Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
520/21.3T8STC.E1
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
ALIMENTOS
FORMA DE PROCESSO
Data do Acordão: 05/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - o procedimento consagrado no artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) é aplicável quando esteja em causa o incumprimento do que tiver sido acordado ou decidido relativamente à situação da criança;
- em caso de incumprimento da obrigação de prestar alimentos tem já lugar o procedimento previsto no artigo 48.º do RGPTC;
- a execução especial por alimentos prevista nos artigos 933.º e ss. do CPC constitui um instrumento alternativo de cobrança relativamente ao consagrado no artigo 48.º do RGPTC;
- a execução pode ser instaurada com base no acordo sobre o exercírio Registo Civil sem que o demandante esteja provido de título que declare estarem em dívida as prestações cuja cobrança é pretendida.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Exequente: (…)
Recorrido / Executado: (…)

Foi instaurada a presente execução especial de alimentos com vista à cobrança da quantia de € 2.740,00, acrescida de juros de mora, quantia essa relativa a pensão de alimentos fixada em acordo homologado na Conservatória do Registo Civil de Sines.


II – O Objeto do Recurso
Foi proferida decisão de indeferindo liminarmente do requerimento executivo por insuficiência do título executivo, com fundamento em não ter tido lugar a liquidação da obrigação através do incidente de incumprimento previsto no artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
Inconformada, a Exequente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação do despacho recorrido, a substituir por outro que ordene o prosseguimento da execução. Concluiu a alegação de recurso nos seguintes termos:
«1. Com a sentença proferida, o tribunal a quo violou as seguintes normas jurídicas, 10.º, 193.º, n.º 1 e 2, 200.º, n.º 2, 278.º, n.º 1, alínea b), 933.º e seguintes do CPC, e alínea a) do n.º 2 do artigo 726.º do Código de Processo Civil.
2. Com a sentença proferida, o tribunal a quo violou as seguintes normas jurídicas, artigos 40.º, 41.º e 48.º do RGPTC.
3. Deveria o Tribunal a quo ter interpretado as normas de modo distinto. 4. Possui o credor ao seu dispor três meios alternativos, e que se articulam entre si, em caso de estar perante um incumprimento da obrigação alimentar, a) o incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, previsto no artigo 41.º do Regime Geral Processo Tutelar Cível; b) o artigo 48.º RGPTC; c) e a execução especial por alimentos que decorre dos artigos 933.º a 937.º do Código de Processo Civil.
5. A Recorrente, perante os meios alternativos, optou pela execução especial por alimentos, artigos 933.º a 937.º do Código de Processo Civil.
6. Estabelece o n.º 4 do artigo 724.º do CPC que com a apresentação do requerimento executivo, torna-se suficiente a junção de cópia do título executivo, em caso da sua submissão ter ocorrido via eletrónica.
7. Acresce, que a junção da sentença judicial, transitada em julgado, que reconheceu a obrigação do progenitor, em satisfazer a prestação de alimentos em relação a filhos menores, reveste condições de exequibilidade, cfr. estabelece o artigo 933.º e ss. do CPC.
8. Resultando inequívoco, que a instauração da execução especial de alimentos, não necessita de prévio recurso, nem ao incidente de incumprimento previsto no artigo 41.º do RGPTC, nem tampouco ao mecanismo previsto no artigo 48.º do RGPTC.
9. Existe título executivo, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 726.º do CPC, não podendo ser determinado indeferimento liminar do requerimento executivo.
10. Deste modo, deverão os autos prosseguir, com a necessária produção de prova que se mostre pertinente e necessária, cfr. artigo 732.º do CPC.
11. Relativamente a uma tal pretensão da exequente, terá o executado, a possibilidade de deduzir, entre outros meios, oposição à execução por meio de embargos (cfr. artigo 728.º, n.º 1, do CPC).
12. Aplicando-se as regras gerais decorrentes do ónus da prova, através dos fundamentos que possam vir a ser invocados, através da oposição à execução, mormente, factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito (artigo 342.º, nºs 1 e 2, do Código Civil)”.
13. Concluindo-se pelo exposto, que a Exequente/Recorrente, aquando da apresentação do requerimento inicial, não tinha que juntar título que comprovasse o não pagamento das prestações periódicas vencidas até à instauração da execução.
14. Cabendo antes ao executado, a demonstração do pagamento, enquanto facto impeditivo da obrigação peticionada, bem como a demonstração dos demais factos modificativos ou extintivos da obrigação exequenda por si invocados, devendo, cfr. n.º 2 do artigo 732.º do Código de Processo Civil.
15. O artigo 726.º, n.º 2, do CPC contempla as situações em que é admissível o referido indeferimento liminar.
16. A insuficiência de título executivo prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 726.º do Código de Processo Civil, que importa o indeferimento liminar do requerimento executivo, tem de ser evidente, incontroversa, insuprível, definitiva, excecional, sendo esse o significado de “manifesta”.
17. No caso, não se verifica qualquer das situações que determinariam o indeferimento liminar do requerimento executivo.
18. Não sendo a falta de título executivo patente ou manifesta, em face do requerimento executivo e dos documentos que o acompanharam, deve ser apurado se os valores peticionados foram ou não objeto de pagamento, se quanto aos mesmos é procedente exceção de litispendência ou caso julgado.
19. Para tal importa o prosseguimento dos autos, com a produção da prova que se mostre necessária e pertinente.
20. A sentença judicial, transitada em julgado, que reconheceu a obrigação do progenitor satisfazer a prestação de alimentos relativamente aos seus filhos, reveste condições de exequibilidade, podendo sustentar, em conjunto com o requerimento executivo onde sejam invocados os factos constitutivos da obrigação exequenda, uma execução especial de alimentos, em conformidade com o disposto no artigo 933.º do CPC.
21. A decisão recorrida, indeferindo liminarmente a execução, fora dos termos em que tal seria admissível, mostra-se desconforme com a adequada interpretação dos normativos dos preceitos legais citados, designadamente, constantes dos artigos 10.º, 277.º, alínea e), 703.º e 726.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil».

