados todos os requisitos técnicos, práticos c jurídicos de que depende a sua aplicação.

Termos em que, com os fundamentos expostos e ao abrigo dos artigos 194° a 196°, 200°, n.º 1, al. d), 201° e 204°, al. c), do CPP, decido:

- Substituir a medida de coacção de prisão preventiva, aplicada ao arguido RR, pela obrigação de obrigação de permanência na habitação, sob vigilância electrónica, na sua residência sita na (…)

O arguido também não recorreu desta decisão.

Posteriormente, em 26-9-2018, veio requerer a substituição desta medida de coacção pela de apresentações periódicas, a cumular se necessário com a medida de proibição de se ausentar do país, com base em que não existe perigo de fuga, nem perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, nem perigo de continuação de actividade criminosa ou perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, e ainda por ser cabeça-de-casal de uma herança, ter de prestar apoio a uma sua tia, ter ficado impedido de participar no campeonato regional de pesca de praia e ter tido uma recaída em relação a uma depressão que sofreu há alguns anos, indicando três testemunhas para provar que era bom cidadão e documentos para comprovar que é realmente cabeça-de-casal e tem uma procuração da tia e foi com ela diversas vezes ao médico e apresentou várias queixas contra o ora ofendido por questões emergentes da propriedade aonde indiciariamente ocorreram os factos que agora lhe são imputados e uma fotografia em que o arguido aparece com o rosto ferido e duas fotografias tiradas em meio rural a verem-se carros no meio de um caminho de terra batida – tudo ocorrências anteriores ao despacho que lhe fixou a prisão preventiva e, depois, a OPHMVE e que, na perspectiva do requerente, visavam dar a conhecer aspectos relacionados com o circunstancialismo em que ocorreram os factos e que os antecederam, acrescentando que o tribunal "a quo" nunca os pretendeu indagar, nem à personalidade do arguido.

Tendo então sido proferido o seguinte despacho:

Fls. 246 e ss.: O arguido RR encontra-se sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.

Vem agora requerer a alteração do seu estatuto coactivo, indicando como medidas a aplicar a obrigação de apresentação periódica, a cumular se necessário com a medida de proibição de se ausentar do país.

O MºPº opõe-se ao requerido, afirmando não ter ocorrido qualquer alteração dos pressupostos que determinaram o estatuto coactivo do arguido.
*
O artigo 212º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Revogação e substituição das medidas” estatui que:

“1 - As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:

a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou

b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.

2 - As medidas revogadas podem de novo ser aplicadas, sem prejuízo da unidade dos prazos que a lei estabelecer, se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação.

3 - Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução.

4 - A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo estes ser ouvidos, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e devendo ser ainda ouvida a vítima, sempre que necessário, mesmo que não se tenha constituído assistente.”.

Na interpretação deste artigo, a doutrina e a jurisprudência são unânimes em afirmar que as decisões sobre a aplicação de medidas de coacção gozam em regra de estabilidade, mas estão sujeitas à condição rebus sic standibus, ou seja podem ser alteradas se factos ocorridos ou conhecidos após a sua prolação ponham em causa os fundamentos que a sustentam.

O que já não é lícito é ao juiz reapreciar novamente os fundamentos da decisão anterior e alterá-la sem motivos supervenientes pois sobre tal matéria o seu poder jurisdicional já se esgotou.

Daí que se deve distinguir claramente a função do recurso e do pedido de alteração da medida de coacção.

Quando o arguido discorda do despacho que determinou a aplicação da medida de coacção e dos seus fundamentos, então o meio próprio para reagir é o recurso.

Se e arguido pretende invocar factos supervenientes que ponham em causa os fundamentos dessa decisão, então o meio próprio para o fazer é o requerimento de alteração/revogação da medida.
*
Da análise do requerimento do arguido, notamos que na sua quase totalidade vem este impugnar os fundamentos da decisão que fixou o seu estatuto coactivo, por deles discordar.

Quanto a estes, o poder jurisdicional do Tribunal já se esgotou, pelo que tais argumentos apenas poderiam ser ponderados em sede de recurso.

No mais, os factos alegados em nada contendem com os fundamentos da decisão, nomeadamente o facto de ser cabeça de casal de uma herança ou ter de prestar apoio à sua tia ou ter ficado impedido de participar no campeonato regional de pesca de praia.

Não podemos pois deixar de considerar o requerimento em análise como manifestamente improcedente.
*
Pelo exposto, indefiro o requerido e determino a manutenção da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação a que o arguido se encontra sujeito.
(…)
#
Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1 — O recorrente formulou nos autos e ao abrigo do previsto no Art°. 212°. do CPP, um requerimento através do qual pediu a alteração da medida coativa que lhe foi aplicada em sede de 1°. Interrogatório, o que em si determina o reexame dos pressupostos que a determinaram.

