Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
257/19.3T8ADV.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
COMODATO
PRAZO CERTO
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
TÍTULO DE POSSE
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Só a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito, em suma, a completa ausência de motivação da decisão, pode conduzir à nulidade a que alude a alínea b) do artigo 615.º do CPC.
II - A nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, prevista na alínea c) do artigo 615.º do CPC, decorre de um vício no raciocínio lógico, não se confundindo com a contradição entre a matéria de facto. Só aquela primeira contradição é causa de nulidade da sentença.
III - Quando a fixação da matéria de facto que incorpora a sentença padecer de deficiência, obscuridade, contradição ou falta de motivação da decisão, aplica-se o regime do artigo 662.º, n.º 2, alíneas c) e d), do CPC, cabendo à parte interessada na sua ampliação ou modificação o ónus de, no recurso da sentença, impugnar a decisão da matéria de facto, sem prejuízo dos casos em que a Relação pode, mesmo oficiosamente, determinar a ampliação da base factual relevante para a decisão da causa.
IV - Visando o contraditório subsequente ao decretamento da providência afastar a apreciação anteriormente efectuada, por via da impugnação motivada dos factos alegados pelo requerente, da alegação de novos factos e/ou da dedução de novos meios de prova, que não foram tidos em conta pelo tribunal aquando daquela primeira decisão, quando se diz que a matéria de facto anteriormente fixada em fundamento da decisão decretada não é posta em causa, significa que, não é ali modificada tal como foi então consignada, porque a primeira fase do procedimento está encerrada, mas não significa que não seja afastada ou infirmada pela prova produzida na oposição.
V - Porém, se a factualidade que decorre do exercício do contraditório for diversa daquela, precisando-a ou modificando-a, é esta matéria provada ou não provada que funda a decisão final que, ponderando toda a prova produzida, decide manter, reduzir ou revogar a decisão de decretamento da providência, completando-a nas duas primeiras situações, ou substituindo-a, na última.
VI - Quando o julgador, mercê dos novos meios de prova apresentados com a oposição, revê a convicção formada e altera a fixação dos factos da decisão originária são estes factos modificados que fundamentam a decisão final, não havendo que proceder à alteração dos inicialmente fixados, quando o Recorrente pretende a sua modificação para os termos em que já vem efectuada da primeira instância.
VII - Quando os factos inicialmente estabelecidos não são conexos com os da decisão final, tanto aqueles inicialmente fixados como estes estabelecidos quanto à matéria alegada na oposição, podem ser impugnados e objecto de reapreciação pela segunda instância, nos termos previstos no artigo 640.º do CPC.
VIII - Constatando-se que a obrigação de restituição por banda da requerida tinha prazo certo para cumprimento, e não tendo havido celebração de novo contrato de comodato, o título que legitimava a ocupação do imóvel pela Requerente viu esse seu efeito jurídico extinto na data atrás indicada, pelo que a Requerente não pode ser considerada possuidora desde o dia 15.09.2019, encontrando-se no imóvel por mera tolerância da proprietária e não tendo, por isso, demonstrado indiciariamente o preenchimento do primeiro requisito de que depende o decretamento do procedimento cautelar de restituição provisória de posse (sumário da relatora).
Decisão Texto Integral:
Tribunal Judicial da Comarca de Beja[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I - RELATÓRIO
1. M…, A…, LDA. veio requerer contra a L…, procedimento cautelar de restituição provisória de posse sobre o prédio rústico denominado Herdade de …, sito na freguesia de São Marcos da Ataboeira, Concelho de Castro Verde, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourique, sob os n.ºs ….
Em fundamento da sua pretensão, alegou, em síntese, que:
«1 – A requerente é uma sociedade comercial tem como objecto de actividade Agricultura.
2 – A requerente desde 10/05/2011 que se encontra na posse do identificado prédio rústico, de forma pacífica, legitimada, à vista de todas as pessoas, de forma ininterrupta na convicção de estar legitimada por um direito.
3 – Esta posse é legitimada através de um contrato denominado (mas apenas isso) de Comodato, celebrado entre requerente e requerida.
4 – O referido contrato de comodato tem vindo a ser celebrado e renovado anualmente desde Maio de 2011.
5 – Paralelamente com este contrato de comodato, foram feitos tantos outros, denominados de contrato de compra e venda de pastagem, pelo valor de €40.150,00, cada, reitera-se anualmente, conforme docs 1,2,3,4,5,6,7 e 8 que se juntam.
6 – Esclareça-se desde já que a denominação de qualquer um dos citados contratos, resultou de uma imposição feita pela requerida á requerente.
7 – O mesmo é dizer que a requerente, não teve alternativa se não aceitar a referida denominação dos contratos impostas pela requerida.
8 – Na verdade independentemente daquilo que a requerida tenha decidido chamar aos contratos, em substância o contrato existente entre requerente e requerida, trata-se de um contrato de arrendamento rural previsto DL n.º 294/2009, de 13 de Outubro.
9 – Aliás, à excepção do valor da renda, que como é óbvio não poderia constar do pseudo contrato de comodato, todo o clausulado deste configura e tipifica um verdadeiro contrato de arrendamento.
10 – Relativamente ao contrato denominado compra e venda de pastagem, cujo valor anual se cifra em €40.150.00, este não é mais, que um meio encontrado pela requerida para assegurar o recebimento da renda que não pode fazer constar do contrato de comodato.
11 – Prova disso, é desde logo o elevado preço atribuído á pastagem, considerando os preços praticados na região.
12 – Acresce ainda, e resulta dos diversos contratos de compra e venda de pastagem que se juntam, que não obstante existir alterações na área vendida de pastagem, o preço mantêm-se inalterado ao longo dos últimos 8 anos. (Docs 1 a 8).
13 – Aliás, o referido comportamento negocial adoptado pela requerida relativamente á requerente, optando pela celebração dos dois tipos de contrato em simultâneo e já referidos, com o intuito de dissimular um verdadeiro contrato de arrendamento rural, já existia no passado, relativamente ao Sr.º J…, conforme contratos celebrados com este e que se juntam sob docs 9, 10 ,11, 12 e 13.
14 – Prova também de que estamos perante um verdadeiro contrato de arrendamento rural, é o que resulta dos contratos de compra e venda de pastagem, nomeadamente os celebrados em 2011 e 2016, os quais têm estipulado respectivamente na cláusula 2.º n.º 3 e na cláusula 3.ª, a possibilidade concedida ao requerente de apresentar candidaturas à medida Agro-Ambiental Rotação Cereal-Pousio da Intervenção Territorial Integrada de Castro Verde (anteriormente designada por plano Zonal de Castro Verde). Doc. 1 e 6.
15 – Possibilidade esta prevista nos contratos de 2011 e 2016, uma vez que, o prazo de duração da atribuição destes subsídios por cada candidatura é de 5 anos.
16 – Autorização esta concedida pela requerida para a requerente assumir um compromisso contratual por 5 anos, que é desde logo incompatível com um contrato de comodato, com uma vigência de cerca de 1 ano.
17 – A requerente anualmente e pontualmente procedeu ao pagamento das rendas no montante de €40.150,00.
18 – Tendo como única obrigação, comunicar previamente à requerida, atento o fim de conservação da natureza que esta prossegue, o plano das culturas a realizar, no ano seguinte, para que fosse o mesmo autorizado pela requerida.
19 – O que sempre aconteceu.
20 – Neste ano de 2019, a requerente agiu de igual modo aos anos anteriores.
21 – Tendo apresentado o plano de sementeiras a realizar, no final de Agosto de 2019. Doc 14.
22 – Á semelhança de anos anteriores havia sempre por parte da requerida um atraso na formalização dos contratos e da respectiva aprovação do plano de sementeira.
23 – Dai que, no dia 5/11/2019 a requerente tenha comunicado á requerida essa urgência (até porque no presente ano o atraso estava a revelar-se maior que nos anos anteriores que nunca tinha ultrapassado o mês de Outubro), tendo também comunicado que já tinha procedido ao pagamento da renda no montante de €40.150,00. Doc 15.
24 – Ao que a requerida retorquiu dizendo que os contratos estavam a ser elaborados pelo departamento jurídico e que como tal não deveria a requerente iniciar a sementeira. Doc 16.
25 – Em resposta, a requerente realça a urgência do inicio desses trabalhos, não só no seu próprio interesse, mas também no interesse da requerida, atento o fim de protecção da natureza que esta prossegue. Doc 17.
26 – De forma completamente inesperada vem a requerida comunicar á requerente em 7/11/2019, que devem retirar toda a maquinaria agrícola e gado, da propriedade até ás 12H do dia seguinte, alegando que o contrato de comodato tinha cessado e que não iria ser renovado. Doc 18.
27 – Contrariamente ao que tinha feito crer à requerente dois dias antes, ao dizer-lhe que apenas aguardava pela elaboração dos contratos. Doc 16.
28 – Independentemente, da qualificação jurídica do contrato que legitima a posse da requerente a postura da requerida, reflectida nas comunicações escritas anteriormente é toda ela reveladora de uma má fé negocial e num notório abuso de direito. (…)
43 – Dispõe o artigo 241.º do C.C, sob a epígrafe “Simulação Relativa”, o seguinte:
“1 - Quando sob um negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.
2 – Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.”
44 – Por seu turno, o contrato de arrendamento rural está sujeito á forma escrita e tem como prazo mínimo de validade 7 anos, conforme disposições conjuntas dos artigos 6.º e 9.º do DL n.º 294/2009, de 13 de Outubro.
45 – Forma escrita esta que foi observada nos contratos de comodato e de compra e venda de pastagem.
46 – Assim, nos termos do artigo 241.º n.º 2 C.C, o contrato de arrendamento rural, alegado pela requerente como contrato dissimulado é válido por observância da forma exigida por lei.
A considerar-se a existência de um contrato de arrendamento rural este, porque está legalmente sujeito a um prazo mínimo de 7 anos de vigência, o mesmo teria tido início aquando dos primeiros contratos celebrados entre requerente e requerida, no ano de 2011, mais concretamente em 17/11/2011.
47 – Assim sendo, o primeiro contrato teria vigorado até 16/11/2018, data em que não tendo sido denunciado se renovou por idêntico período de tempo, ou seja, vigorará até 16/11/2025.
48 – O que, legitima a requerente a encontrar-se na posse do referido prédio rústico, objecto do contrato, na qualidade de arrendatária, e como tal na posse do mesmo, nos termos e para os efeitos do artigo 1251.º do C.C.
49 – E nessa qualidade, foi esbulhada com violência, conforme previsto no artigo 377.º C.P.C.
50 – Caso, V.Exª entenda que não se encontram reunidos os pressupostos do procedimento nominado da restituição provisória da posse, porque se encontram reunidos os pressupostos para o procedimento cautelar comum, desde já se requer a sua convolação».

2. Realizada a instrução, foi proferida decisão que, com fundamento na verificação dos requisitos do procedimento e na declaração de que “formalmente a requerente é comodatária do prédio”, julgou procedente a providência cautelar e decretou a restituição provisória de posse à Requerente sobre o identificado prédio rústico.