Cumpre apreciar se a execução se mostra provida de título executivo.

III – Fundamentos

A – Dados a considerar: os que decorrem do que se deixa supra exposto.

B – O Direito
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 726.º do CPC, o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando seja manifesta a falta ou insuficiência do título executivo.
O processo executivo alicerça-se no título executivo, no documento que lhe serve de base (cfr. artigo 703.º do CPC), cabendo ao exequente instruir o requerimento executivo com cópia ou o original do título executivo (cfr. artigo 724.º, n.º 4, do CPC). Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva – artigo 10.º, n.º 5, do CPC. «O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão executiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui, assim, a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação.»[1] A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor – artigo 53.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Os títulos executivos são documentos (escritos) constitutivos ou certificativos de obrigações que, mercê da força probatória especial de que estão munidos, tornam dispensável o processo declaratório para certificar a existência do direito do portador. O título executivo reside no documento e não no ato documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o ato documentado subsista, quer não)[2]. Trata-se do documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade de realização coativa da correspondente pretensão através de uma ação executiva; esse título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de um terceiro para obter a satisfação efetiva do seu direito à prestação (cfr. arts. 817.º e 818.º do CC).[3]
Temos em mãos um acordo relativo, entre outros itens, ao exercício das responsabilidades parentais da então menor (…), ora Exequente / Recorrente. Esse acordo foi firmado entre (…) e (…), tendo sido homologado na Conservatória do Registo Civil de Sines no âmbito da atribuição e transferência de competências dos tribunais judiciais para as conservatórias de registo civil, conforme previsto no DL n.º 272/2001, de 13 de outubro.
Ora, em caso de incumprimento por um dos pais do que tiver sido acordado ou decidido relativamente à situação da criança, tem lugar a aplicação do procedimento consagrado no artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC).
Em caso de incumprimento da obrigação de prestar alimentos, não sendo satisfeitas as quantias em dívida, tem já lugar o procedimento previsto no artigo 48.º do RGPTC, que estipula o seguinte:
«1 - Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte:
a) Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respetivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública;
b) Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário;
c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.
2 - As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las.»