2 — Para o efeito, o arguido trouxe aos autos um conjunto de factos, acompanhados por 18 documentos que visaram dar a conhecer aspectos relacionados com o circunstancialismo em que ocorreram os factos objecto dos autos e que os antecederam, bem como factos relevantes relacionada com a sua vida pessoal e familiar e que podem dar a conhecer a sua personalidade e integração social, vertente esta que o Tribunal recorrido nunca procurou indagar, nem conhecer, firmando-se numa ideia pré-concebida, resultante de juízos de valor tecidos pelo responsável da Polícia Judiciária e vertidos no seu Relatório e pela versão do ofendido.

3 – Pelo que, o requerimento formulado e tendente a alcançar a alteração da medida coativa decretada e em execução, nunca poderia ser encarado como um recurso do despacho inicial que a aplicou, nem do posterior despacho que, para aquele remetendo, o confirmou na íntegra, ultrapassados que estão ao momentos para o efeito.

4 - O requerimento formulado pelo arguido tem perfeito enquadramento legal – o Art°. 212° do CPP – e visou, como do mesmo claramente se extrai, comprovar que no caso do arguido recorrente não estão no presente – porque já não estavam à data da prolação do despacho que decretou a medida – reunidos os pressupostos da aplicação da medida e, por outro, trazer aos autos um conjunto de factos e inerente prova que se afigura relevante em termos de aferição concreta e real da personalidade do arguido e da sua integração na sociedade, os quais o Tribunal desvalorizou e ignorou por completo, não ordenando a produção de prova.

5 - No que se refere à personalidade do arguido somente através de tal produção de prova poderá o Tribunal averiguar, de forma clara e inequívoca, se a mesma se apresenta positiva, manifestada por todos os sítios por onde passou, desde os círculos de vida social, profissional, desportiva, com vista a reconhecer que o mesmo tem uma vida familiar, profissional e social estável e equilibrada, que em nada se coaduna com a imagem que se pretende fazer perpassar nos autos acerca da sua pessoa.

6 - Sendo que, também no que se reporta ao alegado perigo de continuação da actividade criminosa há-de aferir-se o mesmo em função das circunstâncias referentes ao crime indiciado em concreto e dos elementos da personalidade do arguido (neste sentido, Ac. Tribunal da Relação de Guimarães de 18.04.2016).

7 - Ao arguido deve ser dada a possibilidade de trazer aos autos e produzir prova sobre factos que, em seu entender, abalem os fundamentos da medida coativa decretada, independentemente de conseguir, ou não, alcançar a sua prova cabal e positiva.

8 – Verifica-se que o despacho recorrido, nem sequer proferiu qualquer apreciação sobre os 18 documentos anexos aos autos, nem tão pouco se pronunciou acerca da prova testemunhal requerida, a qual é constituída por pessoas residentes na localidade de Pé de Cão, onde ocorreram os factos e que não só podem depor sobre os mesmos, como o podem fazer também sobre a pessoa do arguido.

9 - O Tribunal "a quo" tem a obrigação legal e até constitucional de fazer um exame e análise crítica do que foi trazido aos autos pelo arguido e ponderar e apreciar a todas as questões suscitadas pelo mesmo, aplicando o direito correspondente e concretamente no caso do recorrente, por estar em causa direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e a reapreciação dos fundamentos ou pressupostos que estiveram na base da aplicação da medida de coacção.

10 - No despacho proferido sobre o requerimento apresentado pelo arguido deve ser feita a aferição da subsistência das exigências cautelares que se reconheceram como verificadas, o que não ocorreu. Apesar de poder e dever tê-lo feito.

11 - O despacho recorrido encontra-se ferido de nulidade por falta de pronúncia e falta de fundamentação quanto à não apreciação dos documentos juntos, ponderação dos factos alegados e não decretamento da produção de prova testemunhal arrolada, tudo com vista à aferição em concreto dos pressupostos da aplicação da medida coativa e ao seu reexame.

12 - Na situação concreta dos autos inexiste qualquer perigo de fuga, de continuação da actividade criminosa – que nunca existiu – ou de perturbação do inquérito ou da recolha de prova, nem tão pouco qualquer perigo em função da personalidade do arguido.

13 – A medida coativa decretada mostra-se manifestamente desadequada, desproporcional e injusta face aos factos ocorridos e que não se coadunam com a prática de qualquer crime de homicídio tentado e face à personalidade do arguido e à sua integração social.

14 – O despacho recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, entre outros, os Arts 193°, 204°., 212°. do CPP e os Arts 27°., 28°. N°. 2 e 32°. N°. 2 da CRP, bem como o Art°. 5°. da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, devendo, em consequência, ser revogado.

Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente Recurso merecer provimento, e em consequência, ser o despacho recorrido revogado e substituído por outra decisão que reexamine e repondere no caso concreto a aplicação da medida coativa aplicada face aos pressupostos legais que a sustentam, ordenando-se para tal a produção dos meios de prova apresentados pelo arguido, com vista à substituição da medida coativa fixada por uma menos gravosa, com todas as legais consequências.
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O Exmo. Procurador do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:

1.ª
Os factos e a respectiva fundamentação, colocados em causa no despacho recorrido, não merecem qualquer censura.
2 a
Na verdade, todas as incidências pretendidas através do recurso a que se responde carecem de sentido, na medida em que já deveriam ter sido equacionadas aquando da prolação do despacho que originou a prisão preventiva do recorrente.
3.ª
Com efeito, ao permitir o trânsito em julgado, quer daquele despacho, quer do despacho subsequente sobre o mesmo assunto, o recorrente perdeu a oportunidade de impugnação das razões que levaram à aplicação da medida de coacção prisão preventiva, bem como aquela que lhe permitiria recorrer do respectivo reexame dos seus pressupostos.
4.ª
Isto porque foi dada ao arguido a oportunidade (processual) para impugnar tais despachos com actualidade face aos respectivos argumentos ora tardiamente aduzidos o qual, não os tendo aproveitado, suscitou agora, através de requerimento avulso, a imaginária possibilidade de alteração da medida de coacção em vigor.
5.a
Agora, repisando argumentos que, por omissão não efectuou noutras oportunidades, onde lhe era permitido tal tentativa, deitando por terra aquilo que, atempadamente, não fez, carece, em absoluto, de razão.
6.a
Apesar de o Tribunal "a quo" ter efectuado a alteração da medida de coacção de prisão preventiva, para a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, não só deu cumprimento aos ditames constitucionais sobre o thaema decidendum, como também deu cumprimento ao disposto no artigo 201.° n.°s 1 e 3 do CPP.
7.a
A prova indicada pelo recorrente para colocar em causa os perigos supra evidenciados, à semelhança do que aconteceu em ambos os despachos anteriores ao ora impugnado, para além de poder e dever ter sido indicada em momento anterior, nem por sombras de qualquer espécie teria a virtualidade de comprovar a pretensão do recorrente, quer quanto aos apontados perigos de fuga, de continuação da actividade criminosa e de alteração da ordem e tranquilidade públicas, face aos factos de que o arguido é objecto de aplicação da medida de coacção vigente, em contraste com a pretensão evidenciada no presente recurso.
8.a
O despacho impugnado fez correcta aplicação da lei e do direito, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.
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Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma do qual serão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem), o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.

De modo que a única questão posta ao desembargo desta Relação é a de se deve ser ou não – e passamos a citar o petitório final do recurso – o despacho recorrido revogado e substituído por outra decisão que reexamine e repondere no caso concreto a aplicação da medida coativa aplicada face aos pressupostos legais que a sustentam, ordenando-se para tal a produção dos meios de prova apresentados pelo arguido, com vista à substituição da medida coativa fixada por uma menos gravosa, com todas as legais consequências.

Vejamos:

Alega o arguido no ponto 11 das conclusões de seu recurso que o despacho recorrido encontra-se ferido de nulidade por falta de pronúncia e falta de fundamentação quanto à não apreciação dos documentos juntos, ponderação dos factos alegados e não decretamento da produção de prova testemunhal arrolada, tudo com vista à aferição em concreto dos pressupostos da aplicação da medida coativa e ao seu reexame.

Acontece que a referida omissão, a existir, não constitui uma nulidade, mas antes uma mera irregularidade (art.º 118.º e 123.º).

Tal vício, quando afecte o valor do acto, deve ser reparado a todo o tempo em que dele se tome conhecimento, constituindo até tal procedimento um dever de conhecimento oficioso (art.º 123.º, n.º 2).

Ora como é sobejamente sabido, as decisões que aplicam medidas de coacção estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, só mantendo a sua validade e eficácia enquanto permanecerem inalterados os pressupostos em que se fundamentam. Verificada a alteração desses pressupostos, a decisão é modificável, devendo ser proferida uma outra que se mostre ser a adequada, suficiente para satisfazer as exigências cautelares e proporcional à gravidade do caso.

O que implica, no caso concreto, verificar se no requerimento de 26-9-2018, no qual o arguido pretendia a substituição da OPHMVE pela de apresentações periódicas, a cumular, se necessário, com a medida de proibição de se ausentar do país, são apresentados ou não pressupostos de facto novos, isto é, pressupostos de facto que não existissem já à data em que foi proferido o despacho recorrido.

