Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
258/11.0GAOLH.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: MAUS TRATOS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
AMEAÇA GRAVE
VIOLAÇÃO
PERTURBAÇÃO DA VIDA PRIVADA
Data do Acordão: 10/01/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO DO ARGUIDO. NÃO PROVIDO O RECURSO DA ASSISTENTE
Sumário:
I. – São maus tratos psíquicos, para os efeitos do disposto no art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal (violência doméstica) o envio pelo arguido à ofendida de sms de teor manifestamente injurioso.

II. – O crime de violência doméstica não consome quaisquer outros crimes praticados pelo arguido contra o resto da família da ofendida, ainda que praticados no contexto espácio-temporal em que decorreu a violência doméstica.

III. – Mesmo tendo em conta que a vida é bem mais diversificada do que a previsão do legislador – não se vislumbra que numa relação de namoro ou entre cônjuges, na qual sem dúvida podem ocorrer situações de coacção sexual, p. e p. pelo art.º 163.º, n.º 1, e de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 1, possa ocorrer o crime do assédio sexual, quer na versão da coacção p. e p. pelo art.º 163.º, n.º 2, quer na da violação p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2.

IV. – Por força do disposto no n.º 1 do art.º 152.º do Código Penal, em que se prescreve que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal,os factos caracterizadores do crime de violação que tenha ocorrido no contexto espácio-temporal em que decorreu a violência doméstica separam-se e dão origem à verificação do crime de violação. Se após esta separação, restarem mais factos ou outros factos relativos à violência doméstica, eles continuarão a integrar e a dar corpo a esse crime de violência doméstica e à sua respectiva punição, em concurso real com a da violação.

V. – Uma imitação folclórica de um sabre, fabricado, vendido e comprado para servir de elemento de decoração comummente exposto na sala das casas de alguns cidadãos, ao qual nem foi feita qualquer perícia a descrever as respectivas propriedades, não pode ser considerado uma arma para os efeitos dos art.º 86.º, n.º 1 al.ª d), 2.º, n.º 1 al.ª f), 3.º, n.º 1 e 2 al.ª f) e 4.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23-2 (Regime Jurídico das Armas e Munições), por ser objecto comummente destinado à prática doméstica da decoração, que é sem dúvida uma aplicação definida e faz dele um objecto com aplicação definida, pois que arma não é (talvez seja preferível, definir o conceito negativamente, por exclusão) o objecto que, podendo excepcionalmente ser aproveitado para praticar uma agressão, não foi fabricado com essa finalidade nem é essa a sua utilidade normal. [1]
Decisão Texto Integral:
I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal colectivo acima identificados, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Olhão, em que A. se constituiu assistente, o arguido B. foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenado pela prática de:

-- Um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1 al.ª b) e c) e 2, do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão;

-- Um crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 1 al.ª a) e b), do Código Penal, na pena de 6 anos de prisão;

-- Um crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 1 al.ª a), do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão;

-- Um crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 1 al.ª a), do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão;

-- Um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;

-- Quatro crimes de ameaça agravada, cada um p. e p. pelos art.º 153.º e 155.º al.ª a), do Código Penal, nas penas de 6 meses de prisão para cada um;

-- Um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art.º 153.º, 155.º al.ª a), 145.º, n.º 1 e 2 e 132.º, n.º 2 al.ª d), do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão;

-- Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1 al.ª d), por referência aos art.º 2.º, n.º 1 al.ª m), 3.º, n.º 1 e 2 al.ª f) e 4.º, n.º 1, todos da Lei n.º 5/2006, de 23-2 (Regime Jurídico das Armas e Munições), na pena de 9 meses de prisão;

-- Três crimes de perturbação da vida privada, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 2, do Código Penal, nas penas de 9 meses de prisão para cada um;

-- Um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 1 e 3, do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão; e

-- Um crime de dano, p. e p. pelo art.º 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 12 anos de prisão;

Mais foi o arguido condenado nas penas acessórias de proibição de contactos com a vítima, A, e de proibição do uso e porte de arma, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 4, do Código Penal, pelo período de 5 anos, com início quando o arguido for colocado em liberdade.
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Inconformados com o assim decidido, quer o arguido, quer a assistente interpuseram recurso, apresentando o do arguido B. as seguintes conclusões:

i. O Recorrente B. foi condenado, por via do acórdão recorrido, pela prática, em autoria material, dos seguintes crimes: Um crime de Violência doméstica p.e p. pelo art. 152° nos 1, alíneas b) e c) e n°2 do Código Penal (doravante C.P.), na pena de 3 anos de prisão; Um crime de Violação, p. e p. pelo art. 164°, n°1, alíneas a) e b) do C.P., na pena de 6 anos de prisão; Um crime de Violação, p. e p. pelo art. 164°, n°1, alínea a) do C.P., na pena de 4 anos de prisão; Um crime de Violação, p. e p. pelo art. 164°, n°1, alínea a) do C.P., na pena de 4 anos de prisão; Um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210°, n°1 do C.P., na pena de 1 ano e seis meses de prisão; Quatro crimes de ameaça agravada, cada um p. e p. pelos arts 153° e 155°, alínea a) do C.P., nas penas de 6 meses de prisão para cada um; Um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 1530 e 1550, alínea a) do C.P., por referência ao art. 145°, n°s 1 e 2 e art. 132°, n°2, alínea d) do C.P., na pena de 6 meses de prisão; Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86°, n°1 alínea d), por referência aos arts. 2°, n°1, alínea m), 30, n°s 1 e 2, alínea f) e 40, n°1, todos da Lei das Armas e Munições, na pena de 9 meses de prisão; Três crimes de perturbação da vida privada, p. e p. pelo art. 1900, n°2 do C.P., nas penas de nove meses de prisão para cada um; Um crime de violação de domicílio, p.e.p. pelo art. 190°, n°s 1 e 3 do C.P., na pena de 1 ano de prisão; Um crime de dano, p. e p. pelo art. 212°, n°1 do C.P., na pena de 9 meses de prisão.

ii. Efectuado o cúmulo jurídico das penas acima referidas foi o Recorrente condenado na pena única de 12 (doze) anos de prisão.

iii. Foi ainda condenado nas penas acessórias de proibição de contactos com a vítima, A. e de proibição do uso e porte de arma, p. e p. pelo art. 152º, n.º 4 do C.P., pelo período de 5 anos, com início quando o arguido for colocado em liberdade.

iv. No entanto, o Recorrente não se pode conformar com a condenação proferida na medida em que considera que o Tribunal efectuou uma errada apreciação quer da prova produzida em julgamento, quer da prova constante dos autos.

v. Sendo que o Tribunal recorrido considerou provados factos que resultaram somente do depoimento da ofendida, negando o ora recorrente que tenham sucedido.

vi. Considera ainda que a decisão recorrida fez um enquadramento jurídico errado relativamente aos factos que considerou assentes.

vii. Considera o recorrente que a esmagadora maioria dos factos dados como provados não são verdadeiros.

viii. E são precisamente esses factos que se afiguram essenciais ao enquadramento e ponderação globais da factualidade sub judice e, em consequência, à boa decisão da causa.

ix. O Recorrente nega a ocorrência dos factos provados em 3 e 4 da factualidade.

x. Como é comum neste tipo de vivência, episódios de confronto e discussão relacionados com o consumo, ou falta dele, sucedem-se e consequentemente o tão necessário suporte familiar deixa de existir.

xi. Tanto o Recorrente como a Ofendida eram casados e tinham famílias estáveis, no entanto, o casamento de ambos veio a terminar, pelo facto de se terem envolvido e iniciado um relacionamento amoroso.

xii. O que fez com que as famílias de ambos, desde logo, não concordando com este relacionamento, se recusassem a conviver ou a ter qualquer tipo de intervenção na vida deste casal, deixando-os à sua sorte e sem qualquer tipo de apoio.

xiii. O Recorrente nega que os factos constantes nos números 3 e 4 dos factos dados como provados são falsos, acrescentando no seu testemunho que a ofendida frequentemente lhe dirigia ofensas igualmente graves, tais como "cabrão", "filho da puta" e "bandido".

xiv. Estes factos baseiam-se exclusivamente nas declarações da Ofendida, devendo portanto considerar-se a prova insuficiente.

xv. Devem os factos provados 3, e 4 da decisão recorrida passar a figurar na matéria de facto dada com não provada.

xvi. Também os factos constantes nos números 5, 6 e 7 da factualidade provada são falsos e decorrem somente do testemunho da arguida.

xvii. Ou seja, das testemunhas ouvidas nenhuma afirmou ter presenciado qualquer episódio de ameaças perpetrado pelo Recorrente contra a Ofendida.

xviii. Apenas sustentaram ter tido conhecimento indirecto (através da própria ofendida) dos alegados maus-tratos.

xix. Também não se pode afirmar que o descrito no número seis ocorresse na presença da filha do casal, ou mesmo da filha mais velha da ofendida.

xx. Pelo contrário, pelo testemunho da Ofendida e do Recorrente parece até existir um certo receio que as crianças possam presenciar tais cenas esforçando-se ambos por evitar que tal suceda.

xxi. Por esta razão, não parece credível que o Recorrente empunhasse "frequentemente facas, objectos com a aparência de armas de fogo e um sabre junto da ora ofendida, encostando, por vezes, essas armas ao pescoço ou cabeça da mesma."

xxii. Até porque, as crianças, nomeadamente a filha mais velha da Ofendida mantêm uma relação de afecto com o Recorrente não demonstrando estas qualquer problema de desenvolvimento, conforme decorre de relatório da Segurança Social e respectiva Regulação de Poder Paternal, referentes à filha mais nova do casal, ambos constantes nas fls. 50 a 58 dos autos, que certamente não se verificaria se estas crianças tivessem sido sujeitas a este tipo de confrontos, quase diários, na casa onde habitavam com os pais.

xxiii. A fls. 53 do referido Relatório Social pode ler-se "A menor tem um desenvolvimento adequado e normal relativamente à sua faixa etária"; "É uma criança comunicativa e sociável".

xxiv. Estes factos baseiam-se exclusivamente nas declarações da Ofendida, devendo portanto considerar-se a prova insuficiente.

xxv. Não pode o tribunal a quo dar tais factos como provados só porque a ofendida disse ter sido isso o que sucedeu.

xxvi. Assim e pela manifesta falta de elementos probatórios que os suportem, devem os factos provados 5, 6 e 7 da decisão recorrida passar a figurar na matéria de facto dada com não provada.

xxvii. Os números 10 a 20 da factualidade dada como provada, mais uma vez, baseiam-se somente no depoimento da ofendida, uma vez que na prova testemunhal produzida não se encontram alusões a maus-tratos físicos ou psicológicos presenciados por terceiros.

xxviii. Ou seja, das testemunhas ouvidas nenhuma afirmou ter presenciado qualquer episódio de violência física perpetrado pelo Recorrente contra a Ofendida.

xxix. Apenas sustentaram ter tido conhecimento indirecto (através da própria ofendida) dos alegados maus-tratos.

xxx. E se se pode aceitar que os maus-tratos que a arguida afirma ter recebido em casa podem não ter sido presenciados por terceiros, o mesmo não sucede com maus-tratos supostamente infligidos em público, nomeadamente aqueles a que se referem os números 39,40 e 41 do recorrido acórdão.

xxxi. Consta entre os factos dados como provados, nomeadamente nos números 10 a 20, que "o arguido queria sempre pôr fim a qualquer discussão mantendo relações sexuais pós-conflito contra a vontade da ofendida; que essas relações sexuais pós conflito ocorreram sempre contra a vontade da ofendida tendo o seu consentimento sido condicionado pelo medo que sentia do arguido e para evitar ser batida; que o arguido obrigou algumas vezes a ofendida, contra a sua vontade e mediante ameaça a tomar cocaína para melhorar as performances sexuais; que pretendia usá-la e desfeia-la tanto quanto possível para que, caso ela o deixasse, mais ninguém se interessasse sexualmente por ela; que lhe apertava os seios até ela gritar de dor e ficar com nódoas negras e que introduzia na vagina da ofendida a mão, o pulso e o braço do próprio até onde conseguisse, ou objectos, como garrafas e pepinos; que como consequência destas sevícias do arguido a queixosa sofreu, por várias vezes, rasgões vaginais e teve sangramentos fora do período menstrual; que antes do Natal de 2009, na sequência de uma discussão, o Recorrente agarrou a Ofendida pelos cabelos e arrastou-a pelo chão, tendo-a pontapeado e esmurrado por diversas vezes, por todo o corpo, encontrando-se a arguida grávida de seis meses e tendo-lhe pedido para parar; que na sequência deste episódio a Ofendida ficou com hematomas nos braços, nas pernas e na face, sobretudo nas órbitas que ficaram inchadas e roxas.

xxxii. O Recorrente nega veementemente que tais factos possam ter sucedido.

xxxiii. É certo que estes factos se passaram dentro da residência do casal, sendo por isso mais difícil provar que efectivamente sucederam, no entanto, cabe salvaguardar que este casal se entregava a práticas sexuais pouco comuns, nomeadamente à introdução de objectos na vagina da Ofendida, estas práticas eram consentidas ou pelo menos o Recorrente assim as entendia, não existindo motivos que o pudessem levar a crer que assim não era.

xxxiv. As declarações prestadas evidenciam claramente que nunca a Ofendida foi forçada a consumir ou a praticar qualquer acto sexual contra a sua vontade, ficando inclusive implícito que as zangas do casal "acabavam à chapada" o que não indicia que fosse o Recorrente a infligir maus-tratos físicos à Ofendida, indicia sim, como já se disse, uma discussão/confronto de um casal.

xxxv. Assim sendo, não se entende como vem a Ofendida, em sede de julgamento afirmar que estas práticas foram sempre condicionadas pelo medo que sentia do Recorrente e para evitar ser batida.

xxxvi. Até porque não há provas suficientes para se considerar que o Recorrente alguma vez exerceu qualquer tipo de violência física ou psicológica sobre a Ofendida.

xxxvii. No que respeita ao Relatório Completo de episódio de urgência no 11134959 do Hospital de Faro, constante a fls. 378 a 380 dos autos em apreço surge na sequência do episódio constante nos números 86 a 97 da factualidade provada em que o Ofendido alegadamente violou o domicílio da Ofendida e manteve relações sexuais de coito vaginal e coito anal contra a vontade da mesma e sob ameaça de arma branca, ao ler-se este Relatório percebe-se que dificilmente a Ofendida terá sido violentada, pelo menos nesta ocasião, até porque o facto de apresentar "rasgadas na zona do intróito vaginal" na vulva, não existindo sangue e estando a vagina rosada e as áreas anexiais sem alterações, facilmente se percebe que é uma situação pré-existente e que as referidas rasgadas poderão ter resultado de um dos partos, de uma IVG ou até de práticas sexuais anteriores, sendo certo que na sequência deste alegado episódio de violação, não foi.

xxxviii. Ou seja, não foi "consequência destas sevícias do arguido a queixosa sofreu, por várias vezes, rasgões vaginais e teve sangramentos fora do período menstrual", como consta no facto provado número 15.

xxxix. Note-se que este relatório encontra-se entre os documentos que foram valorados para formar a convicção dos juízes e fundamentar a sentença.

xl. No que se refere ao número 14 dos factos provados, "que lhe apertava os seios até ela gritar de dor e ficar com nódoas negras e que introduzia na vagina da ofendida a mão, o pulso e o braço do próprio até onde conseguisse, ou objectos, como garrafas e pepinos", como resulta do próprio testemunho da ofendida, estas práticas inseriam-se no âmbito do relacionamento sexual que este casal mantinha e que admitia e consentia este tipo de práticas menos habituais, se assim se entender.

xli. Além disso, a Ofendida não nega que fingia gostar deste tipo de práticas em nome da paz, mesmo que se aceite que a Ofendida só se submetia a estas práticas em nome da paz, não podia o Recorrente prever que assim fosse.

xlii. Relativamente ao episódio a que se referem os números 16 a 20 da factualidade provada, o Recorrente nega que tenham sucedido, até pelo facto de os mesmos se revelarem impossíveis dada a incapacidade do arguido de 60% no braço direito, conforme se pode comprovar a fls. 85 dos autos.

xliii. Como seria possível ao Recorrente, homem de estrutura pequena e franzina, com uma incapacidade de 60% no braço direito, arrastar pelos cabelos e pelo chão da casa a Ofendida?

Xliv.Também, não é verdade que "o arguido queria sempre pôr fim a qualquer discussão mantendo relações sexuais pós-conflito contra a vontade da ofendida" nem, pelo exposto poderia ser verdade que "essas relações sexuais pós conflito ocorreram sempre contra a vontade da ofendida tendo o seu consentimento sido condicionado pelo medo que sentia do arguido e para evitar ser batida'.

xlv. Como já se disse e conforme testemunho da Ofendida em sede de julgamento, é falso que o arguido a tenha obrigado, contra a sua vontade e mediante ameaça de tomar cocaína para melhorar as performances sexuais, até porque ambos eram consumidores habituais de cocaína.

xlvi. Nunca o Requerente disse "que pretendia usá-la e desfeia-la tanto quanto possível para que, caso ela o deixasse, mais ninguém se interessasse sexualmente por ela":

xlvii. Estes factos baseiam-se exclusivamente nas declarações da Ofendida, devendo portanto considerar-se a prova insuficiente.

xlviii. Não pode o tribunal a quo dar tais factos como provados só porque a ofendida disse ter sido isso o que sucedeu - quando inexiste qualquer outro elemento probatório que aponte no mesmo sentido.

xlix. Pelo que, devem os factos provados em 10 a 20 da decisão recorrida passar a figurar na matéria de facto dada com não provada.

l. Os números 22 e 23 dos factos dados como provados são falsos.

li. O envelope que consta nos autos não foi escrito pelo Recorrente, existindo até uma certa confusão da Ofendida, que contrariamente ao que consta no facto provado número 22, em que se diz "o arguido deixou à porta desse local, dentro de um tabuleiro de plástico", diz que "estava dentro de casa, (...) num tupperware", revelando até uma certa dificuldade em se lembrar da situação.

lii. Assim, apesar de a testemunha I. afirmar ter visto o referido envelope, não existem provas suficientes para afirmar que foi o Recorrente o autor deste facto, conclui-se portanto por inexistência de prova segura e credível que provem os factos alegados na factualidade inserta nos números 22 e 23 dos factos provados.

liii. Pelo exposto devem os factos provados em 22 e 23 da decisão recorrida passar a figurar na matéria de facto dada com não provada.

liv. No que respeita à factualidade provada nos números 24, 25, 26 e 27, a mesma é falsa uma vez que o Recorrente nunca apontou qualquer arma de fogo à Ofendida, até porque não possui armas de fogo sendo que a referida arma de fogo nunca foi vista por nenhuma das testemunhas, ou seja, apenas a ofendida afirma a existência da mesma não conseguindo no entanto precisar se é de plástico ou de metal, o que parece estranho atendendo a proximidade que supostamente estaria do Recorrente – dentro do carro.

lv. Até porque, nessa noite de consoada estavam já separados encontrando-se a Ofendida a residir com a sua família, não se entende como é que depois de todos os episódios de alegada violência física e psicológica, a Ofendida se ausenta, a meio da noite, da casa de seus pais para ir ajudar o Requerente que havia ficado sem carro, após avaria do mesmo – e não falta de gasolina como se diz no 240 facto provado.

lvi. Em condições normais, a Ofendida nem sequer se aproximaria do Requerente, muito menos a meio da noite, esta teria a obrigação de saber, se é que os factos que alega são verdadeiros, que poderia incorrer em variados perigos.

lvii. Assim, os factos dados como provados nos números 24 a 27 devem passar a constar nos factos não provados por não existir qualquer tipo de prova, além do depoimento da Ofendida, que estes tenham efectivamente sucedido nos termos que a mesma os descreve.

lviii. Já no que respeita o número 30 da factualidade provada, mais uma vez, não entende o Recorrente como pode a Ofendida vir dizer em sede de julgamento que quando falavam ao telefone ela o fazia por medo.

lix. Entende o Recorrente que tal facto não corresponde á verdade uma vez que eram um casal; durante a sua estadia em França a relação correu sempre bem entre os dois, à excepção de um episódio que sucedeu em que estiveram zangados cerca de quinze dias.

lx. Ainda que se conceda que a Ofendida o fazia por receio, não podia o Requerente imaginar sequer que assim fosse, uma vez que esta era, à altura a sua companheira, mãe da sua filha e como é habitual, estando fora do país, telefonava regularmente para saber dela e da filha de ambos.

lxi. Considera-se por isso falso o facto provado em 30 e mais uma vez este decorre somente das declarações da Ofendida, sendo certo que deveria ter sido considerado o facto de o Recorrente não poder prever que assim fosse, se é que de facto foi.

lxii. Devendo por isso a factualidade enumerada em 30 passar a constar nos factos não provados.

lxiii. Também os factos constantes nos números 39 e 40 da factualidade provada são falsos e decorrem somente do testemunho da arguida.

lxiv. Aliás, este episódio, em que a Ofendida afirma que o Recorrente a insultou no "Café ...", em frente a quem lá se encontrava e por diversas vezes, chamando-a "puta", não é confirmado por nenhuma das testemunhas arroladas pela acusação.

lxv. O que não deixa de ser estranho uma vez que se passou num sítio público, frequentado por amigos e conhecidos do casal.

lxvi. Nessa mesma noite, e não obstante o alegado incidente, conforme consta do facto provado número 41, Recorrente e Ofendida mantiveram relações sexuais.

lxvii. Nesta ocasião, o Recorrente, no decurso das alegadas relações sexuais, terá dito à Ofendida "pensa que tens um por trás e outro pela frente, grande puta", o que desde já se impugna visto o Recorrente não se lembrar de ter proferido esta frase.

lxviii. No entanto, a ter sido proferida esta frase, no âmbito da relação que mantinham, dever-se-á sempre considerar aceitável uma vez que no tipo de relacionamento íntimo mantido entre Recorrente Ofendida, eram permitidas as mais diversas práticas e fantasias sexuais, como aliás decorre dos testemunhos de ambos, não consubstanciando por isso qualquer tipo de crime, muito menos maus-tratos psíquicos.

lxix. Assim sendo, também os factos constantes nos números 39, 40 e 41 da factualidade provada são falsos e decorrem somente do testemunho da arguida devendo por isso passar a constar nos factos não provados.

lxx. Não pode o tribunal a quo dar tais factos como provados.

lxxi. Pelo que, devem os factos provados em 39,40 e 41 da decisão recorrida passar a figurar na matéria de facto dada com não provada.

lxxii. Nos números 42 a 54 da factualidade dada como provada, são relatadas quatro agressões que alegadamente o Recorrente cometeu contra a agredida e mais uma vez, baseiam-se única e exclusivamente nas declarações desta, o que continua sem fazer sentido uma vez que a única testemunha que presenciou um alegado mau trato foi a actual patroa da Ofendida – I., que alegou que uma vez viu o Recorrente puxar-lhe os cabelos na sequencia de uma discussão, no que se refere a este episódio o Recorrente relata-o de uma forma completamente diferente.

lxxiii. Assim sendo e de acordo com o testemunho do Recorrente, a situação que viviam era conflituosa, as discussões sucediam-se, a Ofendida saiu de casa várias vezes (no entanto voltava sempre um ou dois dias depois), sendo certo que nestas discussões os insultos parte a parte se sucediam; os puxões de cabelos, também, podendo eventualmente resultar alguma pequena escoriação na Ofendida e no Recorrente, no entanto, estas discussões aconteciam no âmbito de uma relação conflituosa e como já se disse, minada pelos vícios do álcool e da droga.

lxxiv. Sendo certo que as discussões existiram, o mesmo não se pode dizer da factualidade dada como provada nos números 42 a 54 que desde já se impugnam por não corresponderem à verdade devendo por isso passar a constar nos factos dados como não provados.

lxxv. Também nos números 56 a 63 da factualidade provada, o Recorrente é confrontado com factos que não correspondem à realidade e que se baseiam, mais uma vez, exclusivamente nas declarações da Ofendida.

lxxvi. Estas situações não correspondem à verdade, ressaltando sempre o facto de a Ofendida, mesmo depois de abandonar o lar conjugal com as suas filhas menores, voltar, pelas mais variadas razões, alegando sempre, em sede de julgamento, que nessas ocasiões os crimes de maus-tratos físicos e psicológicos bem como as ameaças, se sucediam.

lxxvii. Se existia tanto receio, se como várias vezes, em sede de julgamento a ofendida afirmou "Pensei que morria", porque voltou a viver com o Recorrente?

