Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4051/10.9TBPTM.E1
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A densificação do conceito de negligência grosseira vem sendo feita no domínio civilista, surgindo conexionado com a “falta grave e indesculpável, ou seja, à chamada culpa grave que consiste na omissão dos deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente negligente, descuidada e incauta deixaria de observar”.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4051/10.9TBPTM.E1
Comarca de Faro
Instância Central de Portimão – 2.ª secção cível – Juiz 1


I. Relatório
(…), residente em Portimão, intentou contra Companhia de Seguros (…), S.A., com sede em Lisboa, acção declarativa de condenação, então a seguir a forma ordinária do processo comum, a que foi apensada uma outra[1], pedindo a final que, na procedência dos pedidos, fosse a ré condenada a pagar-lhe:
i. no âmbito destes autos principais, o montante de € 164.258,51 (cento e sessenta e quatro mil, duzentos e cinquenta e oito euros e cinquenta e um cêntimos), acrescido dos juros de mora que se vencerem desde a citação e até integral pagamento;
ii. na acção apensada, a quantia de € 105.742,47 (cento e cinco mil, setecentos e quarenta e dois euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida de juros vincendos até integral pagamento.
Em fundamento alegou, em síntese útil, ter celebrado com a ré três contratos de seguro do ramo vida e acidentes pessoais, com as coberturas ou garantias principal de morte e complementar de invalidez total e permanente. Os contratos celebrados encontravam-se em vigor à data de 14 de Dezembro de 2009, dia em que foi colhido por um comboio, sofrendo em consequência amputação dos dois membros inferiores, assim ficando afectado de invalidez total e permanente, situação coberta pelos seguros contratados.
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Regularmente citada, contestou a ré seguradora e, reconhecendo ter celebrado com o autor os contratos por este identificados, alegou ter sido o acidente causado pela conduta temerária e grosseiramente negligente do próprio, que caminhou pela via-férrea e a atravessou, o que lhe estava absolutamente vedado, sendo por isso aplicável a cláusula de exclusão prevista nas condições gerais e especiais das correspondentes apólices. Acrescentou ainda, em relação ao contrato titulado pela apólice (…) invocado na acção apensada, resultar do próprio RJCS que o autor nunca teria direito à prestação contratada, sendo certo que, em última instância, sempre o disposto no art.º 334.º do CC impediria que reclamasse da contestante, com sucesso, a compensação prevista.
Replicou o autor, alegando que nunca pela ré lhe foram enviadas as referidas cláusulas gerais e especiais ou delas tomou conhecimento, de nada tendo sido esclarecido, pelo que não lhe podem ser opostas as referidas exclusões, as quais deverão antes ter-se por excluídas dos contratos celebrados.
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Tendo o Mm.º juiz considerado que se estava perante uma ampliação do pedido inicialmente formulado, assim foi admitida a pretendida desconsideração da cláusula de exclusão invocada pela contestante, mas apenas no que se refere aos autos principais (cf. despacho exarado em acta a fls. 162 destes autos).
Teve lugar audiência preliminar, tendo os autos prosseguido com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, peças que se fixaram sem reclamação das partes.
Realizou-se por fim audiência de discussão e julgamento conjunta, com observância do legal formalismo que da acta consta, após o que foi proferida douta sentença que, na total improcedência da acção, absolveu a Ré dos pedidos formulados.

Irresignado, apelou o autor e, tendo desenvolvido nas alegações que apresentou as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final desnecessariamente extensas conclusões, de que se extraem, por pertinentes, as seguintes:
i. O Tribunal “a quo” julgou incorretamente como provados os pontos 25. e 49. dos factos provados, devendo ser eliminada do primeiro o segmento “é proibida ao trânsito de peões”, devendo, em relação ao segundo, dar-se antes como assente que “A invalidez permanente que do sinistro resultou para o A. situa-se em percentagem de 84%.»
ii. Entende a ora Recorrente que a convicção expressa pelo ilustre Tribunal “a quo” quanto ao impugnado segmento do ponto 25. não tem suporte razoável na prova testemunhal e documental, sendo que, no tocante ao ponto 49., omitiu por completo a apreciação do documento n.º 2 junto aos autos com a Réplica (Réplica nº 6308201), que consiste num atestado médico de incapacidade multiusos datado de 18/06/2010, que fixou que o grau de invalidez permanente do Recorrente em 84 pontos.
iii. Tal documento foi admitido e não impugnado pela Recorrida, pelo que devia e podia o Tribunal proceder à sua apreciação, e estranhamento não o fez, como era sua obrigação, fazendo o mesmo prova inequívoca de que o grau de invalidez do Recorrente, decorrente do sinistro, é de 84 pontos, não podendo, em caso algum, situar-se na percentagem de 65%. iv. Quanto ao também impugnado ponto 25., nenhum elemento probatório resulta dos autos que permita ao Tribunal a quo dar como provado que o local do sinistro é proibido ao trânsito de peões - nos autos inexiste qualquer prova testemunhal e inexiste igualmente qualquer prova documental ou pericial.
v. O ónus probatório cabia à Recorrida, que nenhuma prova produziu nesse sentido.
vi. Em todo o caso, o facto “é proibida ao trânsito de peões” tem natureza conclusiva, pelo também deverá ter-se por não escrito.
vii. Impõe-se assim reapreciação deste quesito, uma vez que a convicção acolhida pelo Tribunal de 1.ª Instância não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo e está profundamente desapoiada face às provas recolhidas.
viii. A douta Sentença em recurso determinou a absolvição da Recorrida dos pedidos com o fundamento de que se encontrava excluído o pagamento em caso de sinistro causado pelo Recorrente com pretensa negligência grosseira ou acto temerário.
ix. A decisão de absolvição da Recorrida do pedido teve como fundamento a existência de uma cláusula de exclusão nos contratos de seguro em vigor na data em que ocorreu o sinistro.
x. O Recorrente discorda frontalmente que tenha agido de forma grosseiramente negligente ou temerária ao proceder à deslocação a pé ao longo da via-férrea.
xi. Com efeito, o facto de o Recorrente ter-se deslocado, a pé, ao longo da via-férrea, e não sobre a linha (conduta essa sim perigosa e arriscada), não consubstancia em si uma conduta grosseiramente negligente; como é evidente, sendo o comboio um equipamento circulante sobre carris segue obrigatoriamente num trajeto fixo e definido, conferindo necessariamente um grau elevadíssimo de segurança para pessoas e bens que ladeiam vias desta natureza.
xii. Por essa ordem de razão, inclusive em aglomerados populacionais, existem edifícios e equipamentos junto a vias férreas, também sendo certo que é elevada a segurança para os transeuntes que circulam ao longo de vias, sob carris, utilizadas para comboios, elétricos ou metros de superfície, factualidades que se verificam em qualquer aglomerado populacional e país civilizado.
xiii. Resulta dos factos assentes que no local a linha férrea desenvolve-se em recta, com uma visibilidade superior a 600 a 700 metros, sem inclinações da via que obstruam a visibilidade.
xiv. O recorrente sempre se deslocou fora da linha de comboio em sentido perpendicular à mesma. À data dos factos, o local onde ocorreu o sinistro não era delimitado por qualquer vedação metálica, sendo por isso de fácil acesso a peões, não tendo afixado qualquer tipo de comunicação proibitiva de circulação de peões.
xv. Face aos factos provados nos pontos 20., 21., 22., 23. e 24., entendeu o Tribunal a quo que a Recorrida logrou provar matéria apta a permitir a conclusão de que o acidente se ficou a dever exclusivamente à conduta temerária do recorrente, que atuou com negligência grave.
xvi. Ficou assente que o Recorrente, após tomar as devidas e necessárias precauções e cuidados, antes e ao tentar atravessar a linha, tropeçou e ficou preso na mesma, não se logrando soltar antes do comboio (vide factos provados 20 e 25). Assim sendo, e na ausência de qualquer outra prova sobre a forma como ocorreu o sinistro, não pode concluir-se que o comportamento da vítima se traduziu numa negligência grosseira ou num ato temerário.
xvii. Facilmente se compreende que não imputar-se um juízo de censura quando um peão decide atravessar uma linha férrea num local onde é habitual o atravessamento de peões, junto a um aglomerado populacional e que não é delimitado por qualquer vedação metálica, sendo por isso o local de fácil acesso a peões, nem existindo qualquer afixação de qualquer tipo de comunicação proibitiva de circulação de peões.
xviii. Nos termos do art.º 342°, nº 2, do CC competia à Recorrida alegar e provar factos que permitissem qualificar de temerária a conduta da vítima, uma vez que tal facto seria impeditivo do direito invocado pelo Recorrente. Ora, a Recorrida, no entendimento do Recorrente, não provou factos que possam qualificar a sua conduta como temerária ou negligência grosseira.