Trata-se do meio de efetivação da prestação de alimentos consagrado no RGPTC, operando-se, desde logo, diligência equivalente à penhora no vencimento, ordenado, salário ou outras quantias que sejam devidas ao obrigado àquela prestação. Estando em falta a realização da prestação alimentícia, o caso não se subsume a incumprimento de deveres relativamente à situação da criança, pelo que não tem aplicação o procedimento previsto no artigo 41.º do RGPTC.[4]
Em alternativa ao procedimento estipulado no artigo 48.º do RGPTC, pode instaurar-se a execução especial por alimentos prevista nos artigos 933.º e ss. do CPC.[5]
Na verdade, não deve ser rejeitada a execução especial por alimentos com base em falta de título executivo, quando na base da mesma está uma sentença homologatória transitada em julgado do acordo alcançado pelos progenitores relativamente à prestação mensal a título de alimentos, pois tal sentença constitui título executivo suficiente para a propositura da execução para pagamento das prestações entretanto vencidas e não pagas pelo progenitor-devedor, não havendo necessidade de recurso prévio ao incidente de incumprimento para se obter decisão que reconheça o não pagamento das prestações vencidas a executar, conforme propugnado na decisão recorrida, incidente que nem sequer é aplicável quando estejam em causa prestações de alimentos.[6]
E nem o procedimento regulado no artigo 48.º do RGPTC constitui um processo «especialíssimo» relativamente à execução especial por alimentos prevista nos artigos 933.º e ss. do CPC, ou “que deva ter necessária prioridade sobre a via da execução autónoma, em termos de só poder lançar-se mão desta quando não for possível obter o pagamento pelo meio ali previsto”; antes “cabe ao credor dos alimentos optar, em alternativa, por um desses meios procedimentais, em função da avaliação que realiza, em concreto, acerca do seu próprio interesse na reintegração efetiva do direito lesado com o incumprimento da obrigação.”[7]
Decorre do exposto que a execução especial por alimentos prevista nos artigos 933.º e ss. do CPC constitui um instrumento alternativo de cobrança relativamente ao consagrado no artigo 48.º do RGPTC, e que a execução pode ser instaurada sem que o demandante esteja provido de título que declare estarem em dívida as prestações cuja cobrança é pretendida.
O acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais homologado na Conservatória do Registo Civil de Sines a 20/06/2016 (cfr. fls. 9 e ss.) constitui, assim, título executivo suficiente para impulsionar a ação executiva especial por alimentos com vista à cobrança das quantias que a Exequente liquida no requerimento executivo, discriminando os meses cujo pagamento foi omitido, a quantia de capital e os juros reclamados.
O que não coloca em causa os interesses do Executado, já que terá, oportunamente, ao seu dispor a defesa decorrente da oposição mediante embargos de executado – cfr. artigo 728.º do CPC, aplicável ex vi artigo 551.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.

Procedem, pois, as conclusões da alegação do presente recurso.

Sem custas, por não serem devidas.

Concluindo:
(…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que revoga a decisão recorrida, determinando-se a prossecução da ação executiva por provida de título executivo, se nenhum outro fundamento a isso obstar.
Sem custas.
Évora, 26 de maio de 2022
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite

__________________________________________________
[1] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, p. 33.
[2] Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 78 e 79.
[3] Ac. STJ de 14/10/2014 (Fernandes do Vale).
[4] Cfr. Ac. TRP de 20/04/2009 (M. Pinto dos Santos) do qual consta, relativamente à conjugação dos artigos 181.º e 189.º da OTM (cujo regime equivale ao dos artigos 41.º e 48.º do RGPTC, respetivamente), que o incidente previsto no artigo 181.º da OTM nem sequer é aplicável quando estejam em causa prestações de alimentos; Ac. TRP de 06/12/2011 (Fernando Samões) definindo que, quando o incumprimento diz respeito apenas a alimentos, deve aplicar-se o procedimento regulado no artigo 189.º da OTM.
[5] Cfr. Ac. TRL de 18/06/2009 (Fátima Galante), por referência ao artigo 189.º da OTM.
[6] Cfr. Ac. TRP de 20/04/2009 (M. Pinto dos Santos).
[7] Ac. STJ de 08/10/2009 (Lopes do Rego), por referência ao artigo 189.º da OTM.