Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
349/17.3T8ORM-A.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: VALOR DA CAUSA
RECONVENÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
Data do Acordão: 01/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
1- Na determinação do valor da causa deve atender-se ao momento em que a ação é proposta, mas havendo reconvenção e sendo o valor desta, distinto, devem somar-se o valor da ação e o valor da reconvenção, passando a ser esse o valor “único” da causa, não havendo que fazer destrinças entre “ação principal” e “reconvenção”.
2 - Não estando em causa a validade formal do ato jurídico – escritura de justificação – mas sim o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinada coisa não deve relevar para a aferição do valor da causa o disposto no artº 301º n.º do CPC, mas antes o disposto no artº 302º do CPC, devendo ter-se em conta o valor da coisa na determinação do valor da causa.
3 - Embora competindo ao juiz a fixação do valor da causa este não pode deixar de ter em conta a posição das partes, assumida no processo, relativamente ao valor, quer ela seja expressa ou meramente tácita, só devendo modificá-lo, se o valor aceite por ambas as partes estiver em plena desarmonia com o valor real.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

Aa, BB, CC, DD e EE, intentaram ação declarativa, com processo comum contra, FF e GG que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém (Juízo Local Cível de Ourém), na qual alegam factos tendentes a peticionarem que os réus sejam condenados a reconhecer que os autores são os donos e possuidores do prédio rústico que identificam e a abster-se e ocupar qualquer parte do mesmo e a concorrerem para a demarcação entre este prédio e outro prédio pertencente aqueles com a colocação de marcos nos pontos indicados por estes.
Os autores na petição atribuíram à causa o valor de € 1.220,00.
Citados os réus vieram contestar e reconvir. Naquela sede para além de impugnarem parcialmente os factos, invocaram a ilegitimidade dos autores; a exceção do caso julgado; a ineptidão da petição inicial.
Em sede de reconvenção, à qual atribuíram o valor de € 7.500,01, peticionam que se decrete a nulidade do registo de propriedade efetuado pelos autores a seu favor sobre o prédio misto descrito na CRP de Ourém sob o n.º 5089, bem como a ineficácia da escritura de justificação judicial lavrada em 27 de agosto de 2008 no Cartório Notarial de Ourém, e o cancelamento do aludido registo.
Os autores AA, BB, DD e EE vieram deduzir incidente de intervenção provocada de HH.
Na réplica os autores concluem como na petição defendendo a improcedência de todas as exceções bem como dos pedidos reconvencionais.
Em 22/09/20917, na fase do saneador, foi proferido despacho que se pronunciou sobre o valor da ação nos seguintes termos:
Nos termos do artigo 306º, nº 2, do novo Código de Processo Civil, tendo em conta que é esse o valor do pedido formulado nos autos, fixa-se como valor da ação principal aquele que lhe foi dado pelos AA. e não foi impugnado pelos RR., ou seja o de 1.220 euros.
Na mesma altura e sequencialmente:
1 - Foi julgada procedente a exceção do caso julgado e absolvidos os réus da instância;
2 - Foi determinado o prosseguimento dos autos para “se proceder à apreciação da reconvenção deduzida pelos réus”;
3 - Foi declarada a suspensão da instância em face de se ter constatado, pelos documentos juntos aos autos a fls. 76 a 82, o falecimento do autor, ficando os mesmos a aguardar o impulso processual das partes, “designadamente a dedução de incidente de habilitação do A. falecido”;
4 - Foi indeferido “por falta de base legal” o incidente de intervenção provocada deduzido pelos autores.
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Irresignados vieram os autores AA, BB, DD e EE interpor recurso do despacho no que respeita à fixação do valor da causa, ao conhecimento da exceção do caso julgado e indeferimento do pedido de intervenção provocada, terminando as suas alegações por formularem conclusões relativamente a todas as vertentes impugnadas.
No entanto, como o relator já salientou no primeiro despacho proferido nos autos, na 1ª instância, por ora, só foi admitido o recurso da decisão que se pronunciou sobre “o incidente da fixação valor da causa,” defendendo-se no despacho de admissão do recurso na 1ª instância, que só “poderão ser aceites os demais recursos” se vier a ser “deferido este primeiro recurso” (sobre o valor da causa) e “for aumentado o valor da causa, conforme por eles requerido, de forma a que fique superior ao valor da alçada do Tribunal da 1ª instância”, pelo que só estando em causa a apreciação da decisão referente à fixação do valor da causa, as conclusões formuladas a ter em consideração são as seguintes:
1ª- Por ter havido reconvenção a que foi atribuído o valor não impugnado de 7.500,01€ não podia o Mmo Juiz fixar como valor da “ação principal” 1.220 euros, desatendendo assim a regra que excecionalmente impõe que o valor da causa tenha que corresponder à soma do pedido formulado pelos Autores com o do pedido formulado pelos RR.