xix. Não bastam a simples negligência, imprevidência, imprudência ou distração para descaracterizar o acidente. O que a lei exige é um comportamento temerário e indesculpável da vítima, isto é, temerário ou reprovado por um elementar sentido de prudência, o que não se verificou no caso concreto.
xx. Entendeu o Tribunal a quo que tendo a Recorrida invocado a exclusão prevista no art.° 5°, 1. 2. das Condições Gerais da Apólice, logrou provar matéria que integra a sua previsão, uma vez que as lesões do Recorrente se ficaram a dever exclusivamente à conduta temerária, tendo actuado com negligência grosseira.
xxi. Não pode o Recorrente conformar-se com o entendimento vertido na Sentença recorrida, pois não resultam do processo elementos probatórios que permitam apurar as circunstâncias em que ocorreu o atropelamento e, portanto, se o comportamento da vítima foi negligente e temerário como conclui a Sentença do Tribunal a quo;
xxii. Aliás, atendendo aos factos assentes sobre a forma como foi efectuado o atravessamento da via, não pode concluir-se que o comportamento da vítima se traduziu numa negligência grosseira ou num acto temerário.
xxiii. Assim sendo, a sentença do Tribunal a quo ao ter considerado a conduta da vítima como temerária, cometeu manifesto lapso, constituindo um erro, sendo notória uma flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão proferida, violando o disposto no art.º 607.°, nº 4, do Código Processo Civil.
xxiv. Em consequência direta e necessária do acidente em análise, das lesões corporais sofridas pelo Recorrente, resultou incapacidade para trabalhar, e invalidez permanente em 84%, incapacidade esta irrecuperável para exercer qualquer atividade remuneratória na sua profissão, ou seja, no ramo da construção civil, não conseguindo, sequer, exercer qualquer outra atividade lucrativa correspondente aos seus conhecimentos e capacidades no ramo da construção civil, pelo que estão verificados os requisitos cumulativos da cobertura dos seguros e o Recorrente assiste-lhe o direito de ser ressarcido do capital contratado.
xxv. Entendeu o Tribunal a quo que: «não são precisas cláusulas contratuais a excluir o pagamento em caso de sinistro causado pelo segurado com negligência grosseira, visto que o próprio regime legal do seguro assim o determina e mesmo o simples bom senso não deixará de implicar esta conclusão, irrelevando as informações que, a propósito, possam ou não ter sido fornecidas ai segurado.»
xxvi. Estão em causa três contratos de seguro, nos quais se fez uso de cláusulas contratuais gerais, sendo aplicável o regime jurídico instituído pelo DL 446/85, de 25 de Outubro e sucessivamente alterado pelos DL 220/95 e DL 249/99.
xxvii. A Recorrida, ao invocar a cláusula de exclusão para limitar a sua responsabilidade, tinha de alegar e provar o seu conhecimento completo e efectivo por parte do tomador do seguro.
xxviii. No caso sub judice a Recorrida, apesar de ter invocado a cláusula de exclusão para se eximir ao pagamento das garantias das apólices, não alegou nem provou que tenha comunicado e explicado o teor da cláusula invocada ao tomador de seguro – Recorrente – pelo que as mesmas são nulas nos termos do art.º 8º, aI. a), do DL 446/85, de 25 de Outubro.
xxix. O Tribunal “a quo” fez errada apreciação quanto à questão da alegação do dever de comunicação das cláusulas contratuais gerais, mormente, da cláusula de exclusão art.º 5°, 1. 2. inserida nas condições gerais das apólices – transferiu o ónus da alegação e respectiva prova para o Recorrente, quando resulta do artº 5° nº 3 do DL 220/95, de 31 de Agosto que tal tarefa cabia à Recorrida enquanto contratante que submeteu a outrem, in casu, ao tomador dos seguros, as cláusulas contratuais gerais.
xxx. A Recorrida juntou aos autos os Docs. n.ºs 2 e 4 com a douta Contestação (autos principais e apenso B), respeitante a “condições gerais e especiais – Ac. Pessoais individual e Multi Protecção Pessoal”, declinando a responsabilidade pelo pagamento do sinistro, fazendo crer que tais documentos faziam parte dos contratos de seguro celebrados com o Recorrente, objeto da presente acção;
xxxi. Sucede, porém, que tais documentos, como resulta dos factos assente, nunca foram exibidos ao Recorrente aquando da celebração dos contratos de seguro, não tendo os mesmos, sequer, sido assinados pelo Recorrente, não se encontrando os mesmos datados.
xxxii. O Recorrente nunca foi esclarecido nem informado das condições das apólices, razão pela qual desconhecia totalmente o teor dos mesmos, desconhecendo, consequentemente, a que seguros e condições contratuais se referem, nem sabendo se os mesmos fazem parte integrante das propostas de seguros que celebrou.
xxxiii. Resultou também provado que aquando da celebração dos contratos de seguro a Recorrida não facultou ao Recorrente as condições gerais, nem especiais, dos contratos de seguro objeto dos autos, para que o Recorrente as pudesse analisar; ao Recorrente apenas foi garantido que a Recorrida pagaria os montantes indicados nas propostas de seguros nos termos descritos supra, caso o mesmo autor ficasse com invalidez absoluta e definitiva. Daí poder afirmar-se que não existiu uma vontade livre e esclarecida do Recorrente no momento da subscrição dos seguros.
xxxiv. Posteriormente à celebração das propostas de seguros, a Recorrida seguradora nunca fez entregar ou dar conhecimento ao Recorrente os DOCS n.º 2 e 4 juntos com a douta Contestação (autos principais e apenso B), pelo que, não tendo provado que comunicou e explicou o teor das cláusulas invocada ao tomador de seguro, as mesmas são nulas nos termos do art.º 8°, al. a), do DL 446/85, de 25 de Outubro.
xxxv. A nulidade, nos termos do art.º 286.º do Código Civil, pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal, e assim foi em sede de Réplica, e se reitera em sede do presente Recurso.
xxxvi. A recorrida não cumpriu os aludidos deveres de informação, também prescritos no art.º 18.º do DL n.º 72/2008, de 16.04, norma de imperatividade relativa, no sentido em que apenas poderá ser afastado em benefício de um regime mais favorável para o segurado (art.º 13.º).
xxxvii. Tais deveres de esclarecimento subentendem um cumprimento espontâneo por parte do segurador, enquanto os de informação normalmente surgem em consequência de um pedido de informações; enquanto os deveres de esclarecimento (quer o especial, quer o geral artºs. 22º e 18º) têm por finalidade permitir que uma pessoa não aja contrariamente aos seus interesses, os deveres de informação (devida nos termos do Art.º 18.º) visam possibilitar ao segurado o conhecimento ou exercício dos seus direitos.
xxxviii. A Recorrida seguradora estava, pois, obrigada proactivamente a chamar a atenção, e não esperar que seja o cliente a perguntar acerca do âmbito negativo da cobertura fornecida.
xxxix. Acresce que quando o tomador assume a qualidade de consumidor, a lei atribui-lhe uma proteção acrescida “mediante a prestação dos deveres de informação que decorrem de outros regimes que lhe sejam aplicáveis nessa qualidade”.
xl. Por força da aplicação do regime da defesa do consumidor (Lei n.º 24/96, alterada pela Lei n.º 85/98, de 16 de Dezembro e pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril), designadamente do direito à informação consagrado no art.º 8 n.º 1, impõe-se que o prestador, quer nas negociações, quer na celebração de um contrato, forneça informação de forma clara, objectiva e adequada ao consumidor, nomeadamente, sobre as características, composição e preço do serviço, assim como sobre o período de vigência do contrato.
xli. Interessa também aqui o DL n.º 57/2008, de 26 de Março, estabelecedor do regime jurídico aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores. Este Decreto-Lei proíbe as práticas comerciais desleais (art.º 4.º), sendo entendidas como tais “qualquer prática comercial desconforme à diligência profissional, que distorça ou seja suscetível de distorcer de maneira substancial o comportamento económico do consumidor seu destinatário ou que afecte este relativamente a certo bem ou serviço” (art.º 5.º).
xlii. Por isso, aos contratos de seguro é também aplicável o regime dos deveres de informação pré-contratual facultados por este Decreto-Lei.
xliii. Nos termos deste diploma é considerada enganosa a prática comercial que omite uma informação com requisitos substanciais para uma decisão negocial esclarecida do consumidor ou em que essa informação seja apresentada de modo pouco claro, ininteligível, ou tardio (art.º 9 n.º 1).
xliv. Assim, a consequência imediata da aludida e dada como provada falta de comunicação e de informação é ter-se por excluída a referida Clausula 5º (exclusões) n.ºs 1.1.2. das Condições Gerais das Apólices juntas com a douta Contestação (DOCS. 2 e 4 juntos com a douta Contestação – autos principais e apenso B), valendo este de acordo com a informação que então foi prestada ao Recorrente segurado, ou seja, nos termos dos DOCS. n.ºs 1 e 2 juntos com a P.I.
xlv. E, consequentemente, tal clausulado deverá ser declarado como excluído dos contratos de seguro objecto dos autos, celebrados entre o Recorrente e a Recorrida o teor das supramencionadas cláusula 5º (exclusões) n.ºs 1.1.2. das Condições Gerais das Apólices juntas com a douta Contestação (DOCS. 2 e 4 juntos com a douta Contestação – autos principais e apenso B), com a consequência dos contratos celebrados deverem ser interpretados no sentido de abrangerem também aqueles riscos.