lxxviii. Assim, alega o Recorrente que os factos dados como provados nos números 56 a 63 são falsos, não nega que as discussões existiram, no entanto nunca fez qualquer tipo de ameaça ou praticou qualquer acto de violência física ou psicológica contra a arguida, negando inclusive as acusações de ameaças proferidas contra a ofendida.

lxxix. Efectivamente, no que respeita aos números 62 e 63, em que alegadamente o Recorrente retirou contra a vontade da Ofendida o telefone da mesma, sabemos pelos testemunhos de ambos que os telemóveis de ambos eram motivo de discussões entre estes e que com alguma frequência tanto o Requerente como a Ofendida retiravam os telemóveis um ao outro devido a mensagens ou conteúdos fotográficos existentes nos mesmos que eram sempre alvo de discórdia ou ciúmes.

lxxx. Impõe-se perguntar outra vez – Se a Ofendida tinha tanto medo do Recorrente, se saia de casa alegando maus-tratos, se era ameaçada e forçada a manter relações sexuais contra a sua vontade, por que razão, já a viver sob a protecção da sua família, combinava encontros, nomeadamente em casa do arguido "para lhe mostrar a filha"?

lxxxi. Não parece lógico que o homem médio, vivenciando a situação de terror alegada pela Ofendida, se dispusesse a combinar encontros com o alegado agressor, nomeadamente numa casa localizada num sítio ermo onde não estaria mais ninguém, além deste.

lxxxii. Assim, por não existir prova suficiente, devem os factos provados nos números 56 a 63 da decisão recorrida serem considerados não provados passando assim a figurar na matéria de facto dada como não provada.

lxxxiii. Novamente, na factualidade provada nos números 64 a 72, que o Recorrente considera falsa, se relata uma situação erradamente denominada de "cilada", que alegadamente o Recorrente preparou contra a Ofendida.

lxxxiv. Assim, o Recorrente nega veementemente o descrito nos números, 64 a 72 dos factos provados.

lxxxv. Primeiro porque não preparou cilada nenhuma, tendo simplesmente combinado um encontro com a mãe da sua filha, ora Ofendida.

lxxxvi. Segundo porque não fez nenhuma chamada em conferência com a sua filha mais velha no intuito de convencer a Ofendida que a mesma se dirigia ao local do encontro.

lxxxvii. Terceiro porque nunca ameaçou a Ofendida com nenhum líquido abrasivo porque simplesmente não o tinha, o que tinha era uma embalagem de Ajax Limpa Vidros que estava dentro do carro e que servira para limpar os estofos brancos da sua viatura automóvel.

lxxxviii. Ademais, a menor não foi atingida pelo produto, a não ser, considerando que tal sucedeu, pelo contacto com as mãos do Requerente, ainda sujas do produto – por ter estado a limpar os estofos - ainda assim, a Ofendida deslocou-se ao Hospital pois a menor apresentava, conforme relatório, "discreta hiperemia com rubor"

lxxxix. Esta situação fez com que o Requerente ficasse bastante desesperado pois quem se sentiu numa cilada foi ele, que só queria promover um encontro entre a sua filha mais velha e a mais nova - filha da ofendida.

xc. Aliás, nem sequer entende porque empreendeu a Requerida que o Ajax seria uma substância abrasiva, nem tampouco porque levou a Ofendida a menor ao Hospital pois a mesma não apresentava qualquer queixa; também não entende porque chamou a irmã da Ofendida a polícia ao local.

xci. Entende o Requerente que após a última separação, tendo a Ofendida passado a residir permanentemente em casa da sua família, nomeadamente com a sua irmã e cunhado - oficial da GNR, teria esta sido instrumentalizada no sentido de fazer queixa de quaisquer situações que entendesse serem dignas de afectar a sua dignidade ou mesmo integridade física ou psicológica.

xcii. O que não parece desadequado, a não ser, como sucedeu no caso em apreço, que as situações em causa consubstanciassem somente mais uma discussão de um casal desavindo e que parte dos factos relatados perante as autoridades fossem adaptações imaginativas a uma realidade bem mais simples.

xciii. As declarações de L., em tudo levam a crer que de alguma forma o cunhado da Ofendida lhe deu indicações de como agir perante certas circunstâncias, assegurando-se que o mesmo seria punido, fosse como fosse.

xciv. Note-se que em Tribunal, a Ofendida permite-se prestar declarações hipoteticamente confirmadas por um relatório médico, constante a fls. 97 dos autos em apreço, elaborado na sequencia deste episódio, em que se desloca ao Hospital de Faro com a filha mais nova, dando esta entrada com a indicação - prestada pela Ofendida - "Mãe refere que houve discussão entre os pais e criança foi atingida com ácido - apresenta rubor no pescoço, não apresenta dor"; após observação médica pode ler-se, entre outros elementos clínicos "Bem disposta e activa, corada, hidratada", "sem a presença de cheiro intenso, discreta hiperemia (rubor) ao nível do tronco':

xcv. Mais uma vez, este relatório médico encontra-se na fundamentação do acórdão recorrido como prova documental que serviu para formar a convicção dos julgadores.

xcvi. Aliás, parece-nos que toda esta conjugação de esforços, todas as queixas feitas na Polícia, todos os elementos entregues para investigação, nomeadamente as cuecas desta e do ofendido, os testes de ADN (inconclusivos), as transcrições das mensagens escritas que alegadamente o Requerente enviava para a Ofendida e para a sua família, entre outras provas documentais apresentadas, levaram a que o Requerente, que ingenuamente se julgava no meio de uma simples querela familiar, não tendo guardado quaisquer provas e não apresentando as poucas que tinha em sua defesa, levaram a que viesse a ser condenado numa pena única de 12 anos de prisão.

xcvii. Aliás não se entende como o colectivo de juízes não foi sensível ao depoimento do Recorrente, tendo validado praticamente todas as declarações da Ofendida.

xcviii. Senão vejamos, quase todos os factos de que a Ofendida se queixou foram dados como provados, isto apesar de o Requerente ter negado a maior parte destes e a prova produzida ser manifestamente insuficiente.

xcix. Existe um desequilíbrio entre a actuação do Recorrente e a da Ofendida, sendo que este, por respeito, nem sequer fez qualquer tipo de queixa, não acreditando nunca que estes factos pudessem ser deturpados e o levassem a ser condenado por crimes que não cometeu.

c. Assim, o descrito nos números, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71 e 72 dos factos provados são falsos, devendo por isso passar a constar nos factos dados como não provados.

ci. A partir do número 73 até ao número 77 dos factos provados, que desde já o Recorrente nega, são relatadas inúmeras situações que por si consubstanciam vários crimes, nomeadamente o de ameaça bem como a perturbação da vida privada.

cii. O Recorrente, bem como a Ofendida, trocaram diversas vezes de telemóvel, assim, todas as mensagens escritas enviadas, não se pode provar terem sido enviadas do telemóvel do Recorrente, nem tampouco escritas pelo próprio.

ciii. A Ofendida declarou não se lembrar de nenhum número de telemóvel por ter vários números, não conseguindo, mesmo confrontado com o número do qual foram enviadas as sms que constam nos autos, identifica-lo.

civ. Por esta razão, devem os factos provados nos números 73 a 77 serem considerados como factos não provados.

cv. Também a situação relatada no número 78 é falsa, conforme facilmente se comprova pela declaração da companhia de seguros, que se junta a este recurso, não só a declaração amigável foi feita entre o Requerente e a Ofendida como a própria companhia de seguros veio alegar que o prejuízo causado está orçado em 885,42€ e não em € 2000,00 como alega a Ofendida.

cvi. Ademais, tendo a Ofendida acedido a fazer a participação ao seguro, alertando inclusive o Requerente para ir embora do local, não se entende porque razão o aditamento à queixa na GNR, conforme decorre de fls. 168 dos autos, onde pode ler-se "(..) foi perseguida pelo seu ex-companheiro (...) após alguns minutos de perseguição e chegados ao número de polícia 152-R no veículo da marca Ford Fiesta, abalroou o veículo da denunciante quando esta já se encontrava parada no local a pedir auxílio a uns populares que se encontravam no local", "Disse ainda que é constantemente ameaçada, que sente medo e que teme pela sua vida e das suas filhas".

cvii. Mais uma vez, estes autos e aditamentos constam entre a prova documental valorada, servindo para formar a convicção do julgador.

cviii. Aliás, este facto provado no número 78 é ilustrativo de como a Ofendida fez um "caminho" certo na recolha de eventuais provas que pudessem servir para condenar o Requerente, terminando com o seu testemunho em audiência de julgamento onde a Ofendida, sem dó nem piedade, atribuiu ao Requerente todas as situações e mais algumas que em seu entender consubstanciassem qualquer tipo de crime.

cix. Esta situação é só mais um indício de que o depoimento da Ofendida poderá não só não corresponder à realidade, como é posição do Recorrente, como também se acha em inegável contradição com os elementos probatórios carreados nos autos.

cx. Deve portanto o facto provado em 78 passar a considerar-se como facto não provado.

cxi. No que respeita aos factos dados como provados nos números 84, 85 e 87 a 94 e que desde já se impugnam, por não corresponderem á verdade, é relatada uma situação em que o arguido, após ter cortado a pulseira de vigilância electrónica – que corresponde á verdade – e que consta do facto provado número 86, se deslocou à casa onde a Ofendida dormia com as suas duas filhas menores na mesma cama, acordando-a sob ameaça de martelo e faca, perguntando-lhe "De que forma é que queres morrer", forçando-a a ter sexo com este sob ameaça.

cxii. O Recorrente nega que este episódio se tenha passado como a Ofendida o relata, afirmando que efectivamente cortou a pulseira e se deslocou à casa da Ofendida, cuja porta se encontrava encostada, tendo forçado a persiana, afirma ainda que o martelo e a faca eram para se defender do cunhado no caso de este acordar e que nunca ameaçou a Ofendida.

cxiii. Afirma ainda que as relações sexuais mantidas com a Ofendida foram consensuais, tendo esta inclusive tomado a iniciativa de lhe fazer sexo oral.

cxiv. Aliás, em sede de julgamento, a Ofendida refere não ter accionado o aparelho e diz "eu abri as pernas e fiz-lhe a vontade, eu sabia que a maneira de ele ir embora era aquilo porque a loucura dele era o sexo".

cxv. Assim, não podem os factos descritos nos números 84 , 85, 87 a 94 serem dados como provados, uma vez que se baseiam nas declarações da Ofendida, não existindo qualquer prova testemunhal que suporte o testemunho desta, devendo por isso passar a constar nos factos dados como provados.

cxvi. Ademais, as provas documentais relativas a este episódio, nomeadamente o Aditamento à queixa feita na GNR, as folhas de suporte fotográfico da GNR bem como o episódio de urgência no Hospital de Faro, juntas aos autos, não só provam muito pouco como ainda deixam a dúvida, relativamente à veracidade deste episódio, a pairar.

cxvii. Declara a Ofendida que as relações sexuais mantidas foram "de penetração vaginal, sem ejaculação do B" - estas declarações são contraditórias com as que prestou 3 ou 4 horas depois no Hospital de Faro, pois nesse local "refere ter sido violada - relação vaginal e anal (aparentemente sem ejaculação)". Já em audiência de julgamento refere ter existido sexo oral, referindo o Requerente que foi ela que tomou a iniciativa.

cxviii. Obrigatoriamente a dúvida paira!

cxix. Como podia o Recorrente imaginar que as relações sexuais que manteve com a Ofendida não eram do agrado/consentimento da mesma se esta afirma que "abri as pernas e fiz-lhe a vontade" e até se como este afirma que a Ofendida lhe fez sexo oral por sua iniciativa própria?

cxx. Relativamente à reportagem fotográfica, esta apenas indica a verdade, ou seja, que o Recorrente limitou-se a subir a escada exterior do edifício e a levantar uma persiana.

cxxi. Também o declarado pelo GNR que se deslocou ao local, como já se disse, corrobora a nossa afirmação - "A entrada foi feita pela janela grande da sala. Para aceder a essa janela, basta subir as escadas exteriores e passar pela varanda, ou seja, não é necessário passar por portas ou arrombar o que seja".

cxxii. Os factos relatados em 99 e 100 também não correspondem à verdade.

cxxiii. O Requerido com os telefonemas que efectua, que são largamente inferiores ao número apontado pelos testemunhos da Ofendida, mãe, pai, irmã e cunhado da mesma, pretendia exclusivamente falar com a mãe da sua filha, não tendo nunca a intenção de perturbar o descanso, sossego ou sono destes.

cxxiv. Ademais, entende-se que o Requerente e a Ofendida utilizam vários números de telemóvel, constando inclusive nos autos a transcrição das mensagens atribuídas ao número 911755893, que poderia até na altura já não estar na posse do Recorrente, a expressão " (número que a mesma estava a usar na altura dos factos) "

cxxv. Ademais, não vivendo a irmã e o cunhado na mesma casa que a Ofendida, não se entende como podiam estes ser incomodados com os telefonemas que o arguido fazia para o telefone da residência da Ofendida.

cxxvi. Apesar de a irmã da Ofendida ter, em sede de julgamento lido algumas mensagens escritas que o Recorrente lhe enviou, não são ameaças nem ofensas, podem ser desestabilizadoras mas o Recorrente, nessas sms, a terem sido enviadas por si, apenas informavam sobre o que a Ofendida andaria a fazer, inserindo-se por isso num contexto de discussão familiar.

cxxvii. Pelo exposto devem os factos provados em 99 e 100 da decisão recorrida passar a figurar na matéria de facto dada com não provada.

cxxviii. Também nunca ameaçou, tal como consta dos números 101 e 102 a família da Ofendida não tendo por isso a intenção de provocar nos mesmos um estado de medo ou receio pelas suas vidas.

cxxix. Devendo por isso os factos dados como provados nos números 101 e 102 serem considerados falsos, passando a constar nos factos dados como não provados.

cxxx. Também relativamente aos factos dados como provados nos números 104 e 105 se afirma que os mesmos são falsos.

cxxxi. O Requerente, no que diz respeito ao Sabre que mantinha exposto como peça de decoração na sua casa, não sabia que era proibido deter ou guardar o mesmo, nem tampouco que este era considerado uma arma.

cxxxii. Este sabre nunca foi usado, nem sequer retirado da parede onde estava exposto nem tampouco utilizado para ameaçar a Ofendida ou a sua família.

cxxxiii. Relativamente ao acidente descrito no número 105 dos factos provados, como já se disse, foi um acidente, devidamente participado à seguradora conforme documento que se anexa.

cxxxiv. Ademais, conforme acima se expôs, referindo-se esta situação ao facto 78, dado como provado, reitera-se que também esta situação é falsa, conforme facilmente se comprova pela declaração da companhia de seguros, que se junta a este recurso, não só a declaração amigável foi feita entre o Requerente e a Ofendida como a própria companhia de seguros veio alegar que o prejuízo causado está orçado em 885,42€ e não em € 2000,00 como alega a Ofendida.

cxxxv. Assim, devem os factos dados como provados nos números 104 e 105 passarem a constar como não provados.

cxxxvi. Também, não se aceita o número 106 como facto provado devendo passar a constar nos factos dados como não provados.

cxxxvii. O Recorrente nunca agiu com o propósito de ofender fisicamente ou psicologicamente a Ofendida, nem tampouco se pode considerar que atentou contra a liberdade sexual da mesma com o intuito de ofender a sua honra e consideração ou de lhe causar medo ou ansiedade.

cxxxviii. O desgaste psicológico que a mesma assume dever-se-á certamente ao tipo de relação que este casal empreendeu bem como à situação de toxicodependência e fracos recursos económicos.

cxxxix. O arguido nunca molestou sexualmente a Ofendida, todas as relações sexuais que mantiveram, no entender do arguido, foram consentidas e como já se explicitou no corpo deste recurso, não podia o Recorrente sequer desconfiar que assim não era até porque, segundo as palavras da ofendida esta fazia-lhe a vontade, ou, fingia para ter a paz.

cxl. Assim sendo, não podia o Recorrente atentar contra a liberdade sexual da Ofendida uma vez que em seu entender, - e conforme decorre do testemunho desta onde afirma que lhe fazia a vontade e fingia - estas relações sexuais, além de consentidas seriam do agrado da Ofendida.

cxli. Assim, os factos dados como provados nos números 107, 108 e 109 devem considerar-se também como não provados.

cxlii. No que respeita aos factos provados nos números 110 a 131 não se contestam aceitando-os por isso como factos provados.

cxliii. Como se pode constatar, a esmagadora maioria da factualidade provada no acórdão de que ora se recorre, advém das declarações da Ofendida, não sendo possível que no espírito do julgador não tenha surgido a dúvida, até porque, a escassa prova testemunhal e documental é insuficiente.

cxliv. Não existindo, em processo penal, qualquer ónus de prova, e havendo no espírito do julgador uma dúvida, é de aplicar o princípio fundamental in dubio pro reo;

cxlv. O tribunal a quo não aplicou o referido princípio, violando assim um preceito consagrado constitucionalmente, o qual é caracterizador do nosso estado de direito.

cxlvi. Ora no caso em apreço, subsistem mais do que motivos para se poder considerar que, pelo menos a prova existente que para além de ser escassa e decorrente, praticamente só, das declarações da ofendida, por vezes confusas e esquivas, não permite ser valorizada suficientemente para produzir factos incriminatórios.

cxlvii. Por essa contraditoriedade ou insuficiência probatória, não se pode valorizar uma condenação, antes impondo por força da dúvida realçada, uma decisão favorável ao arguido não concluindo pelos factos de que vinha acusado e permitiriam preencher todos os tipos de crime que lhe são imputados.

cxlviii. Deve por isso a decisão condenatória ser modificada, antes se absolvendo o arguido dos crimes de violência doméstica; violação; roubo; ameaça agravada; detenção de arma proibida; perturbação da vida privada e violação de domicílio e crime de dano.

cxlix. Não nos podemos conformar com a fundamentação do acórdão, uma vez que consideramos que a prova produzida se baseou, repete-se, quase exclusivamente nas declarações da ofendida, violando assim o agora convocado princípio do processo penal, do in dubio pro reo.

cl. Ademais, o Recorrente, devido a esta relação que manteve durante quatro anos com a Ofendida, em que lutou contra a família desta e também, conforme resulta do seu testemunho, foi sujeito a várias humilhações e ameaças, desenvolveu uma depressão profunda sendo actualmente seguido por duas psicólogas e um psiquiatra no Estabelecimento Prisional de Olhão, onde se encontra detido.

cli. Também se deve considerar o facto de o Recorrente ser um indivíduo bem enquadrado na sociedade, sendo carpinteiro de profissão e tendo sempre desenvolvido a sua actividade profissional de forma continua, por conta própria, nomeadamente em França, para onde se deslocou à procura de melhores condições de vida para si e para a sua família.

clii. Ademais, o Recorrente contraiu o primeiro matrimónio aos 18 anos de idade, tendo o mesmo decorrido com harmonia até ao momento em que iniciou a relação com a Ofendida o que veio a destruir o casamento.

cliii. Deste casamento nasceu uma filha, actualmente com 25 anos de idade com quem o Recorrente mantém uma relação de grande proximidade e que se encarregava de levar a irmã (filha do Recorrente e da Ofendida) visitar o pai ao Estabelecimento Prisional de Olhão onde se encontra detido.

cliv. Estas visitas da menor - filha do Recorrente - ao Estabelecimento Prisional de Olhão, deixaram de acontecer desde que a Ofendida foi notificada do teor da acusação, facto que o Recorrente não entende e que lhe causa grande transtorno e infelicidade, desestabilizando-o.

clv. Em termos de socialização, conforme resulta do número 119 dos factos provados, o Recorrente "sempre deteve um leque vasto de conhecidos e amigos".

clvi. No que respeita ao problema de toxicodependência o Recorrente reconhece a sua problemática aditiva tendo inclusive face à manutenção do seu quadro de instabilidade, solicitado uma avaliação que veio a derivar num acompanhamento medico/psiquiátrico pelos serviços clínicos do Estabelecimento Prisional de Olhão, onde se encontra detido, estando actualmente a ser regularmente acompanhado e seguido nas consultas de Psiquiatria do EPM de Faro, tendo medicação prescrita, onde se inclui a toma de antidepressivos e ansiolíticos sob observação do pessoal de enfermagem, conforme fls. 777 dos autos em apreço.

clvii. Também relativamente ao seu problema de toxicodependência, conforme fls. 778 dos autos, vem o Recorrente a ter acompanhamento através do Instituto da Droga e Toxicodependência.

clviii. Em contexto prisional, o arguido é referenciado como detendo um comportamento adequado e isento de sanções disciplinares.

clix. No que concerne à postura da irmã e filha do Recorrente, atendendo aos factos assentes no presente processo, as mesmas evidenciam uma atitude que oscila entre a censura e a desculpabilização encontrando-se ambas disponíveis para o apoiar em meio livre desde que este cumpra o tratamento.
clx. De qualquer modo, a matéria de facto dada como provada excedeu manifestamente aquilo que os depoimentos e a prova documental autorizam que se permita concluir.

clxi. Deve o arguido ser absolvido no que concerne à alegada prática de todos os crimes por que vem acusado.

clxii. Tal como resulta da impugnação que acima se efectuou no que diz respeito à maioria dos factos dados como provados, não fica provado que arguido, agora recorrente tenha praticado qualquer ilícito criminal.

clxiii. Com efeito, não só é falso como ficou incorrectamente provado que o Recorrente tenha agredido a Ofendida, como, sobre esta, cometido qualquer tipo de violência, também não ficou provado que a tenha violado nem tampouco ameaçado, com ou sem armas, violado o domicílio ou perturbado a vida privada de ninguém.

clxiv. Assim sendo, não pode entender-se que tenha o Recorrente violado qualquer dispositivo plasmado no Código Penal.

clxv. E, como está bom de ver, ninguém pode ser condenado quando, na realidade, não fique provado que tenha cometido qualquer crime.

clxvi. Mas, assim não se entendendo, sempre terá que se afirmar que não pode conformar-se o Recorrente com a decisão recorrida no que concerne à qualificação jurídica dos alegados factos praticados por aquele.

clxvii. Ou seja, na subsunção daqueles ao crime previsto no art. 152° do Código Penal.

clxviii.No que diz respeito aos alegados maus-tratos físicos, que integram o tipo do art. 152° do C.P., pelo já exposto, não pode considerar-se que tenham existido.

clxix. Razão pela qual, deve o mesmo ser absolvido da prática de 1 (um) crime de violência doméstica por que foi condenado.

clxx. Reforça-se a inexistência de qualquer relatório médico que ateste que a Ofendida tenha ficado marcada ou, de algum modo, sido agredida, uma vez que o junto aos autos não o comprova, o que não sendo absolutamente indispensável, seria, naturalmente um meio probatório extremamente importante.

clxxi. Ou seja, bem vistas as coisas, não pode ter-se por provada a existência de maus-tratos físicos pelo Recorrente contra a Ofendida.

clxxii. Nenhum dos factos dados como provados revelam a prática pelo Recorrente dos ditos maus-tratos psíquicos.

clxxiii. O que existiu foi uma situação de conflito, que não nos parece que possa assumir qualquer relevo criminal.

clxxiv. As mensagens escritas alegadamente enviadas pelo recorrente á Ofendida, embora lamentáveis, em situações de conflito, parecem-nos desculpáveis e de qualquer modo não integram por si só o tipo legal para o crime em causa.

clxxv. Poderão revelar um comportamento belicoso, ciumento ou mesmo desesperado por parte do arguido, que telefonava ou directamente interpelava a Ofendida, mas não exerceu maus-tratos psicológicos sobre ela.

clxxvi. Poderá ter produzido, até, comentários descabidos, injustos ou, quiçá, falsos sobre ela, mas dos sms, que constam dos autos, nada se retira senão uma atitude, que muitas vezes se revela entre pessoas que mantêm ou mantiveram qualquer tipo de relação amorosa ou de cariz sexual e que por razões diversas se encontram em rotura.

clxxvii.Além disso, não podemos perder de vista que a Ofendida nada fez para que os sms (alegadamente injuriosos cessassem)!

clxxviii.Também nada fez para despromover encontros com o arguido, deslocando-se nomeadamente à casa deste, num local ermo, onde bem sabia que este se encontrava sozinho, a pretexto de lhe mostrar a filha.

clxxix. Ou deslocando-se a meio da noite, a pretexto de dar boleia ao Recorrente, deixando o amigo que o acompanhava em casa, bem sabendo que ficaria sozinha com o seu presumível agressor.

clxxx. Tudo isto causa a maior estranheza, que alguém, recebendo mensagens escritas que, segundo sustenta, altamente a ofendem, intimidam e ameaçam não mude imediatamente de número de telemóvel - não o fornecendo ao Recorrente ou que insista em promover "encontros" com quem a maltrata violentamente (de acordo com as suas declarações).