3. Notificada, a Requerida deduziu oposição, impugnando motivadamente a factualidade concernente à invocação da real existência de um contrato de arrendamento, contextualizando a actividade que desenvolve, elencando o plano de gestão da Herdade e as obrigações assumidas, alegando designadamente que “a gestão das propriedades sempre foi assegurada pela Requerida, sendo apenas a sementeira e agropecuária efetuada com a colaboração de agricultores locais, mas sempre baixo as instruções da Requerida”, invocando que os contratos celebrados entre as partes são realmente de comodato e de compra e venda de pastagens, a termo certo, “na medida em que em todos os contratos eram específicos relativamente ao início e ao termo dos mesmos e, neste sentido, eram todos os anos elaborados e assinados novos contratos, e estando a vigência de todos eles separada com pelo menos um mês de diferença entre o final do contrato anterior e o início do contrato seguinte”, não tendo a requerente sido “obrigada, muito menos coagida, a assinar e a acordar com os termos propostos, tanto é que o mesmo aceitou estas condições ao longo de 8 (oito) anos consecutivos”, e refutando que subjacente aos mesmos esteja um contrato de arrendamento agrícola.
Mais alegou a existência de algumas situações de incumprimento pela Requerente das obrigações contratualmente assumidas, como fundamento para não contratar com a mesma “por mais um ano”, pelo que, quando teve conhecimento que a requerente tinha avançado com as sementeiras, decidiu ordenar a sua saída no sentido de evitar que se causassem mais danos, decidindo fechar os portões no dia 12.11.2019 e solicitar a sua saída por email e através de carta dos seus mandatários, datada de 27.11.2019.
Assim, concluiu que, tendo os contratos de Comodato e de Compra e Venda de Pastagens tido o seu termo a 14 de Setembro de 2019, a comodatária ora Requerente, tinha a obrigação de restituir o terreno à Requerida, perdendo assim o direito à posse dos terrenos.
Terminou invocando que “não estão preenchidos os pressupostos legalmente exigidos para que a providência cautelar seja deferida, e, como tal, deve a mesma ser levantada de imediato”, e a Requerente condenada como litigante de má-fé.

4. A Requerente respondeu, aduzindo designadamente que «à semelhança do que acontecia em anos anteriores a formalização do contrato, nas palavras até da própria requerida, dependia apenas da disponibilidade do departamento jurídico desta para a sua redução a escrito (…)» e que «no ano em questão nada de anormal se havia passado, comparativamente com os processos negociais dos anos transactos», concluindo que «não houve da parte da requerente qualquer comportamento que possa configurar como litigância de má fé, levando a requerente ao processo toda a informação essencial consubstanciadora do esbulho violento, que constitui o objecto principal do processo».

5. Realizada a audiência final, foi julgada improcedente a oposição e, em consequência, foi decidido: a) manter a decisão anteriormente proferida; e, b) absolver a Requerente do pedido de condenação como litigante de má-fé.

6. Inconformada, a Requerida interpôs o presente recurso de apelação, terminando com extensas conclusões[3] que se sintetizam nas seguintes:
«2.ª - É entender da ora Recorrente que tal decisão global (composta pela decisão e pela sentença complementar proferida após a oposição), não só é parcialmente nula por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC, bem como violadora de outras normas legais que melhor se identificam abaixo.
3.ª - Contrariamente ao que resulta dos presentes autos, a sentença proferida após a oposição terá, obrigatoriamente, de ser consentânea e coerente com a decisão que decidiu a providência cautelar, sob pena de violação do disposto nos artigos 372.º, n.º 3, in fine, e 607.º, n.º 4, ambos do CPC, sendo ainda nula atento o disposto no artigo 615.º, alínea c), 2.ª parte do mesmo diploma.
4.ª - A decisão do Tribunal a quo que decretou a providência cautelar de restituição provisória da posse a favor da Requerente (“DECISÃO”) deu como indiciariamente provados factos que são incongruentes com sentença proferida no seguimento da oposição apresentada pela Requerida, ora Recorrente (“SENTENÇA”). (…)
15.ª - É ainda a SENTENÇA nula por ser silente quanto aos fundamentos de facto que justificaram a decisão de improcedência do pedido de litigância de má fé deduzido pela Recorrente no que diz respeito à conduta da Recorrida, nomeadamente por ter ocultado factos relevantes para a boa decisão da causa como sejam o de (i) ter ocultado ao Tribunal que a Requerida lhe havia devolvido de imediato a transferência do montante de € 40.150,00 (artigo 157 da oposição, em contraposição com o artigo 23 da petição inicial); e (ii) que tinha obtido a aprovação da Requerente para avançar com a sementeira (v. facto indiciariamente dado como provado n.º 5 da DECISÃO que decretou a providência cautelar), quando na verdade tal autorização nunca aconteceu (v. artigo 164.º da oposição e factos indiciariamente dados como provados nos n.ºs 10) e 12) da SENTENÇA). […)
18.ª - Por outro lado, existem factos incorretamente dados como indiciariamente provados cuja reapreciação se requer por parte deste Tribunal da Relação de Évora (…)
48.ª - Todos esses factos, [nas conclusões anteriores fundamenta – o que tem sede própria no corpo das alegações –, as razões pelas quais entende que os factos que identifica devem ser modificados/eliminados e aditados], conjugados com os indiciariamente dados como provados pela DECISÃO e SENTENÇA e uma correta interpretação da lei levam a uma decisão diametralmente oposta à que foi tomada pelo Tribunal a quo. Com efeito, tanto a DECISÃO como a SENTENÇA fazem uma interpretação errada de várias normas e questões essenciais à boa decisão da causa como sejam as relativas à posse e às suas medidas conservatórias, bem como as relativas ao contrato de comodato. (…)
74.ª - Ora, como já se indicou acima, já não existia contrato de comodato logo, não existia posse.
75.ª - Por outro lado, mesmo que existisse contrato, tal ordem de retirada em 24 horas (que na prática durou 5 cinco dias, entre os dias 7 de novembro e 12 de novembro), ou seja, de pedido de restituição do imóvel, constitui uma verdadeira denúncia do hipotético contrato renovado que a DECISÃO e a SENTENÇA preconizam. (…)
94.ª - Por último, mesmo que se entendesse que tinha existido uma renovação do primeiro contrato (que não existiu), sempre se dirá que o mesmo foi resolvido quando foi ordenada a restituição do imóvel dos autos. Ou seja, mesmo nesta remota hipótese, e existindo ou não justa causa (o que ao caso nem cabe aferir), certo é que o contrato foi resolvido e, como tal, nem posse, nem legitimidade tem a Recorrida para permanecer no imóvel.
95.ª - Aliás, tal entendimento, não só é ilegal, como inconstitucional por violação do disposto no artigo 62.º, n.º 1 da CRP, constituindo uma verdadeira ofensa ao direito de propriedade da Recorrente.
96.ª - Com efeito, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 62.º, n.º 1 da CRP, o entendimento segundo o qual se concede a posse de um imóvel a um mero possuidor ou detentor, sem ter qualquer tipo de título que o legitime a permanecer num imóvel propriedade de outrem, contra a vontade do seu proprietário, ainda que se entenda que exista, ou tenha existido, um contrato de comodato.
97.ª - Atento o supra exposto, devem a DECISÃO e a SENTENÇA ser revogadas e substituídas por douto Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora que declare improcedente a providência cautelar de restituição provisória da posse à Requerente e, em consequência, devolva o prédio dos autos à sua proprietária, a Requerida, ora Recorrente…».

7. A Requerente apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

8. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[4], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente das questões cujo conhecimento oficioso se imponha.
Assim, as questões colocadas para apreciação por este Tribunal da Relação, tal como as elenca a Recorrente, são as de saber se a sentença recorrida enferma de alguma das invocadas nulidades, se a decisão proferida sobre a matéria de facto deve ser modificada, e se deve ser revogada a sentença recorrida, devolvendo-se o prédio objecto dos autos à sua proprietária.
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III.1. Fundamentação de facto
Na decisão inicial a primeira instância considerou indiciariamente provados os seguintes factos[5]:
«1) Por contrato de 17 de Novembro de 2011 a Requerida deu em comodato à Requerente o prédio rústico denominado Herdade de …, sito na freguesia de São Marcos da Ataboeira, Concelho de Castro Verde, descrito na Conservatória do registo Predial de Ourique, sob os n.ºs ….
2) Tal contrato foi celebrado pelo prazo de um ano e foi sendo sucessivamente renovado.
3) Entre as partes foram celebrados anualmente contratos de compra e venda de pastagem pelo valor de €40.150,00.
4) Não obstante existir alterações na área vendida de pastagem, o preço manteve-se inalterado ao longo dos últimos 8 anos;
5) A Requerente tinha a obrigação de comunicar previamente à requerida o plano das culturas a realizar no ano seguinte, para que fosse o mesmo autorizado pela requerida, o que sempre aconteceu.
6) No ano de 2019 a requerente agiu de igual modo aos anos anteriores, tendo apresentado o plano de sementeiras a realizar, no final de Agosto de 2019;
7) Habitualmente havia por parte da requerida um atraso na formalização dos contratos e da respectiva aprovação do plano de sementeira;
8) No dia 5/11/2019 a requerente comunicou à requerida a urgência na formalização dos contratos tendo também comunicado já ter procedido ao pagamento do montante de €40.150,00;
9) A requerida respondeu que os contratos estavam a ser elaborados pelo departamento jurídico e que a requerente não deveria iniciar a sementeira;
10) Em 7/11/2019, a requerida informou a requerente que deveria retirar toda a maquinaria agrícola e gado da propriedade até às 12h00 do dia seguinte, referindo que o contrato de comodato tinha cessado e que não iria ser renovado;
11) No dia 8/11/2019 representantes da requerida deslocaram-se à propriedade tendo encerrado todos os portões e acesso à mesma com a utilização de umas correntes e cadeados;
12) Deste modo, ficou a requerente impedida de entrar na propriedade».
E da matéria de facto alegada na deduzida oposição, a primeira instância considerou que «resultaram indiciariamente provados os seguintes factos:
1) A requerida é uma organização não governamental, de âmbito nacional, com estatuto de instituição de utilidade pública e com sede na Estrada …;
2) A missão da requerida é a de contribuir para a Conservação da Natureza e para a defesa do ambiente, numa perspetiva de desenvolvimento sustentável, que assegure a qualidade de vida às gerações presentes e vindouras;
3) No desenvolvimento da sua missão, a requerida adquiriu diversos prédios rústicos no concelho de Castro Verde, entre os quais a “Herdade de …”, sito na freguesia de São Marcos de Ataboeira, Concelho de Castro Verde, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourique, sob os n.ºs …;
4) Ficou estipulado na escritura o seguinte: “Disseram os segundos Outorgantes nas suas invocadas qualidades: que, para a sua representada, aceitam a venda nos termos exarados, e, que a sua representada declara que os prédios adquiridos no presente acto se destinam a fins de proteção da natureza no âmbito das Diretivas Comunitárias 79/409 e 92/43, contribuindo assim para a manutenção ou restabelecimento de habitats extremamente ameaçados que abrigam espécies em perigo de extinção e se revestem de uma importância particular para a União Europeia”;
5) As implementações de medidas de carácter agroambiental na herdade tornaram-se uma condição fundamental para a sua conservação como uma área privilegiada para a sobrevivência e reprodução de espécies protegidas, já que a sementeira de determinados cereais e vegetação oferece alimentos às aves, direta ou indiretamente, e ajuda à retenção de humidade nos solos, obstando à desertificação da zona;
6) Por não constituir a sua atividade, a REQUERIDA optou por colaborar com os agricultores locais na implementação e manutenção de condições agroambientais, sob a orientação e controlo da mesma – através de contratos de comodato e compra e venda de pastagens – de forma suficientemente flexível para permitir uma rápida mudança de estratégia, caso ocorressem fatores comprometedores para a conservação da natureza e preservação de aves;
7) Mediante a limitação da exploração agrícola e mediante as especificidades do terreno, e por se encontrar numa Zona de Proteção Especial, foi elaborado um Plano de Gestão da herdade e fixadas um conjunto de regras – v. Plano de Gestão da Herdade de …, constituído no âmbito do Projecto Castro Verde integrado na 2.ª Fase do Projeto de Conservação da Avifauna estepária da região de Castro Verde;
8) A requerida constatou no decurso de 2019 que a requerente não cumpria com as obrigações sobre si impostas por força do contrato celebrado;
9) Foram enviadas diversas mensagens à requerente com o intuito de a mesma cumprir com o contrato e pedidos de correção das medidas tomadas em violação do que havia sido acordado;
10) A requerente subcontratava os serviços de pastoreio e de maquinaria o que dificultava bastante a gestão da requerida na herdade uma vez que era obrigada a tripartir os seus esforços nos contactos diários que eram necessários efetuar para acompanhar os trabalhos desenvolvidos;
11) A requerente começou a semear antes de ter o plano aprovado;
12) Quando a requerida teve conhecimento que a requerente já tinha decidido avançar com as sementeiras, decidiu ordenar a sua saída;
13) A requerente ficou limitada no sentido de poder entrar na herdade quando a requerida decidiu fechar os portões no dia 12.11.2019».