Indicando como violadas as disposições legais contidas nos artigos 8.° do DL 220/95, de 31 de Agosto, 286.º e 342.º do CC, 607º, nºs 2 e 3 e 608.º, n.º 2, ambos do CPC, 18.º, 22.º e 23.º do Decreto-lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, 4.º e 5.º do Decreto-lei n.º 57/2008, de 26 de Março, e 8.º, nº 1, da Lei nº 24/96, de 31 de Julho, conclui pela procedência do recurso, com a consequente condenação da ré apelada nos pedidos formulados.
Contra alegou a demandada seguradora, pugnando naturalmente pela manutenção do decidido.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões suscitadas pelo apelante:
a) indagar da existência de erro de julgamento no que se refere aos impugnados pontos da matéria de facto;
b) determinar se o apelante actuou com negligência grosseira e, consequentemente, por via de tal qualificação da sua conduta, se encontra legalmente excluída a obrigação da ré decorrente dos contratos celebrados de proceder à entrega do capital seguro.
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a) da impugnação da matéria de facto
Defende o recorrente que o Mm.º juiz errou ao dar como assente em 25. que no local do sinistro é proibido o trânsito de peões, dada a ausência de prova que permitisse concluir nesse sentido, tratando-se, para além do mais, de um enunciado eminentemente conclusivo; errou ainda ao dar como assente no ponto 49. que em consequência do mesmo sinistro o autor/apelante ficou portador de invalidez permanente numa percentagem de 65%, tendo desconsiderado indevidamente o teor do documento de fls. 153.
No que concerne ao segmento do ponto 25. da matéria de facto sob impugnação, atendendo ao teor dos pontos imediatos, nos quais se refere que o local não se encontrava delimitado, sendo de fácil acesso, nele não existindo qualquer tipo de comunicação proibitiva da circulação de peões, a qualificação de “proibido à circulação de peões” quer significar que se tratava de local não destinado à travessia, conforme a testemunha (…) declarou e o Mm.º juiz fez consignar na motivação, sentido com o qual deve valer e ser entendida a menção impugnada. De todo o modo, concedendo no carácter algo conclusivo da afirmação, mas dando expressão à prova produzida, determina-se a alteração do referido ponto da matéria de facto, do mesmo ficando a constar que o local não se destinava à travessia de peões.
Quanto ao também impugnado ponto 49., tendo-se o Mm.º juiz louvado claramente no relatório pericial de fls. 217 a 222 dos autos, o qual, refira-se, não foi objecto de qualquer impugnação, defende o apelante que foi indevidamente desconsiderado, a ele não tendo sido feita a mais leve referência, o teor do atestado médico de incapacidade multiuso de fls. 154. Acrescenta, invocando acórdão do STA que identifica, que “O atestado médico emitido a coberto da TNI é um documento autêntico que faz prova plena da avaliação nele certificada e da percentagem de incapacidade atribuída” e “A competência exclusiva da administração de saúde para praticar o acto de verificação da deficiência estava prevista na base VII al. a) da Lei n.º 6/71, de 8/11 e passou a estar prevista no art.º 18° da Lei n.º 9/89, de 2/5, a ela se referindo também o art.º 8° n.º 1 a. I) do DL. n.º 336/93, de 29/9”, encontrando-se assim plenamente provado que é portador do grau de incapacidade atribuído no referido atestado.
Pois bem, admitindo que à luz do que preceitua o n.º 4 do art.º 607.º do CPC o Mm.º juiz devesse ter explicitado por que motivo, na presença de dois elementos probatórios não coincidentes, deu preferência ao relatório pericial, a verdade é que, ao contrário do que o recorrente só agora parece defender – e isto porque a perícia médica realizada nos autos foi por si promovida, precisamente para prova do grau de incapacidade, cf. fls. 173 – e não suscitando dúvidas a caracterização como autêntico do referido atestado multiusos, a verdade é que ele faz prova unicamente do que nele se atesta, a saber, que no momento temporal nele referido o doente foi avaliado e lhe foi atribuída a incapacidade nele mencionada.
Por outro lado, confirmando-se a competência da administração de saúde para verificação da deficiência de que o utente é portador e grau de incapacidade que acarreta (a efectuar nos termos do DL 202/96, de 23 de Outubro, que estabeleceu o regime de avaliação de incapacidade, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de Outubro), essa competência é exclusiva para os fins assinalados no diploma, não se impondo no âmbito de relações entre particulares, designadamente para efeitos de determinação de prestações contratualizadas destinadas ao ressarcimento de determinados danos. Daí que tenha sido levada a cabo uma perícia médico-legal no âmbito destes autos, não se afigurando passível de censura que o Mm.º juiz se tenha louvado neste meio de prova, mais recente do que o referido atestado, e assente na opinião unânime de um colégio, o que reforça naturalmente o seu valor probatório, não tendo sido violada qualquer norma legal que atribua valor tarifado ao referido atestado para este efeito.
Por último, impondo-se atender neste âmbito a quanto consta das cláusulas gerais e especiais relativas ao contrato de seguro denominado de “Multi protecção pessoal”, ao invés do que a apelada veio defender no articulado de contestação, tendo o autor sofrido amputação a nível do terço proximal da perna esquerda e, na sequência de nova cirurgia que teve lugar em 2011, amputação pelo terço distal do fémur direito, perdendo de forma completa o uso dos dois membros inferiores, sempre se estaria perante uma situação de invalidez permanente total nos termos da al. A da tabela anexa àquelas condições (cf. fls. 105 dos autos), não assumindo relevância, neste contexto, a percentagem fixada na perícia e acolhida pelo Tribunal.
Em conclusão, e sem embargo de se aditar ao facto impugnado, por total respeito ao resultado da perícia, que é de admitir a existência de dano futuro, improcede, nesta parte, a impugnação deduzida contra a decisão da matéria de facto.
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II. Fundamentação
De facto
Estabilizada, é a seguinte a matéria de facto a atender:
1. No dia 13 de Fevereiro de 2009 o Autor celebrou com a Ré um Contrato de Seguro, denominado por “Multi Protecção Pessoal”, no ramo dos “Acidentes Pessoais – Individual”, sob a proposta com o n.º (…), que deu lugar à emissão da apólice n.º (…) (al. A) dos factos assentes destes autos e T) dos factos assentes do apenso B).
2. Com as seguintes coberturas:
a) morte ou invalidez permanente – valor seguro € 50.000,00;
b) incapacidade temporária absoluta – internamento hospitalar – valor seguro € 9.000,00;
c) despesas de tratamento – valor seguro € 2.500,00;
d) despesas de funeral – valor seguro € 1.500,00;
e) assistência às pessoas;
f) Assistência Médico Sanitária
(al. B) dos factos assentes destes autos e T) dos factos assentes do apenso B).
3. No dia 10 de Dezembro de 2009 o Autor celebrou com a Ré um Contrato de Seguro, denominado por “Multi Protecção Pessoal”, no ramo do “Vida”, sob a proposta com o n.º (…) que originou a emissão da apólice n.º (…) (al. C) dos factos assentes destes autos).
4. Com as seguintes coberturas:
A) Morte ou invalidez permanente – Valor Seguro € 100.000,00;
B) Incapacidade Temporária Absoluta – Internamento Hospitalar – Valor Seguro € 18.000,00;
C) Despesas de Tratamento – Valor Seguro € 5.000,00;
D) Despesas de Funeral – Valor Seguro € 2.500,00;
E) Assistência às pessoas;
F) Assistência Médico Sanitária
(al. D) dos factos assentes destes autos e S) dos factos assentes do apenso B).
5. O Contrato de Seguro “Multi Protecção Pessoal” do ramo “Acidentes Pessoais – Individual”, sob a apólice n.º (…), teve início em 13 de Fevereiro de 2009 (al. E) dos factos assentes destes autos).
6. O Contrato de Seguro “Multi Protecção Pessoal”, no ramo de “Vida”, sob a apólice n.º (…), teve início em 10 de Dezembro de 2009 (al. F) dos factos assentes destes autos).
7. No dia 09 de Dezembro de 2009 o Autor celebrou com a Ré um Contrato de Seguro de Vida denominado “Opção Vida Mais”, do ramo dos “Seguros de Vida”, sob a apólice n.º (…) (al. A) dos factos assentes do apenso B).