clxxxi.Entendemos portanto que a actuação do Recorrente no que se refere aos sms não assume gravidade suficiente para que se possa concluir que por via dela o Recorrente atentou contra a dignidade da pessoa humana da Ofendida de tal forma que revele um mau trato psicológico sobre ela.

cixxxii. As restantes situações referentes a maus-tratos psicológicos derivam das declarações da Ofendida não sendo por isso prova suficiente, ademais, como já se disse, a maioria das situações que consubstanciam os alegados maus-tratos psicológicos, como já bem se explicitou no corpo deste recurso, por si só, não consubstanciam o crime de violência doméstica.

clxxxiii. Assim, não pode sustentar-se que o Recorrente tenha exercido, sobre a Ofendida, qualquer dos tipos de violência que preenchem o tipo de crime previsto no art. 152° C.P.

clxxxiv. Não podendo ter sido, por isso, o Recorrente condenado pela prática de um crime de violência doméstica.

clxxxv. Aliás, ao condenar o Recorrente pelo crime que atrás se mencionou, violou a douta sentença o art. 152°, n°s 1, ais. b) e c) e 2 do C.P.

clxxxvi. Devendo por isso ser o Requerente absolvido do crime de violência doméstica.

clxxxvii. O Recorrente foi condenado pela prática, como autor material de 4 crimes de ameaça agravada, cada 1 p. e p. pelos arts. 153° e 155°, al. a) do CP e 1 crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 1530 e 155°, al. a) do CP, por referencia ao art. 145°, n°s 1 e 2 e 1320, n02, al. a).

clxxxviii. A punição do crime de violência doméstica afasta a punição por estes crimes".

clxxxix. Assim, tendo o Recorrente sido condenado pelo crime de violência doméstica não se entende como veio o Tribunal Recorrido a condená-lo por 5 crimes de ameaça agravada.

cxc. Ainda que assim não se entenda, os crimes de ameaça não se encontram provados e decorrem maioritariamente das declarações da ofendida e dos seus familiares próximos, a maioria consubstancia depoimentos indirectos "Ela contou-me".

cxci. Quanto às alegadas mensagens escritas enviadas para o telemóvel da Ofendida, como já se disse acima, não se pode provar que as mesmas fossem enviadas pelo Recorrente uma vez que ambos detinham vários telemóveis e vários cartões, mudando ou trocando um com o outro os mesmos.

cxcii. Ainda que se entenda que as referidas mensagens escritas tenham sido enviadas pelo Recorrente, as mesmas, por si só, não preenchem o tipo legal de crime uma vez que a terem sido enviadas estariam num contexto que se desconhece.

cxciii. O Recorrente nunca ameaçou a Ofendida, ou a sua família com a prática de crimes contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

cxciv. De qualquer modo, atendendo ao facto de o Recorrente se encontrar condenado pelo crime de violência doméstica, não podendo por isso ser condenado cumulativamente pelo crime de ameaça, não nos parece necessário tecer outras considerações relativamente ao preenchimento do tipo de crime.

cxcv. Aliás, ao condenar o Recorrente pelo crime que atrás se mencionou, violou a douta sentença o art. 153° e 155°, al. a) do C.P.

cxcvi. Devendo por isso ser o Recorrente absolvido dos crimes de ameaças.

cxcvii. No que respeita aos crimes de violação pelos quais o Recorrente veio a ser condenado, todos nos termos do art° 1640 n°1, não se entende e não se pode concordar que o sejam nos termos da referida alínea.

cxcviii. Os factos considerados provados nos presentes autos, no que respeita aos crimes de violação alegadamente cometidos pelo Recorrente, salvo melhor entendimento, inserem-se nas alíneas c) e d) do nº2.

cxcix. A violação prevista no número 1 é um crime de execução vinculada, uma vez que tem de ser cometida por meio de "violência", "ameaça grave" ou "acto que coloque a vítima em estado de inconsciência ou impossibilidade de resistir" (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 450), e no caso em apreço não foi o que aconteceu, conforme resulta do corpo do presente recurso.

cc. A ideia que o homem médio ficaria ao ouvir estes testemunhos seria que este casal, em práticas sexuais privadas e consentidas, se entregava a este tipo de "devaneios".

cci. Que a ofendida tenha posteriormente sentido humilhação e vergonha perante os actos por si praticados e consentidos, e talvez por estar sob a influência de drogas é uma coisa, diferente é condenar o Recorrente por um crime de violação quando os jogos sexuais a que este casal se entregava eram consentidos.

ccii. Ademais, conforme testemunho da Ofendida, o Recorrente não podia prever que a mesma não queria ter relações sexuais com ele uma vez que esta "para a paz" consentia, nas suas palavras "fingia", acedendo aos pedidos do Recorrente.

cciii. Ou seja, o Recorrente estava plenamente convencido que a Ofendida desejava manter relações sexuais com este, até porque, conforme resulta dos autos, a sua introdução no mundo da droga deveu-se ao desejo de agradar o Recorrente, seu namorado/amante na altura.

cciv. Todos os actos sexuais entre Requerente e Ofendida ocorreram no decurso da relação afectiva, nunca tendo existido qualquer dúvida que ambos estavam envolvidos e consentiam nas práticas que, um ou outro, propunham, no âmbito da vida sexual que mantinham.

ccv. Ainda que se entenda que os factos em apreço consubstanciam violações, o que se concebe sem conceder, as alegadas ofensas sexuais, incluem a violação prevista no art. 164°, n°2 não sendo por isso punível pela respectiva incriminação sendo que a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes."

ccvi. Ademais, o agente não actuou com dolo, não estando por isso preenchido o tipo subjectivo do crime de violação.

ccvii. Se assim não se entender, e partindo do pressuposto que a incriminação se mantém no nº 1 do art.164°, cuja moldura penal é entre três e dez anos, dever-se-á desde logo absolver o Recorrente do crime de violência doméstica uma vez que também os requisitos necessários para a aplicação deste artigo não se encontram preenchidos.

ccviii. Aliás, ao condenar o Recorrente pelo crime que atrás se mencionou, violou a douta sentença o art. 164°, n°1, al. a) e b) do C.P.

ccix. Devendo por isso ser o Recorrente absolvido dos crimes de violação.

ccx. Relativamente ao crime de roubo e atendendo à situação em apreço nos presentes autos, Recorrente e Ofendida consideravam praticamente todos os bens que tinham, comuns, nomeadamente os telemóveis, percebe-se que eram vários, apesar de na situação descrita em 61, 62 e 63 da factualidade provada, a Ofendida ser a portadora do telefone em causa, o mesmo já teria estado na posse do ofendido, e teria nomeadamente diversas fotografias da filha de ambos.

ccxi. Este tipo de situações com os telemóveis, pelos testemunhos que ambos forneceram aquando da audiência de julgamento, parecem ser frequentes e derivam de cenas de ciúmes entre o casal.

ccxii. Ademais, os requisitos que integram este tipo de crime não estão cumpridos, ou seja, a violência deve ter uma intensidade suficiente para vergar a vontade de resistência da ofendida, o que não sucedeu neste caso pois nem sequer existiu qualquer tipo de violência e muito menos ameaça com perigo iminente para a integridade física da Ofendida, não se podendo tampouco considerar que esta se encontrava na situação de impossibilidade de resistir.

ccxiii. Também a intenção de apropriação não foi ilegítima uma vez que não ficou provado que o telefone fosse um bem próprio da Ofendida e sendo Recorrente e Ofendida um casal, poderia tratar-se de uma devolução, talvez um pouco forçada, mas ainda que assim fosse não se pode considerar apropriação ilegítima.

ccxiv. Em nosso entender, a situação supra descrita parece ser mais uma "cena" habitual do casal em questão não consubstanciando de modo nenhum um crime de roubo.

ccxv. Aliás, ao condenar o Recorrente pelo crime que atrás se mencionou, violou a douta sentença o art. 210°, n°1 do C.P.

ccxvi. Devendo por isso ser o Recorrente absolvido do crime de roubo.

ccxvii. Relativamente aos crimes de perturbação da vida privada e violação de domicílio, a intenção do Recorrente não era perturbar a vida privada, a paz ou o sossego de ninguém, a sua intenção era tão somente ver a filha e falar com a mãe desta, a ofendida.

ccxviii. Foi por esta razão que se introduziu na habitação onde a Ofendida residia tendo também sido esta a razão que o levou a telefonar por diversas vezes para a casa onde esta residia, se bem que, conforme já explicitado no corpo do recurso, os telefonemas que fazia não eram com a frequência que as testemunhas de acusação, nomeadamente o cunhado e a irmã da Ofendida referem.

ccxix. Ademais, o crime de perturbação de paz e de sossego por telefonema para a habitação ou para o telemóvel só pode ser praticado com dolo directo, o que não é o caso — o Recorrente não podia imaginar que perturbava a vida privada dos familiares da Ofendida nem tampouco da própria.

ccxx. Até porque, na sentença recorrida pode ler-se "Com efeito, em vários dias e a horas variadas, incluindo durante a madrugada o arguido telefonou para a residência da assistente, perturbando o descanso do seu pai, irmã e cunhado, M, A. e L. que sabia iria suceder, por aí residir e quis provocar."

ccxxi. Esta afirmação não corresponde à verdade, até porque os pais da Ofendida não moram na mesma casa que a irmã e o cunhado, assim sendo, não se entende como os alegados telefonemas para a casa onde a Ofendida residia podiam perturbar a paz e o sossego de quem não residia na mesma morada.

ccxxii. Ademais, aquando da introdução do Recorrente na habitação da Ofendida não se pode considerar que o mesmo tenha sucedido sem o consentimento desta, embora a mesma o afirme, talvez por respeito aos pais, como já se disse, esta situação acontecia com alguma frequência tendo inclusive levado a mãe da Ofendida a colocar grades numa das janelas - conforme resulta do seu testemunho, ou seja, tudo leva a crer que Requerente e Ofendida por vezes combinavam passar a noite juntos na casa onde esta se encontrava a residir, presumindo-se por isso o consentimento da ofendida.

ccxxiii. Assim, o acordo (expresso ou presumido) do portador do bem jurídico exclui a tipicidade, o que se verifica no caso em apreço.

ccxxiv. Então, ao condenar o Recorrente pelo crime que atrás se mencionou, violou a douta sentença o art. 190°, no 1,2e3doC.P.

ccxxv. Devendo por isso ser o Recorrente absolvido do crime de perturbação da vida privada e violação de domicílio.

ccxxvi. No que respeita ao crime de dano, é verdade que o Recorrente embateu contra o carro da Ofendida pelo que não há dúvidas quanto ao carácter alheio da coisa sobre a qual o arguido agiu.

ccxxvii. No entanto, não embateu propositadamente, conforme resulta não só das suas declarações em sede de julgamento como também das da Ofendida, além do mais foi feita uma participação à seguradora, ou seja, o que sucedeu foi um simples acidente de viação.

ccxxviii. Assim, o elemento subjectivo do tipo não se encontre preenchido uma vez que o Recorrente não actuou com dolo.

ccxxix. Aliás, ao condenar o Recorrente pelo crime que atrás se mencionou, violou a douta sentença o art.212°, n°1 do C.P.

ccxxx. Devendo por isso ser o Recorrente absolvido do crime de dano.

ccxxxi. Quanto ao crime de detenção de arma proibido o Recorrente, em sede de audiência de julgamento justificou a posse da alegada arma, ou seja, em seu entender a mesma não é uma arma mas sim um objecto de decoração.

ccxxxii. O referido sabre foi comprado aos "Marroquinos" e é uma réplica, não tem poder de corte, tendo a sua posse sido plenamente justificada pelo Ofendido pois é comum verem-se este tipo de sabres em decoração inclusive de espaços públicos.

ccxxxiii. Se ainda assim, o sabre for considerado uma arma, será sempre obsoleta pois não tem poder de corte.

ccxxxiv. Aliás, ao condenar o Recorrente pelo crime que atrás se mencionou, violou a douta sentença o art. 86°, n°1 alínea d), por referência aos art°s. 20, n°1, alínea m), 30, n°s 1 e 2, alínea f) e 40, n°1, todos da Lei das Armas e Munições,

ccxxxv. Devendo por isso ser o Recorrente absolvido do crime de detenção de arma proibida.

ccxxxvi. Também não podemos deixar de estranhar que, não tenha sido levado em consideração o problema do alcoolismo e da toxicodependência, uma vez que, todas as testemunhas referiram a dependência de droga e álcool do Recorrente, nomeadamente o psiquiatra que o segue, Dr. F. que, no seu depoimento, proferiu a seguinte frase "Pode-se dizer que, relativamente ao consumo de droga, que este senhor tem uma grave", salvo o devido respeito, não poderia nunca o arguido praticar os alegados crimes, pelo menos com a intenção necessária, pois se estava alcoolizado ou sob o efeito de drogas, nunca teria a capacidade de entendimento pois encontrando-se num estado de incapacidade acidental art° 257° do C.C. nunca poderia ter o conhecimento intelectual dos elementos ilícitos em crise, estaria, salvo melhor entendimento em erro sobre a ilicitude art° 17° do C.P. devido à sua inimputabilidade temporária.

ccxxxvii. No que respeita à medida da pena, entende o Recorrente que, nos termos do art. 700 do Código Penal, o tribunal deverá dar preferência à aplicação da pena de multa sempre que "esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição", sendo estas, segundo o art. 400 do mesmo diploma legal "a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade".

ccxxxviii. Assim, a escolha da pena depende apenas de considerações de prevenção geral e especial, não se considerando aqui a culpa.

ccxxxix. No que se refere aos crimes de ameaça, perturbação da vida privada, violação de domicílio e dano que são punidos com penas alternativas de prisão ou multa, não se entende porque não se optou, no caso em apreço pela pena de multa.

ccxl. Atendendo ao facto de o Recorrente não registar quaisquer antecedentes criminais, ser um indivíduo bem inserido socialmente, ter a sua vida profissional organizada trabalhando por conta própria, ter uma filha menor, uma pena de prisão sempre quebrará estes laços, impossibilitando o pai de acompanhar o desenvolvimento da filha, somos forçados, pelo exposto, a concluir que a pena de multa é a que se adequa ao Recorrente.

ccxli. E adequa-se por ser a que realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, nomeadamente a reintegração do agente na sociedade.

ccxlii. No caso em apreço, a punição com pena de prisão vem trazer precisamente o contrário, ou seja, desintegra completamente o agente da sociedade afastando-o da sua família e amigos, bem como destruindo a sua actividade profissional de carpinteiro, que exerce maioritariamente por conta própria.

ccxliii. Não se entende a opção do tribunal recorrido aplicar penas de prisão quanto a todos estes crimes que o arguido alegadamente cometeu, não se cumprindo assim a finalidade das punições.

ccxliv. Quanto aos crimes de violência doméstica, violação e roubo, não tendo os mesmos penas alternativas de multa, poder-se-ia sempre optar por uma pena suspensa na sua execução.

ccxlv. Eventualmente cumulada com uma pena acessória de obrigação da frequência pelo arguido de um programa específico de prevenção da violência doméstica. Estas sim, cumpririam as finalidades da punição.

ccxlvi. Ainda assim, por estarmos perante um concurso de crimes (art.30º do C.P.), tendo o Recorrente alegadamente praticado vários crimes antes de ter transitado em julgado a condenação por qualquer um deles, atento o disposto no art. 77º do CP, veio este a ser condenado numa pena única de 12 (doze) anos.

ccxlvii. Quanto à determinação da medida concreta das penas, feita dentro dos limites da moldura abstracta e em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial (art. 400, n.º 2 e 71º do C.P.), consideramos absurdamente excessiva a pena de 12 (doze) anos de prisão.

ccxlviii. O Recorrente, primário, sem qualquer antecedente criminal, inserido na sociedade, trabalhador e pai de família não se conforma com a sua punição, os doze anos pelos crimes alegadamente cometidos, entende, destruir-lhe-ão a vida familiar, social e profissional.

ccxlix. De harmonia com o artigo 71º do C.P., a determinação da medida da pena far-se-á em função da culpa do agente, tendo em conta as exigências de prevenção de futuros crimes, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime sejam a favor ou contra o agente.

ccl. Ainda que se considere o Requerente culpado de todos os crimes pelos quais foi condenado, atendendo ao facto de este estar detido à cerca de 16 meses no Estabelecimento Prisional de Olhão, estar a cumprir a medicação prescrita pelo psiquiatra que o acompanha e ter um comportamento exemplar no contexto prisional, entendemos que uma pena suspensa na sua execução cumpriria adequadamente as exigências de prevenção.

ccli. Ademais, na determinação da medida da pena, esta deve, em toda a medida possível, servir a reintegração do agente na sociedade.

cclii. Pelo supra exposto, entende o Recorrente que a pena de prisão de doze anos pelos crimes que alegadamente cometeu é absurda, excessiva e escandalosa na medida em que ignora os pressupostos das finalidades das punições, nomeadamente a reintegração do agente na sociedade.

ccliii. Relativamente à pena acessória, nos termos do art.152, n°4 do CP, entende-se, sem conceder, a pertinência da proibição de quaisquer contactos com a ofendida.

ccliv. No que concerne à pena acessória de uso e porte de arma, o Recorrente aceita sem contestar uma vez que nunca foi possuidor nem sequer ambicionou possuir armas ou licença para o porte das mesmas.

cclv. Pelo exposto, deve o Recorrente ser absolvido de todos os crimes por que vem condenado.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido, e, em consequência:

A) Absolver-se o Recorrente do crime de violência doméstica p. e p. no art° 152° do C.P.

B) Absolver-se o Recorrente de um crime de Violação, p. e p. pelo art. 164°, n°1, alíneas a) e b) do C.P.

C) Absolver-se o Recorrente de um crime de Violação, p. e p. pelo art. 164°, n°1, alínea a) do C.P.,

D) Absolver-se o Recorrente de um crime de Violação, p. e p. pelo art. 164°, n°1, alínea a) do C.P.

E) Absolver-se o Recorrente de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, n°1 do C.P.

F) Absolver-se o Recorrente de quatro crimes de ameaça agravada, cada um p. e p. pelos art°s 153° e 155°, alínea a) do C.P.

G) Absolver-se o Recorrente de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art°s 153° e 155°, alínea a) do C.P., por referência ao art. 145°, n°s 1 e 2 e art. 132°, n°2, alínea d) do C.P.

H) Absolver-se o Recorrente de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86°, n°1 alínea d), por referência aos art°s. 2°, n°1, alínea m), 3°, n°s 1 e 2, alínea f) e 40, n°1, todos da Lei das Armas e Munições

I) Absolver-se o Recorrente de três crimes de perturbação da vida privada, p. e p. pelo art. 190°, n°2 do C.P.

J) Absolver-se o Recorrente de um crime de violação de domicílio, p.e.p. pelo art. 190º, n°s 1 e 3 do C.P.

K) Absolver-se o Recorrente de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212°, n°1 do C.P.

L) Serem as medidas concretas das penas aplicadas ao Recorrente reduzidas para o mínimo legalmente previsto, suspensas na sua execução

M) Nos crimes de ameaça, perturbação da vida privada, violação de domicílio e dano optar por pena de multa.
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A Ex.ma Procuradora-Adjunta do tribunal recorrido respondeu ao recurso do arguido Paula Lopes, concluindo da seguinte forma:

1. O Tribunal recorrido, no douto Acórdão proferido, deixou bem expressos os fundamentos por que considerou os factos provados e fundamentou objectivamente a sua decisão, que se encontra em harmonia com as regras da experiência comum.

2. Assim, apesar de o recorrente poder suscitar dúvidas acerca dos factos ou fazer uma análise diferente da prova produzida no julgamento, o certo é a versão dada por assente pelo Tribunal recorrido em nada é contrariada pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio, pelo que, nessa medida, a douta decisão recorrida não padece de qualquer vício nem é merecedora de qualquer censura.

3. De resto, tendo o Tribunal recorrido formado a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo,.

4. Também não merece qualquer censura a escolha das penas parcelares e da pena única aplicada ao arguido já que os factos, na sua globalidade, são merecedores de um elevadíssimo juízo de censura , o que faz situar as exigências de prevenção geral num nível muito elevado que já não se compadece com a aplicação de outra pena que não seja a prisão efectiva.

5. Por fim, no que concerne às concretas medidas parcelares e à medida concreta da pena única aplicada ao concurso, também se mostram as mesmas necessárias e adequadas às exigências de prevenção e abaixo, ainda, do limite máximo imposto pela culpa do arguido, pelo que, em nosso entender, devem as mesmas ser mantidas nos seus precisos termos.

Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado improcedente por falta de fundamento e, em consequência, ser mantida, na integra, a douta sentença proferida pelo Tribunal Recorrido.
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Por sua vez, o recurso da assistente apresenta as seguintes conclusões:

I- A discordância da Recorrente tem a ver com a medida concreta da pena aplicada ao Recorrido,

II- A pena aplicada em cúmulo jurídico (12 anos) é uma pena demasiada diminuta e benevolente para os factos em apreço e considerados provados.

III- O Tribunal “a quo” para aplicar aquela pena de prisão não valorou suficientemente a gravidade dos fatos e a prova produzida.

IV - Nomeadamente, não valorou como deveria, o carater de habitualidade e reiteração dos comportamentos do arguido, “(…) já que o arguido ao longo do período de cerca de quatros anos, por diversas vezes, com uma cadência pelo menos semanal, ofendeu a honra e a integridade moral da sua companheira (…); ao ameaça-la de morte, tendo chegado a apontar-lhe várias vezes com um sabre, facas e com um objeto de aparência de arma de fogo à cabeça ou pescoço e uma ocasião com um martelo, (…); igualmente a forçou algumas vezes a consumir cocaína contra a sua vontade, de forma, segundo o mesmo, melhorar a sua prestação a nível sexual, agredindo-a quando a mesma recusava (…)”.

V- Comportamentos estes que revelam especial censurabilidade e reprovação, violando um conjunto de bens jurídicos, como honra, dignidade, integridade física e moral da assistente, liberdade e auto determinação sexual da mesma, intimidade e reserva da vida privada, património e paz pública, denotando reiteradamente uma total indiferença e desprezo para com as regras de vivência em sociedade e com os seus deveres conjugais para com a recorrente.

VI - À indiferença para com as regras da vivência em sociedade, acresce a forma e o lapso de tempo em que o Recorrido atingiu os mencionados bens jurídicos, nomeadamente, aproveitando-se da sua proximidade com a recorrente e a vulnerabilidade desta, intimidando-a, determinando consequências gravíssimas na esfera psicológica e física da assistente.

VII- A intensidade do dolo deve ser medida em função do caracter reiterado da conduta do recorrido, que não se poupou a esforços em dirigir a sua vontade com o único propósito de humilhar a recorrente, revelando que os seus sentimentos, no cometimento do crime, foram de total desprezo para com a dignidade humana desta.

VIII - A finalidade da conduta do Recorrido e os seus motivos foram absolutamente torpes, pautados por requintes de malvadez e crueldade, apenas com o propósito de aumentar o sofrimento da vítima e pelo prazer nutrido por esse sofrimento, o que não foi devidamente valorado pelo Tribunal “a quo”.

IX - Pois, conforme se pode ler no douto acórdão, “(...) apertando-lhe o seios até ela ficar com nódoas negras e a gritar (…) Algumas das agressões ocorreram estando a assistente grávida,(…) contra a vontade da assistente lhe introduziu na vagina vários objetos como, pepinos e garrafas, bem como a sua mão e braço(…).

X - Face aos factos dados como provados no douto acórdão, ora posto em crise, a pena de prisão aplicada ao Recorrido (12 anos) peca, por excessivamente benevolente, pois ponderadas as referidas circunstâncias, em cúmulo jurídico, a pena aplicada ao Recorrido nunca poderia ter sido inferior a 16 anos.

XI - Pelo que, violou o tribunal “a quo” o artigo 77.º n.º1, por referência ao artigo 71.º n.º 1 e 2 todos do Código Penal.
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A Ex.ma Procuradora-Adjunta do tribunal recorrido respondeu ao recurso da assistente, concluindo da seguinte forma:

1. Não merece qualquer censura a escolha das penas parcelares e da pena única aplicada ao arguido já que os factos, na sua globalidade, são merecedores de um elevadíssimo juízo de censura, o que faz situar as exigências de prevenção geral num nível muito elevado que já não se compadece com a aplicação de outra pena que não seja a prisão efectiva.

2. Também a medida das penas parcelares e a medida concreta da pena única aplicada ao concurso se mostram necessárias e adequadas às exigências de prevenção e abaixo, ainda, do limite máximo imposto pela culpa do arguido, pelo que, em nosso entender, devem as mesmas ser mantidas nos seus precisos termos.

Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado improcedente por falta de fundamento e, em consequência, ser mantida, na integra, a douta sentença proferida pelo Tribunal Recorrido.
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Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II
No acórdão recorrido e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:

1- O arguido B. e a vítima A. viveram juntos cerca de 4 anos e estão separados desde Fevereiro de 2011.

2. Têm uma filha menor em comum, a C, nascida em 16/3/2010.

3. Durante a vivência em comum e mesmo depois da separação, a ofendida foi constantemente (até à sua reclusão) insultada pelo arguido de “puta”, “vaca”, “cabra” e “canhão” e falsamente acusada de ter amantes.

4. Era também humilhada com considerações de que a ex-mulher do arguido era melhor na cama que a ofendida, que era a pior mulher que ele já tinha tido na cama, que não valia nada, que ia pô-la a render numa casa de putas porque tinha conhecimentos para tal em Espanha.

5. Também sempre foi ameaçada de morte pelo arguido.

6. O arguido dizia frequentemente "se não fores minha não és de mais ninguém” e empunhava frequentemente facas, objetos com a aparência de armas de fogo e um sabre junto da ora ofendida, encostando, por vezes, essas armas ao pescoço ou cabeça da mesma.

7. Estas situações ocorriam, por regra, ao fim de semana e mesmo com crianças em casa, nomeadamente a filha mais velha da ofendida.

8. O casal viveu entre Fevereiro/Março de 2009 e até á primeira quinzena de Dezembro desse ano, aproximadamente, numa casa localizada em ..., em Moncarapacho.

9. Nessa casa, a cadência dos conflitos supra descritos era semanal.

10. O arguido queria sempre pôr fim a qualquer discussão mantendo relações sexuais com a ora ofendida, que só acedia porque o arguido ameaçava bater-lhe.

11. Essas relações sexuais pós-conflito (de cópula, com coito vaginal e/ou anal) ocorreram sempre contra a vontade da ofendida, uma que vez que o seu consentimento foi sempre condicionado pelo medo que sentia do arguido e para evitar ser batida.

12. Durante parte da citada vivência comum do casal, o arguido obrigou algumas vezes a ofendida, contra a sua vontade, mediante ameaça de que lhe batia, a tomar cocaína para melhorar as performances sexuais, produto que a mesma consumiu outras vezes de forma voluntária.

13. Depois, dizia-lhe que pretendia usá-la e desfeia-la tanto quanto possível, para que, caso ela o deixasse, mais ninguém se interessasse sexualmente por ela.

14. Para tal o arguido apertava os seios da ofendida até ela gritar de dor e ficar com nódoas negras para, nas palavras do próprio, " ficar com as mamas como as da avó dele" e introduzia na vagina da ofendida a mão, o pulso e o braço do próprio, até onde conseguisse, ou objetos, como garrafas e pepinos.

15. Como consequência destas sevícias do arguido, a queixosa sofreu, por várias vezes, rasgões vaginais e teve sangramentos fora do seu período menstrual.

16. Pouco antes do Natal de 2009, naquela casa de Pés do Cerro, em dia não concretamente apurado, pela hora do jantar, porque a ofendida chegou mais tarde do trabalho, o arguido desatou a gritar com ela alegando que já deveria estar em casa a arrumar e a cozinhar.

17. Depois, agarrou-a pelos cabelos e arrastou-a pelo chão até um dos quartos da habitação, tendo, nesse percurso, pontapeado e esmurrado a ofendida por diversas vezes, por todo o corpo.

18. Isto, não obstante a ofendida ter pedido, várias vezes, ao arguido para parar, pois estava grávida de 6 meses da filha do mesmo.

19. Assim, o arguido logrou arrastar a ofendida pelos cabelos e pelo chão da casa até ao referido quarto para lhe mostrar como estava desarrumado e que se ela tivesse chegado do trabalho mais cedo, já teria tido tempo para arrumá-lo.

2º. A ofendida ficou com hematomas nos braços, nas pernas e na face, sobretudos nas órbitas que ficaram inchadas e roxas.

21. Antes desse Natal de 2009, a ofendida abandonou o lar conjugal e foi viver para casa dos respetivos pais – sita na..., Fuzeta.

22. Em Dezembro de 2009, já depois da saída da queixosa da citada residência de Pés do ---, o arguido deixou à porta desse local, dentro de um tabuleiro de plástico, virado ao contrário, com uma faca nele espetada, um envelope manuscrito a vermelho com a seguinte inscrição:

- "grande puta esta (a faca) era para ti se gosas mais comigo tens os dias contados mato-te"

23. O arguido deixou tal escrito no citado local, de molde a que ofendida o encontrasse quando fosse buscar os seus pertences, o que efetivamente sucedeu.

24. Não obstante a separação, na noite da consoada (de 24/12/2009), o arguido ligou à queixosa alegando que tinha ficado apeado, sem gasolina no carro, junto à discoteca TOP 60, e pediu-lhe para ir buscá-lo e levá-lo a casa, o que a ofendida - por pena e porque o arguido referiu que estava acompanhado por outra pessoa – fez.

25. Porém, depois de deixarem a outra pessoa, o arguido, para obrigar a ofendida a quedar-se consigo, no interior da viatura onde seguiam, a cerca de 500 metros da sua casa, no Sítio..., em Moncarapacho, aquele apontou-lhe um objeto com a aparência de uma arma de fogo e que a mesma se convenceu tratar-se de arma de fogo e obrigou-a, contra a sua vontade a consumir droga e a ter relações sexuais, de cópula e coito anal com o mesmo.

26. Só depois, o arguido permitiu que a queixosa se fosse embora no carro que aquela conduzia.

27. A ofendida só acedeu a tal consumo e prática sexual com o arguido por recear que o arguido a matasse.

28. No dia 8 de Janeiro de 2010 o arguido foi viver para França onde permaneceu até Agosto de 2010.

29. Ainda assim, até ir para França, o arguido telefonou à ofendida todos os dias e várias vezes.

30. A ofendida atendia os telefonemas do arguido com receio que, caso não o fizesse, ele viesse a concretizar as ameaças por si verbalizadas e escritas, via mensagens escritas ("sms"), nas quais dizia que mataria a queixosa, as filhas, a mãe e irmã dela.

31. Depois do arguido ter ido viver para França, a ofendida passou a rejeitar as suas chamadas telefónicas, no entanto aquele passou a enviar mensagens escritas ("sms") como as seguintes:

- “Vai para a puta que te pariu o teu amante assite à more anunciada por ti do meu anjinho, atende fingida do caralho”;

- Nossa C. pouco tempo vai ficar contigo juro por ela au pé de quem a desrespeitou já mais fica com os velhos nojentos esses sim dão-te dinheiro não é o que queres”.

32. Depois do nascimento da filha do casal, em 16/3/2010, o arguido regressou a Portugal para perfilhar a menor, o que fez em 29/6/2010.

33. Em data próxima da referida perfilhação, em dia não concretamente apurado, depois da ofendida mostrar a filha menor ao arguido, levou-o, de carro, até à casa dele, sita no referido Sítio dos ----.

34. Porém, quando se acercavam daquele local, entre as 21H e as 22H, o arguido retirou a chave da ignição do carro da queixosa e obrigou-a a permanecer no interior do carro com ele (e com a bebé), num caminho de terra ermo.

35. Fê-lo durante cerca de uma hora e contra a vontade da ofendida.

36. A ofendida viu-se, assim, impossibilitada de ir embora - ainda que a pé - porque tinha a bebé de 3 meses, totalmente dependente de si, no banco de trás do carro e o arguido estava na sua posse das chaves da viatura.

37. Entretanto, o arguido voltou para França, mas continuou a telefonar e a escrever à ofendia, pedindo-lhe para reatar com ele, porque já tinha deixado de consumir drogas e álcool.

38. Assim, acreditando na mudança de atitude do arguido, em finais de Agosto de 2010, a queixosa e o arguido reataram o seu relacionamento e foram viver novamente juntos, como marido e mulher, para o Sítio dos ---, em Moncarapacho.

39. No próprio dia em que se mudaram para aquela residência, quando a ofendia foi buscar o arguido ao “Café --”, sito defronte na Estrada Nacional 125, defronte ao centro comercial “Ria Shopping”, o arguido, já alcoolizado, insultou a queixosa no referido café, em frente a quem lá se encontrava e por diversas vezes, de "puta".

40. Tal sucedeu, unicamente, porque o arguido entendeu que ofendida estava bem vestida e tinha olhado para umas pessoas, que também estavam no citado Café, mas que aquela nem sequer conhecia.

41. Não obstante este incidente, a ofendida ainda foi viver com o arguido para não dar razão à sua família, que era frontalmente contra este reatamento, tendo nessa noite, durante as relações sexuais que mantiveram, o arguido se dirigido à ofendida dizendo “pensa que tens um por trás e outro pela frente, grande puta”.

42. Nesta nova residência, o arguido agrediu a queixosa – com puxões de cabelos, pontapés e socos por todo o corpo - pelo menos em quatro ocasiões distintas.

43. A primeira agressão ocorreu, em data não concretamente apurada, depois do arguido ter decidido que era ofendida que tinha de ficar um dia sem trabalhar, para tomar conta da filha menor doente, em vez de a deixar com a avó materna, como já combinado, tendo-a agredido quando chegou a casa, com puxões de cabelos e pontapés e chapadas por todo o corpo, provocando-lhe choro, tendo nessa noite saído de casa acompanhada pela GNR, que a sua mãe enviou ao local na sequência de contacto telefónico com entre ambas.

44. A segunda agressão ocorreu, em data e por motivo não concretamente apurados, depois do arguido ter bebido uma garrafa de vinho ao jantar. Nesta ocasião, o arguido rasgou o vestido que a ofendida trazia vestido, tendo arremessado mesa e cadeiras pelo ar.

45. A terceira agressão ocorreu, também em data não concretamente apurada, só porque a depoente levou ao arguido um pão que ele a mandou comprar e lhe virou costas depois de o entregar.

46. Desta terceira vez, o arguido também sacou de uma faca de cozinha, apontou-a ao pescoço da queixosa, dizendo que a matava, sendo certo que também lhe puxou os cabelos.

47. Como esta logrou fugir de casa, o arguido seguiu-a pela rua até a queixosa se refugiar no quintal da casa da vizinha e colega de trabalho AP.

48. Ainda assim, o arguido pulou a cerca desse quintal e arrastou queixosa para casa, agarrando-a pelo corpo.

49. A quarta vez que a queixosa foi agredida na casa do Sítio do --- teve lugar no dia 2 de Março de 2011, após a queixosa ter regressado de Lisboa onde fez uma cirurgia (IVG – Interrupção Voluntária da Gravidez).

50. Na citada casa, o arguido desatou chamar-lhe "assassina" e a dizer, mesmo em frente à filha da queixosa, com 6 anos de idade à data, a D, que a mãe tinha ido a Lisboa matar um bebé.

51. Logo após a ofendida ter conseguido adormecer aquela criança, o arguido voltou a insultar a ofendida de “puta” e “vaca” e ameaçou matá-la, desferindo-lhe, enquanto isso, murros, pontapés e puxões cabelos.

52. A ofendida ficou com marcas destas agressões, nódoas negras e arranhões - cobertas, porém, pelas roupas.

53. O arguido evitava sempre marcar a queixosa na face, porque ela trabalhava num sítio público.

54. Depois da agressão que teve lugar no dia 2/3/2011, a ofendida saiu definitivamente de casa, nunca mais tendo reatado com o arguido.

55. A ofendida passou a viver novamente em casa dos pais: a Vivenda..., sita na..., Fuzeta.

56. Porém, a partir daí, o arguido não deixou de importunar a ofendida, aproveitando, agora, a desculpa de ver a filha menor, para obrigar a queixosa comparecer junto ele.

57. Assim, no dia 22 de Maio de 2011, cerca das 12H, a queixosa deslocou-se à residência do arguido para este ver a filha menor e, após recusa da ofendida em reatar o relacionamento com aquele mantendo relações sexuais com o mesmo, o arguido encostou á cabeça da ofendida uma espada, tipo sabre, e disse-lhe “vou-te matar”.

58. Mais retirou à ofendida as chaves do seu carro para impedi-la de ir embora, uma vez que o local onde o arguido reside é ermo e a ofendida estava com a filha bebé.

59. Nessa ocasião o arguido ainda puxou os cabelos à ofendida e partiu objetos – móveis e garrafas – junto dela para a intimidar.

60. A ofendida só logrou sair da casa do arguido pelas 16H, porque recebeu um telefonema do ex-marido para ir buscar a outra filha, porém, em vez de ir no seu carro, teve de ir no carro do arguido, até à sua residência, onde, depois de entrar, não voltou a sair, como ele lhe tinha ordenado.

61. Entre 13 e 19/06/2011, em dia não concretamente apurado, o arguido atravessou a sua viatura (Ford Fiesta de cor vermelha) à frente do carro da ofendida (Citroen Saxo de cor cinzenta) para, dessa forma, obrigá-la a parar.

62. Depois, exibiu à ofendida uma faca que trazia num bolso e abriu a porta do carro dela, do lado do pendura - onde se encontrava preso ao assento a cadeira ("ovo") da bebé - e ordenou-lhe que lhe desse imediatamente o seu telemóvel se não matava-a, o que a ofendida fez, por medo de uma reação violenta do arguido, que se encontrava muito agitado.

63. O arguido levou, e fez seu, o referido telemóvel da ofendida, não obstante saber que não lhe pertencia e que agia contra a vontade daquela, que nunca mais recuperou o aparelho.

64. No dia 21/06/2011, cerca das 21H40M, o arguido preparou uma cilada à ofendida para, mais uma vez, ficar a sós com ela.

65. Assim, o arguido simulou um encontro entre a sua filha, E, e a ofendida com o propósito das meias-irmãs – E e C – se conhecerem.

66. Para convencer a ofendida a ir, o arguido colocou uma chamada da dita E. em sistema de conferência em que aquela dizia "pai já estou em casa podes vir".

67. Porém, não havia qualquer encontro combinado, nomeadamente jantar, entre o arguido e o casal E (filha do arguido) e F (seu companheiro).

68. Chegada a ofendida à Av. da Republica, junto à praça de táxis aí existente – local onde vivem os referidos E e F – o arguido disse à queixosa que, afinal, a E já estaria na baixa de Olhão, pelo que teria de ir com ele de carro.

69. Na realidade, o arguido tinha na sua posse uma substância que o mesmo denominou de abrasivaque não se logrou identificar dentro de uma garrafa de detergente com difusor, com a qual pretendia atingir a ofendida.

70. Como a ofendida se recusou a entrar no carro do arguido com a criança, que tinha ao colo, gerou-se a confusão e o arguido, na tentativa de tirar a criança do colo da mãe, acabou por atingir a menor com algumas gotas do referido líquido, tendo a P.S.P. sido chamada a intervir.

71. Também lá compareceu o genro do arguido, F, e a referida filha daquele, E – comprovando, assim, a ofendida que a dita E afinal sempre estaria em casa e não na baixa da cidade, como o arguido lhe queria fazer crer, só para fazê-la entrar no carro dele.

72. Como consequência dessa conduta, a menor C. acusou “discreta hiperemia com rubor” na face anterior do pescoço e face posterior do tronco, como reação ao contacto com tal produto.

73. Como o arguido não se conformou com a separação, passou a perturbar o sossego não só da ofendida, mas também dos seus familiares, nomeadamente pais, irmã e cunhado, os quais vivem todos no mesmo complexo residencial Estrada Nacional 125..., Fuzeta.

74. Fê-lo da seguinte forma:
- ameaçando todos de morte;
- ameaçando atear fogo à casa dos pais da queixosa (id. supra em 60); -
- perseguindo a queixosa de carro e/ou apeado;
- fazendo rondas e esperas ao trabalho e à residência da queixosa;
- subindo às janelas de sua casa;
- atirando pedras à casa;
- vigiando os movimentos da ofendida e da família e, depois, relatando--os, via “sms”, aos próprios vigiados para demonstrar que os controlava;
- enviando dezenas de “sms” por dia para o telemóvel da vítima insultando-a de “puta” e “cabra” e ameaçando-a a ela e à família de morte;
- telefonando para o telefone fixo da casa da família da vítima e para os telemóveis dos pais e da irmã da queixosa a qualquer hora do dia ou da noite.

Vejamos.

75. No dia 14/6/2011, o arguido, fazendo uso do telemóvel com o número 96---, enviou para o telemóvel com o número 96 5---, da irmã da queixosa, AM, os seguintes textos:

a) às 12H31M53S: “Então bela agora n dizes nada a tua mana ontem tava com 2 ucranianos.ques fotos?eu mando te”;

b) às 12H39M45S: “Vai a mala dela e investiga vais encontra tabaco prezevati já agora ve o tel que sabesm com quem ela teve telefona e confirma”.

76. A título de exemplo, só no dia 15/6/2011, o arguido contactou, do telemóvel que tinha a uso com o número 96 ---, a irmã da ofendida, AM para o respetivo telemóvel com o número 96 5...:
- às 16H00M05S;
- às 16H04M49S;
- às 16H04M51S;
- às 16H08M40S;
- às 16H08M43S;
- às 16H09M46S;
- às 16H09M49S;
- às 16H10M47S;
- às 16H10M49S;
- às 16H13M47S;
- às 16H13M49S.

77. Só nos dias 20 a 25/6/2011, o arguido enviou, a qualquer hora do dia e da noite, dezenas de mensagens escritas ("sms") do telemóvel que tinha a uso à data, com o número 91 1---, à ofendida, para o telemóvel desta à data com o número 91 3---, das quais se destacam as seguintes:

- em 20/6/2011, às 00H51M54: “ATEND PUTA”;

- em 20/6/2011, às 00H58M486S: “VOU AI PUTA JOGAR GAZOLINA”

- às 02H17M48: “ENTAO PUTA BACANAIS COM OS XULOS NÃO TE METERAM A MAO TODA DENTRO DESA CONA EU METI MUITAS VEZES E GARAFAS NO CU TAMBEM NÃO O CARALHO ISSO E PA CAZAR”

- em 21/6/2011, às 13H48M00S: “AINDA NO DOMINGO BATI TUA JANELA N TAVAS CAZA MAIS UMA VEZ”

- em 21/6/2011, às 22H20M06S: “GRANDE PUTA FICA PA PROSIMA”;

- em 21/6/2011, às 23H06M18S: “escapast puta a TUa irma meto-lhe o ferro no cu”;

- em 23/6/2011, às 20H24M36S: “VOURE FUDER A TROBA COMO MESMO PRAZER QUE ABUZEI DE TI E DO TEU CORPO A TROBA E IMREPARAVEL O CORPO MESMO FULEIRO AINDA HÁ QUE COMA”

78. Em 9/7/2011, cerca das 09H00M, no Caminho Municipal 1325, em Moncarapacho, o arguido embateu, propositadamente, com o seu veículo automóvel de matrícula xxx contra o veículo automóvel da ofendida, de matrícula xxxx, quando a vítima já pedia auxílio a populares por estar a ser perseguida pelo arguido, embate de que resultou amolgada a parte traseira do veículo da assistente, cuja reparação ascendeu a pelo menos € 2000.

79. O arguido, em 20/7/2011, tinha na sua posse:

-1 Espingarda de pressão de ar da marca “NORICA”, calibre 4,5 mm;
- 1 Caixa com munições em chumbo;
- 1 Sabre com uma lâmina de 47,5 cm, cabo de 21 cm e respectiva bainha;
- 1 Bainha mais pequena de outra arma branca não encontrada;
- 1 X-acto;
- 1 Depósito de combustível.

80. Em 21/7/2011, foram aplicadas ao arguido no âmbito destes autos as medidas de coação de proibição total de contactos com a ofendida, proibição de frequência das imediações da residência e do trabalho da ofendida e respetivos trajetos entre esses dois locais e proibição de aquisição de qualquer tipo de arma.

81. Já depois da aplicação daquelas medida de coação, o arguido telefonou para o telefone fixo da casa da ofendida, com o n.º 289 ---, pelo menos, nos dias 23/7/2011, 24/7/2011 e 8/8/2011.

82. No dia 13/10/2011 teve início a vigilância eletrónica do cumprimento pelo arguido das citadas medidas de coação.

83. Durante o dia 18/11/2011, o arguido, não obstante estar proibido de contactar com a ofendida, telefonou, várias vezes, com diferentes números de telemóvel, para o telefone fixo do trabalho da mesma (com o número 289 xxxx) e quando coincidia ser a ofendida a atender, dizia-lhe que precisava de falar com ela às 21H, acerca de assuntos urgentes.

84. Como a ofendida nada lhe disse, cerca das 22h00 do mesmo dia 18/11/2011, o arguido ligou novamente àquela, agora para o telefone fixo da casa da casa dos pais da ofendida (com o número 289 7xxxx), tendo aquela rejeitado, mais uma vez, reatar com ele.

85. O arguido voltou a ligar repetidamente para a casa da ofendida e dos pais, o que obrigou o pai da A. a tirar o telefone do descanso.

86. Por volta das 05H01M da madrugada do dia 19/11/2011, o arguido cortou a pulseira da vigilância eletrónica (VE) a que estava submetido.

87. Entre as 05H15M e as 06H dessa madrugada, o arguido logrou entrar no interior do quarto onde a ofendida dormia, na mesma cama, com as duas filhas menores, uma de 6 anos de idade e a outra de 20 meses - sito na residência dos pais daquela já identificada supra.

88. Fê-lo sem o consentimento dos donos ou residentes daquela habitação e contra a vontade (tácita) dos mesmos.

89. Para o efeito, o arguido escalou paredes, muros e telhados adjacentes ao complexo onde se situa a casa dos pais da ofendida - que inclui uma pensão residencial, um restaurante e uma casa de habitação – forçou a persiana e a porta da varanda da sala de estar da aludida casa e por aí entrou, dirigindo-se de imediato ao quarto da vítima.

90. De seguida, já no quarto da vítima, o arguido acordou, com um toque no corpo, a A. e, exibindo uma faca de cozinha e um martelo, perguntou-lhe “de que forma é que queres morrer”.

91. Depois, disse-lhe, em tom de voz baixo, que queria ter sexo com ela antes de ir preso e que, caso se negasse, fugiria com uma das menores, caso gritasse e/ou aparecesse alguém, o mataria com a faca.

92. Perante tal postura, a ofendida não teve outra hipótese senão submeter-se, por medo, aos intentos do arguido – o qual logrou manter relação de cópula vaginal com a vítima e obrigou ainda aquela a fazer-lhe sexo oral, sempre contra a vontade da mesma, e não obstante as tentativas de dissuasão levadas a cabo pela ofendida, falando das crianças e de uma eventual reconciliação, por forma a acalmá-lo e convencê-lo a ir embora.

93. No mesmo dia 19/11/2011 foi o arguido detido e, em 21/11/2011, preso preventivamente à ordem destes autos.

94. Pese embora a vítima dormisse com o dispositivo da VE e telemóvel ao seu lado, não acionou o alarme da vigilância por receio que fosse emitido um qualquer som que despoletasse uma reação ainda mais violenta no arguido - munido que estava de faca e martelo.

95. Todavia, a vítima também confiou que o corte da referida pulseira a VE por banda do arguido, pudesse fazer soar um qualquer alarme nos serviços da VE da Reinserção Social.

96. Logo após a saída do arguido, a vítima ligou para a G.N.R. e para o apoio à VE da Reinserção Social.

97. A ofendida encontra-se física e emocionalmente desgastada e debilitada com o arrastar deste conflito.

98. A ofendida sofreu e foi operada a um cancro na tiróide (carcinoma papilar), imediatamente antes de conhecer o arguido, não tendo a postura do arguido contribuído em nada para a sua recuperação, pelo contrário, dificultou bastante o seu repouso e recobro.

99. O sossego e o descanso da queixosa e dos seus familiares têm vindo a ser constantemente perturbados pelos citados comportamentos do arguido.

100. Ao agir da forma descrita – contactando de forma incessante os familiares da vítima por telefone ou pessoalmente, a qualquer hora do dia ou da noite – o arguido pretendeu perturbar o descanso, o sossego e o sono de AM, L, M, o que quis e logrou.

101. Ao declarar expressamente que iria matar os familiares da vítima A. e pegar fogo à sua casa, quis também o arguido provocar nos ofendidos AM, L, M e MM um estado de medo e receio pela sua vida, o que logrou.

102. Noutra ocasião, ao ameaçar a integridade física da irmã da ofendida, a queixosa A., dizendo que lhe “metia um ferro no cu”, o arguido pretendeu ainda criar nela um estado de medo e receio pela respetiva integridade corporal e sofrimento que adviesse de tal ato cruel, o que logrou.