Da matéria de facto alegada na oposição, considerou-se «indiciariamente não provado que a requerida resolveu não contratar com a requerente por mais um ano por causa das situações referidas em 9 e 10».
A primeira instância consignou ainda no final de cada uma das decisões que «a demais matéria (…) não foi aqui considerada por ser conclusiva, de direito ou irrelevante para o presente procedimento cautelar».
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III.2. O mérito do recurso
III.2.1. Das invocadas nulidades
Vem o presente recurso interposto da decisão final proferida no presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse que, na sequência da apreciação da oposição deduzida, decidiu manter a decretada providência de restituição à Requerente – ora Recorrida – da posse sobre o prédio rústico propriedade da Requerida.
Entende a Requerida – ora Recorrente – que “a decisão global (composta pela decisão e pela sentença complementar proferida após a oposição)”, é parcialmente nula por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC, isto porque «a sentença proferida após a oposição terá, obrigatoriamente, de ser consentânea e coerente com a decisão que decidiu a providência cautelar, sob pena de violação do disposto nos artigos 372.º, n.º 3, in fine e 607.º, n.º 4, ambos do CPC».
Vejamos.
De acordo com o preceituado na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Como é entendimento pacífico, este vício da nulidade por falta de fundamentação ocorre quando houver falta absoluta dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, incompleta, não convincente, medíocre ou até errada, porquanto essa situação poderá determinar a sua revogação ou alteração por via de recurso, quando o mesmo for admissível, mas não a respectiva nulidade[6].
Assim, não restam dúvidas de que só a total omissão dos respectivos fundamentos de facto ou de direito, em suma, a completa ausência de motivação da decisão, em violação do preceituado nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º do CPC, pode conduzir à nulidade a que alude a alínea b) do artigo 615.º da mesma codificação.
Na espécie, a Recorrente invoca nas conclusões 15.ª a 17.ª que a sentença é «nula por ser silente quanto aos fundamentos de facto que justificaram a decisão de improcedência do pedido de litigância de má-fé deduzido pela Recorrente no que diz respeito à conduta da Recorrida» (…), «não conhecendo dos factos alegados pela Recorrente a esse título, simplesmente fazendo tábua rasa dos mesmos e dos motivos indicados pela Recorrente na sua oposição».
Percorrida a decisão recorrida, é certo que, depois de enunciar o pedido formulado pela Requerida e de enquadrar jurídica e doutrinariamente o instituto, concretamente quanto ao caso em presença, a julgadora limitou-se a concluir que “no caso dos autos não se vislumbra a adopção de qualquer comportamento pela requerente que possa consubstanciar uma litigância de má-fé, sendo que o facto é que a sua pretensão foi atendida e agora mantida”.
Pese embora a singeleza da afirmação, a mesma tem necessariamente que ser entendida e interpretada no contexto global da decisão proferida, ou seja, com a fundamentação de facto e a decisão jurídica da causa.
Na realidade, quando – como pretende a Recorrente –, a fixação da matéria de facto que incorpora a sentença padecer de deficiência, obscuridade, contradição ou falta de motivação da decisão, aplica-se o regime do artigo 662.º, n.º 2, alíneas c) e d), do CPC, cabendo à parte interessada na sua ampliação ou modificação o ónus de, no recurso da sentença, impugnar a decisão da matéria de facto, como fez (sem prejuízo dos casos em que a Relação pode, mesmo oficiosamente, determinar a ampliação da base factual relevante para a decisão da causa)[7].
Deste modo, considerando que a providência requerida foi julgada procedente, e a factualidade alegada pela requerida foi considerada genericamente “irrelevante para o presente procedimento cautelar”, impõe-se concluir que não se verifica a arguida nulidade por falta de fundamentação da decisão de facto, porquanto a mesma existe e os factos em que a julgadora estribou a sua convicção para concluir no apontado sentido, têm de entender-se como sendo, a seu ver, os que verteu como indiciariamente provados e não provados nos autos. Bem ou mal, quanto aos factos que julgou irrelevantes e não considerou provados ou não provados, é questão diversa que, a ser julgada materialidade imprescindível, poderá determinar a anulação do julgamento para ampliação da base factual da causa, mas não consubstancia a invocada nulidade da sentença.
Invocou ainda a Recorrente a existência de incongruência entre os factos que indica, dados como indiciariamente provados na decisão inicial e aqueloutros que especifica da decisão proferida após a oposição, contradição que entende igualmente configurar nulidade, desta feita por violação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Decorre deste preceito legal, que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Esta causa de nulidade da sentença é facilmente compreensível se atentarmos que os fundamentos, de facto e de direito, que justificam a decisão estão intrinsecamente ligados, impondo-se que a decisão proferida seja o corolário lógico dos respectivos fundamentos.
Assim, se as premissas em que assentou a fundamentação estiverem em contradição com o silogismo judiciário que das mesmas devia decorrer, existe a referida contradição, fulminando a decisão com a nulidade pelo invocado fundamento que ocorre quando «na fundamentação da sentença o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente»[8], sendo então a oposição causa de nulidade da sentença.
Significa o antedito, que a nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão decorre de um vício no raciocínio lógico, não se confundindo com a contradição entre a matéria de facto. Só aquela primeira contradição é causa de nulidade da sentença. Diversamente, a contradição entre a matéria de facto relevante, pode determinar a anulação da decisão proferida, nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, ou a sua modificação em caso de impugnação da matéria de facto, mas não configura nulidade.
Acresce que, a antedita arguição das indicadas nulidades também não se justifica pela discordância da Apelante quanto ao que foi decidido[9], enquadrando-se antes no eventual erro de julgamento, já que aquilo que a mesma pretende salientar é que a decisão tomada pelo Tribunal a quo está errada, tanto quanto à formação da sua convicção quanto aos factos impugnados, como relativamente ao erro de julgamento sobre a vertente jurídica da causa.
Concluindo, no caso em apreço, a sentença recorrida não enferma das invocadas nulidades por contradição entre os fundamentos e a decisão, nem por omissão de pronúncia, cumprindo antes aquilatar seguidamente, conforme igualmente suscitado pela Recorrente, se nessa apreciação, a julgadora incorreu ou não em erro de julgamento[10].
Improcedem, pois, as nulidades arguidas.
*****
III.2.2. Da modificação da matéria de facto
Na situação em presença, como dito, a Recorrente aponta contradições entre os pontos de facto que elenca da decisão inicial e outros que identifica e decorreram da prova produzida após a deduzida oposição, apontando incongruências entre os mesmos e concluindo que ao proceder dessa forma, violou a sentença recorrida (vista como um todo) o disposto nos artigos 372, n.º 3 (parte final) e 607.º, n.º 4, do CPC, sendo ainda nula uma vez que tal contradição resulta numa ambiguidade que torna a decisão ininteligível ex vi do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC.
Como vimos, a sentença recorrida não enferma da invocada nulidade por contradição entre matéria de facto, cumprindo consequentemente aquilatar, antes de mais, e porque a Recorrente deu cumprimento aos ónus a seu cargo estabelecidos no artigo 640.º do CPC, se, como a mesma considera, «a decisão do Tribunal a quo que decretou a providência cautelar de restituição provisória da posse a favor da Requerente (“DECISÃO”) deu como indiciariamente provados factos que são incongruentes com a sentença proferida no seguimento da oposição apresentada pela Requerida, ora Recorrente (“SENTENÇA”)», sendo que «contrariamente ao que resulta dos presentes autos, a sentença proferida após a oposição terá, obrigatoriamente, de ser consentânea e coerente com a decisão que decidiu a providência cautelar».
Vejamos.
O artigo 372.º do CPC rege quanto ao contraditório que pode ser exercido pelo requerido subsequentemente ao decretamento da providência, sendo-lhe lícito, em alternativa, e nos termos melhor descritos nas alíneas a) e b) do respectivo n.º 1, recorrer ou deduzir oposição, neste caso, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência, opção que na situação em apreço foi tomada pela Requerida, alegando factos e juntando prova documental e testemunhal que, a seu ver, justificavam no caso em presença a revogação da providência anteriormente decretada, nos termos previstos no n.º 3 do preceito, de acordo com cuja previsão, esta decisão em que o juiz decide sobre a manutenção, redução ou revogação da providência que anteriormente havia decretado, constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida.
Louvando-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 16.03.2017[11], defende a Recorrente que «…numa situação como a do caso concreto, tendo os Requeridos alegado, na sua oposição, factos que poderiam pôr em causa os fundamentos da providência cautelar decretada, se impunha ao julgador, no que respeita à decisão a proferir sobre a matéria de facto, não só elencar quais os factos da oposição que foram dados como provados e quais os não provados e indicar, relativamente a uns e a outros, os fundamentos que serviram de base à formação da sua convicção, mas ainda especificar quais os factos respeitantes à decisão que decretou a providência que se mantêm provados, ou indicar, pelo menos, quais destes factos resultaram infirmados, contrapondo, em sede de apreciação crítica das provas, às novas provas produzidas, as provas em que se tenha baseado a decisão cautelar», concluindo assim que «constituindo a decisão de manutenção, redução ou revogação da providência parte integrante da inicialmente proferida, tal decisão tem de ser vista como uma só e, como tal, deverão ser ambas congruentes entre si».
Conforme esclarecem JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE[12] «[d]e acordo com o n.º 3, produzidas as provas necessárias (art. 367-1) e fundamentadamente declarados pelo juiz os factos que julga provados e os que julga não provados (arts. 295 e 607-4), o juiz profere a decisão de manter, reduzir ou revogar a providência anteriormente decretada, considerando-se esta nova decisão complemento e parte integrante da inicialmente proferida». Efectuando a distinção entre esta formulação e aquela que constava do DL 329-A/95, onde se estatuía que «a nova decisão substituía, para todos os efeitos, a inicial», precisam os citados Autores que na perspectiva actual, com origem no DL 180/96, «o núcleo da decisão, mesmo quando a oposição desemboque na revogação (…) continua a ser a primeira decisão», enquanto naqueloutra perspectiva «a decisão proferida em contraditório, revestindo dignidade que a decisão sem contraditório não tem, sobrepõe-se à primeira, mesmo quando a mantém, absorvendo-a e a ela retroagindo os seus efeitos». Mais adiante, concluem os Ilustres Autores que «a questão é mais teórica do que prática, mas seria mais correto dizer que a decisão de manutenção completa a decisão mantida, enquanto a de revogação se lhe substitui e a de redução comunga nas duas qualidades».