8. O qual contemplava as coberturas de Morte ou Invalidez Permanente, no valor Seguro EUR. 100.000,00 (Cem Mil Euros) (al. B) dos factos assentes do apenso B).
9. Esta proposta de seguro veio a ser analisada e aceite pela Companhia Ré no dia 14.12.2009, tendo o seguro tido início nessa data (al. Q) dos factos assentes do apenso B).
10. O contrato de seguro veio a ser aceite pela Ré e titulado pela apólice n.º (…), sendo que a proposta, condições particulares, gerais e especiais estão juntas como documentos nºs 1 (fls. 106 a 111), 2 (fls. 112-113), 3 (fls. 114-115) e 4 (fls. 116) da contestação do apenso B, aqui se dando por integralmente reproduzidos (al. R) dos factos assentes do apenso B).
11. Os contratos de seguro, com exceção do segundo seguro de acidentes pessoais, foram celebrados por intermédio de (…), funcionário da Ré, tendo tratado com o Autor dos procedimentos de contratação do seguro (resposta ao quesito 15º do apenso B).
12. Os documentos de fls. 98 a 101 (condições gerais e especiais do seguro de multi protecção pessoal com início de vigência em 13 de Fevereiro de 2009) e 104 a 116 (condições gerais e especiais do contrato de seguro multi protecção pessoal que teve início em 10 de Dezembro de 2009) dos presentes autos não foram assinados pelo Autor, nem se encontram datados, tratando-se de formulários pré feitos (al. U) dos factos assentes destes autos).
13. Aquando da celebração dos contratos, ao Autor foi fornecida explicação sobre as coberturas dos seguros, tendo o funcionário da R. acrescentado que o Autor receberia mais tarde os contratos pelo correio, podendo então tomar conhecimento dos respectivos detalhes (resposta aos quesitos 36º, 37º e 38º destes autos e 15º e 32º a 36º do apenso B).
14. Os documentos contendo as condições particulares e gerais dos seguros não foram assinados pelo Autor, embora o mesmo tenha assinado, designadamente na proposta do seguro “Opção Vida Mais” (constante de fls. 224 a 228 dos presentes autos e 17 a 20 e 106 a 111 do apenso B), a declaração de que tomava conhecimento das condições gerais e especiais dessa apólice (igualmente resposta aos quesitos 36º, 37º e 38º destes autos e 15º e 32º a 36º do apenso B).
15. Ao Autor foi dito, nomeadamente, que a Ré pagaria os montantes indicados nas propostas de seguros nos termos descritos em 2. e 4. destes factos provados, caso o mesmo autor ficasse com invalidez absoluta e definitiva (resposta aos quesitos 39º destes autos e 16º do apenso B).
16. Dos documentos que foram dados a conhecer pela seguradora, Ré, ao Autor (Doc. n.º 1- A da P.I. do apenso B), consta o seguinte, no respeitante ao seguro “Opção Vida Mais”:
“Proposta de Seguro Individual – Opção Vida Mais
(…) Plano de Coberturas:
- Temporário Anual Renovável;
- Invalidez Total e Permanente;
(…) Capital Seguro – Eur. 100.000,00 (…)” (resposta ao quesito 37º do apenso B).
17. Ao Autor foi dito que a Ré pagaria o montante indicado na proposta de seguro nos termos descritos em 16. destes factos provados, caso o mesmo autor falecesse ou ficasse numa situação de invalidez absoluta e definitiva e/ou Invalidez Total e Permanente (resposta aos quesitos 16º e 38º do apenso B).
18. No dia 14 de Dezembro 2009, pelas 14h00, na cidade de Portimão, área desta Comarca, o Autor pretendeu ver materiais de construção junto de um ponto de venda, perto de uma linha de comboio, vindo a envolver-se num acidente com um comboio (al. G) dos factos assentes dos presentes autos e resposta ao quesito 1.º do apenso B).
19. No dia e hora do acidente, o A. (…), a dada altura do seu trajeto de regresso, após tomar um atalho pelo meio do campo que levava à linha de comboio, caminhou ao lado da linha de comboio com o objetivo de chegar ao local, do lado contrário da linha, onde poderia seguir caminho para sua casa, tendo tomado este trajecto por ser o mais curto, sendo que este o obrigava a atravessar a linha, o que decidiu fazer (resposta aos quesitos 24.º, 29.º, 31.º e 34.º destes autos e 1.º, 17.º, 24.º e 30.º do apenso B).
20. Ao iniciar a travessia da linha, o A. verificou que não circulava qualquer comboio (resposta aos quesitos 1.º destes autos e 1.º do apenso B).
21. Mas quando iniciou a sua marcha ficou com um dos pés preso na linha de comboio (resposta aos quesitos 2.º destes autos e 6.º do apenso B).
22. Ao realizar manobras para se libertar, o A. foi surpreendido por um comboio que ali circulava (resposta aos quesitos 3º destes autos e 3º do apenso B).
23. A dado momento, e subitamente, ouviu a buzina avisadora do comboio (resposta aos quesitos 30º e 35º destes autos e 25º do apenso B).
24. O A. tentou libertar-se, mas não conseguiu, acabando por ser colhido pelo mesmo comboio (resposta aos quesitos 4.º destes autos e 3.º do apenso B).
25- No local a linha férrea, única para os dois sentidos de tráfego ferroviário, desenvolve-se em recta com uma extensão de 600 a 700 metros, não havendo inclinações da via que obstruam a visibilidade, não estando destinado à travessia de peões (resposta aos quesitos 25.º e 26.º destes autos e 19.º a 21.º do apenso B).
26. À data dos factos, o local onde ocorreu o sinistro não era delimitado por qualquer vedação metálica (resposta aos quesitos 32º destes autos e 27º do apenso B).
27. Sendo por isso de fácil acesso a peões (resposta ao quesito 28º do apenso B).
28. Nem o local tem afixado qualquer tipo de comunicação proibitiva de circulação de peões (resposta aos quesitos 33º destes autos e 29º do apenso B).
29. Era possível que naquele local o A. pudesse vir a ser vítima de um acidente ferroviário como o que ocorreu (resposta ao quesito 26º do apenso B).
30. O Autor foi transportado, no próprio dia, para o Hospital do Barlavento Algarvio, em Portimão (al. H) dos factos assentes destes autos e D) dos factos assentes do apenso B).
31. Onde lhe foram diagnosticados vários ferimentos e fracturas (al. I) dos factos assentes destes autos e E) dos factos assentes do apenso B).
32. O Autor foi operado de emergência, realizando-se desarticulação a nível do joelho direito e amputação a nível do terço proximal da perna esquerda (resposta ao quesito 5º destes autos e al. G) dos factos assentes do apenso B).
33. Como consequência direta e necessária do acidente acima mencionado, resultou para o A. a amputação traumática de ambos os membros inferiores (al. J) dos factos assentes destes autos e F) dos factos assentes do apenso B).
34. No pós-operatório o Autor foi sujeito a várias limpezas e mudanças de pensos das cirurgias dos cotos de amputação dos membros inferiores (resposta aos quesitos 6º e 8º destes autos e als. H) e J) dos factos assentes do apenso B).
35. O Autor esteve internando, a receber tratamento médico, no referido hospital entre o dia 14 de Dezembro de 2009 até ao dia 22 de Janeiro de 2010 (resposta ao quesito 7º destes autos e a. I) dos factos assentes do apenso B).
36. No pós-operatório, foi ainda o Autor sujeito a consultas de plástica (resposta ao quesito 9º destes autos e al. L) dos factos assentes do apenso B).
37. O Autor aguarda ainda total cicatrização dos ferimentos, com vista a aplicação de próteses (resposta aos quesitos 10º destes autos e 4º do apenso B, tendo por referência a data de propositura das acções).
38- Como consequência do sinistro, o Autor não consegue caminhar, andar, nem colocar-se numa posição erecta (al. L) dos factos assentes destes autos e M) dos factos assentes do apenso B).
39. Só conseguindo locomover-se por meio de cadeira de rodas (al. M) dos factos assentes destes autos e M) dos factos assentes do apenso B).
40. Em consequência direta e necessária do acidente em análise, das lesões corporais sofridas pelo Autor, resultou incapacidade para trabalhar (al. N) dos factos assentes destes autos).
41. A incapacidade do Autor, em consequência do acidente, é irrecuperável para exercer qualquer atividade remuneratória na sua profissão, ou seja, no ramo da construção civil, nem conseguindo exercer qualquer outra atividade lucrativa correspondente aos seus conhecimentos e capacidades no ramo da construção civil (resposta aos quesitos 23º destes autos e 14º do apenso B).