103. O arguido não é detentor de qualquer licença de uso e/ou porte de arma, nem mesmo no domicílio, nem é praticante de qualquer arte marcial.

104. O arguido conhecia as características do sabre que detinha - que não é parte integrante de qualquer tipo de coleção e/ou de equipamento para a prática de arte marcial - sabendo que a sua detenção e guarda não era permitida, e, não obstante, quis detê-lo e guardá-lo da forma descrita.

105. Ao embater o seu veículo, propositadamente, contra o veículo da vítima A. com vista a atingi-la, o arguido bem sabia que tal implicaria necessariamente infligir qualquer tipo de estrago a um veículo que lhe era alheio, agindo contra a vontade da sua proprietária, o que, não obstante, quis e logrou como consequência, pelo menos, necessária, da sua conduta.

106. O arguido agiu sempre de forma livre e consciente com o propósito conseguido de ofender corporalmente a vítima A., de atentar sucessivamente contra a sua liberdade sexual, de ofender a sua honra e consideração e de lhe causar temor e ansiedade, ameaçando-a de morte e desgastando-a psicologicamente de forma reiterada ao longo dos últimos anos.

107. Ao agir da forma descrita supra em 25 e 90 a 92, o arguido, então separado da vítima, agiu, em ambas as ocasiões, de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que molestava sexualmente a sua ex-companheira, contra a vontade daquela, fazendo uso da força física, da intimidação com arma de fogo ou facas e/ou colocando a vítima sem alternativa de fuga, para melhor atingir os seus intentos, o que quis e conseguiu.

108. Com as condutas descritas revelou ainda o arguido não possuir qualquer respeito para com a sua ex-companheira enquanto pessoa e mãe da filha de ambos, violando os mais elementares princípios e deveres da vida em sociedade.

109. Mais sabia o arguido que as descritas condutas eram proibidas por lei e constituíam crimes.

110. O desenvolvimento do arguido B., mais novo de uma fratria de 5 elementos, decorreu inserido no agregado de origem, sem acentuadas problemáticas relacionais entre os elementos da família, nem marcadas carências económicas durante o período de vida em comum.

111. O progenitor do arguido terá padecido de uma perturbação psiquiátrica grave – esquizofrenia, cuja sintomatologia se agravou a partir dos 40 anos de idade.

112. Em termos de escolaridade o arguido concluiu o 2º Ciclo do Ensino Básico.

113. O abandono escolar coincidiu com o ingresso no mercado de trabalho na área da carpintaria, atividade que exerceu de forma relativamente continua e primacialmente por conta própria.

114. O arguido encetou uma primeira relação de matrimónio aos 18 anos de idade.

115. Desta relação há a registar o nascimento de uma descendente, presentemente com 25 anos.

116. Este relacionamento terá decorrido no essencial isento de conflituosidade, face à postura de extrema passividade da companheira.

117. Há cerca de 4 anos, quando o arguido encetou o relacionamento com A., ambos eram casados e esta detinha uma situação socioeconómica de revelo na comunidade local (marido engenheiro e A frequentava o ensino superior), pese embora a separação entre cônjuges tenha ocorrido de forma pacífica, os familiares da vítima opuseram-se veemente à união do casal.

118. Tal rejeição á presença do arguido na vida da A. acentuou-se com os comportamentos de marcada disruptividade de B. em contexto familiar, bem como com a manutenção de hábitos alcoólicos e consumo de substâncias ilícitas (cocaína) por parte daquele.

119. Em termos de socialização, o arguido sempre deteve um leque vasto de conhecidos e amigos.

120. No meio local o arguido encontra-se conotado ao consumo de estupefacientes e de bebidas alcoólicas, embora sem consequências significativas em termos do seu comportamento social, e à manutenção de vários relacionamentos extraconjugais.

121. O arguido reconhece a sua problemática aditiva, iniciada há largos anos, e mantida de forma sistemática até altura da sua prisão preventiva.

122. Após a separação da assistente, o arguido beneficiou do apoio da irmã que, face à instabilidade emocional do mesmo, procurou o seu encaminhamento para avaliação psiquiátrica, alternativa que não sofreu a anuência do arguido.

123. Em meio prisional B., face à manutenção do seu quadro de instabilidade, este solicitou uma avaliação médico/psiquiátrica.

124. Desde Janeiro do corrente ano que Pbeneficia, assim, de acompanhamento por parte dos Serviços de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD) de Olhão.

125. Paralelamente beneficia de consultas regulares por parte da psiquiatria, encontrando-se a efetuar a terapia recomendada, onde se inclui a toma de anti depressivos e ansiolíticos, sob a forma de comprimidos.

126. Em contexto prisional, o arguido é referenciado como detendo um comportamento adequado e isento de sanções disciplinares.

127. No que concerne às suas características pessoais e sociais, o arguido denota uma marcada oscilação emocional/comportamental, com défices na antevisão das consequências dos atos praticados, bem como na avaliação dos valores jurídicos em causa.

128. O arguido manifesta alguma desvalorização dos factos de que se encontra acusado, minimizando os comportamentos e possível impacto que os mesmos possam ter desencadeado na vítima, atitude reforçada pelas visitas quinzenais que esta efetua em contexto prisional, alegadamente com o intuito de levar a filha a visitar o progenitor.

129. A filha surge como principal referência afetiva de B, verbalizando este, de forma bastante veemente, comportamentos persecutórios contra quem de forma direta ou indireta contribua para o afastamento entre os dois, atitude particularmente centrada nos familiares de A., figuras que considera responsáveis e passíveis de influenciar de forma negativa a sua relação com a descendente.

130. No que concerne à postura dos outros significativos, irmã e filha do arguido, face aos factos que se encontram na base do presente processo, a mesma oscila entre a censura e alguma desculpabilização comportamental, encontrando-se ambas disponíveis para apoiar o arguido em meio livre desde que este cumpra o tratamento.

131. Não são conhecidos ao arguido antecedentes criminais.
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-- Factos não provados:

1. Após os factos descritos em 19 dos factos provados, a ofendida conseguiu libertar-se do arguido e refugiar-se no quarto do casal, porém, o arguido logrou impedir que ela fechasse a porta.

2. Aí, nessa divisão, o arguido retomou as investidas sobre a queixosa, não obstante ela se encontrar sentada no chão, agarrada à barriga, a chorar.

3. Fê-lo, mais uma vez, pontapeando e esmurrando a ofendida por todo o corpo, incluindo na face.

4. O objeto referido em 25 dos factos provados era uma arma de fogo.

5. Na ocasião referida em 51 dos factos provados, o arguido apelidou a ofendida de “cabra”.

6. Na ocasião referida em 61 dos factos provados, o arguido disse à queixosa “vem comigo senão vou-te matar, sua puta, a ti e á tua mãe e tua irmã”.

7. A substância referida em 69 e 70 dos factos provados era abrasiva.

8. Na ocasião referida em 79 dos factos provados, a filha bebé do arguido e ofendida encontrava-se no interior do veículo automóvel.

Da contestação:

9. A ofendida consumiu sempre droga de forma voluntária.

10. A ofendida agrediu o arguido e dirigia-lhe nomes.
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Não se considerou nos factos provados e não provados a factualidade meramente conclusiva, de direito e simples interrogações contidas na acusação. De referir que a generalidade da factualidade descrita na acusação é meramente conclusiva (de resto, de pendor também em parte conclusivo a matéria descrita em 10 dos factos não provados), de direito ou consiste em interrogações perante a conduta da arguida, motivo pelo qual se não fez constar a mesma nos factos provados ou não provados.
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Fundamentação da decisão de facto:

O tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade.

Concretamente, revelaram-se fundamentais para criar a convicção do Tribunal, os seguintes meios de prova:

O arguido prestou declarações, nas quais reconheceu in totum os factos descritos em 1, 2, 8, 9 e 21, 28, 29, 31, 32, 33 a 36, 38, 55, 76, 79, 80, 81 e 98 dos factos provados.

No mais, o arguido referiu a existência de discussões entre o casal, no âmbito da qual ambos se dirigiam mutuamente nomes, reconhecendo que entre os que dirigia à assistente constam os descritos em 3 dos factos provados.

Mais referiu que ambos consumiam voluntariamente cocaína, não tendo forçado a assistente a quaisquer consumos.

Negou ainda ter agredido de qualquer forma a assistente, referindo a esse respeito ser portador de uma incapacidade física de 60% e que não possuía quaisquer armas, exceto o sabre descrito na acusação; mais referiu que as relações sexuais e os objetos introduzidos na vagina da assistente foram sempre consentidos pela mesma.

Igualmente negou ter retido contra a sua vontade a mesma no interior do seu veículo automóvel, bem como ter dirigido voluntariamente o seu veículo automóvel contra o da assistente, referindo a este respeito que o fez acidentalmente, ou ter ameaçado qualquer membro do seu agregado familiar.

Reconheceu a violação do domicílio da assistente, mas negou que as relações sexuais de cópula e sexo oral mantidas com a mesma tenham sido contra a sua vontade, sendo certo que trazia a faca e o martelo para sua proteção, caso surgisse alguém, mormente o cunhado da assistente e que os telefonemas desse dia para casa da assistente visavam apenas saber notícias da sua filha.

Reconheceu, por fim, não ser titular de licença de uso e porte de arma ou praticar desportivamente qualquer arte marcial.

A assistente, A., por seu lado, descreveu no essencial os factos que se mostram descritos na acusação, tendo deposto com clareza, dando todas as explicações solicitadas.

Assim, concretamente esclareceu ter iniciado o consumo de cocaína pelo incentivo do arguido quanto a tal consumo, com vista a que melhorasse a sua prestação no âmbito das relações sexuais, em que constantemente aludia à sua má prestação em confronto com a da sua ex-mulher, bem como que a mesma seria melhorada com o consumo de cocaína, que apelidava da “droga do amor” e sempre aludindo à normalidade do consumo social desse estupefaciente. De resto, refere que sob influência do estupefaciente conseguia suportar melhor as práticas sexuais do arguido, mormente com a introdução da mão, braço e objetos, como garrafas, na vagina, que de outro modo não suportava, chorando e gritando, ao que ele era indiferente. Mais refere que no início se opunha fisicamente a tais práticas sexuais, sendo que o arguido a agredida à chapada e socos na cabeça e com puxões de cabelos e lhe dizia que a iria rasgar para a alargar e ficar desfigurada sempre que tal oposição ocorria, motivo pelo qual, devido ao receio que sentia de repetição dessas situações e perante as ameaças constantes do arguido, deixou a partir de determinada altura de oferecer resistência física, mas deixando claro que não pretendia manter relações após conflitos ou a introdução dos objetos. Com efeito, segundo a mesma, o arguido pretendia pôr fim a todas as discussões e contendas do casal mantendo relações sexuais com a queixosa, que nessas alturas não pretendia manter com ele tal tipo de relações. Também em outras ocasiões, quando entrava na sua residência, vinda do seu local de trabalho, o arguido mostrava-lhe de imediato objetos que preparara para lhe introduzir na vagina.

Mais refere que, quando contrariado, em particular quando pretendia manter relações sexuais, o arguido ficava com uma força que apelidou de “medonha”.

No que respeita à arma, refere que a mesma era pequena, preta, de metal, semelhante às usadas por agentes da PSP e que várias vezes o arguido a ameaçou com a mesma, tendo-o visto municiá-la.

No que concerne ao líquido abrasivo, refere ter sido o próprio arguido a denominá-lo dessa forma, sendo certo que a garrafa contendo o mesmo não foi apreendida pela PSP, mas tendo a sua filha, após atingida por alguns salpicos do mesmo, ficado ruborizada nas zonas atingidas.

Já quanto ao episódio em que o arguido voluntariamente dirigiu o veículo automóvel contra o seu, relatando tais factos, referiu, no entanto, que a filha menor do casal não se encontrava no interior do veículo automóvel.

Quanto aos factos ocorridos no seu quarto, depois de o arguido ter cortado a pulseira eletrónica, apenas não recorda se manteve coito oral com o arguido, relatando todos os demais factos descritos na acusação.

A testemunha AM, irmã da queixosa, refere nunca ter visto o arguido agredir a sua irmã, mas ter por diversas vezes a mesma telefonado á depoente relatando agressões, vendo após a mesma com marcas na zona ocular, o que ocorria pelo menos com regularidade mensal. Viu também marcas uma vez na face e peito e várias, entre 10 a 30 vezes, marcas nos braços.

Mais referiu ter-se deslocado para junto da irmã na ocasião em que o arguido detinha a substância que denominou de abrasiva, confirmando as ameaças então proferidas pelo arguido, não tendo, no entanto, chegado a ver a garrafa contendo o líquido. Confirmou as marcas no corpo da sobrinha, já não logrando precisar o local das mesmas.

Referiu ainda o telefonema do arguido uma ocasião pelo Natal e nessa sequência a saída da ofendida da residência onde em família festejavam tal evento.

Confirmou ainda os vários telefonemas do arguido para a depoente, a várias horas do dia e da noite, sendo que o arguido não mantinha conversação, mas sabia tratar-se do mesmo, por reconhecer o seu nº de telemóvel. Confirmou também o envio de mensagens. A este respeito, a testemunha visionou as mensagens referentes ao dia 14 que ainda guarda no seu telemóvel, tendo reproduzido oralmente as mesmas, confirmando também os nºs de telemóvel, seu e do arguido, descritos na acusação. Relativamente às mensagens do dia 15, refere não recordar as mesmas, sabendo que eram frequentes, tendo guardado apenas as do dia 14 a título exemplificativo.

A testemunha viu também o veículo da ofendida embatido por detrás.

Confirmou ainda que na última ocasião, após o arguido ter cortado o dispositivo da vigilância eletrónica, a ofendida se encontrava a tremer. Acompanhou após a mesma a unidade hospitalar.

A testemunha L, cunhado da ofendida, militar da GNR, confirmou os telefonemas constantes e a qualquer hora, incluindo de madrugada, para a residência do sogro, mormente no período em que o arguido permaneceu em França, com o intuito de falar com a ofendida.

Confirmou ainda o envio de várias mensagens para o telemóvel da sua mulher, a testemunha AM.

Mais referiu ter várias vezes visto, porque se deslocava à varanda, o arguido junto à residência fazer peões e barulho com o veículo automóvel.

Por fim, relatou o estado de medo em que se encontrava a ofendida na ocasião em que o arguido cortou o dipositivo da vigilância eletrónica.

MM, mãe da ofendida, refere que era frequente a sua filha surgir na sua residência a chorar com hematomas na face e olhos, tendo até chegado a vê-la com vestuário rasgado. Confirmou ainda os telefonemas, incluindo de madrugada, para a sua residência, a fim de falar com a ofendida, sendo que muitas vezes proferia expressões ofensivas da sua honra ou ameaças, que provocava medo.

Mais referiu que o mesmo subia à janela das traseiras, motivo pelo qual a determinada altura colocaram grades na mesma, tendo por isso na última ocasião, a entrada ocorrido pela parte da frente da residência.

M, pai da ofendida, ouviu o arguido ameaçar de morte a ofendida e proferir expressões ofensivas da sua honra, mas que já não logrou concretizar.

Chegou a deslocar-se à residência em que viveu o casal constituído pelo arguido e ofendida, tendo visto a pistola, que o arguido referiu ser de plástico, tendo ficado com a impressão de que tal corresponderia à verdade. No entanto, a sua filha encontrava-se a chorar.

Chegou também a ver marcas na coxa, anca e perna da filha uma ocasião.

Igualmente relatou terem sido vários os telefonemas, pelo menos em número de 40, em que o arguido ligou para a sua residência, duas a três vezes dizendo que a ofendida se encontrava em locais de diversão noturna, como cafés, sendo que a mesma se encontrava na residência, situação que lhe provocava nervosismo, tendo que ser medicado.

Pese embora não tenha visto o embate no veículo automóvel, refere ter suportado o arranjo do veículo, no montante de mais de € 2000.

A testemunha I., patroa da ofendida, refere que eram habituais os telefonemas do arguido sempre que a ofendida permanecia no local de trabalho, um estabelecimento de café, para além do horário, referindo à depoente que a explorava e, comparando-a à ofendida, apelidava-a de puta e referia que aquela iria “levá-las quando chegasse a casa, que era assim que as putas se tratavam”, tendo chegado uma ocasião, no início de Maio do ano em que ambos se juntaram, a ir buscá-la ao local de trabalho, a agredi-la na cabeça, que a mesma baixou e após a arrastá-la pelos cabelos, apelidando-a de “vaca” e acusando-a de não fazer as coisas em casa.

Igualmente presenciou, antes de o arguido se deslocar para França, a ofendida uma ocasião com um olho negro, um ombro arranhado e a escorrer líquido e uma nódoa negra na perna.

Já após regressar de França, também se deslocou ao local de trabalho da ofendida, chamando-lhe nomes e derrubando as cadeiras e mesas.

Igualmente referiu o medo que a ofendida lhe relatava do arguido, aludindo à posse pelo mesmo de uma arma de fogo.

A testemunha acompanhou também a ofendida à residência que fora do casal, a fim de a mesma retirar os seus pertences, onde presenciou a caixa com a faca espetada no envelope e os dizeres nele apostos, tendo o arguido ameaçado de morte a ofendida e apelidado a mesma de “vaca e puta”, referindo ainda que se a mesma não fosse sua não seria de mais ninguém.

Por fim referiu que a ofendida lhe relatava que o arguido a forçava a manter consigo, contra a sua vontade, relações sexuais, já que se recusasse, era agredida pelo mesmo, tendo sido a depoente que aconselhou a queixosa a apresentar queixa contra o arguido.

AP, colega de trabalho da assistente, presenciou uma ocasião a mesma com um olho negro e em outra ocasião o braço esfolado e com nódoa negra, tendo nesta ocasião a mesma referido que caíra, não obstante chorar quando relatava tais factos.

Igualmente presenciou telefonemas para o local de trabalho, para a assistente ou para a patroa, referindo elas que provinham do arguido.

E, companheiro da filha do arguido, refere que na ocasião em que o arguido e a assistente se deslocaram para junto da residência daquela, a assistente com a filha ao colo, o questionou sobre o encontro referido pelo arguido, encontro que o depoente desconhecia, estando na ocasião já presente no local a PSP, referindo o arguido que era tão só para mostrar a filha à irmã.

A testemunha refere ter presenciado na mão do arguido uma garrafa de detergente “Ajax”, contendo um líquido transparente, desconhecendo a natureza do mesmo, mas tendo pedido ao arguido que lha entregasse, o que ele fez, tendo o depoente deitado o líquido fora.

H, amigo do arguido, confirma que o mesmo consumia álcool e cocaína, ficando alterado aquando dos consumos.
Desconhece como era o seu relacionamento com a assistente, estando convicto que era bom com a primeira mulher.

AG, amiga do arguido desde os 14 anos de idade, tem o arguido como uma pessoa não agressiva; Refere ter-se uma ocasião deslocado à residência do arguido, encontrando muitos objetos partidos e tudo revoltado. Desconhece como decorreu o relacionamento com a assistente, dado o mesmo se ter afastado do núcleo habitual de amigos enquanto durou tal relacionamento.

AP, conhecido do arguido desde os 13 ou 14 anos de idade, refere que o arguido, quando ingeria bebidas alcoólicas “se passava um pouco”.

Foi ainda ouvido FF, médico psiquiatra, que acompanha o arguido no estabelecimento prisional de Faro, o qual esclareceu que a sua intervenção junto do arguido foi solicitada pelo mesmo, o qual apresenta sintomatologia de depressão associada à abstinência do álcool e cocaína, substâncias que consumia.

No mais, a testemunha esclareceu que o arguido não apresenta qualquer sintoma que indique padecer de esquizofrenia ou outra doença mental/anomalia psíquica que afete o seu discernimento e a capacidade da vontade. Assim, tem capacidade de entendimento e consciência, a qual poderá ser mais reduzida se no momento da atuação o arguido se encontrar sob a influência de quantidade elevada de cocaína e álcool.
*
Além das declarações e depoimentos referidos, foi ainda valorada a seguinte prova pericial e documental:

O auto de exame direto e avaliação da espingarda pressão de ar, de fls. 433 e o exame do LPC de biotoxicologia de fls. 600 a 602 (prova pericial);

O auto de denúncia de fls.42 (quanto à data dos factos, em conjugação com o depoimento da assistente), a transcrição de mensagens (sms) de fls. 64-67; o resultado da pesquisa informática de veículos automóveis inspecionados de fls. 93; os registos clínicos da menor filha do arguido e da assistente, de fls. 97-98 e 378 a 382; os autos de fls. 4 do apenso --/10.7GAOLH; a participação de acidente de viação de fls. 106 a 109 e aditamento de fls. 168 (mormente quanto à data dos factos participados); as fotos de fls. 73 a 75, 139 a 147, 149 a 150, 397 a 398 (estas últimas da residência da assistente e referentes ao dia 19/11/2011), 409 a 433, 507 a 516; os autos de apreensão de fls. 151 a 155 e 220 (este do telemóvel do arguido); os autos de interrogatório judicial de arguido de fls. 181 a 192, 246 a 247, 361 a 368, despacho de fls. 289 e relatórios da Vigilância eletrónica de fls. 302, 322 a 325 e 375 (quanto às medidas de coação aplicadas ao arguido); a listagem de chamadas de fls. 311 a 314 (para o telefone fixo da residência dos pais da assistente), 444 a 452 (para o telefone fixo), 52 a 59 do apenso ---/11.8GAOLH; o aditamento de fls. 328 a 331 (quanto à data e em conjugação com as declarações da assistente), a declaração do Hospital de Faro de fls. 332 (quanto à presença da assistente nesse local); o relatório de episódio de urgência de fls. 349 a 353 e 378 a 382 (referente ao dia 19//11/20119); o escrito anexo a fls. 423 (envelope em que foi colocada a faca); a informação da PSP de fls. 16 do apenso --/10.7GAOLH; a listagem de fls. 52 a 59 e informação de fls. 60 do apenso ---/11.8GAOLH, o termo de perfilhação de fls. 561; os elementos clínicos da assistente referentes ao carcinoma, a fls. 637 a 720 e resumo a fls. 724 a 725; os elementos clínicos da assistente de fls. 724 a 726, a declaração do EP, referente ao acompanhamento psiquiátrico do arguido, de fls. 777, a declaração do IDT de fls. 778, a declaração médica de fls. 817 e a declaração do GATO de fls. 818.
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Desde logo, perante a prova produzida supra referida, não podem deixar de dar-se como assentes os factos descritos na acusação, com exceção daqueles que se deram como não provados.

Com efeito, pese embora o arguido negue a maioria dos factos imputados, as suas declarações mostram-se nessa parte em contradição com as declarações prestadas pela assistente, merecendo estas maior credibilidade, não só pela forma clara, direta e emotiva como esta depôs, esclarecendo pormenores sempre que tal lhe era solicitado, como porque as suas declarações foram em parte corroboradas pelas testemunhas de acusação supra referidas.

Ora, é sabido que neste tipo de criminalidade em que os factos são praticados maioritariamente no interior da residência das vítimas, não existam testemunhas presenciais dos mesmos.

No entanto, in casu, várias foram as testemunhas que presenciaram alguns factos relatados pela assistente, reforçando, assim, as suas declarações.

Assim, desde logo várias foram as testemunhas que presenciaram marcas no corpo da assistente (não só da sua família, mãe, pai e irmã, como a sua patroa e colega de trabalho, testemunhas A, ML, MJ, I e AP).

Por outro lado, os telefonemas para a residência dos pais da arguida foram também confirmados pelos membros do agregado familiar (mãe, pai, irmã e cunhado), bem como as mensagens para telemóvel pela sua irmã e cunhado.

Estas testemunhas confirmaram ainda o estado de medo em que se encontrava a assistente após o arguido ter estado no seu quarto no dia em que cortou o equipamento de controlo à distância, estado da assistente que não é compatível com a versão do arguido de que a mesma quis manter consigo relações sexuais e se coaduna antes com as declarações da assistente, no sentido de que apenas não se opôs fisicamente a que o arguido mantivesse consigo relações sexuais, em virtude de o mesmo a ter ameaçado com uma faca e um martelo que empunhava, sendo certo que o mesmo acabara de cortar o equipamento de vigilância à distância e entrara de madrugada e sem consentimento na sua residência e do seu agregado familiar, não havendo também dúvidas de que o arguido sabia que apenas provocando medo na assistente a mesma consentiria em manter consigo relações sexuais, daí ter acordado a mesma com a faca e martelo apontados e questionando-a sobre a forma como pretendia morrer. Qualquer homem médio colocado na posição do arguido, que não revela características inferiores às do homem médio, saberia que da sua conduta adviria medo para a assistente, medo que o arguido quis provocar de forma a conseguir que ela se não opusesse fisicamente a manter consigo relações sexuais, desiderato que o arguido atingiu.