Concordando integralmente com a visão plasmada na anotação ao preceito em questão relativamente ao distinguo entre um e outro modelo, precisamente pelas razões decorrentes da cristalina explicação efectuada pelos citados Autores quanto a cada uma das perspectivas do regime, já não subscrevemos totalmente o entendimento de que “a questão é mais teórica do que prática”, isto porque, a nosso ver, tem reflexos naquilo que a Recorrente qualifica como a necessária congruência entre a matéria de facto da decisão inicial e da proferida após o contraditório.
Expliquemos.
Para nos ajudar à compreensão do regime instituído, importa ainda lembrar as judiciosas observações tecidas por LOPES DO REGO[13], em anotação ao correspondente artigo 388.º, na redacção da codificação processual civil então vigente, salientando a profunda reformulação do regime de oposição ao decretamento das providências cautelares, regulando as especialidades que ocorrem nos casos em que se verificou a dispensa da prévia audiência do requerido, cuja tramitação «obedece estritamente ao estatuído acerca do formalismo da oposição que teria sido pertinente deduzir no momento próprio, se tivesse ocorrido prévia audição do requerido, e cumprindo, de seguida, ao juiz apreciar tal oposição superveniente juntamente e em conexão com a prova produzida pelo requerente, gravada ou registada (…), mantendo, reduzindo ou revogando, conforme os casos, a providência inicialmente decretada», por contraponto ao anteriormente vigente sistema dos “embargos” à providência que «se convertiam numa verdadeira acção declarativa sumária enxertada no procedimento cautelar».
O ponto está, portanto, em saber se a forma usada pelo julgador para efectuar esta reponderação da decisão tomada em consequência da factualidade e prova carreada ao procedimento cautelar por via da oposição, exige sempre uma decisão como a preconizada pelo citado aresto da Relação de Guimarães ou, ao invés, conforme se considerou no acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 25.06.2015[14], «em procedimento cautelar decretado sem audição prévia do requerido, havendo oposição deste, não tem o Tribunal que se pronunciar novamente sobre a matéria de facto anteriormente dada como indiciariamente provada», precisamente em situação em que, invocando a violação do artigo 368.º, n.º 3, do CPC, a recorrente igualmente se insurgira contra o entendimento seguido pelo Senhor Juiz “a quo”, de apenas considerar na sentença os factos relativos à matéria da oposição, «defendendo que a matéria da primeira audiência é parte de um todo, que se completa com a demais matéria ouvida aquando da oposição e que ao afastar liminarmente os factos indiciariamente provados na primeira fase, não os analisando criticamente sequer, o julgador acaba por condicionar a boa decisão da presente providência».
Julgou-se neste aresto que a recorrente não tinha razão, aduzindo a seguinte fundamentação:
«A primitiva decisão sobre a matéria de facto foi dada com base nos elementos probatórios então produzidos e não há agora que reapreciá-la.
A oposição tem por finalidade a apresentação de outros factos que não foram tidos em conta pelo Tribunal no primeiro momento, dado que o requerido ainda não tinha sido ouvido, que tenham a virtualidade de, uma vez provados, determinarem o afastamento ou a redução da providência cautelar decretada (cfr. acórdão do STJ de 6/06/2000, CJ. STJ Ano VIII – Tomo II, pág. 100).
Como escreve António Abrantes Geraldes (in Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, Liv. Almedina, pág. 232), o objectivo fundamental da defesa por oposição não é o de proceder à reponderação dos meios de prova produzidos na primeira fase, actividade que mais se ajusta ao recurso da decisão em cujo âmbito se inscreva a reapreciação do julgamento sobre a matéria de facto.
O que se pretende com a oposição é carrear para os autos novos elementos que levem o julgador a formar uma convicção diferente, ou mesmo oposta, à que fora tomada com base nos primitivos elementos, isto sem prejuízo de uma valoração dos meios de prova produzidos na primeira fase e no âmbito de oposição, com vista a uma melhor ponderação da decisão e valoração dos novos meios de prova ou contra-prova.
Conforme resulta da doutrina e da jurisprudência, o julgador apenas terá de ter em conta os factos novos que foram produzidos com a oposição. E serão esses factos novos que poderão ser susceptíveis de infirmar o juízo que esteve na base da decisão cautelar, não tendo o Tribunal que se pronunciar novamente sobre a matéria de facto anteriormente dada como indiciariamente provada (cfr. acórdão da RP de 28/06/2001, proc. nº. 0130400, acessível em www.dgsi.pt)».
Se bem atentarmos, esta interpretação decorria já do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.06.2000[15], no qual estava em causa apreciar se era ou não legalmente exigível que fosse o mesmo juiz a apreciar a prova produzida no arresto e a prova produzida na oposição àquele deduzida, concluindo o nosso mais Alto Tribunal que «nada impede que seja um outro juiz a decidir a nova matéria de facto, desde que fosse ele a assistir à produção da nova prova». Discorrendo no caso sobre a tramitação do procedimento cautelar de arresto, que é sempre decretado sem audiência da parte contrária, explicou-se que «[f]ixada a matéria de facto e proferida decisão a aplicar o direito aos factos, decretando-se ou não o peticionado arresto, encerra-se a primeira parte deste procedimento cautelar.
Sendo decretado o arresto, como foi o caso dos autos, o requerido, notificado da decisão, pode deduzir oposição – artigo 388, n. 1, alínea b).
Deduzida esta oposição, abre-se efectivamente o contraditório, contraditório esse que não põe em causa a anterior fixação da matéria de facto, pois que a oposição tem por finalidade a apresentação de outros factos que não foram anteriormente tidos em conta, dado que o requerido ainda não havia sido ouvido, de modo a afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução.
Com esta segunda fase da providência cautelar não se põe em causa a fixação da matéria de facto anteriormente consignada nos autos, a qual, conjugada com os novos factos, há-de levar à decisão de manter ou não o arresto anteriormente decretado».
Este entendimento veio a ser mais recentemente expresso novamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido em 31.10.2017[16], no qual – convocando-se no mesmo sentido o acórdão de 13.03.2001 –, se afirmou que, sendo peça autónoma, «esta decisão última, de manutenção, redução ou revogação do arresto, tem como substracto para além da apreciação dos requisitos justificativos daquela providência, a apreciação dos factos e das provas que justifiquem, ou possam afastar e/ou reduzir a mesma, mas como estamos em sede de oposição, é a decisão desta que será objecto de recurso e, não como entendeu o segundo grau, a primeiramente tomada, embora se possa fazer apelo à fundamentação da mesma, como é óbvio, já que o próprio procedimento de oposição visa a se o seu contraditório subsequente», e sublinhou que «tendo a oposição ao arresto como finalidade a alegação de factos e/ou produzir meios de prova que não tenham sido levados em conta pelo Tribunal na decisão que o decretou, como impõe a alínea b) do nº1 do artigo 372º do CPCivil, embora a fixação da matéria de facto anteriormente consignada não seja posta em causa, a mesma deverá ser conjugada com os novos factos alegados, daí se extraindo a manutenção, redução ou revogação do arresto anteriormente decretado».
Consideramos ser esta a interpretação do regime que melhor se compagina com o actual figurino do contraditório subsequente ao decretamento da providência, e que, a nosso ver, se harmoniza com a questão decidida no citado aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 06.06.2000, a respeito da possibilidade legal de a oposição ser decidida por outro juiz, como claramente decorre do preceituado no artigo 364.º, n.º 2, do CPC, que a respeito da relação entre o procedimento cautelar e a acção principal estabelece que "requerido antes de proposta a acção, é o procedimento apensado aos autos desta, logo que a acção seja instaurada; e se a acção vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da acção com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa". Neste caso, como se salientou nesse acórdão, «há apenas que processar os termos subsequentes e não que anular os termos anteriores».
Não obstante, importa precisar que se tem de compreender qual é justamente o sentido da afirmação de que “a matéria de facto anteriormente fixada não é posta em causa”, já que, conforme o Supremo Tribunal de Justiça, também sublinhou no acórdão de 06.07.2000[17], a decisão inicialmente proferida no procedimento cautelar, sem contraditório do requerido, é uma mera “decisão provisória”, insusceptível de constituir caso julgado que precluda a ulterior apreciação jurisdicional da oposição deduzida supervenientemente pelo requerido, constituindo a segunda decisão complemento ou parte integrante da primeira, pelo que – emitida esta – o procedimento passa a ter uma decisão unitária.
Assim, o entendimento que extraímos daquela afirmação é o de que, visando o contraditório subsequente ao decretamento da providência afastar a apreciação anteriormente efectuada, por via da impugnação motivada dos factos alegados pelo requerente, da alegação de novos factos e/ou da dedução de novos meios de prova, que não foram tidos em conta pelo tribunal aquando daquela primeira decisão, quando se diz que a matéria de facto anteriormente fixada em fundamento da decisão decretada não é posta em causa, significa que, não é ali modificada tal como foi então consignada, porque a primeira fase do procedimento está encerrada, mas não significa que não seja afastada ou infirmada pela prova produzida na oposição.
Na realidade, na segunda fase da providência que se abre com a dedução da oposição, são produzidos os novos meios de prova carreados aos autos pelo requerido, dando-se como provados ou não provados os factos que foram fundamento da oposição, e que são apreciados juntamente e em conexão com a prova produzida pelo requerente, podendo até o resultado da oposição, em caso de mera impugnação, ser apenas o declarar não provada toda a matéria que havia fundado o decretamento da providência. Por isso, quanto à motivação, várias situações podem ocorrer, dependendo da amplitude do contraditório deduzido. Deste modo, e por mero exemplo, se foram alegados factos contrários aos inicialmente aduzidos para o decretamento da providência ou factos fundadores de uma excepção peremptória, o tribunal não terá que reponderar os meios de prova anteriormente produzidos, naturalmente diversos daqueloutros, porque respeitantes a factos novos. Ao invés, se apenas forem apresentados meios de prova diversos dos já produzidos quanto aos factos alegados pelo requerente, estamos perante contraprova e, consequentemente, na sua motivação, ao valorar os novos meios de prova, naturalmente que o julgador os deverá sopesar no confronto com os meios de prova produzidos na primeira fase, designadamente motivando as razões que o levaram à manutenção da convicção inicialmente formada ou à formação de uma convicção essencialmente diversa daquela.
Por isso se precisou que a matéria de facto inicialmente fixada não é modificada tal como foi consignada, o que não equivale a dizer que a mesma não possa ser total ou parcialmente infirmada pela subsequente prova de matéria de facto que a afaste ou altere, levando à redução ou revogação da decisão proferida previamente ao exercício do contraditório. Assim se entende a menção legal constante no final do n.º 3 do artigo 372.º do CPC, de que esta nova decisão constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida. Deste modo, se a factualidade que decorre do exercício do contraditório for diversa daquela inicialmente fixada, precisando-a ou modificando-a, é esta matéria provada ou não provada que funda a decisão final que, ponderando toda a prova produzida, decide manter, reduzir ou revogar a decisão de decretamento da providência, completando-a nas duas primeiras situações, ou substituindo-a, na última.