42. Não podendo trabalhar desde a data do sinistro (resposta aos quesitos 13º destes autos e 7º do apenso B).
43. Nem auferindo quaisquer rendimentos (resposta aos quesitos 14º destes autos e 7º do apenso B).
44. Não podendo, desde a data do acidente, carregar pesos (resposta ao quesito 15º destes autos e al. N) dos factos assentes do apenso B).
45. O A., até à data do acidente, gozava de boa saúde, não apresentando quaisquer problemas físicos (resposta aos quesitos 16º destes autos e 8º do apenso B).
46. À data do sinistro, o A. trabalhava sob o cargo de Gerente, na sociedade comercial denominada por “(…) – Construções de Cofragens Unipessoal, Lda.”, auferindo mensalmente, o vencimento ilíquido de € 1.000,00 (mil euros) (resposta aos quesitos 17º destes autos e 9º do apenso B).
47. Dirigindo obras de construção civil na área da cofragem (resposta aos quesitos 18.º destes autos e 10.º do apenso B).
48. E executando mesmo tarefas de cofragem em construção civil (resposta aos quesitos 19º destes autos e 10.º do apenso B).
49. A invalidez permanente que do sinistro resultou para o A. situa-se em percentagem de 65 %, sendo de admitir a existência de dano futuro (resposta aos quesitos 20º destes autos e 11º do apenso B).
50. Com impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa (resposta aos quesitos 21º destes autos e 12º do apenso B).
51. O Autor atualmente subsiste em exclusivo devido ao apoio da sua mulher, quer para subsistência funcional, quer para sobrevivência alimentar (resposta aos quesitos 22º destes autos e 13º do apenso B).
52. Tendo sofrido dores e, face ao sucedido, desgostos (resposta aos quesitos 11º e 12º destes autos e 6º do apenso B).
53. O Autor tem vivido desde o acidente sempre em sofrimento e angústia (resposta o quesito 5º do apenso B).
54. Em consequência do sinistro e dos subsequentes tratamentos médicos a que foi submetido no Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, EPE, esta instituição está a reclamar do Autor o montante de € 7.228,05 a este título (al. R) dos factos assentes destes autos).
55. Pelo A. foi participado à Ré o sinistro acima referido, no âmbito dos seguros com esta contratados (als. O) e P) dos factos assentes destes autos e O) dos factos assentes do apenso B).
56. No dia 26 de Abril de 2010, o Autor remeteu à Ré a carta de fls. 32 destes autos principais, na sequência de ausência de qualquer resposta das participações do sinistro (al. Q) dos factos assentes destes autos).
57. Não obstante o Autor ter participado à Ré o sinistro acima referido, esta recusa-se a pagar ao Autor qualquer quantia pecuniária (al. S) dos factos assentes destes autos e P) dos factos assentes do apenso B).
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Factos não provados
Considerou-se não provada a matéria dos quesitos 28º da p.i, 18º do apenso B (no sentido de que não se provou que houvesse uma estrada que cobrisse o caminho que o R. fez) e 22º, 23º e 39º do apenso B.
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De Direito
Da obrigação de pagamento pela ré seguradora das prestações da cobertura contratada
Não vem questionado nos autos que entre a ré e o autor, tomador, foram celebrados três contratos de seguro, os quais se encontravam em vigor à data em que ocorreu o atropelamento.
Os contratos desta natureza vêm sendo consensualmente caracterizados como sendo contratos típicos, geradores de obrigações para ambas as partes, designadamente e para a seguradora a de proceder ao pagamento da prestação convencionada em caso de verificação dos riscos cobertos pelo contrato, e para o tomador do seguro o dever de pagar a prestação pecuniária que representa a contrapartida da cobertura convencionada (prémio)” (cfr. artigos 1.º, 99.º, 102.º e 51.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro RJCS -DL 72/2008, de 16/4-, diploma a que pertencerão as demais disposições que vierem a ser citadas sem menção de origem).
O contrato de seguro vem sendo ainda caracterizado como contrato de boa-fé, assim constituída em seu elemento essencial, ultrapassando o dever geral de boa-fé que decorre do art.º 227.º do CC, antes sublinhando a absoluta necessidade de segurador e segurado ou tomador do seguro prestarem informações exactas e completas (cf. art.ºs 18.º e 24.º).
No caso vertente, afadigou-se o recorrente em demonstrar não ter a ré apelada logrado provar, conforme lhe competia, que dera cumprimento aos aludidos deveres, donde deverem as invocadas cláusulas de exclusão ser consideradas nulas por inobservância do referido art.º 18.º, tendo convocado ainda o regime constante do DL 446/85, de 25 de Outubro, relativo às Cláusulas Contratuais Gerais, a Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, alterada pela Lei n.º 85/98, de 16 de Dezembro e pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril), e o regime do DL 57/2008, de 29 de Março, este atinente às práticas comerciais desleais. Trata-se, todavia, ressalvado o devido respeito por diverso entendimento, de esforço vão, uma vez que o Mm.º Juiz, ao contrário do afirmado pelo recorrente nas conclusões ix e xx acima enunciadas, não alicerçou a sua decisão nas referidas cláusulas de exclusão, cuja irrelevância afirmou conforme se alcança do texto da decisão.
A propósito de tal questão, expendeu o Mm.º juiz quanto segue:
“Resulta igualmente da matéria provada que os comportamentos que se pudessem classificar como temerários e gravemente negligentes estavam contratualmente excluídos do âmbito da responsabilidade da Ré.
Todavia, entendemos que nem sequer se deve fazer apelo a tais disposições contratuais face ao disposto no art.º 8.º, al. d), do DL 446/85, de 25 de Outubro, posto que estamos, em nosso entender, perante cláusulas contratuais gerais (visto que se apurou inexistir quanto às mesmas liberdade de estipulação) e podia ser legitimamente oposto à sua aplicação o argumento de que as cláusulas em questão se incluíam em formulário não assinado pelo autor.
Na verdade, provou-se que os documentos contendo as condições gerais e particulares dos seguros não foram assinados pelo autor, embora o mesmo tenha assinado, designadamente na proposta do seguro “Opção Vida Mais”, declaração de que tomava conhecimento das disposições gerais e especiais dessa apólice.
Afigura-se que em face da previsão legal tal assinatura é insuficiente e mal se compreende que algumas empresas continuem a persistir me tais práticas (se for o caso, posto que já decorreram alguns anos desde a data da prática dos factos…), ao arrepio do texto legal” (é nosso o destaque).
Tal segmento da decisão, pelo qual o Mm.º juiz afastou (acertadamente a nosso ver, considerando o teor dos factos assentes sob os n.ºs 12. a 17.) a aplicação das cláusulas de exclusão invocadas pela ré, não foi por esta posto em causa em sede de eventual ampliação do recurso, como prevê e permite o artigo 636.º do CPC, deste modo resultando inútil todo o labor do apelante no sentido de ver afastada a aplicação de cláusulas que, na verdade, não foram aplicadas, não se suscitando em sede de recurso a questão da sua eventual aplicação.
Mas tendo embora afastado o funcionamento das cláusulas de excepção convocadas pela apelada, aderindo à argumentação por esta desenvolvida, que fez sua, no sentido de a conduta do segurado ser grosseiramente negligente, acabou o Mm.º juiz por concluir que nem o acidente sofrido pode ser caracterizado como um evento aleatório, nem se verificou por causa externa e imprevisível (cf. art.ºs 1.º e 210.º), decidindo consequentemente que a ré não estava obrigada a satisfazer os montantes convencionados, solução a que, em seu entender, sempre se chegaria por força da aplicação do disposto no artigo 334.º, este do Código Civil.
Discorda, como vimos, o apelante, refutando que a sua apurada conduta deva ser qualificada de grosseiramente negligente, não havendo razão para que a apelada seja dispensada de proceder ao pagamento dos montantes convencionados para efeitos da cobertura dos riscos contratados.
Como evidenciam os factos apurados, estão em causa três contratos de seguro, o primeiro celebrado em Fevereiro de 2009, do ramo acidentes pessoais – individual, os segundo e terceiro celebrados, respectivamente, em 9 e 10 de Dezembro de 2009, do ramo vida, com cobertura complementar em caso de invalidez permanente, sendo-lhe portanto aplicáveis, para além do regime comum, ainda as disposições comuns atinentes aos seguros de pessoas (Cap. I do Título III, art.ºs 175.º a 182.º) e as especiais que regulam os seguros de vida e os seguros de acidentes pessoais (artigos 183.º a 209.º e 210.º a 212.º).
Dando cumprimento ao anúncio efectuado no Preâmbulo no sentido da consagração do “princípio da não cobertura de actos dolosos, admitindo convenção em contrário não ofensiva da ordem pública”, em sede de regime geral, cuja aplicação se estende por isso a todos os contratos de seguro previstos na lei, dispõe o art.º 46.º, justamente epigrafado de “Actos dolosos”:
“1. Salvo disposição legal ou regulamentar em sentido diverso, assim como convenção em contrário não ofensiva da ordem pública quando a natureza da cobertura o permita, o segurador não é obrigado a efectuar a prestação convencionada em caso de sinistro causado dolosamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado.