Por seu lado, também as testemunhas que não são membros do agregado familiar da assistente corroboraram, naquilo que presenciaram, as declarações prestadas pela assistente. Assim, a testemunha I, patroa da arguida, confirmou os telefonemas do arguido para o local de trabalho e ameaças de morte da assistente e promessas de agressão quando chegasse a casa, bem como o dirigir nomes à assistente. Confirmou ainda o episódio da faca no envelope, estando este junto aos autos.

Igualmente a testemunha E, que vive com uma filha do arguido, confirmou a inexistência de qualquer encontro com aquela, bem como que o arguido empunhava uma garrafa de detergente contendo um líquido, tal como relatado pela assistente.

Tudo, a reforçar as declarações da assistente em detrimento das prestadas pelo arguido, já que sempre que os factos ou parte deles foram presenciados por terceiros, estes corroboraram as declarações prestadas pela assistente.

Não restam, assim, dúvidas, sobre a ocorrência dos factos descritos na acusação, com exceção daqueles que se deram como não provados.

Assim, os descritos em 1 a 4 não foram relatados pela assistente ou qualquer testemunha.

Quanto à arma, pese embora a assistente tenha relatado que se tratava de uma arma de fogo, a mesma não chegou a ser apreendida. Ora, o arguido nega que se tratasse de uma arma de fogo, sendo certo que a testemunha MM, pai da assistente, refere ter visto a arma uma ocasião, referindo o arguido que a mesma era de plástico, facto de que se convenceu. Fica, assim, a dúvida, se se tratava de uma verdadeira arma de fogo ou de uma sua réplica. Já não há dúvidas, porém, quanto ao convencimento da assistente quanto a tratar-se de uma arma de fogo, não só porque a mesma assim o relatou, como porque a mesma o referiu ao seu pai, que confirmou que a mesma se mostrava amedrontada na ocasião em que o arguido tinha consigo a arma, como porque a mesma também relatou à sua patroa, a testemunha I, que o arguido tinha em seu poder uma arma de fogo, o que lhe provocava medo.

Quanto ao líquido no interior da garrafa de detergente, igualmente não se mostra possível concluir que se tratava de uma substância abrasiva. Com efeito, o arguido não reconheceu este facto, não tendo também a substância sido analisada, sendo certo que era um líquido transparente no interior de uma garrafa de Ajax, líquido este que também é transparente. É certo que na ocasião o arguido referiu à assistente que se tratava de uma substância abrasiva. Porém, o mesmo pretendia também provocar-lhe medo, de forma a que a mesma permanecesse consigo. Igualmente do facto de a filha do casal, que foi atingida com algumas gotas do líquido, ter ficado com vermelhidão nas zonas atingidas, se não pode concluir que o líquido era abrasivo. Com efeito, é do conhecimento geral que a pele dos bebés é mais sensível, daí que pudesse ficar vermelha mesmo sem que a substância fosse abrasiva, sendo possível que o próprio Ajax provocasse tal reação na sua pele. Não se pode, assim, concluir que o líquido contido na garrafa era abrasivo.

Por fim, na ocasião em que o arguido embateu o veículo conduzido pela assistente, foi a própria que reconheceu que a bebé, sua filha e do arguido, não se encontrava no interior do veículo automóvel.

Igualmente não restam dúvidas de que o arguido tinha capacidade de entender e querer e de avaliar a ilicitude da sua conduta, determinando-se de acordo com essa avaliação.

A esse respeito, não restam dúvidas face ao depoimento da testemunha FF médico psiquiatra, que confirmou tal capacidade por parte do arguido, que referiu não padecer de qualquer anomalia psíquica, não sendo o consumo de álcool e cocaína de molde a retirar-lhe as referidas capacidades, embora as podendo diminuir em caso de consumo muito elevado de ambas. Não há, porém, qualquer indicação, nomeadamente nos relatos da assistente e demais testemunhas que presenciaram parte dos factos, de que o arguido atuasse, ou atuasse sempre, sob influência de elevado consumo de estupefacientes e álcool e que, por isso tivesse diminuída a sua capacidade de entender e querer ou de avaliar a ilicitude da sua conduta ou se determinar de acordo com essa avaliação.

De resto, as condutas do arguido são tão variadas e tão repetidas, ao longo de um período tão longo, que seria difícil compaginar a tal diminuição, já que embora consumisse álcool e cocaína, não o fazia em todas as ocasiões, em particular em quantidades tais que lhe provocassem sempre uma diminuição das aludidas capacidades.

Não há, assim, dúvidas de que o arguido atuou de forma voluntária, querendo praticar os factos e estando ciente da ilicitude da sua conduta.

Quanto aos demais factos provados, foi valorado o relatório social do arguido, que constitui fls. 812 a 816 e o certificado do registo criminal de fls. 759.

III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.

De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação no recurso do arguido B são as seguintes, alinhadas pela ordem por que devem ser conhecidas:

1.ª – Que foi por ter avaliado mal a prova produzida em julgamento que o tribunal a quo deu como provado que o arguido praticou os crimes pelos quais depois o condenou, tendo violado o princípio "in dubio pro reo";

2.ª – Que, além de não se ter feito prova da prática pelo arguido de maus tratos físicos à assistente, também – e passamos a citar a conclusão clxxxi – a actuação do Recorrente no que se refere aos sms não assume gravidade suficiente para que se possa concluir que por via dela o Recorrente atentou contra a dignidade da pessoa humana da Ofendida de tal forma que revele um mau trato psicológico sobre ela (fim de citação) capaz de integrar os maus tratos psíquicos referidos no art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal, (diploma do qual serão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem), para a verificação do crime de violência doméstica;

3.ª – Que ao ter condenado o arguido pelo crime de violência doméstica, não podia o tribunal "a quo" tê-lo também condenado pelos 5 crimes de ameaça;
4.ª – Que os crimes de violação pelos quais o arguido foi condenado se inseririam não na previsão do art.º 164.º, n.º 1, mas antes na do art.º 164.º, n.º 2;

5.ª – Que os crimes de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 1, se encontram em concurso aparente com o de violência doméstica, pelo que o arguido ou é condenado pelos crimes de violação ou é condenado pelo crime de violência doméstica;

6.ª – Que, no tocante ao crime de roubo, o tipo legal deste ilícito não se encontra preenchido;

7.ª – Que o arguido não cometeu o crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 1 e 3, porque – e passamos a citar a conclusão ccxvii – a sua intenção era tão somente ver a filha e falar com a mãe desta, a ofendida, além do que – e passamos agora a citar a conclusão ccxxii – tudo leva a crer que Requerente e Ofendida por vezes combinavam passar a noite juntos na casa onde esta se encontrava a residir, presumindo-se por isso o consentimento da ofendida, pelo que, assim, o acordo (expresso ou presumido) do portador do bem jurídico exclui a tipicidade – conclusão ccxxiii.

8.ª – Que o arguido também não cometeu os três crimes de perturbação da vida privada, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 2, porque, segundo se extrai da conclusão ccxviii, a sua intenção também era tão somente ver a filha e falar com a mãe desta, a ofendida, além de que o arguido agiu sem dolo, uma vez que – e passamos a citar a conclusão ccxix – o Recorrente não podia imaginar que perturbava a vida privada dos familiares da Ofendida nem tampouco da própria, além de que um dos pretensos ofendidos, o pai da assistente, não morava na residência para a qual o arguido telefonava;

9.ª – Que o arguido também não cometeu o crime de dano, p. e p. pelo art.º 212.º, n.º 1, por não ter embatido propositadamente no carro conduzido pela assistente, faltando assim o elemento subjectivo para o preenchimento do tipo;

10.ª – Que o arguido também não cometeu o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1 al.ª d), por referência aos art.º 2.º, n.º 1 al.ª m), 3.º, n.º 1 e 2 al.ª f) e 4.º, n.º 1, todos da Lei n.º 5/2006, de 23-2 (Regime Jurídico das Armas e Munições), por o sabre em questão não ter poder de corte e ser um mero objecto de decoração;

11.ª – Que – e passamos a citar a conclusão ccxxxvi – não poderia nunca o arguido praticar os alegados crimes, pelo menos com a intenção necessária, pois se estava alcoolizado ou sob o efeito de drogas, nunca teria a capacidade de entendimento pois encontrando-se num estado de incapacidade acidental art° 257° do C.C. nunca poderia ter o conhecimento intelectual dos elementos ilícitos em crise, estaria, salvo melhor entendimento em erro sobre a ilicitude art° 17° do C.P. devido à sua inimputabilidade temporária.

12.ª – Que deviam ter sido aplicadas:

A) Penas de multa aos crimes de ameaça, perturbação da vida privada, violação de domicílio e dano; e

B) Penas de prisão de execução suspensa aos crimes de violência doméstica, violação e roubo

Eventualmente cumulada – alvitra o arguido na conclusão ccxlv – com uma pena acessória de obrigação da frequência pelo arguido de um programa específico de prevenção da violência doméstica.

Sendo que, de qualquer forma, a pena única de 12 anos de prisão é excessiva, devendo antes ser substituída por uma pena suspensa na sua execução.
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Quanto ao recurso da assistente, a mesmo coloca apenas uma questão ao desembargo desta Relação e é a seguinte:

Que a pena única, que o tribunal "a quo" fixou em 12 anos de prisão, devia antes ter sido fixada em nunca menos de 16 anos de prisão.
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Vejamos:

No tocante à 1.ª das questões postas pelo arguido, a de que foi por ter avaliado mal a prova produzida em julgamento que o tribunal a quo deu como provado que o arguido praticou os crimes pelos quais depois o condenou, tendo violado o princípio "in dubio pro reo":

A pretexto deste assunto, pretende o arguido que esta Relação tenha em conta um documento que juntou com a motivação do recurso.

O art.º 410.º, n.º 1, estabelece que sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.

Ora este documento, porque não foi conhecido na decisão recorrida, não pode agora também servir de fundamento do presente recurso.

Diz o art.º 165.º, n.º 1, que o documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência. Da audiência da 1.ª Instância.

O processo penal vigente caracteriza-se por uma filosofia de parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os seus actos e de igualdade material de "armas" no processo.

Tal significa que a apresentação de um documento, seja pela acusação ou pela defesa, tem de ser sujeita ao contraditório e pode suscitar as mais variadas reacções de contraprova pela parte contrária. Ora essa actividade tem que ter lugar na 1.ª Instância e não nesta Relação, que não possui mecanismo processual adequado a lidar com essa situação.

Daí que qualquer documento só possa ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, excepcionalmente, não sendo isso possível, deve sê-lo então até ao encerramento da audiência da 1.ª Instância.

Os art.º 425.º e 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que em certas condições permitem a junção de documentos com as alegações dos recursos cíveis, não têm aplicação no processo penal por via do art.º 4 deste último código. O art.º 4 destina-se a suprir os casos omissos e o caso que estamos a tratar está expressamente regulado nos art.º 164.º e 165.º do Código de Processo Penal; não se trata pois de um caso omisso. O legislador é que deliberadamente não quis para o processo penal o regime contido nos mencionados art.º 425.º e 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Senão tinha-o importado.

Por outro lado, quando o art.º 412.º do Código de Processo Penal estabelece que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar, além do mais que agora não interessa ao caso, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, está a referir-se a provas já produzidas no julgamento da 1.ª Instância e que o recorrente entende terem sido mal valoradas, não se está a referir a novas provas que o recorrente no entretanto angarie. (Sobre o assunto: Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, 16.ª ed. , pág. 391; Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal (…)”, 3.ª ed. , pág. 447; “Código de Processo Penal, Comentários e Notas Práticas dos Magistrados do M.º P.º do Distrito Judicial do Porto”, pág. 428; e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10-2-1994 e de 30-11-1994, Colectânea de Jurisprudência dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1994, respectivamente tomo I-227 e tomo II-262; e, agora em www.dgsi.pt, acórdão da Relação do Porto de 11-6-2008, proferido no processo 0842171 e do STJ de 22-10-2008, processo 08P2832).

Assim, tem-se por irrelevante a junção de tal documento.

Adiante.

Quanto à questão de que foi por ter avaliado mal a prova produzida em julgamento que o tribunal a quo deu como provado que o arguido praticou os crimes pelos quais depois o condenou, comecemos por aqueles de que foi vítima a assistente e em relação aos quais o arguido alega que não podiam ter sido dados como provados pelo tribunal "a quo", uma vez que a sua prática não foi presenciada por quem quer que fosse, havendo apenas o arguido a negar essa prática, a ofendida a descrevê-la e as demais testemunhas de acusação a contarem em tribunal o que a ofendido lhes disse que sucedera, pelo que não podia o tribunal ter condenado o recorrente com base em semelhante prova, desde logo por causa do princípio do "in dubio pro reo".

Mas, respondemos nós, não é bem assim.

Primeiro, se é verdade que a maioria dos crimes em que a assistente foi a vítima foi cometida dentro dos muros da residência conjugal, houve alguns desses em que terceiros constataram sequelas do seu cometimento ou constataram pormenores da sua ocorrência e houve outros que foram presenciados por terceiros.

É o caso da testemunha I, patroa da ofendida no café aonde esta era empregada de mesa, e de cujo depoimento (gravado a 22-10-2012 entre as 16H26M e as 16H55M) resulta que ouviu o arguido a chamar nesse estabelecimento “puta” e “vaca” à assistente, (o que confirma parte do ponto 3 dos factos provados e o ponto 39 dos factos provados); que a assistente lhe confidenciava o arguido a forçava a manter consigo, contra a sua vontade, relações sexuais, já que se recusasse, era agredida pelo mesmo (o que confirma o ponto 11 dos factos provados); que a viu uma vez com um olho negro, um ombro arranhado e a escorrer líquido e uma nódoa negra na perna (o que contribui para confirmar os pontos 20 e 43 a 49 dos factos provados); presenciou a caixa com a faca espetada no envelope e os dizeres nele apostos (o que confirma o ponto 22 e 23 dos factos provados).

É o caso da testemunha MM, pai da ofendida, e de cujo depoimento (gravado a 22-10-2012 entre as 16H09M e as 16H25M) resulta ter visto ao arguido uma pistola, que este lhe disse ser de plástico, tendo a testemunha ficado convencido de que realmente não se tratava de uma arma a sério (o que contribui para confirmar parte do pontos 6 e 25 dos factos provados); presenciou os telefonemas mencionados nos pontos 73, 74, 84, 99 e 100 dos factos provados; foi ele quem pagou o arranjo do carro e pelo montante referido no ponto 78 dos factos provados; ouviu o arguido ameaçar de morte a ofendida e proferir expressões ofensivas da sua honra (o que contribui para confirmar os pontos 3 e 5 dos factos provados); viu marcas na coxa, anca e perna da filha uma ocasião (o que contribui para confirmar os pontos 20 e 42 a 49 dos factos provados).

É o caso da testemunha AP, colega de trabalho da assistente, e de cujo depoimento (gravado a 22-10-2012 entre as 16H55M e as 17H01M) resulta ter visto em uma ocasião a assistente com um olho negro e em outra ocasião o braço esfolado e com nódoa negra (o que contribui para confirmar os pontos 20 e 42 a 49 dos factos provados).

É o caso da testemunha M, mãe da ofendida, e de cujo depoimento (gravado a 22-10-2012 entre as 15H52M e as 16H08M) resulta ter visto a sua filha surgir na sua residência a chorar com hematomas na face e olhos e com o vestuário rasgado (o que contribui para confirmar os pontos 20 e 42 a 49 dos factos provados); presenciou os telefonemas e as ameaças de morte mencionados nos pontos 73, 74, 84, 99 e 100 dos factos provados; confirmou que por o arguido subir às janelas das traseiras da casa aonde a assistente se acolhia para a apoquentar, foram colocadas grades nas mesmas, tendo por isso na última ocasião a entrada ocorrido pela parte da frente da residência (o que contribui para confirmar parte do teor do ponto 74 dos factos provados).

É o caso da testemunha AG amiga do arguido, e de cujo depoimento (gravado a 22-10-2012 entre as 17H16M e as 17H23M) resulta que numa ocasião se deslocou à residência do arguido e ali encontrou muitos objetos partidos e tudo revoltado (o que contribui para confirmar que factos como os descritos na parte final do ponto 44 e na 2.ª parte do ponto 59 dos factos provados ocorreram efectivamente).

É o caso da testemunha E, companheiro da filha do arguido, e de cujo depoimento (gravado a 22-10-2012 entre as 17H16M e as 17H23M) resulta a prova de partes do episódio descrito nos pontos 64 a 72 dos factos provados.

É o caso da testemunha L, cunhado da ofendida, militar da GNR, e de cujo depoimento (gravado a 22-10-2012 entre as 15H28M e as 15H51M) resulta ter ficado provado o teor do ponto 73 dos factos provados; ter presenciado as rondas e esperas à residência da queixosa mencionadas no ponto 74 dos factos provados, o envio de várias mensagens para o telemóvel da sua mulher, a testemunha AM., a que aludem os pontos 75 e 76 dos factos provados, o desassossego dos telefonemas mencionados nos pontos 99 e 100 dos factos provados e o estado de medo em que se encontrava a ofendida após a ocorrência descrita nos pontos 86 a 94 dos factos provados.

É o caso da testemunha AM, irmã da assistente, e de cujo depoimento (gravado a 22-10-2012 entre as 14H46M e as 15H27M) resulta ter ficado provado o teor do ponto 73 dos factos provados; recebeu as várias mensagens de telemóvel a que aludem os pontos 75 e 76 dos factos provados; viveu o desassossego dos telefonemas mencionados nos pontos 99 e 100 dos factos provados, presenciou o estado de medo em que se encontrava a ofendida após a ocorrência descrita nos pontos 86 a 94 dos factos provados, viu as marcas no corpo da sobrinha mencionadas no ponto 72 dos factos provados, bem como recebeu telefonemas da assistente relatando agressões físicas do arguido e constatando depois a existência de ferimentos na zona ocular, na face, no peito e nos braços da assistente (o que contribui para confirmar os pontos 20 e 42 a 49 dos factos provados).

É o caso da testemunha FF, médico psiquiatra, que acompanha o arguido no estabelecimento prisional, e de cujo depoimento (gravado a 20-11-2012 entre as 16H19M e as 16H28M) resulta que o arguido, ao praticar as ocorrências descritas na matéria de facto assente como provada, sabia bem o que estava a fazer e era mesmo aquilo que ele queria fazer.

E há o sms do arguido de fls. 865 a ameaçar atear fogo à casa dos pais da assistente (o que contribui para confirmar parte do teor do ponto 74 dos factos provados).

De resto, o próprio arguido admite a fls. 24 do seu recurso a apropriação do telemóvel mencionada nos pontos 62 e 63 dos factos provados.

Portanto, em relação aos episódios ocorridos com a assistente, a prova da sua ocorrência não se deve pura e simplesmente às declarações que a assistente prestou.

Além disso, não é por o arguido negar a prática dos crimes e a assistente relatar que efectivamente aconteceram que, não havendo outros testemunhos presenciais, aqueles dois depoimentos se anulam um ao outro ou fazem automaticamente intervir o princípio do "in dubio pro reo".

Na verdade, acreditar na assistente e não acreditar no arguido – ou vice-versa – é uma questão de convicção. Essencial é que a explicação do tribunal porque é que acredita naquela e já não acredita neste seja racional e tenha lógica.

E quem está numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova.

Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.

Aliás, segundo recentes pesquisas neurolinguísticas, numa situação de comunicação presencial, apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra, sendo que o tom de voz e a fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder – vide Lair Ribeiro, “Comunicação Global”, Lisboa, 1998, pág. 14. Ora se a audição de uma gravação permite fruir com fidelidade aqueles 7% de capacidade de influência exercida através da palavra e ainda, mas nem sempre, os 38% referentes ao tom de voz, sobram os 55% referentes à fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, a que o tribunal de 2.ª Instância nunca terá acesso.

É que há sempre coisas que os juízes de julgamento viram enquanto ouviam e não ficaram na gravação e às quais, por isso, o tribunal de recurso nunca terá acesso, sendo por vezes precisamente essas que fazem a diferença e levam o tribunal a quo a tombar para o lado do provado em vez do não provado ou vice-versa.

Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a oralidade e a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal. Assim, a reapreciação pelo Tribunal da Relação das provas gravadas só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1.ª Instância caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas.

A prova testemunhal não é, pois, para ser avaliada aritmeticamente.

Por isso é que o art.º 127.º, do Código de Processo Penal, dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente; salvo quando a lei dispuser diferentemente, o que não é o caso.

Conforme refere o Prof. Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal II, 27) as regras ou normas da experiência "são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto, sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade” e a livre convicção "é um meio da descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade, portanto, uma conclusão livre porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores".

Certo que a livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, que determina dessa forma uma convicção racional e, portanto, objectivável e motivável – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-11-98, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, III-201.

Mas quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum – acórdãos do STJ de 6-3-02, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.002, II-44 e da Relação de Évora de 25-5-04, Colectânea de Jurisprudência, 2.004, III-258.

Por outro lado, como consta do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-10-04, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.004, III-197, que agora passaremos a seguir de perto, o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta, só por si, conduzir à sua convicção.

Em sede de apreciação, a prova testemunhal pode ser objecto da formulação de deduções ou induções, bem como da correcção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência.

Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei, de acordo com o art.º 125.º, do Código de Processo Penal; e o art.º 349.º do Código Civil prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351.º, do Código Civil).

Depois, as presunções simples ou naturais (como o são as aqui em causa) são simples meios de convicção e encontram-se na base de qualquer juízo, pois são o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções.

Como expendia Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, I-333 e ss., as presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cederão perante a simples dúvida sobre a sua exactidão em cada caso concreto.

Também Vaz Serra, em "Direito Probatório Material", Boletim do Ministério da Justiça, n.º 112 pág., 990, diz que «ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [..] ou de uma prova de primeira aparência».

Vem isto a propósito de que se uma mulher casada ou a viver maritalmente aparece, ainda por cima repetidas vezes, em público com nódoas negras nos olhos e pelo corpo, isso é um sinal inequívoco de que anda a ser sovada pelo companheiro. É que é da mais elementar experiência da vida que se tais ferimentos resultarem antes de uma queda ou de um qualquer outro tipo de acidente, a própria mulher vai explicar isso no meio social em que se move, porque nenhuma quer semelhante labéu para si e/ou para o seu companheiro. Portanto, escusa o arguido de argumentar que, como ninguém o viu a bater na assistente, isso não pode ser dado como provado.

Por outro lado, também é um mero exercício de oratória argumentar que não pode ser dado como provado que foi o arguido que enviou os sms por não ter sido apurado que o telemóvel de onde provieram fosse efectivamente propriedade do arguido.

Ora, ora…

Quem mais naquele contexto espácio-temporal teria interesse em enviar à irmã da assistente, a testemunha AM, mensagens do género:

Então bela agora n dizes nada a tua mana ontem tava com 2 ucranianos.ques fotos?eu mando te”;
“Vai a mala dela e investiga vais encontra tabaco prezevati já agora ve o tel que sabesm com quem ela teve telefona e confirma”

E quem mais naquele contexto espácio-temporal teria interesse em enviar à assistente as mensagens reproduzidas no ponto 77 dos factos provados…[2]

O que significa que as presunções naturais não violam o princípio in dubio pro reo. Este princípio é que constitui o limite daquelas.

Isto é, da leitura da fundamentação da decisão recorrida, resulta que o Tribunal a quo não teve dúvidas sobre os factos que deu como assentes, dúvidas que este Tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, também não tem, pois que só se a fundamentação revelasse que o tribunal a quo, face a algum ou alguns factos, tivesse ficado em dúvida "patentemente insuperável", como se referiu no Ac. do STJ de 15-6-00, publicado na Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.000, II-228, é que se podia afirmar que havia sido postergado o princípio in dúbio pro reo, que sendo um corolário da presunção de inocência, só vale até ser, como foi, elidida em julgamento. Ou se, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, esta resultasse evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência, ou seja, quando fosse verificável que a dúvida só não era reconhecida em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c) do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal – acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3-3-1999 e 4-10-2006, ambos acessíveis em www.dgsi.pt e ainda da Relação de Évora de 30-1-2007, no mesmo sítio da internet.

Ora a fundamentação da decisão de facto da sentença recorrida não evidencia qualquer dúvida que tenha sido solucionada em desfavor do arguido.