Voltando, então, ao ponto em que referimos que a questão da substituição ou complemento da decisão anterior não se nos afigura ser meramente teórica, para dizer que se a nova decisão decorrente da oposição deduzida substituísse, para todos os efeitos, a inicial, então esta teria que ser proferida em moldes semelhantes à decisão proferida com contraditório inicial. Seria, então, “reformulada” para acomodar tanto a fundamentação de facto, como a jurídica, à matéria de facto e à prova produzida com a oposição, “absorvendo-a”, porque se imporia ao julgador da oposição uma espécie de reapreciação da matéria de facto anteriormente apreciada com meios de prova diversos. Significa isto que, esta decisão final seria una e, como tal, necessariamente congruente.
Porém, no figurino vigente não é assim, e tal é absolutamente evidente nas situações em que, da prova produzida no exercício do contraditório por banda do requerido, resulta a revogação e mesmo a redução da providência anteriormente decretada, caso em que, arriscamos dizer, necessariamente, os factos provados na decisão inicial não são “congruentes” com os que vieram a ser demonstrados após a oposição, porquanto os novos elementos probatórios trazidos ao processo pelo requerido foram bastantes para alterar a convicção anteriormente formada pelo julgador, revertendo-a ou modificando-a em moldes tais que determinaram a alteração da decisão inicialmente proferida.
Apesar de menos óbvio, o mesmo se passa no caso em que a prova produzida na oposição não foi bastante para modificar a decisão da providência anteriormente decretada, situação em que a discrepância da base factual entre um momento e outro não será tão evidente, mas não implica que exista total congruência entre a factualidade provada na decisão inicial e na proferida subsequentemente ao exercício do contraditório. Apenas determina que, nesse caso, relativamente a matéria de facto conexa e discrepante, prevaleça a decisão de facto decorrente da sua fixação após o exercício do contraditório, porque é esta ulterior apreciação jurisdicional que efectua a ponderação global que vai sustentar a decisão que, tudo sopesado e concatenado, irá manter, reduzir ou revogar a decisão originária.
Aliás, não vemos que o excerto da visão do preceito sufragada por ABRANTES GERALDES[18], e convocada pela Recorrente, sustente algo diverso quando refere que “… não se trata de facultar ao mesmo tribunal a reapreciação da decisão, a partir dos mesmos elementos, mas de conferir a possibilidade de revisão da convicção anteriormente formada, através de novos meios de prova ou de novos factos com que o tribunal não pôde contar”.
E como se reflecte o que vimos de dizer na reapreciação da matéria de facto em sede de recurso?
Quando o julgador, mercê dos novos meios de prova apresentados com a oposição, revê a convicção formada e altera a fixação dos factos da decisão originária são estes factos modificados que fundamentam a decisão final, não havendo que proceder à alteração dos inicialmente fixados, quando o Recorrente pretende a sua modificação para os termos em que já vem efectuada da primeira instância.
Quando os factos inicialmente estabelecidos não são conexos com os da decisão final, tanto aqueles inicialmente fixados como estes estabelecidos quanto à matéria alegada na oposição, podem ser impugnados e objecto de reapreciação pela segunda instância, nos termos previstos no artigo 640.º do CPC.
Consequentemente, e revertendo o que vimos de referir à pretendida modificação da matéria de facto, com eliminação dos factos 11) e 12) da DECISÃO[19], para prevalecer o ponto 13) da SENTENÇA, no qual foi indiciariamente dado como provado que “13) A requerente ficou limitada no sentido de poder entrar na herdade quando a requerida decidiu fechar os portões no dia 12.11.2019”, óbvio se torna que, havendo discrepância entre o teor daquela factualidade da primeira decisão e a que decorre da decisão final, que a complementa e dela constitui parte integrante, é esta factualidade que prevalece sobre aquela, por ter resultado provada na apreciação jurisdicional decorrente do contraditório, não havendo, pois, que eliminar a primeira, porque esta substitui-a quanto à data considerada, sem necessidade de modificação daquela em sede de recurso, porque o facto que tem de ser considerado como provado é o que resulta da oposição, deixando-se de considerar o que ficou provado inicialmente, e que a decisão final afastou.
As considerações tecidas valem igualmente a respeito da suscitada discrepância entre os factos indiciariamente provados em 5) da DECISÃO e 11) da SENTENÇA, relativamente à obrigação de comunicação e à autorização. Assim, concatenando o que consta no ponto 5) da decisão originária o que estava em causa era o cumprimento da obrigação de comunicação do plano de culturas por parte da Requerente, comunicação que sempre aconteceu, por parte daquela, para aprovação pela Requerida, que igualmente sempre aconteceu, até ao ano de 2019, posto que é este que está em causa, e, nesta parte, prevaleceria sempre, pelas razões já aduzidas, o que consta especificado no n.º 11 da SENTENÇA. Destarte, não existe qualquer ambiguidade, porquanto da conjugação entre uma e outra matérias de facto provadas, o que decorre é o que já consta da decisão, em 5), complementado com o que decorreu da prova produzida na oposição de que (em 2019) a “11) A Requerente começou a semear antes de ter o plano aprovado”.
Relativamente aos factos respeitantes ao pedido que a Requerida formulara na oposição, de condenação da Requerente como litigante de má fé, verifica-se que, pese embora tenha invocado o vício da nulidade da sentença com este fundamento – o qual não ocorre, como acima decidimos –, em momento algum das 97(!) conclusões com que encerrou a minuta recursória, a Recorrente pediu a revogação da decisão recorrida que absolveu a ora Recorrida daquele pedido. Na realidade, consignou-se no dispositivo da sentença: «A) Decide-se manter a decisão anteriormente proferida nos presentes autos; B) Absolve-se a requerente do pedido de condenação como litigante de má fé», sendo que a conclusão final (97) tem o seguinte teor: «devem a DECISÃO e a SENTENÇA ser revogadas e substituídas por douto Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora que declare improcedente a providência cautelar de restituição provisória da posse à Requerente e, em consequência, devolva o prédio dos autos à sua proprietária, a Requerida, ora Recorrente». Deste modo, não tendo sido formulado qualquer outro pedido a respeito da litigância de má fé, mister é concluir pela inutilidade do preconizado aditamento à matéria de facto considerada na sentença recorrida, com tal finalidade.
Prosseguindo, então, quanto aos factos a reapreciar.
Pretende a Recorrente que não pode ser dado como provado o facto indiciariamente dado como provado em 2) da DECISÃO, quanto ao seu segmento final que sublinhamos (como se depreende do alegado), de acordo com o qual, o contrato [reporta-se ao número 1)], foi celebrado pelo prazo de um ano e foi sendo sucessivamente renovado, desde logo, atentos os documentos 1 a 8 juntos com a petição, conjugados com o depoimento da testemunha Rita Silva.
Na motivação da matéria de facto da decisão, referiu a julgadora que «os factos que foram julgados indiciariamente provados resultaram desde logo dos documentos juntos aos autos pela Requerente», sendo que «as declarações de parte do legal representante da requerente relevaram para prova dos factos relativos à relação contratual estabelecida entre as partes e bem assim das circunstâncias relativas à perda do acesso ao prédio».
Vejamos.
Conforme já se referiu no relatório, no requerimento inicial, a Requerente fundou a sua invocada posse sobre o prédio rústico em causa, no contrato denominado de Comodato, alegadamente celebrado entre requerente e requerida, em 10 de Maio de 2011, que tem vindo a ser celebrado e renovado anualmente desde então, paralelamente com outros tantos denominados contratos de compra e venda de pastagem «conforme docs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 que se juntam».
Nas suas declarações de parte, o legal representante da Requerente, referiu a este respeito que explora a herdade desde 2011, sendo que quando começaram as negociações falavam em arrendamento, muito embora, por imposição da Liga, tenham sido celebrados estes contratos, sendo que se tratava de um arrendamento, desde logo porque o preço era muito superior àquele por que cedia as pastagens para o gado do Sr. Á… (por 15.000,00€); insistiu com a Liga para que fosse contrato de arrendamento mas eles não aceitaram. Apesar disso, esteve sempre continuamente na herdade, sempre pagou a renda, que foi sempre do mesmo valor apesar de a área de pastagem variar, e concorria a um programa comunitário com o IFAP que era por 5 anos, daí a permanência ininterrupta na propriedade. Pensa que ao princípio era até imperativo, depois passou a haver autorização da Liga para celebração desse contrato. Acresce que, e relativamente ao que ocorreu em 2019, disse o declarante que «os contratos eram sempre feitos em Outubro/Novembro “faziam questão que não começássemos a semear” mas o atraso burocrático da Liga causava grande prejuízo. Assim, apresentaram o plano mais cedo, logo em Agosto, para terem tempo porque se atrasavam com a parte burocrática. Disseram-lhe “estamos a fazer os contratos”, que semeia “só depois de assinar, e tal”, mas “decidiu iniciar e eles decidiram fechar a propriedade com os animais lá dentro e tudo”. Mais adiante referiu ainda “muito embora tivessem iniciado a renovação do contrato, como eu comecei a semear e entendiam que não o podia fazer, entenderam encerrar a propriedade”…
E tanto bastaria para concluirmos que o segmento final do número 2 da matéria de facto provada, se mostra afastado quer pelos documentos juntos aos autos pela Requerente, quer pelas declarações de parte do seu legal representa que expressamente se referiu à celebração anual de novos contratos, ainda que semelhantes, referindo-se inclusivamente no artigo 8.º da sua resposta ao pedido de condenação como litigante de má-fé a que os documentos juntos pela requerida “não constituem qualquer prova ou fundamento que pudesse indiciar no comprometimento da negociação a ser formalizada pelo contrato”. Portanto, não há quaisquer dúvidas de que a própria Requerente reconhece a celebração anual de novos contratos. Aliás, a mesma foi igualmente explicada pelo depoimento da testemunha R…, responsável pela delegação da requerida em Castro Verde, que o disse cristalinamente, afirmando “que os contratos eram enviados ao Dr. C… para ele rever se estavam de acordo com aquilo que ele, se ele estava de acordo ou não com os mesmos”. Mais aduziu que a cláusula respeitante à autorização está lá porque a Liga para poder fazer a gestão nos moldes em que necessita não pode fazer contrato de arrendamento porque tem gestão diária da propriedade quanto à conservação da natureza. Mantêm-se activos dentro da propriedade, estão sempre atentos ao que a academia está a produzir e fazem ajustes à produção que está a ser feita para conseguirem garantir que os objectivos são cumpridos, e o arrendamento rural não lhes permitiria cumprir as suas próprias obrigações, refutando que alguma vez tenha sido levantada alguma objeção por não ser um contrato de arrendamento rural. Igualmente a testemunha Á… confirmou que comprava à Requerente as pastagens da herdade de B… e que a L… sabia que o gado era dele porque vigiavam a herdade para indicarem o sítio para onde o gado poderia ou não ir, diziam-lhe para o gado não ir para alguns locais, avisavam-no e ele punha vedação eléctrica, gestão diária igualmente confirmada pela testemunha Rui, conforme abaixo melhor se explicará.