2. O beneficiário que tenha causado dolosamente o dano não tem direito à prestação”.
Não há portanto dúvida, face à letra da lei, que a exclusão da cobertura se encontra prevista para os actos de natureza dolosa, sem embargo de se admitir convenção contrária, desde que não ofensiva da ordem pública (o que justificará a cobertura do suicídio no âmbito dos seguros de vida – cf. art.º 191.º).
A este respeito, consignou o Mm.º juiz “Não se olvida, como se referiu em sede de procedimento cautelar, que o D.L. nº 72/2008, possivelmente de forma que aparenta ser algo incongruente, apenas exclui o pagamento do seguro em situações de sinistro causado com dolo.
Contudo, cremos que tal disposição não deve ser interpretada como permitindo que o segurado agindo com culpa grave venha prevalecer-se da celebração de contrato de seguro (o que tornaria mesmo essa disposição legal irremediavelmente incongruente), mas tão-somente permitir a abertura ao pagamento da prestação convencionada em situações de sinistro dolosamente causado (evidentemente, de carácter excepcional)”.
Pois bem, renunciando por ora a discutir se o segurado e ora recorrente actuou com culpa grave ou negligência grosseira, questão a que voltaremos, não parece, salvo o respeito devido por diversa opinião, que se deva considerar que também esta modalidade de negligência se encontra abrangida pelo transcrito normativo.
Na interpretação da lei, é sabido, o intérprete não deve cingir-se à sua letra, impondo-se-lhe que reconstitua o pensamento legislativo, “tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (cf. art.º 9.º, n.º 1, do CC). Todavia, não poderá chegar a um resultado interpretativo que não encontre na letra da lei um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso, letra da lei que funciona assim como limite inultrapassável (vide n.º 2), tanto mais que se presume, não só que o legislador adoptou a solução mais acertada, como soube exprimir-se adequadamente (vide n.º 3).
Ora, tendo em conta tais critérios interpretativos, o primeiro aspecto que, em nosso entender, se impõe sublinhar, é que o legislador se referiu apenas a condutas dolosas, podendo perfeitamente acrescentar-lhe a actuação por culpa grave (ou negligência grosseira), caso fosse sua intenção inclui-la (binómio que surge mencionado no n.º 4 do art.º 1323.º do CC e ainda no art.º 8.º do DL 67/207, de 31/12[2], apenas para citar dois exemplos). E se não o fez terá que se entender que foi porque não quis, tendo naturalmente deixado por conta da autonomia das partes e inerente liberdade de estipulação a fixação de cláusulas que regulem aspectos não compreendidos no regime geral[3], e designadamente a contratação de cláusulas de exclusão no caso de condutas grosseiramente negligentes.
Por outro lado, a circunstância de a lei prever a possibilidade de ser contratada cobertura mesmo no caso de actuação dolosa – com os já referidos limites da ordem pública- não incluindo, o que se afigura significativo, tais contratos nos seguros proibidos elencados no art.º 14.º, aponta, por maioria de razão, no sentido da admissibilidade de cobertura no caso de actuação negligente, independentemente do grau de culpa do agente, assim preservando a distinção entre actuação intencional ou dolosa e meramente negligente.
Acrescenta-se que não se vê que ocorra aqui qualquer ofensa à ordem pública, dada a já mencionada cobertura por morte mesmo em caso de suicídio, em relação à qual o legislador apenas previu a limitação decorrente de um período de carência inicial que, todavia, pode ser afastado por convenção, ou a manutenção da cobertura no caso de danos corporais dolosamente provocados pelo beneficiário, caso em que a prestação reverte para a pessoa segura (art.º 193.º), mas sem que a seguradora fique isentada do seu pagamento, apenas para mencionar alguns exemplos.
Deste modo, e porque nada justifica que se estabeleça uma equiparação geral do ilícito negligente com culpa grave ao ilícito intencional, “uma vez que o brocardo latino «culpa lata dolo aequiparatur» não se mantém vigente no direito actual"[4], conclui-se que apenas os sinistros dolosamente causados pelo tomador do seguro ou pelo segurado se encontram previstos no art.º 46.º do RJCS. Daqui decorre que a exclusão de cobertura no caso dos sinistros causados por negligência, ainda que se trate de culpa grave ou negligência grosseira, terá que ser objecto de contratualização entre as partes, o que no caso em apreço não ocorreu, rectior, não ocorreu validamente, conforme ficou decidido na sentença recorrida, em segmento não impugnado pela ora apelada.
Mas ainda a ser entendido diversamente, será inequívoco, conforme entendeu o Mm.º juiz “a quo” que o recorrente actuou com negligência grosseira?
A este respeito ponderou o Mm.º juiz: “Todavia, não é menos verdade que o A., com o seu comportamento, agiu de forma grosseiramente negligente, temerária mesmo, ao proceder a deslocação a pé ao longo da via-férrea e atravessá-la em lugar não destinado para o efeito, não podendo ignorar os riscos em que semelhante comportamento o fazia incorrer, e sem que o condutor do comboio tivesse podido fazer algo para evitar o acidente.
(…) Por todo o referido, cremos que deve entender-se que a responsabilidade na produção do sinistro que vitimou o A. coube na totalidade a este.
Mas esta não é uma mera atribuição de culpa no sentido de responsabilidade pela ocorrência de um evento infortunístico para efeitos de determinação de responsabilidades em sede de apuramento de obrigação de indemnizar nos termos do art.º 483º, por responsabilidade civil extracontratual.
Note-se que a responsabilidade de que tratamos nos autos é contratual, antes se traduzindo então a conduta do A. na própria culpa grave na ocorrência do sinistro que, em circunstâncias normais, deveria possibilitar-lhe acionar o prémio de seguro (…)”.
Na dogmática civilista e face ao direito constituído, relevando neste contexto o art.º 483.º do CC, o dolo aparece referenciado ao lado da negligência como uma das modalidades da culpa -a mais grave- fazendo o legislador ainda apelo em certos casos, no caso de mera culpa, a uma graduação da culpabilidade (cf. o art.º 494.º).
Conforme nos dá conta o Prof. Menezes Leitão[5] “Tradicionalmente, era estabelecida uma graduação da culpabilidade em três estádios: culpa grave, culpa leve e culpa levíssima. De acordo com o critério da apreciação da culpa em abstracto, a culpa grave corresponde a uma situação de negligência grosseira, em que a conduta do agente só seria susceptível de ser realizada por uma pessoa especialmente negligente, uma vez que a grande maioria das pessoas não procederia da mesma forma (…). Já a culpa leve corresponde à situação em que a conduta do agente não seria susceptível de ser praticada por um homem médio, correspondendo assim a sua actuação à omissão da diligência do “bonus pater familias”. Finalmente, a culpa levíssima corresponde à situação em que a conduta do agente só não seria realizada por uma pessoa excepcionalmente diligente (diligentissimus pater famílias), uma vez que mesmo um homem médio não a conseguiria evitar.
Em virtude de o art.º 487.º, n.º 2 só considerar como culposa a omissão da diligência do bom pai de família, tal implica que a culpa levíssima não seja nesta sede actualmente considerada como culpa. Mantém-se, no entanto, como relevante a distinção entre a culpa grave e a culpa leve, exigindo-se por vezes aquela para responsabilizar o agente”.
O CP prevê no artigo 136.º uma pena agravada para o tipo de homicídio praticado com negligência grosseira, entendida como “uma negligência qualificada, que consiste num comportamento de clara irreflexão ou ligeireza ou na falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou cautela aconselhadas pela previsão mais elementar e que devem ser observadas nos actos correntes da vida”[6].
A densificação do conceito de negligência grosseira vem sendo igualmente feita no domínio civilista, surgindo conexionado com a “falta grave e indesculpável, ou seja, à chamada culpa grave que consiste na omissão dos deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente negligente, descuidada e incauta deixaria de observar”[7]. Também ao nível do direito laboral infortunístico, designadamente para efeitos da descaracterização dos eventos como acidentes de trabalho, e de forma coincidente, se faz corresponder a negligência à “culpa grave”, “pressupondo a sua verificação que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum”, ao comportamento temerário, “entendido em geral como o comportamento perigoso, ariscado, imprudente, audacioso, arrojado, intrépido, que não tem fundamento”[8].
No caso em apreço, resultou apurado que o autor/recorrente, depois de ter caminhado ao longo da via-férrea, procedeu à travessia da mesma em local não destinado a esse fim (cf. art.ºs 19.º, 20.º e 22.º do DL 276/2003, de 4 de Novembro)[9], aí tendo sido colhido por um comboio, com as terríveis consequências conhecidas.