Como se afirmou no acórdão da Relação do Porto de 5-6-2.002, proferido no recurso n.º 0210320, consultável em www.dgsi.pt, a reapreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1 ° Instância, caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas.

Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

Ora, analisando o conteúdo das gravações da prova testemunhal produzida em julgamento, conjugada entre si e com as regras da experiência e da normalidade, não podemos deixar de aceitar a posição do julgador, porque baseada na imediação e que de modo algum aponta para uma apreciação arbitrária da prova produzida.

Todos os elementos circunstanciais são manifestamente suficientes para se concluir como concluiu o tribunal recorrido.
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No tocante à 2.ª das questões postas pelo arguido, a de que, além de não se ter feito prova da prática pelo arguido de maus tratos físicos à assistente, também – e passamos a citar a conclusão clxxxi – a actuação do Recorrente no que se refere aos sms não assume gravidade suficiente para que se possa concluir que por via dela o Recorrente atentou contra a dignidade da pessoa humana da Ofendida de tal forma que revele um mau trato psicológico sobre ela (fim de citação) capaz de integrar os maus tratos psíquicos referidos no art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal (diploma do qual, recorde-se, serão todos os preceitos legais a seguir referidos sem menção de origem), para a verificação do crime de violência doméstica:

O art.º 152.º, n.º 1 al.ª b), na redacção vigente à data dos factos (resultante da Lei n.º 59/2007, de 4-9), punia quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, a – além de outros – pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

Pretende o recorrente, em suma, não ter ocorrido a prática deste crime porque, por um lado, não se fez prova dos maus tratos físicos e porque, por outro lado, o teor dos sms que enviou à assistente não chega para integrar o elemento dos maus tratos psíquicos.

Quanto ao preambular de se se fez ou não prova da prática pelo arguido de maus tratos físicos à assistente – eles ocorreram efectivamente, como se acabou de ver no tratamento dado à questão anterior.

Só isso, a ocorrência de maus tratos físicos, chega para o preenchimento do tipo.

Mas adiante.

O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo. Neste crime protege-se a saúde física e mental do cônjuge e a dignidade da pessoa humana, em contexto de coabitação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa coabitação.

O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima. O tipo objectivo inclui as condutas de violência física, psicológica verbal e sexual posto que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.

Exemplos mais comuns de maus tratos psíquicos são as humilhações, provocações, molestações e as ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça.

Neste crime, a acção típica pode consistir em maus tratos físicos, como sejam as ofensas corpo­rais; em maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações ou ameaças; ou noutro tipo de maus tratos, tais como ofensas sexuais e privações da liberdade, desde que se trate de actos que, isolada ou reiteradamente praticados, sejam reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da vítima (acórdão da Relação do Porto de 26-5-2010, CJ, 2010, III-216).

Os maus tratos psíquicos compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional que perturbe a normal convivência e as condições em que possa ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidade dos membros do agregado familiar (acórdão da Relação de Lisboa de 27-2-2008, in www.dgsi.pt).

II. Com a Reforma de 1995, os maus tratos psíquicos passaram a estar contemplados com um leque mais alargado de condutas, como humilhações, provocações, ameaças (de natureza física ou verbal), insultos, privações ou limitações arbitrárias da liberdade de movimentos, ou seja, condutas que revelam desprezo pela condição humana do parceiro, podendo provocar sentimentos de culpa ou de fraqueza mas não, necessariamente, um sofrimento psicológico.

III. O relevante é que os maus-tratos psíquicos estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretenda exercer sobre a vítima, de que decorre uma maior vulnerabilidade desta (acórdão da Relação do Porto de 29-2-2012, acessível no mesmo sítio da Internet).

E que sms enviou o arguido à assistente?

Estão descritos no ponto 77 dos factos provados:
“ATEND PUTA”;
“VOU AI PUTA JOGAR GAZOLINA”
“ENTAO PUTA BACANAIS COM OS XULOS NÃO TE METERAM A MAO TODA DENTRO DESA CONA EU METI MUITAS VEZES E GARAFAS NO CU TAMBEM NÃO O CARALHO ISSO E PA CAZAR”
AINDA NO DOMINGO BATI TUA JANELA N TAVAS CAZA MAIS UMA VEZ”
“GRANDE PUTA FICA PA PROSIMA”;
“escapast puta a TUa irma meto-lhe o ferro no cu”;
VOURE FUDER A TROBA COMO MESMO PRAZER QUE ABUZEI DE TI E DO TEU CORPO A TROBA E IMREPARAVEL O CORPO MESMO FULEIRO AINDA HÁ QUE COMA”

E no ponto 31 dos factos provados há mais:
- “Vai para a puta que te pariu o teu amante assite à more anunciada por ti do meu anjinho, atende fingida do caralho”;

- Nossa C. pouco tempo vai ficar contigo juro por ela au pé de quem a desrespeitou já mais fica com os velhos nojentos esses sim dão-te dinheiro não é o que queres”.

Ora é evidente que sms com este teor não podem deixar de ser considerados como maus tratos psíquicos.

De resto, como também o são outros comportamentos verbais do arguido:

1. Durante a vivência em comum e mesmo depois da separação, a ofendida foi constantemente (até à sua reclusão) insultada pelo arguido de “puta”, “vaca”, “cabra” e “canhão” e falsamente acusada de ter amantes.

2. Era também humilhada com considerações de que a ex-mulher do arguido era melhor na cama que a ofendida, que era a pior mulher que ele já tinha tido na cama, que não valia nada, que ia pô-la a render numa casa de putas porque tinha conhecimentos para tal em Espanha.

3. Também sempre foi ameaçada de morte pelo arguido.

6. O arguido dizia frequentemente "se não fores minha não és de mais ninguém”

13. (…) dizia-lhe que pretendia usá-la e desfeia-la tanto quanto possível, para que, caso ela o deixasse, mais ninguém se interessasse sexualmente por ela.

23. Em Dezembro de 2009, já depois da saída da queixosa da citada residência de Pés do Cerro, o arguido deixou à porta desse local, dentro de um tabuleiro de plástico, virado ao contrário, com uma faca nele espetada, um envelope manuscrito a vermelho com a seguinte inscrição:

- "grande puta esta (a faca) era para ti se gosas mais comigo tens os dias contados mato-te"

39. No próprio dia em que se mudaram para aquela residência, quando a ofendia foi buscar o arguido ao “Café ---”, sito defronte na Estrada Nacional 125, defronte ao centro comercial “Ria Shopping”, o arguido, já alcoolizado, insultou a queixosa no referido café, em frente a quem lá se encontrava e por diversas vezes, de "puta".

50. Na citada casa, o arguido desatou chamar-lhe "assassina" e a dizer, mesmo em frente à filha da queixosa, com 6 anos de idade à data, a D, que a mãe tinha ido a Lisboa matar um bebé.

51. Logo após a ofendia ter conseguido adormecer aquela criança, o arguido voltou a insultar a ofendida de “puta” e “vaca” e ameaçou matá-la,

Assim, não há dúvida ter o arguido cometido o crime de violência doméstica pelo qual foi condenado.
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No tocante à 3.ª das questões postas pelo arguido, a de que ao ter sido condenado pelo crime de violência doméstica, não podia o tribunal "a quo" tê-lo também condenado pelos 5 crimes de ameaça:

E cita, a propósito da sua pretensão, Paulo Pinto de Albuquerque, que no seu Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na pág. 407, vem dizer o seguinte: "O crime de violência doméstica é uma forma especial do crime de maus tratos, tendo o legislador feito preceder o crime especial em relação ao crime geral (com colocação sistemática diversa, em que o crime geral antecede o crime especial, ver os artigos 163° e 164°). Ele está também numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, o crime de sequestro simples, o crime de importunação sexual, o crime de abuso sexual de menores dependentes previsto no art. 172°, n°2 ou 3, e os crimes contra a honra. Portanto, a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes."

Concordamos inteiramente com o ilustre autor. O qual, aliás, não é o único a defender tal posição.

Também por exemplo Américo Taipa de Carvalho tem o mesmo entendimento, no "Comentário Conimbricence do Código Penal", 1999, tomo I, pág. 336, em anotação ao art.º 152.º.

Mas para que haja concurso aparente, é necessário que… a vítima dos crimes de ameaça seja a mesma da do crime de violência doméstica.

Ora no caso dos autos – e como o acórdão recorrido explica de fls. 895 a 899 – as vítimas dos 5 crimes de ameaça são os parentes da vítima do crime de violência doméstica, ou seja, o pai, a mãe, a irmã e o cunhado da assistente, tendo os quatro sido ameaçados de morte e de lhes pegar fogo à casa nos termos descritos nos pontos 73 e 74 da matéria de facto assente como provada [o que dá os quatro crimes de ameaça agravada p. e p. pelos art.º 153.º e 155.º al.ª a)], sendo que a irmã foi ainda ameaçada numa outra ocasião distinta, a descrita no ponto 77 dos factos provados, aquela em que o arguido em 21-6-2011 escreveu a expressão de cariz sexual que “escapast puta a TUa irma meto-lhe o ferro no cu” , ou seja, que a sodomizava [que é o quinto crime de ameaça, o p. e p. pelos art.º 153.º, 155.º al.ª a), 145.º, n.º 1 e 2 e 132.º, n.º 2 al.ª d)].

Ora a violência doméstica praticada pelo arguido na pessoa da assistente não consome quaisquer outros crimes praticados pelo arguido contra o resto da família desta, ainda que praticados no contexto espácio-temporal em que decorreu a violência doméstica. Assim, não há qualquer questão de concurso aparente entre o crime de violência doméstica e os cinco crimes de ameaça.

Questão conexa seria a do eventual concurso aparente entre os dois crimes de ameaça de que foi vítima a irmã da assistente.

Acompanhando o entendimento de Américo Taipa de Carvalho, "Comentário Conimbricence do Código Penal", tomo I (2.ª ed.), pág. 567, em anotação ao art.º 153.º, como o bem jurídico protegido é eminentemente pessoal – a paz e a liberdade individuais –, (…) no caso de as ameaças serem dirigidas contra a mesma pessoa, haverá que distin­guir: sendo proferidas na mesma ocasião, teremos só um crime de ameaça, sendo relevante, para efeitos de determinação da pena legal (…) a ameaça mais grave, funcionando as outras para a determinação da medida da pena; se forem feitas em momentos diferentes, então teremos um concurso real de ameaças, ou, na hipótese de se verificarem os pressupostos referidos no art. 30°-2, um “crime continuado” de ameaças (parte final do nº 3 do art. 30°).

Ora, no caso, as duas ameaças foram feitas em momentos diferentes e, se é certo que ambas constituem a realização plúrima do mesmo tipo de crime, foram executadas por forma essencialmente homogénea e até no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior – o que se segue é que esta solicitação exterior não serve de desculpa, nem diminui consideravelmente a culpa do agente, pelo que consideramos não haver aqui um crime continuado de ameaça à irmã da assistente.

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No tocante à 4.ª das questões postas pelo arguido, a de que os crimes de violação pelos quais o arguido foi condenado se inseririam não na previsão do art.º 164.º, n.º 1, mas antes na do art.º 164.º, n.º 2:

O art.º 164.º estabelece o seguinte:

1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.

2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se de temor que causou, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou

b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão até três anos.

No tipo descrito no n.º 1, o bem jurídico protegido é a liberdade sexual da pessoa, a sua livre autodeterminação sexual.

No tipo descrito no n.º 2, o bem jurídico protegido não é (ou não é tanto), segundo Figueiredo Dias, in "Comentário Conimbricence do Código Penal", tomo I, 2.ª ed., pág. 737 e ss., a autodeterminação sexual da pessoa, mas antes a pureza e incolumidade das relações familiares ou análogas e de dependência hierárquica, económica ou de trabalho com influência na esfera social.

No n.º 1 temos a violação propriamente dita. No n.º 2 temos o assédio/constrangimento.

Quer no n.º 1, quer no n.º 2, o resultado da acção do agente é a mesma:
a) Sofrer ou praticar cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) Sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.

Os meios utilizados pelo agente para conseguir esse resultado é que variam: na violação propriamente dita, a do n.º 1, os meios utilizados são a violência, a ameaça grave ou o ter-se, para esse fim, tornado a vítima inconsciente ou posta na impossibilidade de resistir. No assédio/constrangimento, os meios utilizados são o abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se o agente de temor que causou.

Como diz Figueiredo Dias, na obra e local citados, a realização do tipo objectivo do assédio/constrangimento é cindida da utilização pelo autor de qualquer meio típico: por meio não compreendido no número anterior, afirma o n.º 2; tem todavia o autor de usar, obviamente, um meio idóneo de constrangimento, isto é, de coacção e que não seja insignificante. Assim, não será fácil individualizar em concreto espécies de meios de que se deva tratar para que eles possam do mesmo passo ser qualificados como meio de coacção (e já não, e sobretudo, como meios de sedução – caso em que, se for conseguida e desde que praticada com adulto imputável, por consentida pelo outro, a actividade deixa de ser um crime para passar a ser um acontecimento socialmente aceitável, um namoro, um flirt, uma aventura, um romance).

Situações típicas simplificadas da figura do assédio/constrangimento serão a do velho e devasso tio com a jovem sobrinha/o; o patrão com a empregada/o; o professor com a aluna/o – ou vice-versa em qualquer das situações.

Ora – e mesmo tendo em conta que a vida é bem mais diversificada do que a previsão do legislador – é com alguma dificuldade que se vislumbra que numa relação de namoro ou entre cônjuges, na qual sem dúvida podem ocorrer situações de coacção sexual, p. e p. pelo art.º 163.º, n.º 1, e de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 1, possa ocorrer o crime do assédio sexual, quer na versão da coacção p. e p. pelo art.º 163.º, n.º 2, quer na da violação p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2.

Como diz Figueiredo Dias, obra citada, a pág. 739, § 52, uma exigência típica fundamental é a de que a conduta tenha lugar "abusando [o seu autor] de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho". É através desta exigência que se reconforma o próprio bem jurí­dico tutelado e se confere à incriminação o sentido autónomo possível. Dir-se-ia, atento o teor literal do texto legal, que ainda aqui importaria dis­tinguir: tratando-se de relação familiar ou análoga bastaria a existência desta para ilustrar a "autoridade" requerida e integrar o elemento típico respectivo; enquanto no caso de relação hierárquica, económica ou de trabalho impor­taria ainda comprovar que, no caso, esta era fonte de uma real relação de dependência. Esta interpretação seria inadmissível por contrária aos fundamentos político-criminais e dogmáticos atrás enunciados da incriminação: não é, em caso algum, a relação familiar ou análoga que constitui, por si mesma e sem mais, o conteúdo de ilícito do facto (como se se pretendesse reeditar aqui as representações histórico-religiosas ligadas a formas amplas de "incesto" ou ao menos de "impedimento"), mas apenas quando aquela relação familiar ou análoga determinar, em concreto, a existência de uma situação efectiva de dependência (de submissão, v. g., por afecto, respeito, obediência) da vítima face ao autor. Só então se poderá afirmar minimamente que o autor abusou da sua posição; sem esta característica, se assim nos podemos expri­mir, não haverá "abuso", mas mero "uso" da posição.

Ora, no caso dos autos, cada uma das violações foi perpetrada por meios dos compreendido no n.º 1 do art.º 164.º, ou seja, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, ter posto a assistente na impossibilidade de resistir – pelo que as violações são as p. e p. pelo n.º 1 e não pelo n.º 2 do art.º 164.º.
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No tocante à 5.ª das questões postas pelo arguido, a de que os crimes de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 1, se encontram em concurso aparente com o de violência doméstica, pelo que o arguido ou é condenado pelos crimes de violação ou é condenado pelo crime de violência doméstica:

Os três crimes de violação ocorreram nas seguintes circunstâncias espácio-temporais:

O p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 1 al.ª a) e b), de trato sucessivo, ocorreu nas circunstâncias referidas nos pontos 10 a 14 dos factos provados; dos outros dois, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 1 al.ª a), um deles ocorreu em 24-11-2009 e está descrito nos pontos 24 a 27 dos factos provados, e o outro em 19-11-2011 e está descrito nos pontos 86 a 95 dos factos provados.

O acórdão recorrido decidiu que os crimes de violação se encontram em concurso real e efectivo com o de violência doméstica, pelo que o arguido foi condenado por todos e cada um deles.

E bem.

O art.º 152.º, n.º 1 al.ª b) e c) e 2, pelo qual o arguido foi condenado, estabelece que:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
(…)
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.


... se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal…

Na verdade – e passando a seguir de perto Américo Taipa de Carvalho in "Comentário Conimbricence do Código Penal", tomo I (2.ª ed.), pág. 527-528, em anotação ao art.º 152.º –, entre o crime de violência doméstica (que […] pode concretizar-se na prática, reiterada ou não, das mais diversas infracções contra a saúde, física ou psíquica, contra a honra, contra a liber­dade, física ou sexual, etc., como também pode, por vezes, materializar-se na prática de actos ou comportamentos que in se não configurem infracções criminais) e os crimes de ofensas à integridade física simples (art.º 143.° e 145.°, n.º 1 al.ª a)), de ameaça (art.º 153.º), contra a honra (art.º 180.° e ss.), de coac­ção (art.º 154.° e 155.º), de sequestro simples (art.º 158.°, n.º 1), de coacção sexual (art.º 163.°, n.º 2), de violação (art.º 164.°, n.º 2), de importunação sexual (art.º 170.°), existe uma relação de concurso aparente, sendo o agente punível apenas pelo crime de violência doméstica. Tomando-se em conta a globalidade dos elementos ou condutas que integram o tipo legal de violência doméstica, e ainda o facto de este tipo de crime poder (e, em certas situações, até, porventura, dever) ser constituído por uma pluralidade de infracções da mesma natureza (p. ex., várias ofensas corporais), a mais adequada qualificação da relação entre as normas em confronto é a de relação de consunção: a gravidade do ilícito da violência doméstica consome ou absorve o ilícito de ofensas corporais simples, etc.; a tutela do bem jurídico conferida por cada um destes diversos tipos legais também é conferida pelo tipo de violência doméstica.

Só deixa de ser assim se pena mais grave (do que a, no caso, de 2 a 5 anos de prisão) lhe couber por força de outra disposição legal: art.º 152.º, n.º 1 – parte final.

É por isso que entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integri­dade física grave (art.º 144.º), de sequestro qualificado (art.º 158.°, n.º 2), de coac­ção sexual (art.º 163.°, n.º 1), de violação (art.º 164°, n.º 1), de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (art.º 165.°), de abuso sexual de crianças (art.º 171.º, de lenocínio de menores (art.º 175.°, n.º 2), de pornografia de menores (art.º 176.°, n.º 2), há uma relação de subsidiariedade expressa, aplicando-se somente a pena prevista para cada um destes crimes.

Vítor Sá Pereira e Alexandre Lafayette, no seu Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, a fls. 634, expende o seguinte sobre o tema:

A parte final do n.º 1, onde se diz «se pena mais grave lhe não couber...», faz aplicação do princípio da subsidiariedade, no âmbito do chamado concurso impróprio, aparente ou de normas. E, segundo STRATENWERTH, «a subsidiariedade significa que uma lei penal só se aplica de modo auxiliar, isto é, só se o facto não está cominado com pena (maior) segundo outros preceitos». Na verdade, «com o fim de ampliar ou intensificar a protecção jurídico-penal, em muitas ocasiões se comina com pena determinadas condutas que se apresentam como estádio ou forma prévia, ou como variante menos intensa, de um ataque a um interesse juridicamente protegido que o ordenamento penal já abarca noutra disposição. Em tais casos, fica desprezado o tipo secundário se o ataque em sentido estrito, ou o ataque de maior gravidade, por sua vez concorre e é punível. Ora bem, a subsidiariedade só tem significado autónomo — face à espe­cialidade e à consumpção — na medida em que a infracção da norma secundária não acompanhe necessária e habitualmente o delito preferente» (cit., 456). E, aliás, através da referida ressalva também se evitam «os indesejáveis casos de consunção impura» (cfr. ibidem, 589), figura que nem todos os autores acolhem.

Ou seja, no caso dos autos, como a pena aplicável a cada um dos três crimes de violação pelo art.º 164.º, n.º 1, é mais grave do que a aplicável pelo crime de violência doméstica pelo art.º 152.º, n.º 1 al.ª b) e c) e 2, os factos integradores das violações separam-se e dão origem à verificação dos três crimes da violação. Se após esta separação, restarem mais factos ou outros factos relativos à violência doméstica, eles continuarão a integrar e a dar corpo a esse crime de violência doméstica e à sua respectiva punição, em concurso real com a da violação.

É por isso que o acórdão recorrido tem razão quando afirma:

Assim, somos de entendimento que sendo o crime de violência doméstica integrado apenas por ofensas sexuais punidas com pena de prisão superior a 5 anos, (como é o caso da violação do art. 164º, nº 1 do C. P., punida com pena de prisão de 3 a 10 anos), verificar-se-á um concurso aparente de infrações ou concurso de normas com o crime de violência doméstica, perdendo este autonomia.

Mas já sendo o crime de violência doméstica integrado também por várias outras condutas típicas, ou seja, vários outros tipos de ofensas (da integridade física, da honra, ameaças, etc.), verificar-se-á então um concurso real de infrações entre ambos os crimes (violência doméstica e violação).

É o que sucede in casu. Com efeito, como referido supra referido, foram várias as ameaças e violência psíquica exercida pelo arguido sobre a assistente e que, por si só e sem a consideração das ofensas sexuais, integram a prática do crime de violência doméstica.

Pelo que improcede a pretensão do recorrente.
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No tocante à 6.ª das questões postas pelo arguido, a de que, no que concerne ao crime de roubo, o tipo legal deste ilícito não se encontra preenchido:

O art.º 210.º, n.º 1, estabelece que:

Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

Ora alegou o arguido, nas conclusões, que:

ccxii. Ademais, os requisitos que integram este tipo de crime não estão cumpridos, ou seja, a violência deve ter uma intensidade suficiente para vergar a vontade de resistência da ofendida, o que não sucedeu neste caso pois nem sequer existiu qualquer tipo de violência e muito menos ameaça com perigo iminente para a integridade física da Ofendida, não se podendo tampouco considerar que esta se encontrava na situação de impossibilidade de resistir.

ccxiii. Também a intenção de apropriação não foi ilegítima uma vez que não ficou provado que o telefone fosse um bem próprio da Ofendida e sendo Recorrente e Ofendida um casal, poderia tratar-se de uma devolução, talvez um pouco forçada, mas ainda que assim fosse não se pode considerar apropriação ilegítima.

Bem, parece que o arguido labora com base numa realidade paralela ou alternativa à que ficou assente como provada no acórdão recorrido. Na verdade, ficou assente que:

61. Entre 13 e 19/06/2011, em dia não concretamente apurado, o arguido atravessou a sua viatura (Ford Fiesta de cor vermelha) à frente do carro da ofendida (Citroen Saxo de cor cinzenta) para, dessa forma, obrigá-la a parar.

62. Depois, exibiu à ofendida uma faca que trazia num bolso e abriu a porta do carro dela, do lado do pendura - onde se encontrava preso ao assento a cadeira ("ovo") da bebé - e ordenou-lhe que lhe desse imediatamente o seu telemóvel se não matava-a, o que a ofendida fez, por medo de uma reação violenta do arguido, que se encontrava muito agitado.

63. O arguido levou, e fez seu, o referido telemóvel da ofendida, não obstante saber que não lhe pertencia e que agia contra a vontade daquela, que nunca mais recuperou o aparelho.

Em face do que assim ficou provado, é inegável que nenhuma das objecções postas pelo arguido tem razão de ser; uma coisa é o que o arguido gostaria que tivesse ficado provado; outra coisa, bem diferente, é o que efectivamente consta como provado.
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No tocante à 7.ª das questões postas pelo arguido, a de que o arguido não cometeu o crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 1 e 3, porque – e passamos a citar a conclusão ccxvii – a sua intenção era tão somente ver a filha e falar com a mãe desta, a ofendida, além do que – e passamos agora a citar a conclusão ccxxii – tudo leva a crer que Requerente e Ofendida por vezes combinavam passar a noite juntos na casa onde esta se encontrava a residir, presumindo-se por isso o consentimento da ofendida, pelo que, assim, o acordo (expresso ou presumido) do portador do bem jurídico exclui a tipicidade – conclusão ccxxiii.

Esta questão é comum às duas seguintes:

A 8.ª, de que o arguido também não cometeu os três crimes de perturbação da vida privada, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 2, porque, segundo se extrai da conclusão ccxviii, a sua intenção também era tão somente ver a filha e falar com a mãe desta, a ofendida, além de que o arguido agiu sem dolo, uma vez que – e passamos a citar a conclusão ccxix – o Recorrente não podia imaginar que perturbava a vida privada dos familiares da Ofendida nem tampouco da própria, além de que um dos pretensos ofendidos, o pai da assistente, não morava na residência para a qual o arguido telefonava.