Nestes termos, desde logo em face da prova documental produzida, identificada como docs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8, juntos com o requerimento inicial, da qual decorre que entre as partes não foi celebrado um único contrato, que se renovou por iguais períodos, mas sim oito contratos, todos com uma cláusula estabelecendo o seu início e termo, e todos subscritos por ambas as partes, impõe-se a modificação do número 2 da matéria de facto provada, para que do mesmo passe a constar a factualidade decorrente dos indicados meios de prova, nos seguintes termos:
2) Tal contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, com início em 15 de Setembro de 2011 e termo em 14 de Setembro de 2012, tendo as partes outorgado sucessivamente mais 7 «contratos de comodato», de teor semelhante:
i. em 26 de outubro de 2012, com início em 26 de outubro de 2012 e termo em 14 de setembro de 2013;
ii. em 28 de outubro de 2013, com início em 28 de outubro de 2013 e termo em 14 de setembro de 2014;
iii. em 20 de outubro de 2014, com início em 20 de outubro de 2014 e termo em 14 de setembro de 2015;
iv. em 30 de outubro de 2015, com início em 30 de outubro de 2015 e termo em 14 de setembro de 2016;
v. em 27 de outubro de 2016, com início em 27 de outubro de 2016 e termo em 14 de setembro de 2017;
vi. em 23 de outubro de 2017, com início em 23 de outubro de 2017 e termo em 14 de setembro de 2018;
vii. em 15 de novembro de 2018, com início em 15 de novembro de 2018 e termo em 14 de setembro de 2019.
Ademais, porque tal releva para compreensão da qualificação jurídica dos acordos celebrados entre as partes, ao abrigo do disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC, este Tribunal considera ainda assente que:
2-A) Em todos os referidos contratos consta no n.º 2 da cláusula 1.ª: “durante o ano de vigência deste contrato”, e na cláusula 6.ª consta a menção à possibilidade de as partes celebrarem contrato de compra e venda de pastagem e o acordo quanto à utilização do restolho.
2-B) Na cláusula 5.ª de cada um dos indicados contratos consta que a segunda contraente obriga-se nomeadamente a: «a) acordar com a primeira contraente os termos e condições do cultivo, bem como a parcela de terreno a cultivar; b) não cultivar o terreno, enquanto não forem acordadas as respectivas áreas e condições de cultivo», seguidas de várias alíneas onde se mostram indicados, designadamente, o tipo de sementeiras a praticar, a sua área máxima, a forma de efectivar a lavoura, os tratamentos, e as mondas.
2-C) A cláusula 11.ª de todos os contratos refere que o contrato “tem natureza gratuita e em caso algum se entenderá como consubstanciando um contrato de arrendamento ou qualquer outro contrato oneroso”.
Ainda ao abrigo dos citados preceitos, e do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, da prova documental produzida pela Requerente, impõe-se igualmente a modificação oficiosa do facto provado em 3), para que do mesmo passe a constar a factualidade relevante, considerando este Tribunal também assente que:
3) Nas mesmas datas e pelos mesmos períodos, foram celebrados entre as partes contratos de compra e venda de pastagem “pelo prazo de um ano”, pelo valor de 40.150,00€, a pagar no momento da assinatura do contrato.
3-A) Em todos estes contratos consta uma cláusula com a referência à possibilidade da celebração de contrato de comodato e o acordo quanto à utilização do restolho.
3-B) Na cláusula 4.ª similar a vários dos contratos de compra venda de pastagens, consta que a REQUERENTE fica obrigada a:
a) Manter a área acordada sob pastoreio de ovinos, caprinos e/ou bovinos;
b) Respeitar o limite máximo de encabeçamento de 0,2 (zero vírgula dois) cabeças normais por hectare de superfície forrageira, entendendo-se por cabeça normal 1 (um) bovino ou 6,6 (seis vírgula seis) ovinos e/ou caprinos;
c) Não encabeçar as pastagens com suínos;
d) Reservar uma parcela do pastoreio, com uma área mínima de 37 hectares, que permaneça sem gado entre 1 de janeiro a 30 de junho;
e) Não efetuar qualquer tipo de controlo de predadores e não utilizar qualquer tipo de produto tóxico (veneno) na propriedade;
f) Não permitir o acesso nem efetuar o aparcamento do gado nas áreas urbanas existentes (nomeadamente na área do monte de B… e nas paredes e torres de nidificação);
g) Evitar o acesso do gado e o abeberamento direto na ribeira, charcas e charco temporário, recorrendo à colocação de bebedouros específicos para o abeberamento do gado;
h) Responsabilizar-se por eventuais danos causados pelo referido gado na propriedade e áreas adjacentes, bem como, nas vedações existentes, incluindo portões; e
i) Circular com viaturas apenas pelos caminhos existentes».
Relativamente ao Facto 6) da DECISÃO, dissente a Recorrente do seu segmento final, na parte em que se considerou indiciariamente assente que o plano de sementeiras foi apresentado no final de Agosto de 2019.
Nas declarações de parte o legal representante da Requerente referiu que no ano de 2019, o plano até foi entregue mais cedo, logo em Agosto, para que a burocracia na celebração do contrato não atrasasse as sementeiras, sendo que na própria motivação da decisão inicial, a “testemunha C… descreveu a relação contratual estabelecida entre as partes, referindo que no ano de 2019 a requerente remeteu o plano anual de sementeiras à requerida entre Agosto e Setembro, como habitualmente (…).” Esta testemunha era considerada pela L… como “o ponto de contacto para as áreas a semear”, sendo impressiva a precisão com que a testemunha R… refere a data concreta da entrega, e o motivo pelo qual se recorda desse facto. Perguntada sobre se sabia “quando é que lhe foi entregue o plano de sementeiras?”, respondeu “sim, o plano de sementeiras foi entregue no dia 25 de Setembro. E tenho a certeza da data por um motivo porque, nós nesse dia, nós estávamos já na campanha eleitoral para as eleições legislativas, e a L… nesse dia ia receber um partido político no âmbito da campanha eleitoral que estava a decorrer, e nós estávamos um bocadinho atarefados nesse dia com os preparativos de irmos receber essa comitiva conjunta com os jornalistas e tudo isso; e o Senhor C… que foi quem levou esse plano de sementeiras, também ele estava com pressa, portanto, ele basicamente não tinha combinado comigo, entregou-me, trocámos ali algumas palavras rapidamente no corredor, nem sequer nos sentámos para conversar porque tanto ele como eu também naquele dia tínhamos alguma, outros compromissos e não estávamos com disponibilidade. Portanto, sei que foi de facto nesse dia por ter coincidido com a data em que esse partido fez a visita”.
Assim, por uma questão de precisão, justifica-se a modificação do facto 6) da DECISÃO que passa a ter a seguinte redacção:
6) “No ano de 2019 a Requerente agiu de modo igual aos anos anteriores, em que apresentara aquele plano entre Agosto e Setembro, tendo entregue o plano de sementeiras no dia 25 de Setembro”.
Pretende ainda a Recorrente que não foi considerada pelo Tribunal a matéria de facto, que indica, e que decorre dos depoimentos das testemunhas na parte que transcreve.
Pese embora pelas razões acima aduzidos, tais factos não importem na sua globalidade para a questão da invocada litigância de má fé, trata-se parcialmente de matéria de facto instrumental ou complementar que importa considerar para uma melhor compreensão da factualidade atinente à qualificação jurídica do acordo entre as partes e à consequente determinação da (in)existência do requisito da providência respeitante à alegada posse da Requerente.
Na realidade, extrai-se da motivação da SENTENÇA que “As testemunhas R… e RC… confirmaram ter constatado que no dia 5 de Novembro de 2019 a requerente iniciou as actividades de sementeira, sem que o respectivo plano tivesse sido aprovado pela requerida. Verificando que tal actividade continuava mesmo após a requerida se ter oposto a tal, foi enviado um email à requerente fixando-lhe o prazo de vinte e quatro horas para sair do prédio”.
Trata-se de matéria que complementa a factualidade provada em 8 e 10 da decisão inicial e em 11 e 12 da decisão final, até desde logo parcialmente admitida pela requerente no artigo 34.º do requerimento inicial, quando refere “que até 8/11/2019 tinham sido semeados cerca de 100Ha dos 256Ha que estavam propostos” artigo 34.º do requerimento inicial, assumido nas declarações de parte e vivamente relatado pelas testemunhas R… e R C.
Com efeito, a testemunha R…, instada a explicar o que é que se passou para a L… ter decidido fechar os portões, referiu que “o que aconteceu efectivamente este ano foi que eles decidiram começar a fazer as sementeiras e quando nós verificámos que eles tinham começado a fazer as sementeiras, portanto, o nosso vigilante, o R…, detectou essa situação e confirmou comigo que não haviam contratos assinados e que eles não tinham tido a aprovação do plano de sementeiras para fazer essas sementeiras e tanto eu como o Rui pedimos ao Sr. J… no dia 5 de Novembro que parasse as sementeiras que tinha iniciado. O que se verificou foi que no dia 6 de novembro as sementeiras continuavam a acontecer. O R… interpelou o Sr. J… para que parasse. Ele disse que tinha autorização para fazer os trabalhos e continuou a fazer as sementeiras”. Perguntada: “Autorização de quem? Respondeu: “Deduzo que do Dr. C…”.
Mais esclareceu que “os trabalhos de sementeira começaram no dia 5 de Novembro e eu creio que depois não tiveram nenhum interregno. No dia 6 continuaram, e continuaram dia 6, dia 7, dia 8. Portanto, nós portanto, a L…, no dia, portanto, no dia 5, na sequência de termos verificado as sementeiras quando a…, ou seja, nós falámos com o Sr. J… no dia 5 quando verificámos as sementeiras. E, após essa situação, recebemos um email, portanto, posteriormente, do Dr. C… a informar que tinha iniciado as sementeiras ou que iam iniciar as sementeiras e que iam fazer a transferência bancária do valor do contrato connosco. Eu pedi na altura que não fizesse a transferência e que parassem as sementeiras uma vez que as mesmas não estavam autorizadas. Mas as sementeiras continuaram, daí que no dia 6 tenhamos pedido o apoio da GNR para ver se poderiam fazer alguma coisa. No dia… não tenho presente se foi no dia 6 se foi no dia 7 de novembro, a L… pediu novamente que fossem paradas as sementeiras na propriedade ao Dr. C…”. Neste momento, o Ilustre Mandatário refere que “está junto aos autos um email de dia 7/11 onde é dado um prazo de 24 horas para se retirar a maquinaria e o gado”, prosseguindo a testemunha confirmando “Sim, sim porque como o que estava a acontecer era que eles continuavam com … a lavrar e a semear desrespeitando-nos e fazendo ali um facto consumado, impondo a sua vontade, de facto enviámos depois esse email a solicitar que parassem as sementeiras e dado que tinham desrespeitado esta vontade, este pedido da L…, a pedir que saíssem da propriedade. (…) Portanto, os trabalhos… Desde que iniciaram as sementeiras os trabalhos continuaram sempre a decorrer, foram sempre continuando a lavrar. Creio que foi no dia 9, no dia 9 de novembro (que foi um sábado) que recebemos um email do Dr. C… em resposta a dizer que tinha a posse e a exploração da propriedade e que ia continuar a fazer as sementeiras e, até com um tom um bocadinho ameaçador, que tinha… que estava legitimado para tal e que poderia fazê-lo, pronto. Depois, nós nos contactos que fomos tendo com a GNR, porque entretanto apresentámos uma queixa por causa desta situação, do que estava a acontecer sem a nossa permissão, sem a nossa autorização. E depois a GNR até nos perguntou porque é que nós não tínhamos… se os portões estavam trancados, de forma a impedir o acesso. De facto, nós tínhamos portões que só têm um trinco, portanto não estavam trancados, e foi depois no dia 12 que optámos por colocar cadeados nos portões da propriedade para tentar restringir de alguma forma o acesso e ver se conseguíamos evitar a sementeira que estava a ser feita sem a autorização da L…”.