Ora, não estando propriamente em causa a actuação do apelante de caminhar a pé ao longo da linha -embora se recuse terminantemente que tal corresponda a um comportamento seguro “em grau elevadíssimo”, porque sendo o comboio “um equipamento circulante sobre carris segue obrigatoriamente num trajeto fixo e definido”, tal como defende nas suas alegações- mas antes efectuar a travessia da mesma fora dos locais a tanto destinados, parece-nos isento de dúvida que estamos perante uma conduta censurável, dado que não é aquela que se espera do homem médio, do “bonus pater familias”, precisamente porque há o risco do surgimento de um comboio. Mas será tal conduta grosseiramente negligente conforme a qualificou o Mm.º juiz “a quo”? Relembremos a factualidade relevante a este respeito apurada:
- No dia e hora do acidente, o A. (…), a dada altura do seu trajeto de regresso, após tomar um atalho pelo meio do campo que levava à linha de comboio, caminhou ao lado da linha de comboio com o objetivo de chegar ao local, do lado contrário, onde poderia seguir caminho para sua casa, tendo tomado este trajeto por ser o mais curto, embora o obrigasse a atravessar a linha, o que decidiu fazer;
- Ao iniciar a travessia da linha o A. verificou que não circulava qualquer comboio, mas quando iniciou a sua marcha ficou com um dos pés preso na linha de comboio e, ao realizar manobras para se libertar, foi surpreendido por um comboio que ali circulava;
- A dado momento, e subitamente, ouviu a buzina avisadora do comboio, tentou libertar-se mas não conseguiu, acabando por ser colhido pelo mesmo.
- No local a linha férrea, única para os dois sentidos de tráfego ferroviário, desenvolve-se em recta como uma extensão de 600 a 700 metros, não havendo inclinações da via que obstruam a visibilidade, não estando destinado ao trânsito de peões.
- À data dos factos, o local onde ocorreu o sinistro não era delimitado por qualquer vedação metálica, sendo por isso de fácil acesso a peões, não tendo afixado qualquer tipo de comunicação proibitiva de circulação de peões.
À luz da descrita factualidade cumpre destacar – e ainda que não se saiba, desde logo porque tal facto nem sequer alegado foi, se o acidente ocorreu em local onde era (é) habitual o atravessamento de peões conforme o recorrente tardiamente, apenas nesta sede de recurso, veio invocar – que se trata de local não delimitado, facilmente acessível e sem quaisquer sinais avisadores de perigo.
Não obstante as referidas características, a verdade é que, tratando-se de uma linha férrea em uso, existe o risco, que o mais elementar bom senso obriga a não ignorar, de surgirem comboios, equipamento que, conforme é também do conhecimento comum, dado o seu peso e velocidades atingidas, não se imobilizam com facilidade. Mas sendo evidente quanto vem de se dizer, a verdade é que os factos provados demonstram ter-se o apelante rodeado de cuidados que, não fora um evento inesperado e com o qual com certeza não contava -referimo-nos ao facto de ter ficado preso na linha em termos tais que não conseguiu libertar-se face à aproximação do comboio-, lhe permitiriam completar a travessia sem incidentes. Note-se que o local se desenvolve em recta com uma extensão de cerca de 600-700 mt e sem qualquer obstáculo a que seja detectada a aproximação de uma composição, tendo-se o autor assegurado que não se avistava qualquer comboio antes de iniciar a travessia. Não estamos portanto perante um comportamento completamente irresponsável, em que não foram tomadas as mais elementares precauções -ao contrário do que ocorreria, por exemplo, se se tivesse lançado em corrida para atravessar a via à aproximação do comboio- sendo certo que as meras imprudência e inconsideração não são suficientes para sustentar um juízo de culpa grave.
É certo que, conforme o Mm.º juiz ponderou, o “suposto cuidado não impediu o sinistro, porquanto à menor contingência, o A. ficou à mercê do infortúnio e tal aconteceu porque simplesmente o A. não devia estar ali”. Que o autor não devia ter efectuado a travessia naquele local é facto incontornável e que permite concluir que não observou todos os cuidados a que estava obrigado e era capaz. Todavia, os cuidados que adoptou, e que só não foram idóneos a evitar o sinistro porque concorreu um outro evento inesperado, deverão ser relevados para efeitos de graduação da culpa, nomeadamente para promover o afastamento da culpa grave, pois é disso que aqui se trata.
Em suma, e ainda a entender-se que o RJCS desobriga a seguradora da prestação em caso de negligência grosseira, não seria aqui aplicável tal exclusão.
Considerou ainda o Mm.º juiz, face ao que dispõem os artigos 1.º e 210.º do RJCS, que o evento dos autos não pode/deve ser considerado como aleatório, porquanto “qualquer homem médio dotado de elementar prudência deve ter como previsível que ao deslocar-se ao longo de uma linha de caminho-de-ferro tem a possibilidade de se confrontar com o aparecimento de um comboio”, nem tão pouco se ficou a dever a causa externa e imprevisível, e isto porque “a conduta do A. contribuiu, como decorre do que se disse, para a produção do acidente”.
Dispõe o art.º 1.º, que se ocupa do conteúdo típico do contrato, que “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
No caso dos seguros de vida, “o segurador cobre um risco relacionado com a morte ou a sobrevivência da pessoa segura” (cf. art.º 183.º), ao passo que no seguro de acidentes pessoais “cobre o risco da verificação de lesão corporal, invalidez, temporária ou permanente, ou morte da pessoa segura, por causa súbita, externa e imprevisível” (cf. art.º 210.º).
Finalmente, o sinistro vem definido no artigo 99.º como correspondendo “à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia a cobertura do risco prevista no contrato”.
Resulta do transcrito art.º 1.º que a prestação da seguradora fica dependente de um evento futuro e incerto, incerteza que pode abranger a possibilidade de ocorrência ou reportar-se apenas ao momento da sua ocorrência, de que é exemplo paradigmático o seguro de vida, em que a incerteza da verificação se restringe ao momento, já não ao facto.
O carácter aleatório, no sentido de incerto, do evento, há-de verificar-se no momento da celebração do contrato, irrelevando portanto, para este efeito, que o tomador do seguro se venha a colocar numa situação de risco, potenciando a verificação do evento (que, em todo o caso, poderia verificar-se ou não). Com efeito, poderia o autor ter caminhado ao longo da via e efectuado a travessia da mesma várias vezes sem que surgisse algum comboio ou, surgindo, tivesse completado a travessia sem qualquer dificuldade.
Discorda-se igualmente da consideração de que não se está perante o risco coberto pelo contrato de seguro de acidentes pessoais -e apenas o celebrado em 13 de Fevereiro tinha esta natureza- porque a lesão corporal sofrida pelo autor e consequente invalidez permanente não tiveram, em seu entender, uma causa súbita, externa e imprevisível.
Previamente dir-se-á, olhando o elenco factual apurado, que naturalmente impressiona o facto de o autor ter celebrado três contratos de seguro no mesmo ano de 2009, os dois últimos do ramo vida escassos dias antes do sinistro, tendo um deles iniciado mesmo a sua vigência no próprio dia em que o atropelamento ocorreu. Não obstante, a verdade é que a suspeição que tais factos muito naturalmente suscitam quanto a eventual intenção do recorrente “fazer mal a si próprio” não obteve confirmação; pelo contrário, a apurada dinâmica do acidente contraria tal asserção, tratando-se portanto de um evento súbito, externo -no sentido de exterior ao corpo, ou seja, não se trata de uma doença- e também imprevisível. Com efeito, ainda a admitir que ao caminhar ao longo da via e ao efectuar a travessia o apelante devesse prevenir a possibilidade de surgir um comboio, já nada fazia prever que iria ficar preso na via em termos de não se conseguir libertar no preciso momento em que um deles se aproximava.
Decorre do que se deixou exposto que o atropelamento de que foi vítima deverá ser considerado sinistro para efeitos de desencadear a cobertura prevista no contrato.
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Considerou finalmente o Mm.º juiz, acolhendo a posição defendida pela apelada seguradora, que “as normas consagradas nos art.ºs 1.º e 210.º do RJCS, quando conjugadas com o disposto no art.º 334.º do Código Civil, determinam a necessária conclusão de que, diante o princípio da boa-fé, não pode o Autor recorrente – sem incorrer em gritante abuso do seu direito eventualmente emergente das garantias do contrato de seguro – contribuir de forma clara e absolutamente determinante, como o fez, para a produção do sinistro e, subsequentemente, vir reclamar a prestação a que teria direito por força da ocorrência do evento”.