E também a 9.ª, de que não cometeu o crime de dano, p. e p. pelo art.º 212.º, n.º 1, por não ter embatido propositadamente no carro conduzido pela assistente, faltando assim o elemento subjectivo para o preenchimento do tipo.

Mais uma vez, o arguido efabula com base no que ele gostaria que tivesse ficado provado; mas outra coisa, bem diferente, é o que efectivamente consta como provado.

No tocante ao crime de violação de domicílio, ao mesmo se referem os pontos 87 a 89 dos factos provados:

87. Entre as 05H15M e as 06H dessa madrugada, o arguido logrou entrar no interior do quarto onde a ofendida dormia, na mesma cama, com as duas filhas menores, uma de 6 anos de idade e a outra de 20 meses - sito na residência dos pais daquela já identificada supra.

88. Fê-lo sem o consentimento dos donos ou residentes daquela habitação e contra a vontade (tácita) dos mesmos.

89. Para o efeito, o arguido escalou paredes, muros e telhados adjacentes ao complexo onde se situa a casa dos pais da ofendida - que inclui uma pensão residencial, um restaurante e uma casa de habitação – forçou a persiana e a porta da varanda da sala de estar da aludida casa e por aí entrou, dirigindo-se de imediato ao quarto da vítima.

A intenção do arguido?

90. De seguida, já no quarto da vítima, o arguido acordou, com um toque no corpo, a A. e, exibindo uma faca de cozinha e um martelo, perguntou-lhe “de que forma é que queres morrer”.

91. Depois, disse-lhe, em tom de voz baixo, que queria ter sexo com ela antes de ir preso e que, caso se negasse, fugiria com uma das menores, caso gritasse e/ou aparecesse alguém, o mataria com a faca.

Portanto, a sua intenção não era tão somente ver a filha e falar com a mãe desta, a ofendida.

E quanto ao tudo leva a crer que Requerente e Ofendida por vezes combinavam passar a noite juntos na casa onde esta se encontrava a residir, presumindo-se por isso o consentimento da ofendida, pelo que, assim, o acordo (expresso ou presumido) do portador do bem jurídico exclui a tipicidade – trata-se de uma conjectura, pois que nada disso ficou provado.

No tocante aos três crimes de perturbação da vida privada, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 2, estabelece esta disposição legal que será punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias, quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação ou para o seu telemóvel.

Ora o que a este respeito se provou consta dos pontos 73 a 76, 85 e 99 dos factos provados:

73. Como o arguido não se conformou com a separação, passou a perturbar o sossego não só da ofendida, mas também dos seus familiares, nomeadamente pais, irmã e cunhado, os quais vivem todos no mesmo complexo residencial Estrada Nacional 125, caixa postal 666-H, em Alfandanga, Bias do Sul, Fuzeta.

74. Fê-lo da seguinte forma:
(…)
- telefonando para o telefone fixo da casa da família da vítima e para os telemóveis dos pais e da irmã da queixosa a qualquer hora do dia ou da noite.

Vejamos.

75. No dia 14/6/2011, o arguido, fazendo uso do telemóvel com o número 96 950 61 92, enviou para o telemóvel com o número 96 516 52 90, da irmã da queixosa, AM, os seguintes textos:

i. às 12H31M53S: “Então bela agora n dizes nada a tua mana ontem tava com 2 ucranianos.ques fotos?eu mando te”;

ii. às 12H39M45S: “Vai a mala dela e investiga vais encontra tabaco prezevati já agora ve o tel que sabesm com quem ela teve telefona e confirma”.

76. A título de exemplo, só no dia 15/6/2011, o arguido contactou, do telemóvel que tinha a uso com o número 96 950 61 92, a irmã da ofendida, AM, para o respetivo telemóvel com o número 96 516 52 90:
- às 16H00M05S;
- às 16H04M49S;
- às 16H04M51S;
- às 16H08M40S;
- às 16H08M43S;
- às 16H09M46S;
- às 16H09M49S;
- às 16H10M47S;
- às 16H10M49S;
- às 16H13M47S;
- às 16H13M49S.

85. O arguido voltou a ligar repetidamente para a casa da ofendida e dos pais, o que obrigou o pai da A. a tirar o telefone do descanso.

99. O sossego e o descanso da queixosa e dos seus familiares têm vindo a ser constantemente perturbados pelos citados comportamentos do arguido.

A intenção do arguido?

Bem, o que se provou a este respeito não foi que, como o arguido alvitra, tão somente ver a filha e falar com a mãe desta, a ofendida e que não podia imaginar que perturbava a vida privada dos familiares da Ofendida nem tampouco da própria, mas antes (ponto 100 dos factos provados):

100. Ao agir da forma descrita – contactando de forma incessante os familiares da vítima por telefone ou pessoalmente, a qualquer hora do dia ou da noite – o arguido pretendeu perturbar o descanso, o sossego e o sono de AM, L, MM, o que quis e logrou.

E quanto à asserção de que o pai da assistente não morava na residência, também não foi isso que ficou provado, como se pode retirar dos pontos 73 e 85 da matéria de facto provada.

Ou seja, também aqui o arguido efabula com base no que ele gostaria que tivesse ficado provado – mas que não logrou convencer esta Relação, como já acima vimos; outra coisa, bem diferente, é o que efectivamente consta como provado.

A factualidade a ter em conta para a aferição do preenchimento dos elementos do tipo de crimes em causa é a no acórdão recorrido assente como provada e não aquela que o arguido gostaria que tivesse ficado provado.

O que se volta a repetir em relação ao crime de dano, p. e p. pelo art.º 212.º, n.º 1, que o arguido alega não se ter verificado por não ter embatido propositadamente no carro conduzido pela assistente, mas em que mais uma vez a matéria de facto dada como provada não consente nem suporta a interpretação do arguido (pontos 78 e 105 dos factos provados):

78. Em 9/7/2011, cerca das 09H00M, no Caminho Municipal 1325, em Moncarapacho, o arguido embateu, propositadamente, com o seu veículo automóvel de matrícula xxx contra o veículo automóvel da ofendida, de matrícula xxxx, quando a vítima já pedia auxílio a populares por estar a ser perseguida pelo arguido, embate de que resultou amolgada a parte traseira do veículo da assistente, cuja reparação ascendeu a pelo menos € 2000.

105. Ao embater o seu veículo, propositadamente, contra o veículo da vítima A. com vista a atingi-la, o arguido bem sabia que tal implicaria necessariamente infligir qualquer tipo de estrago a um veículo que lhe era alheio, agindo contra a vontade da sua proprietária, o que, não obstante, quis e logrou como consequência, pelo menos, necessária, da sua conduta.

Pelo que, em resumo, improcedem as pretensões do recorrente descritas nas questões 7.ª, 8.ª e 9.ª.
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No tocante à 10.ª das questões postas pelo arguido, a de que ele também não cometeu o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1 al.ª d), por referência aos art.º 2.º, n.º 1 al.ª m), 3.º, n.º 1 e 2 al.ª f) e 4.º, n.º 1, todos da Lei n.º 5/2006, de 23-2 (Regime Jurídico das Armas e Munições), por o sabre em questão não ter poder de corte e ser um mero objecto de decoração:

Trata-se de um artefacto com uma lâmina de 47,5 cm, cabo de 21 cm e respectiva bainha (ponto 79 dos factos provados), que não é parte integrante de qualquer tipo de coleção e/ou de equipamento para a prática de arte marcial (ponto 104 dos factos provados), fotografado a fls. 142, sobre o qual não incidiu qualquer exame pericial e ao qual o tribunal "a quo" chama de “sabre” (e uma vez de “espada, tipo sabre”: ponto 57 dos factos provados).

Sobre esta última referência, a de “espada, tipo sabre”, desde já se diga tratar-se de uma variedade que não é conhecida nos meios mais preocupados com a concisão de termos do que com a fotogenia das imagens expostas na Internet sabe-se lá por quem. Espadas-tipo-qualquer-coisa conhecem-se a espada de ambas as mãos (também designada de mãos ambas ou de duas mãos ou espadão), a espada bastarda, a de caça, de copos de tigela, falcata, flamejante, de guarda (também designada de cesto ou de guarda de roca), espada de guarda de laço, ibérica, de justiça (ou de execução), espada de mão esquerda, de mão e meia, preta, de torneio, espadim (ou quitó) e espada de copos de vela[3]. “Espada tipo sabre” – não, o que nem teria grande importância se não estivéssemos num domínio, o do Direito, em que a concisão de termos é fundamental.

Do que se pode constatar das fotografias de fls. 142, o artefacto parece-se rudimentarmente com um sabre. Mas para que o seja, é necessário que, para o que agora interessa, tenha uma lâmina de aço temperado, denominado folha, de um só gume, normalmente curvo, cujas dimensões variam com o fim a que se destina, terminada em ponta de carpa ou bisel[4] – e que corte e perfure!

Foi usado nas circunstâncias descritas no ponto 57 dos factos provados:

(…) no dia 22 de Maio de 2011, cerca das 12H, a queixosa deslocou-se à residência do arguido para este ver a filha menor e, após recusa da ofendida em reatar o relacionamento com aquele mantendo relações sexuais com o mesmo, o arguido encostou á cabeça da ofendida uma espada, tipo sabre, e disse-lhe “vou-te matar”.

104. E do mesmo se deu como provado no ponto 104 que o arguido conhecia as características do sabre que detinha - que não é parte integrante de qualquer tipo de coleção e/ou de equipamento para a prática de arte marcial - sabendo que a sua detenção e guarda não era permitida, e, não obstante, quis detê-lo e guardá-lo da forma descrita.

As disposições legais usadas para punir a sua posse, todos da Lei n.º 5/2006, de 23-2 (Regime Jurídico das Armas e Munições), foram as seguintes:

Art.º 86.º, n.º 1 al.ª d):
1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:

d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projéctil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.

Art.º 2.º, n.º 1 al.ª m):

Para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação e com vista a uma uniformização conceptual, entende-se por:

1 - Tipos de armas:
m) «Arma branca» todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões;

Art.º 3.º, n.º 1 e 2 al.ª f):

1 - As armas e as munições são classificadas nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização.

2 - São armas, munições e acessórios da classe A:
f) As armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção;

Art.º 4.º, n.º 1:
1 - São proibidos a venda, a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte de armas, acessórios e munições da classe A.

Ora não tendo o artefacto sido sujeito a qualquer exame pericial ou constatação do próprio tribunal incluída na matéria de facto assente como provada, e fica-se sem se saber as suas aptidões para cortar e perfurar. Sobre a sua capacidade de perfuração, uma coisa é olhar para uma das fotografias que estão a fls. 142 e ver que o objecto termina, na parte contrária ao punho, numa ponta, mas outra muito diferente – e imprescindível à sua qualificação como arma (art.º 2.º, n.º 1 al.ª m), da Lei n.º 5/2006) – é confiar que essa ponta é mais eficaz que a de uma faca de um serviço de mesa.

Assim e por outro lado, da experiência de vida resulta só poder tratar-se o artefacto em questão de uma imitação folclórica de um sabre, tal como as espadas, azeumas, partazanas, lanções e outras imitações que se trazem de Toledo, no reino de Espanha, como recordação (e que amiúde aparecem também à venda nas chamadas feiras medievais agora tão em voga no nosso país) e com as quais se fazem colecções ou começos de colecção e arranjos mais ou menos históricos e artísticos na sala estar de algumas casas – sem que com isso Toledo seja conhecida como um centro de tráfico de armas e os comerciantes uns traficantes das mesmas e o dono da morada que as tenha dependuradas das paredes um indivíduo fortemente armado…

Estabelece o art.º 3.º, n.º 2 al.ª f), da Lei n.º 5/2006, que são armas as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção.

E o art.º 86.º, n.º 1 al.ª d), do mesmo diploma legal, pune a detenção de instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse.

Ora o arguido explicou em julgamento que tinha comprado o artefacto aos “Marroquinos” e tinha-o em casa como objecto de decoração – o que é normal e plausível.

Assim, tal artefacto não é uma arma por, desde logo, ser objecto comummente destinado à prática doméstica da decoração, que é sem dúvida uma aplicação definida e faz dele um objecto com aplicação definida.

Agora se ele pode ser usado como arma de agressão?, pois pode – tal e qual como praticamente todo e qualquer outro objecto destinado à prática doméstica da decoração, que é sem dúvida uma aplicação definida e que também são objectos com aplicação definida: jarras, castiçais, cinzeiros, pisa-papeis, corta papeis, atiçadores de lareiras e de fogões de sala, só para falar dos mais apropriados a causarem estragos físicos de monta no adversário.

Arma não é (talvez seja preferível, definir o conceito negativamente, por exclusão) o objecto que, podendo excepcionalmente ser aproveitado para praticar uma agressão, não foi fabricado com essa finalidade nem é essa a sua utilidade normal.

Em face do exposto, tem, pois, de se absolver o arguido do dito crime de detenção de arma proibida.
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No tocante à 11.ª das questões postas pelo arguido, a de que – e passamos a citar a conclusão ccxxxvi – não poderia nunca o arguido praticar os alegados crimes, pelo menos com a intenção necessária, pois se estava alcoolizado ou sob o efeito de drogas, nunca teria a capacidade de entendimento pois encontrando-se num estado de incapacidade acidental art° 257° do C.C. nunca poderia ter o conhecimento intelectual dos elementos ilícitos em crise, estaria, salvo melhor entendimento em erro sobre a ilicitude art° 17° do C.P. devido à sua inimputabilidade temporária.

Este assunto já foi abordado na parte do presente acórdão que tratou da impugnação da matéria de facto dada como provada pelo tribunal "a quo", conforme se constata de fls. 62 supra, em que do depoimento da testemunha FF, médico psiquiatra, que acompanha o arguido no estabelecimento prisional (gravado a 20-11-2012 entre as 16H19M e as 16H28M) resulta que o arguido, ao praticar as ocorrências descritas na matéria de facto assente como provada, sabia bem o que estava a fazer e era mesmo aquilo que ele queria fazer.

Esta é mais uma das questões em que, tal como aconteceu no tocante às 7.ª, 8.ª e 9.ª, o arguido efabula com base no que ele gostaria que tivesse ficado provado; mas outra coisa, bem diferente, é o que efectivamente consta como provado – e que não consente a ponderação da hipótese de uma qualquer inimputabilidade temporária.

Para isso, era necessário que outra matéria de facto tivesse ficado provada.

Mas a que assim ficou foi:

100. Ao agir da forma descrita – contactando de forma incessante os familiares da vítima por telefone ou pessoalmente, a qualquer hora do dia ou da noite – o arguido pretendeu perturbar o descanso, o sossego e o sono de AM, L, MM, o que quis e logrou.

101. Ao declarar expressamente que iria matar os familiares da vítima A. e pegar fogo à sua casa, quis também o arguido provocar nos ofendidos AM, L, MM e M um estado de medo e receio pela sua vida, o que logrou

102. Noutra ocasião, ao ameaçar a integridade física da irmã da ofendida, a queixosa AM, dizendo que lhe “metia um ferro no cu”, o arguido pretendeu ainda criar nela um estado de medo e receio pela respetiva integridade corporal e sofrimento que adviesse de tal ato cruel, o que logrou.

105. Ao embater o seu veículo, propositadamente, contra o veículo da vítima A. com vista a atingi-la, o arguido bem sabia que tal implicaria necessariamente infligir qualquer tipo de estrago a um veículo que lhe era alheio, agindo contra a vontade da sua proprietária, o que, não obstante, quis e logrou como consequência, pelo menos, necessária, da sua conduta.

106. O arguido agiu sempre de forma livre e consciente com o propósito conseguido de ofender corporalmente a vítima A., de atentar sucessivamente contra a sua liberdade sexual, de ofender a sua honra e consideração e de lhe causar temor e ansiedade, ameaçando-a de morte e desgastando-a psicologicamente de forma reiterada ao longo dos últimos anos.

107. Ao agir da forma descrita supra em 25 e 90 a 92, o arguido, então separado da vítima, agiu, em ambas as ocasiões, de forma livre, deliberada e consciente, com o intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que molestava sexualmente a sua ex-companheira, contra a vontade daquela, fazendo uso da força física, da intimidação com arma de fogo ou facas e/ou colocando a vítima sem alternativa de fuga, para melhor atingir os seus intentos, o que quis e conseguiu.

108. Com as condutas descritas revelou ainda o arguido não possuir qualquer respeito para com a sua ex-companheira enquanto pessoa e mãe da filha de ambos, violando os mais elementares princípios e deveres da vida em sociedade.
109. Mais sabia o arguido que as descritas condutas eram proibidas por lei e constituíam crimes.

120. No meio local o arguido encontra-se conotado ao consumo de estupefacientes e de bebidas alcoólicas, embora sem consequências significativas em termos do seu comportamento social, e à manutenção de vários relacionamentos extraconjugais.

121. O arguido reconhece a sua problemática aditiva, iniciada há largos anos, e mantida de forma sistemática até altura da sua prisão preventiva.

Ora com uma matéria de facto provada como esta, não há por onde abordar a alegada inimputabilidade temporária.
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No tocante à 12.ª das questões postas pelo arguido, a de que deviam ter sido aplicadas:

A) Penas de multa aos crimes de ameaça, perturbação da vida privada, violação de domicílio e dano; e

B) Penas de prisão de execução suspensa aos crimes de violência doméstica, violação e roubo.

Eventualmente cumulada – alvitra o arguido na conclusão ccxlv – com uma pena acessória de obrigação da frequência pelo arguido de um programa específico de prevenção da violência doméstica.

Sendo que, de qualquer forma, a pena única de 12 anos de prisão é excessiva, devendo antes ser substituída por uma pena suspensa na sua execução.

Vejamos.

Quanto à parte de se deviam ter sido aplicadas penas de multa aos crimes de ameaça, perturbação da vida privada, violação de domicílio e dano:

Estes crimes, agora referidos pelo arguido, somam um total de 10 crimes, num universo global de 15 (descontado já, pois, o de detenção de arma proibida).

Ora o art.º 70.º, do Código Penal, diz que «se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

Finalidades da punição que são as estabelecidas no art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Ora num universo de um total de 15 crimes, sendo os demais um de violência doméstica, três de violação e um de roubo, não se vê qualquer interesse ao acautelar das finalidades da punição que se apliquem penas de multa por aqueles 10 – nem o próprio arguido as enuncia no seu recurso, limitando-se a pedir por pedir a aplicação da pena de multa –, tanto mais que todos os 15 crimes estão interligados entre si pelo denominador comum da vivência doméstica do arguido e sua companheira, não fazendo, pois, sentido que a uns se aplicasse pena de uma natureza e a outros pena de outra natureza.

A todos os 15 crimes se aplicarão, pois, penas de prisão, tal como o decidiu a decisão recorrida.

Quanto à parte da questão de se deviam ter sido aplicadas penas de prisão de execução suspensa aos crimes de violência doméstica, violação e roubo:

Trata-se de uma não questão. Na verdade, tendo havido cúmulo jurídico, não se vê qual o interesse nem a possibilidade legal de andar a suspender as penas parcelares. Só em relação à pena única é que tal hipótese se poderá pôr.

Quanto à parte da questão de se a pena única de 12 anos de prisão é excessiva, devendo antes ser substituída por uma pena suspensa na sua execução:

Cumpre recordar aqui, a propósito do tema, que a assistente recorreu, colocando apenas uma questão ao desembargo desta Relação, qual seja a de que essa mesma pena única devia antes ter sido fixada em nunca menos de 16 anos de prisão.

Do que se trata em qualquer dos casos é, assim, verificar a justeza da pena única aplicada pela 1.ª Instância, pelo que se tratarão as pretensões e argumentos de ambos os recorrentes ao mesmo tempo.

Não havendo aqui lugar a considerandos sobre a natureza e as finalidades do cúmulo jurídico, nem à técnica de o elaborar – temas sobre os quais os recorrentes nada apontam ao acórdão recorrido, nem a nós se nos suscitam quaisquer reticências – temos que, no tocante à escolha e graduação da pena que a um arguido há-de ser imposta, é a medida da sua culpa que condiciona decisivamente a pena concreta a aplicar-lhe.

Para além de ser fundamento, a culpa concreta é o máximo de condenação possível e nunca, em caso algum, as razões de prevenção poderão impor uma pena que ultrapasse essa culpa concreta do agente (Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, pág. 238 e ss.).

Do que se trata é de sancionar um delinquente concreto que, num determinado circunstancialismo, cometeu factos jurídico-penalmente relevantes, desvaliosos, merecedores de censura penal.

Deve assumir-se a pena como sanção adequada, proporcionada aos factos e ao agente, e, procurando-se com ela dar satisfação aos fins de prevenção-ressocialização do agente, evitar-se que outros cometam infracções semelhantes.

Há que ponderar, na situação concreta, como elementos ou factores a reflectirem-se na culpa, a gravidade da ilicitude, a intensidade do dolo, os fins ou motivos que determinaram os crimes, as condições pessoais do agente e sua situação económica e, em suma, em todo o demais condicionalismo mencionado não só no corpo como nas respectivas alíneas do n.º 2 do art.º 71.º do Código Penal.

No tocante aos presentes autos, norteados por este normativo e ponderando a circunstância de o arguido ser delinquente primário, se mostrar inserido sob o ponto de vista laboral, o grau de ilicitude dos factos, a ausência de arrependimento e de interiorização do desvalor das suas condutas (pontos 127 e 128 dos factos provados), o lapso de tempo pelo qual foram sendo cometidos, a intensidade do dolo revelada em todos eles (na sua forma mais elevada de dolo directo), a modestidade da situação económico-social do arguido e a longa e variada lista de crimes cometidos pelo mesmo (quinze), reveladores do martírio que fez passar à assistente, cuja vida com o arguido se pode resumir lapidarmente numa frase que ela proferiu no seu depoimento e que foi: «era de uma tristeza incalculável» – e tendo ainda em conta que, como o arguido vai absolvido por esta Relação do crime de detenção de arma proibida, pelo qual fora condenado na pena de 9 meses de prisão, há que reformular o cúmulo jurídico por forma a fazer reflectir no mesmo um desconto relativo à proporção em que aquela pena parcelar contribuiu para a pena única – levam a que, tudo visto e ponderado, se tenha por justa e adequada a pena única de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão, assim se desatendendo quer as pretensões do arguido (que almejava uma pena suspensa, eventualmente cumulada com uma pena acessória de obrigação da frequência pelo arguido de um programa específico de prevenção da violência doméstica…), quer as da assistente.

IV
Termos em que se decide:

1.º
Negar provimento ao recurso da assistente.

2.º
Conceder parcial provimento ao recurso do arguido e em consequência absolvê-lo da prática do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1 al.ª d), por referência aos art.º 2.º, n.º 1 al.ª m), 3.º, n.º 1 e 2 al.ª f) e 4.º, n.º 1, todos da Lei n.º 5/2006, de 23-2 (Regime Jurídico das Armas e Munições), e pelo qual fora condenado na pena de 9 meses de prisão.

3.º
Reformular o cúmulo jurídico e fixar a pena única em 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão.

3.º
Manter no mais a decisão recorrida.

4.º
Não é devida tributação por parte do arguido (art.º 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), mas já o é por parte da assistente, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões por si suscitadas, em três UC’s (art.º 515.º, n.º 1 al.ª b), do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).

5.º
Para os efeitos do disposto no art.º 215.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, remeta à 1.ª Instância, ao processado mencionado no art.º 414.º, n.º 7, do mesmo diploma legal, certidão do presente acórdão, fazendo nela menção de que o mesmo não transitou ainda em julgado.

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Évora, 1-10-2013
(elaborado e revisto pelo relator, que escreve com a ortografia antiga)

João Martinho de Sousa Cardoso (relator)

Ana Barata Brito
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[1] - Sumariado pelo relator.

[2] Além disso, é irrelevante que o arguido a fls. 36 da motivação do seu recurso ande a querer introduzir como meio de prova o teor de declarações prestadas pela assistente no decurso do inquérito, pois que não consta das actas de julgamento que tenha sido autorizada a leitura das mesmas, pelo que é inócuo que, em recurso, o arguido as reproduza (art.º 356.º, n.º 1 al.ª b) e 5 e 355.º, do Código de Processo Penal).

[3] “Glossário Armeiro”, de Luis Stubbs Saldanha Monteiro Bandeira, edição da Fundação da Casa de Bragança, 1993, pág. 86-93.

[4] Cf. obra citada, pág. 163.