Explicou ainda a razão para a relevância da autorização prévia a respeito das sementeiras propostas, referindo que a área semeada é verificada pela própria e tem que ser apenas 40% ou idealmente menos, têm que estar em rotação, verificando tudo e conversando com o comodatário. No caso era o C… que vinha com o plano proposto … vinham sempre com áreas muito grandes, verificam, faziam alterações para cumprimento dos requisitos e nunca tinha acontecido qualquer situação anterior que avançasse sem a aprovação. No caso do Dr. C… os contratos já lhe eram remetidos com as alterações, isto porque é a própria Liga que tem que verificar o cumprimento dos planos de conservação da natureza.
Por seu turno, a Testemunha RC…, perguntado sobre o “que é que aconteceu no dia 5 de novembro?”, respondeu que “No dia 5 de novembro, durante o meu trabalho de vigilância, reparei, à tarde, no dia 5 à tarde, reparei que o Sr. J… e o seu irmão, dentro da propriedade de B…, a iniciar os trabalhos de sementeira. E como não tinha indicação do plano de sementeira abordei os senhores, mandei-os parar, tivemos lá um bocadinho na conversa. Os senhores enquanto eu lá estive pararam. E eu entretanto vim-me embora porque o tempo começou a escassear”. (…) No dia 6 voltei lá de manhã para verificar se as coisas estavam de facto a correr bem e o Sr. J… estava novamente a semear. Abordei-o novamente. Tinha indicação que se o Sr. estivesse a trabalhar tinha de chamar a GNR. A partir daí chamei a GNR e a GNR tomou conta das ocorrências”… “Identificou apenas os senhores e o trabalho agrícola continuou”.
No tocante à devolução do valor que a Requerente habitualmente vinha pagando, trata-se de facto que foi alegado pela Recorrente no artigo 160.º da sua oposição, e que foi aceite pela Requerida no artigo 14.º da sua resposta ao pedido de condenação por litigância de má-fé, depois de alegar que “procedeu ao pagamento do valor do contrato, e fê-lo não só porque já sabia qual o seu valor (era sempre o mesmo), como “porque pretendeu demonstrar a boa fé negocial e consequentemente dessa forma pretendia também agilizar a celebração contrato”, sendo ainda confirmado pelo Documento 18 junto com a petição inicial, que logo no dia 7 de Novembro, a L… informou a Requerente que havia feito a transferência para a conta daquela.
Assim, ao abrigo dos já citados preceitos, impõe-se igualmente, em complemento do que já consta nos factos provados em 8) da decisão inicial e em 11) e 12) da decisão final, passando estes a ter a seguinte redacção, e aditando-se o seguinte:
11) No dia 5 de Novembro de 2019 a requerente começou a semear antes de ter o plano aprovado, tendo-lhe sido solicitado pela Requerida que suspendesse tais trabalhos;
12) Tendo a Requerente prosseguido com os trabalhos, no dia 6 de Novembro de 2019, a Requerida advertiu-a novamente para suspender de imediato os trabalhos, tendo inclusivamente solicitado a comparência da Guarda Nacional Republicana, e no dia 7 de Novembro, ordenou a saída da Requerente, pela comunicação referida em 10 da decisão inicial, tendo esta continuado as sementeiras, até ao encerramento dos portões;
14) Em 7 de Novembro, a Requerida procedeu à devolução do montante de 40.150,00€ que lhe foi transferido pela Requerente.
Finalmente, quanto ao facto dado como indiciariamente não provado na SENTENÇA que a “Requerida resolveu não contratar com a requerente por mais um ano por causa das situações referidas em 9 e 10”, diz a Recorrente que tal não resultou da prova produzida, bem pelo contrário.
Na motivação da decisão quanto ao facto não provado, referiu a Senhora Juíza que “por não ter sido feita prova da sua verificação. Com efeito, quer o presidente da requerida quer a testemunha R… afirmaram que a intenção daquela era manter a relação contratual com a requerente, o que só não sucedeu por esta ter iniciado a sementeira sem autorização. De resto foi essa a informação transmitida por email pela testemunha R… à requerente, ao afirmar que os novos contratos se encontravam em preparação. Ora os alegados incumprimentos contratuais terão ocorrido sobretudo durante os anos de 2018/2019 pelo que se os mesmos justificassem o terminus da relação contratual entre as partes a requerida não teria ponderado a assinatura de novos contratos nem tinha permitido a manutenção da requerente no prédio após o decurso do prazo previsto no contrato escrito de comodato”.
Subscrevemos integralmente este excerto da motivação, que se encontra fundado na prova produzida e nas ilações que da mesma se retiram, por via das regras da experiência. Mas, se dúvidas houvesse quanto à correcção do decidido, no sentido de que não foram as situações espelhadas em 9 e 10 que determinaram a L… a não outorgar o contrato para 2019/2020, basta convocar o que a este respeito, de forma clara e convincente, por harmoniosa com os demais meios de prova produzidos, referiu a própria testemunha R… que tais incumprimentos foram sendo solucionados à medida que as situações se colocavam, e que estavam a preparar os novos contratos.
Na realidade, do seu depoimento decorre que algumas situações eram resolvidas pelo vigilante (testemunha R…) que as tentava solucionar com as pessoas que encontrava no terreno, e em outros casos, eram remetidos e-mails ao Dr. C…, tendo algumas situações sido resolvidas e outras não.
Explicou a testemunha que a relação com a sociedade sempre foi um bocadinho complicada porque o Dr. M… não pratica directamente a agricultura, tanto que muitas vezes foram assinados na sede da L… em Lisboa e não em Castro Verde. Normalmente têm um contacto próximo com os agricultores que são comodatários. No caso era o J… a pessoa que normalmente tratava das sementeiras e o Á… do gado. Nos últimos anos tinham verificado uma série de situações na parte agrícola que não estavam dentro das boas práticas, e interpelavam o sr. P… ou o sr. Á… para modificar as situações. Como não tinham grande eco, começaram a mandar e-mails ao Dr. C…, alertando por ex., quando à aplicação de herbicidas, para a necessidade de manutenção da vegetação espontânea, a circulação de viaturas fora dos caminhos, andavam com os jipes por qualquer local na propriedade; têm torres de nidificação para as aves, as crias caem dos ninhos mas se as vacas estiverem aparcadas no local acabam por as pisar e matar; todos os pontos de água são muito importantes, mas permitiam o abeberamento directo do gado na linha de água, ficando esta em péssimas condições. Foram chamando a atenção porque sistematicamente aconteciam estas situações, e foram aditando algumas exigências nos contratos mas ainda assim foram sendo bastante infrutíferas. Como o vigilante não estava a ser bem sucedido nos contactos no terreno, começaram a enviar e-mails com as fotografias ao dr. C…, exemplificando com as juntas aos autos.
Porém, pese embora a ocorrência das situações relatadas, e a necessidade de intervenção da Requerida para o cumprimento das regras decorrentes dos acordos celebrados, afigura-se-nos que tais situações não foram realmente determinantes na decisão de não contratar, daí não se justificar a pretendida modificação de facto. Na verdade, perguntada concretamente sobre se “havia uma ideia da L… continuar com esta empresa na exploração daquela herdade?”, a testemunha respondeu peremptoriamente: “Sim, mas o facto de terem começado as sementeiras sem autorização, sem os contratos estarem assinados, foi…, é o desrespeito máximo por qualquer tentativa, é a gota dentro do copo de água que já ia estando cheio”.
A essencialidade para a Requerida desta questão da autorização das sementeiras decorre ainda de outro excerto daquele depoimento em que referiu que, apesar destas terem um período para serem efectuadas, os contratos subsequentes tinham sido sempre celebrados mais para o final de Outubro, e nunca começaram a semear sem autorização, sendo que as sementeiras não tinham que ser iniciadas naquela altura, podendo sê-lo mais tarde. Lembramos, a propósito, que o legal representante da Requerente, pese embora tenha justificado a decisão de darem início às sementeiras com o prejuízo decorrente do atraso, tenha igualmente referido que, caso a restituição fosse ordenada pelo tribunal, ainda as podia fazer até Janeiro.
Mas, se dúvidas houvesse, é a própria Recorrente que, na parte das suas alegações respeitante ao direito, acaba por referir no artigo 68.º que não obstante todos os incumprimentos e dificuldades até aí ocorridos, ainda tinha a ora Recorrente a intenção de dar mais uma oportunidade à Requerente, algo que totalmente colapsou quando a Requerente começou a semear contra as expressas instruções daquela e sem sequer ter um plano de sementeiras aprovado.
Em suma, entendemos que foi o facto de a Requerente ter iniciado as sementeiras sem autorização e contra expressas instruções da Requerida em contrário, que levou à decisão desta não contratar com aquela por mais um ano, tanto assim que, apesar da anterior ocorrência dos demais, os novos contratos estavam em preparação, conforme resposta de 05.11.2019, da Requerida para a Requerente.
Pelo que, nada há a alterar na decisão de considerar indiciariamente não provado que a Requerida resolveu não contratar com a Requerente por mais um ano por causa das situações referidas em 9) e 10).
Concluindo, na parcial procedência da deduzida impugnação da matéria de facto, e oficiosamente, nos termos do preceituado nos artigos 607.º, n.ºs 3 e 4, 662.º, n.º 1 e 663.º, n.º 2, todos do CPC, decidimos proceder à modificação/aditamento, à matéria de facto indiciariamente provada, dos factos acima salientados com utilização de negrito, mantendo-se no demais a factualidade que vinha indiciariamente provada e não provada, da primeira instância.
Vejamos, pois, se os factos alegados e provados, são ou não suficientes para fundamentar a procedência do presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse.
*****
III.2.3. – O direito aplicável
Pretende a Recorrente que não podia a douta sentença recorrida, sob pena de violação do disposto nos artigos 1253.º, alínea h), e 1133.º, n.º 2, ambos do CC e do artigo 377.º do CPC, ter decretado (e mantido) a providência cautelar, designadamente por não se verificar preenchido o 1.º requisito inerente à mesma, ou seja, a existência de posse, já que tendo o contrato de comodato terminado, não existia contrato de comodato logo, não existia posse. Acresce que – prossegue a Apelante –, mesmo que existisse contrato (que não existia), certo é que o mesmo foi denunciado quando se ordenou a restituição do bem à comodante. Finalmente, no que diz respeito às legítimas expectativas de renovação do contrato que foram invocadas na decisão, entende a Recorrente que, de acordo com as regras da experiência comum, as mesmas nunca poderiam existir.
Nas respectivas contra-alegações, a Recorrida não dedica sequer uma palavra à questão colocada, afirmando que estão preenchidos pela factualidade provada nos autos os 3 pressupostos da medida cautelar de restituição provisória da posse: a posse, o esbulho e a violência, nos termos do artigo 1279.º do Código Civil, conforme resulta da fundamentação da sentença, para a qual remete.
Apreciando.