2ª- Não foi aplicada, devendo tê-lo sido, a norma do artigo 299º nº 1, 2ª parte do Código de Processo Civil, impondo-se a fixação à causa de um valor único e total de 8.720,01€.
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Apreciando e decidindo

O objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, das conclusões resulta que a questão a apreciar é a seguinte:
– Do valor fixado à causa.
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Para apreciação da questão há que ter em conta o circunstancialismo supra referido no Relatório, que nos dispensamos de descrever de novo.

Conhecendo da questão
Nos termos do disposto no artº 296º n.º 1 do CPC, a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica, imediata do pedido, sendo que a “expressão causa é utilizada nesse preceito, em sentido amplo, abrangendo, não só o conceito de ação, litígio ou demanda, como também a reconvenção, os procedimentos cautelares e os próprios incidentes.”[1]
Nem os réus puseram em causa o valor indicado pelos autores na petição, nem os autores puseram em causa o valor indicado por aqueles na reconvenção e não estando os mesmos em conflito com as normas legais que regem a atribuição do valor para as pretensões quer da ação, quer da reconvenção, poderemos reconhecer serem os valores indicados os idóneos a ter em conta para a fixação do valor da causa.
Os autores insurgem-se diga-se, quanto a nós, com razão, pelo facto do Julgador a quo, mesmo que tivesse em mente, por via do conhecimento da exceção do caso julgado, absolver os réus da instância, relativamente ao pedido formulado na ação, quando da fixação do valor à causa, segmentar as realidades “ação principal” e “reconvenção”, quando era suposto que as tivesse analisado em conjunto na sua apreciação.
Com efeito, na fase do saneador eram conhecidas e estavam em apreciação as realidades decorrentes da ação e da reconvenção, e muito embora não exista (pelo menos neste apenso recursivo não é dado conta da sua existência) despacho expresso a admitir a reconvenção, a sua admissão decorre implicitamente do conteúdo do despacho que se seguiu à apreciação da exceção do caso julgado, determinando o prosseguimento dos autos para se proceder à apreciação dos pedidos reconvencionais deduzidos pelos réus.
Devendo em regra o despacho de fixação do valor da causa ser proferido na fase de saneamento do processo (cfr. Artº 306º n.º 2 do CPC) não podia o Julgador ter deixado de tomar em conta o valor da reconvenção.
Pois, embora, a regra geral estabeleça que na fixação do valor da causa se deve tomar em conta o momento em que a ação é proposta, uma das exceções expressamente previstas é o caso de ter sido deduzido pedido reconvencional (cfr. artº 291º n.º 1 do CPC), devendo no caso de os pedidos da ação e da reconvenção se apresentarem distintos, o que é o caso dos presentes autos, ser somado o seu valor (cfr. artº 291º n.º 2 do CPC), até porque a lei reconhece a produção de efeitos resultantes do aumento do valor em relação aos atos e termos praticados posteriormente à dedução da reconvenção, sendo que até ao momento da fixação do valor da causa por parte do juiz, não há necessidade de qualquer despacho prévio a declarar o aumento do valor, fixando-se automaticamente, no âmbito do processado subsequente à reconvenção, o valor indicado pela soma das pretensões formuladas na ação e na reconvenção, desde que haja distinção de pedidos.[2]
Por isso, o aumento de valor resultante do pedido reconvencional, embora não produza efeitos no processo anteriormente ao articulado contestação/reconvenção passa a produzir efeitos posteriormente, logo a partir da dedução do respetivo articulado, influindo designadamente na competência do tribunal em função do valor, bem como nas situações referentes à admissibilidade dos recursos,[3] de modo que, se alguma das partes depois da apresentação da reconvenção interpuser qualquer recurso, o valor da ação para efeitos do regime de recurso, passa a ser também o equivalente à soma a que alude o artº 299º n.º 2 do CPC.[4]
Nestes termos, o despacho impugnado referente à fixação do valor da causa, não poderá subsistir, devendo ser substituído por outro que tendo em conta as realidades ação e reconvenção bem como o valor atinente aos respetivos pedidos, indicado pelas partes e ao legalmente autorizado, fixe o valor à causa um valor «único» sem destrinças entre “ação principal” e “reconvenção”.
No âmbito da reconvenção é posto em causa uma escritura de justificação notarial que conduziu a que os autores adquirissem o direito de propriedade de um prédio, pretendendo os reconvintes a declaração da ineficácia dessa escritura e a nulidade dos atos registrais que conduziram à inscrição da propriedade por essa via em nome dos autores.
Com a justificação notarial o que se pretende é estabelecer o trato sucessivo nos termos dos artºs 116º do Código do Registo Predial e 89º a 101º do Código do Notariado.