Nos termos do art.º 344.º, o exercício de um direito é ilegítimo quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico destes. O abuso, sendo um instituto puramente objectivo, não dependente da culpa do agente nem da verificação de qualquer elemento específico subjectivo, surgindo como concretização da boa-fé, apresenta-se afinal como uma “constelação de situações típicas em que o Direito, por exigência do sistema, entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria como legítima.”[10] “Dizer que, no exercício dos direitos, se deve respeitar a boa-fé, equivale a exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vectores fundamentais do próprio sistema que atribui os direitos em causa”.[11]
Uma das modalidades em que se concretiza o instituto, na qual a apelada integra a conduta do recorrente, é a do “venire contra factum proprium”. Esta figura assenta tipicamente na violação do princípio da confiança, podendo basicamente delinear-se como o caso de o direito ser exercido contra alguém que, com base em convincente conduta, positiva ou negativa de quem o podia exercer, confiou em que tal exercício não ocorresse e programou em conformidade a sua actividade. Dir-se-á, nessa hipótese, que o titular do direito opera o seu exercício no confronto de outrem depois de a este fazer crer, por palavras ou actos, que o não exerceria, ou seja, depois de gerar uma situação objectiva de confiança em que ele não seria exercido”[12].
Atentos os contornos do instituto na referida modalidade, não vemos que a conduta do apelante se configure como típica de uma situação de “venire contra factum proprium”.
Não obstante, impõe-se referir que das situações típicas a propósito das quais o abuso de direito tem sido chamado a intervir, e mediante as quais o conceito vem sendo densificado, é possível destacar uma categoria particular[13], que se pode exprimir na máxima segundo a qual “a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso: ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente; ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio; ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.”[14]. Sendo de reconhecer dificuldades dogmáticas na construção deste tipo abusivo, a nossa lei contém diversas disposições em que o direito é paralisado pela conduta lesiva do exercente, conforme previsto nos art.ºs 126.º, 344.º e n.º 2 do art.º 570.º, todos do CC.
Todavia, não pode olvidar-se que comum a todas as modalidades que o abuso de direito pode revestir, temos a exigência formulada pela lei de que estejamos perante uma violação da boa-fé com uma intensidade tal que o reconhecimento do direito, naquela concreta situação, defraude a ordem jurídica, quer na intencionalidade com que o instituiu e reconheceu, quer no que respeita às exigências de lisura e probidade que impõe e constituem limite ao seu exercício.
Voltando ao caso dos autos, e revisitada a matéria de facto apurada, não vemos que a pretensão do autor seja censurável à luz da boa-fé. Arredada a intencionalidade (dolo) da conduta do recorrente e, bem assim, a culpa grave, mais não temos do que a existência dos contratos de seguro, livre e validamente celebrados, a verificação do sinistro e a exigência à seguradora da prestação convencionada.
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A apelada argumentou ainda nas suas alegações, invocando o disposto no art.º 14.º, n.º 1, al. a) do RJCS, que não pode um contrato de seguro garantir riscos que se traduzam na violação de normas de ordem pública, nomeadamente os riscos de responsabilidade criminal e contra-ordenacional.
Quanto a este derradeiro aspecto reconhece-se que o autor incorreu em responsabilidade contra-ordenacional, conforme prevê o art.º 34.º, n.º 1, al. c) do já referido DL 273/203, de 4 de Novembro. No entanto, o risco transferido para a ré não foi o decorrente da responsabilidade contra-ordenacional que lhe poderia ser assacada[15] – seria o caso de transferir para a seguradora o risco da imposição de uma coima, a quem passaria a competir o seu pagamento – e só esta está excluída (note-se que a lei teve o cuidado de excluir da proibição a responsabilidade civil a que o ilícito criminal ou contra-ordenacional dêem eventualmente origem), pelo que improcede este derradeiro argumento.
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Sendo os contratos de seguro válidos e encontrando-se todos eles em vigor à data do sinistro, o que a apelada de resto não questiona, encontra-se esta obrigada a satisfazer as prestações contratualmente fixadas, considerando-se para o efeito a incapacidade de 100% que resulta da aplicação do anexo às condições gerais e especiais “A- invalidez permanente e toral correspondente à perda completa do uso dos dois membros inferiores” e tal como, de resto, informou o autor que ocorreria (cf. pontos 15. e 17. da matéria de facto assente).
Assim, no que se refere à apólice n.º (…), atinente ao contrato de seguro a que respeita o contrato apenso, é devido o capital de € 100.000,00, conforme reclamado.
O autor peticionou ainda juros de mora contados da data em que participou o sinistro. Sucede, porém, que conforme resulta do disposto no art.º 104.º do RJCS, a obrigação a cargo do segurador vence-se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se reporta o art.º 102.º. No caso em apreço, a seguradora declinou a sua responsabilidade, pelo que os juros serão devidos apenas desde a data da citação para a acção nos termos do art.º 805.º, n.º 2, al. a), do CC.
No que respeita aos contratos a que correspondem as apólices (…) e (…), são devidos os capitais acordados de € 100.000,00 e € 50.000,00, a que acresce a quantia de € 2.925,00 referente a 39 dias de internamento hospitalar à razão de € 75,00 por dia (5 + 25) e ainda € 7.228,05 de despesas hospitalares, num total de € 160.653,05, também aqui acrescidos de juros à taxa supletiva legal desde a data da citação e até integral pagamento.
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III Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o presente recurso parcialmente procedente e, em consequência, condenam a ré Companhia de Seguros (…), S.A., a pagar ao autor (…):
a) no que respeita ao processo apensado, a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros), acrescida de juros de mora contados da citação até integral pagamento à taxa supletiva legal;
b) no que respeita aos contratos a que correspondem as apólices (…) e (…) objecto dos autos principais, a quantia de € 160.653,05 (cento e sessenta mil, seiscentos e cinquenta e três euros e cinco cêntimos), acrescida dos juros vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, contados à taxa supletiva legal desde a data da citação e até integral pagamento.
Custas a cargo de apelante e apelado, nesta e na 1.ª instância na proporção dos respectivos decaimentos, sem prejuízo da isenção subjectiva que ao primeiro foi concedida.
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Évora, 08 de Fevereiro de 2018
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Maria da Conceição Ferreira
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[1] Que corria termos pelo mesmo Tribunal sob o n.º 4570/11.0 TBPTB.
[2] Diploma que contém o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas colectivas de direito público, dispondo no referido art.º 8.º, impressivamente epigrafado de “Responsabilidade solidária em caso de dolo ou culpa grave”, que “1. Os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, por eles cometidas com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo”, distinguindo pois, de forma clara, entre acto intencional e negligência grave, submetendo ambas as situações, mas porque assim entendeu fazê-lo, ao mesmo regime.
[3] Isso mesmo foi assegurado pelo legislador no preâmbulo do diploma, ao referir que “Superando o regime do Código Comercial, mas sem pôr em causa o princípio da liberdade contratual e o carácter supletivo das regras do regime jurídico do contrato de seguro, prescreve-se a designada imperatividade mínima, com o sentido de que a solução legal só pode ser alterada em sentido mais favorável ao tomador do seguro, segurado ou beneficiário. (…) Merece destaque a reafirmação da autonomia privada como princípio director do contrato, mas articulado com limites de ordem pública e de normas de aplicação imediata (…)”.
[4] Menezes Leitão, “Direito das Obrigações”, vol. I, 2010, 9.ª edição, pág. 332.
[5] Ob. cit., pág. 331.
[6] Ac. STJ de 27 de Maio de 1993, processo 43339 da 3.ª secção, sumário acessível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal1997.pdf.
[7] Ac. STJ de 13/12/2007, processo 0753655, reafirmado no acórdão do mesmo Tribunal de 16/12/2010, processo 2732/07.3 TB-FLG-G1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt
[8] Acórdão do mesmo STJ de 6 de Julho de 2006, STJ200601180034884, em www.dgsi.p.
[9] Diploma que veio estabelecer “o novo regime jurídico dos bens do domínio público ferroviário, incluindo as regras sobre a sua utilização, desafectação, permuta e, bem assim, as regras aplicáveis às relações dos proprietários confinantes e população em geral com aqueles bens”, tendo revogado os artigos 1.º a 6.º, 17.º, n.º 1, 23.º a 29.º e 30.º a 37.º do Decreto-Lei 39780, de 21 de Agosto de 1954 (c. art.º 38.º).
[10] Na síntese do Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectiva”, ROA 2005, ano 65, vol. II, acessível on line.
[11] Idem.
[12] cfr. Ac. do S.T.J., de 20-10-06, proc. O6B2110, em www.dgsi.pt.
[13] Categoria designada por “tu quoque” pelo autor que vimos citando, de que é exemplo, também ali citado, o condomínio que não assina, por não querer, a acta da assembleia dos condóminos não pode depois invocar tal falta de assinatura para a impugnar.
[14] Prof. Menezes Cordeiro, ob. cit.
[15] E por esta altura, a não ter sido levantado oportunamente o auto respectivo, seguramente prescrita.