Ora, neste requerimento, além de o arguido se pôr a contestar a existência de circunstâncias que afinal não tiveram qualquer relevância na decisão impugnada, tais como os perigos de fuga, de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, a que aludem as al.ª a) e b) do art.º 204.º – pois que o despacho recorrido se baseou tão só no previsto na al.ª c) desse art.º 204.º: perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas – os demais elementos de prova apresentados são-no de factos e realidades que já existiam à data da prolação do despacho recorrido ou para pretender provar realidades de facto que também já existiam a essa data (como é o caso de ser cabeça-de-casal de uma herança, prestar apoio a uma sua tia, ter uma procuração da tia, ter ido com ela diversas vezes ao médico, ter apresentado várias queixas contra o ora ofendido por questões emergentes da propriedade aonde indiciariamente ocorreram os factos que agora lhe são imputados, a fotografia em que o arguido aparece com o rosto ferido e duas fotografias tiradas em meio rural a verem-se carros no meio de um caminho de terra batida).

As únicas circunstâncias invocadas que são posteriores ao proferimento do despacho recorrido são o campeonato regional de pesca de praia a que não pôde ir por estar em PHMVE e ter alegadamente tido uma recaída em relação a uma depressão que sofreu há alguns anos. Ora é evidente que o campeonato regional de pesca de praia não tem peso suficiente para levar à alteração da medida de coacção. E da alegada recaída da depressão não é junta qualquer prova válida, sendo certo que a mesma não se comprova com o depoimento de três amigos do arguido, ainda que fosse sobre isso ou também sobre isso que o arguido pretendesse fossem ouvidos – além de que, obviamente, a ocorrência de uma depressão nervosa ou a recaída numa depressão nervosa não são a solução milagrosa para se pôr termo a uma OPHMVE.

Por outro lado, a audição de três testemunhas para comprovar uma alegada honorabilidade que necessariamente já existia à data do proferimento do despacho recorrido não é um facto novo e superveniente.

Queixa-se, por fim, o arguido de o tribunal "a quo" nunca ter pedido um relatório social ou qualquer diligência similar que possibilitasse apurar a sua personalidade. Então e o arguido, não o podia também ter pedido? Mas não pediu. O relatório social interessa é na fase de julgamento, sobretudo para a escolha e graduação da pena, mas para esta actual fase do processo e atenta a concreta factualidade indiciada, nenhum interesse se lhe vê, uma vez que a personalidade do arguido de agora é obviamente igual à que tinha à data de prolação de qualquer dos despachos que lhe fixaram a situação coactiva, não é um dado novo.

Assim, no caso aqui em apreciação, não se descortina qualquer facto novo com aptidão suficiente para atenuar de forma significativa as exigências cautelares em que se alicerça a medida de coacção decretada – OPHMVE.

Daí que não tivesse o tribunal "a quo" que andar inutilmente a produzir uma prova que não servia para coisa alguma, tendo, ademais, embora que de forma sintética, se pronunciado sobre a demais prova oferecida, ao consignar que no mais, os factos alegados em nada contendem com os fundamentos da decisão, nomeadamente o facto de ser cabeça de casal de uma herança ou ter de prestar apoio à sua tia ou ter ficado impedido de participar no campeonato regional de pesca de praia.

É que, como se diz no ac. desta Relação de 31-8-2016, proc. 27/15.8GBSTB-A.E1, no caso concreto a pretensão real é a simples intenção de recorrer da decisão que determinou a sujeição do arguido à medida de coacção de OPHMVE, não da decisão de manutenção dessa mesma medida, que essa surge como intenção virtual. E a motivação estriba-se na linguagem enquanto instrumento de ocultação da básica intenção de interpor recurso da decisão primeira, que essa não pode ser já objecto de recurso.

Pode ser alterada, dado o dito supra, mas não pode ser alterada por via de recurso porque transitada.

Assim, só a existência de uma qualquer alteração factual, a ocorrência superveniente de facto ou alteração de direito justifica a reponderação dos elementos que são pressupostos da decisão.

Quer no seu requerimento aos autos quer no presente recurso o recorrente remete em maioria da matéria argumentativa para a primeira decisão judicial (…). E toda a argumentação, indiciação e factologia fundadora é remetida substancialmente para o despacho judicial inicial, enquanto simultaneamente se imputam nulidades à segunda decisão por omissões que só podem constar – e já constam – da inicial decisão.

A pretensão do arguido é pois de improceder.

IV
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em cinco UC’s (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).
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Évora, 19-2-2019

(elaborado e revisto pelo relator)

João Martinho de Sousa Cardoso

Ana Maria Barata de Brito