Trata-se, assim, de um meio ou expediente técnico simplificado, de obter a primeira inscrição registral de um prédio que alguém afirma ser seu, apesar de ser um meio que não tem as necessárias garantias de correspondência com a realidade, pois é suficiente a declaração do interessado, confirmada por outros declarantes.
Dai que exista a válvula de escape que é a impugnação do facto justificado, mediante o processo judicial previsto no artº 101º do Código do Notariado, que constitui uma ação declarativa de simples apreciação negativa, visto com ela se pretender a declaração da inexistência do direito arrogado na escritura.
A final, o que o tribunal vai dizer é se os declarantes adquiriram ou não aquele prédio.
Não está, assim, em causa a validade do ato jurídico - escritura de justificação - mas sim o direito de propriedade que lhe está subjacente.
Ou seja, o que o demandante (no caso os reconvintes) pretende atingir é o direito de propriedade sobre o bem que o justificante declarou na escritura ser titular e não a formalidade que se tem por adequada e que a lei exige para a validade de tal direito.
Não estando em causa a validade formal do ato jurídico – escritura de justificação – mas sim o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinado bem não deve relevar para a aferição do valor da causa o disposto no artº 301º n.º do CPC, mas antes o disposto no artº 302º do CPC.
Por isso, no caso dos autos, estando, no fundo, em causa na reconvenção a declaração da inexistência do direito de propriedade dos autores relativamente a um bem imóvel, que tem por efeito o ressurgimento na ordem jurídica do direito de propriedade dos autores sobre o mesmo imóvel, tem de aplicar-se ao caso a regra inserta no aludido artº 302º n.º 1 do CPC nos termos da qual o valor da causa é determinado pelo valor coisa.
Quanto ao valor da coisa deve relevar, em princípio, o seu valor real. Mas não tendo havido divergência entre as partes relativamente ao valor indicado pelos réus na contestação/reconvenção, não tendo os autores usado da faculdade a que alude o artº 305º nº 1 e 2 do CPC,[5] impugnando o valor indicado pelos réus (o mesmo se diga, por estes relativamente ao valor indicado por aqueles, quanto ao pedido formulado na ação, como ,aliás, refere o Julgador a quo no despacho impugnado), significa que aceitaram tal valor (cfr. n.º 4 do deste citado artigo).
Embora competindo ao juiz a fixação do valor da causa (cfr. artº 306º n.º 1 do CPC) este não pode deixar de ter em conta a posição das partes, assumida no processo, relativamente ao valor, quer ela seja expressa ou meramente tácita, só devendo modificá-lo, no caso de estarmos perante uma situação como a dos autos em que se pretende fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa determinada, se o valor aceite por ambas as partes estiver em plena desarmonia com o valor real do bem.
O Julgador a quo não invocou qualquer divergência entre o valor atribuído pelas partes no âmbito do pedido da ação ao bem e o seu valor real, não havendo razões plausíveis para em face do acordo das partes, conforme resulta dos articulados, também não se aceite como adequado o valor atribuído pelos reconvintes à reconvenção, não havendo necessidade de iniciar qualquer processo de arbitramento para tal efeito, devendo-se, por isso, considerar relevante o valor atribuído à demanda reconvencional por estes, ou seja, o valor de € 7. 500,01.
Por isso, de acordo com o disposto no artº 299º n.º 1 e 2 do CPC o valor da causa deve ser fixado no montante de € 8.720,01 (€ 1220,00 + € 7 500,01).
Procede, assim, nos termos supra citados, a apelação.
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DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso interposto do despacho pelo qual se fixou o valor à causa e, em consequência, revogar tal despacho, fixando-se à causa o valor de € 8.720,01.
Sem custas.
Évora, 25 de janeiro de 2018
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Maria da Graça Araújo


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[1] - v. F. Ferreira de Almeida in Direito Processual Civil vol. I, 2 edição,557; Neste sentido Salvador da Costa in Os Incidentes da Instância, 4ª edição, 21; Rodrigues Bastos in Notas ao CPC, vol. II, 84; Jorge Pais do Amaral in Direito Processual Civil, 13ª edição, 95; Alberto dos Reis in Comentário ao CPC, 3º volume, 557, salienta que foi para abarcar as diversas realidades que “se empregou a palavra «causa» em vez da palavra «ação».
[2] - v. Jorge Pais do Amaral in Direito Processual Civil, 13ª edição, 99.
[3] - v. Lebre de Feitas e Isabel Alexandre in Código Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª edição,592.
[4] - v. Alberto dos Reis in Comentário ao CPC, 3º volume, 655.
[5] - Este dispositivo é aplicável à reconvenção com os efeitos a ela limitados, sendo que quando se alude a réu, deverá entender-se, nesse caso, autor/reconvindo e quando se alude a autor deverá entender-se a réu/reconvinte (cfr. v. Lebre de Feitas e Isabel Alexandre in Código Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª edição,600; Marco António Borges in A Demanda Reconvencional, 2008, 235).