Conforme é sabido, os procedimentos cautelares genericamente previstos nos artigos 362.º e seguintes do CPC, são meios de tutela provisória do direito que quem os deduz se arroga, sendo dependentes de uma acção já pendente ou que seguidamente vai ser proposta pelo requerente (artigo 364.º do CPC), tendo sempre natureza urgente (artigo 363.º do CPC), porquanto visam acautelar o efeito útil da acção a que alude genericamente o artigo 2.º do CPC, impedindo “que durante a pendência de qualquer acção, declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo), a fim de que a sentença se não torne numa decisão puramente platónica”[20].
Para além da demonstração do referido perigo da demora inevitável do processo, os mesmos dependem ainda da prova sumária do direito ameaçado e da justificação do receio da lesão (artigo 365.º, n.º 1) do CPC), bem como da probabilidade séria da existência do direito, também genericamente prevista no artigo 368.º do CPC, não exigindo esta prova o mesmo grau de convicção que a prova dos fundamentos da acção impõe, atenta a estrutura simplificada própria do procedimento cautelar, consonante, aliás, com o respectivo fim específico, bastando consequentemente o chamado fumus boni iuris. «Trata-se de uma prova sumária que não produz a "plena convicção (moral)", exigida para o julgamento da causa, mas apenas um grau de probabilidade aceitável para decisões urgentes e provisórias, como são as próprias daqueles procedimentos»[21].
Posto este enquadramento geral dos procedimentos cautelares, relativamente ao procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse, e em decorrência da previsão ínsita no artigo 377.º do CPC, o mesmo exige a alegação de factos que constituam a posse, o esbulho e a violência, daí que “ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 377.º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum” – artigo 379.º do CPC.
Por seu turno, dispõe o artigo 1277.º do CC que “O possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter-se ou restituir-se por sua própria força e autoridade, nos termos do artigo 336.º, ou recorrer ao tribunal, para que este lhe mantenha ou restitua a posse”, e o artigo 1279.º que “Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.”
Portanto, um dos pressupostos desta medida tutelar é a qualidade de possuidor do requerente, qualidade decorrente do exercício de poderes de facto sobre uma coisa, por forma correspondente ao direito de propriedade ou a qualquer outro direito real de gozo (artigo 1251.º do CC). A tutela é, pois, conferida àquele que exerce poderes de facto sobre coisas corpóreas susceptíveis de constituírem objecto de direitos reais de gozo (direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície e servidão). Tal tutela é também legalmente estendida a outros direitos de raiz obrigacional, como o arrendamento (artigo 1037.º, n.º 2 do CC).
No requerimento inicial, em fundamento da sua pretensão, a Requerente, ora Recorrida invocou os factos sintetizados no relatório, e concretamente para o que ora importa, que tinha a posse sobre o prédio rústico pertencente à Requerida, porquanto, apesar da sua denominação, de contrato de comodato e de compra e venda de pastagens, o contrato celebrado entre as partes constitui um contrato de arrendamento rural, pelo que, nos termos do artigo 241.º, n.º 2, do Código Civil[22], é válido como contrato dissimulado, por observância da forma exigida por lei.
Assim, prosseguiu a Requerente, a considerar-se a existência de um contrato de arrendamento rural este, porque está legalmente sujeito a um prazo mínimo de 7 anos de vigência, teria tido início aquando dos primeiros contratos celebrados entre requerente e requerida, no ano de 2011, mais concretamente em 17.11.2011, pelo que, o primeiro contrato teria vigorado até 16.11.2018, data em que não tendo sido denunciado se renovou por idêntico período de tempo, ou seja, vigorará até 16.11.2025, vigência que a legitima a encontrar-se na posse do referido prédio rústico, na qualidade de arrendatária, nos termos e para os efeitos do artigo 1251.º do CC.
Pese embora tenha sido alegado pela Requerente que a sua invocada posse decorria de um contrato de arrendamento rural dissimulado, a decisão recorrida nada referiu a este respeito, por ter considerado que «O contrato de comodato é um negócio não formal. Assim a circunstância de se mostrar excedido o prazo previsto no contrato escrito celebrado entre as partes em nada belisca a posição da requerente. Com efeito, a mesma tinha a legítima expectativa que tal relação contratual se manteria, considerando desde logo a conduta da requerida, que dois dias antes de informar a requerente que teria que abandonar o prédio em vinte e quatro horas, lhe tinha afirmado que o novo contrato se encontrava em elaboração. Acresce que a requerida não se opôs de forma alguma à permanência da requerente no prédio após o prazo estipulado no contrato escrito. Com efeito, se a requerida tivesse tomado a opção de não celebrar qualquer outro contrato com a requerente (fosse por causa de alegados incumprimentos contratuais, fosse por outra qualquer concedendo-lhe um prazo para entregar o prédio, devoluto de pessoas e bens.
Mas não foi isso que a requerida fez e de um momento para o outro e sem que nada o fizesse prever, informa a requerente que terá que abandonar o prédio em vinte e quatro horas, prazo manifestamente insuficiente considerando o tipo de exploração desenvolvido pela requerente, que a requerida conhecia perfeitamente.
Ora, não pode agora a requerida estribar-se no decurso do prazo previsto no contrato de comodato escrito entre as partes, pretendendo evitar o recurso às acções possessórias pela requerente, quando toda a sua conduta após aquele momento apontava no sentido de que iria ser celebrado um novo contrato de comodato escrito entre as partes, à semelhança do que vinha sucedendo desde há oito anos. Caso tal fosse aceite estaríamos perante o legitimar de um verdadeiro venire contra factum proprium.
Termos em que se conclui que a matéria carreada para os autos pela oposição deduzida e que foi indiciariamente provada não abalou a decisão que decretou a restituição provisória da posse, pelo que se decide mantê-la».
De igual modo a Requerente, embora tenha invocado em fundamento do seu direito que o acordo firmado entre as partes consubstanciava um contrato de arrendamento rural, o certo é que, enquanto Recorrida, não colocou em causa a qualificação do contrato efectuada na decisão provisória como configurando um contrato de comodato, sendo que a matéria de facto demonstrada – cuja modificação não foi pela mesma suscitada, em ampliação do âmbito do recurso, nos termos consentidos pelo artigo 636.º, n.º 2, do CPC –, tal como se encontra indiciariamente fixada, não permitiria tal qualificação.
Na realidade, não só está demonstrado que Requerente e Requerida outorgaram não um contrato, mas oito contratos, de comodato e compra e venda de pastagens, todos eles com um início e um termo, como especialmente os fins de utilidade pública prosseguidos pela Requerida, o tipo de gestão da herdade, e as obrigações impostas à Requerente, especificamente nas cláusulas 5.ª dos contratos de comodato, não são compagináveis com a vontade de celebração de contratos de arrendamento rural, porque seguramente nestes não haveria o grau de intervenção na gestão do dia-a-dia da herdade por parte do senhorio, que ficou demonstrado tem vindo a ser efectuada pela L…, nos termos contratualmente acordados, afastando a possibilidade de a posse invocada pela Requerente se encontrar fundada naquele tipo contratual.
Não obstante, como é sabido o mesmo tipo de tutela possessória é também legalmente atribuído àqueles que exercem a posse em nome alheio, poderes de facto sobre uma coisa, mormente por via da celebração de contrato de comodato, conforme previsto no artigo 1133.º, n.º 2 do CC, se forem privados ou perturbados no seu direito.
Vejamos, pois, se a ora Recorrente tem ou não razão, o mesmo é dizer, se à Requerente devia ou não ter sido conferida a pretendida tutela possessória provisória, com base na existência de um contrato de comodato.
De harmonia com a noção vertida no artigo 1129.º do CC o contrato de comodato “é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”, sendo quanto à sua natureza qualificado como um contrato real quod constitutionem, cuja perfeição depende da entrega da coisa e tem por fim o uso desta. É ainda um contrato bilateral imperfeito, porque apesar de gratuito não deixa de envolver obrigações, tanto para o comodatário como para o comodante, sendo ainda um contrato feito no interesse do comodatário. Assim, “a coisa é logo entregue apenas para que o comodatário se sirva dela (para determinado uso ou durante certo tempo) e a restituia seguidamente… Não há assim uma obrigação autónoma ao lado do acto da entrega da coisa: a entrega é que já é feita sob o signo da temporalidade”. Ademais, o seu regime não estabelece “quaisquer exigências quanto à forma do contrato, excepção feita quanto à entrega da coisa, dado o carácter real do contrato. Nos termos do artigo 219.º o contrato é, pois, válido, independentemente da observância de qualquer forma”[23].
Decorrendo do contrato celebrado entre as partes que o mesmo teve início em 15 de Novembro de 2018 e termo em 14 de Setembro de 2019, dúvidas não existem de que o contrato de comodato havia cessado, já que, regendo o artigo 1137.º quanto à restituição, quanto não foi convencionado prazo, “supõe-se como regra, sem formulação expressa, que o comodato se extingue pelo termo do prazo estipulado”, sendo devida a restituição, “independentemente de interpelação”[24].
Considerou a primeira instância que, como o contrato de comodato é um negócio não formal, a circunstância de se mostrar excedido o prazo previsto no contrato escrito celebrado entre as partes em nada belisca a posição da requerente, porquanto a requerida não se opôs de forma alguma à permanência da requerente no prédio após o prazo estipulado no contrato escrito, sendo que a requerente “tinha a legítima expectativa que tal relação contratual se manteria, considerando desde logo a conduta da requerida, que dois dias antes de informar a requerente que teria que abandonar o prédio em vinte e quatro horas, lhe tinha afirmado que o novo contrato se encontrava em elaboração”.
Salvo o devido respeito, não concordamos com a visão vertida na decisão recorrida.
Na realidade, conforme se acentuou no recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2019[25] «como se colhe da sua própria definição, é da natureza do contrato de comodato a obrigação de restituir a coisa.
A precariedade do uso facultado ao comodatário transparece, ainda, claramente, quer das obrigações específicas do comodatário, quer do regime estabelecido para a restituição da coisa (cf. arts. 1135º e 1137º, do CC). [1]
Efetivamente, dispõe-se no art. 1135º, al. h), do CC que o comodatário deve restituir a coisa ao comodante findo o contrato. (…)
Em razão dessa nota de temporalidade, assumida como traço essencial do comodato, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido que o «uso determinado», a que se alude no art. 1137º, do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer (…). Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável. [3] (…)
Esta posição que sufragamos é, além disso, a nosso ver, a mais consentânea com o princípio geral emanado do art. 237º, do CC, segundo o qual, em caso de dúvida, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravoso para o disponente».
Ora, na situação vertente, convencionalmente, a obrigação de restituir o imóvel à Requerida, tinha data certa para cumprimento, pelo que, uma vez ultrapassado esse prazo sem que tenha sido feito tal entrega, a comodatária ficou imediatamente constituída em mora, sem necessidade de ser "judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir", conforme resulta do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 804.º, n.º 2, e 805.º, n.º 2, alínea a), 1135.º, alínea h), e 1137.º, todos do CC, uma vez que o termo final em causa era conhecido desde a celebração do contrato[26].
Assim, a permanência da Requerida na herdade a partir do dia 15.09.2019, só pode ser entendida como um acto de mera tolerância por parte da proprietária, sendo que a única forma de afastar a obrigação de restituição do imóvel, era a celebração de novo contrato de comodato por mútuo acordo, como vinha acontecendo nos anos anteriores.
Destarte, constatando-se que a obrigação de restituição por banda da requerida tinha prazo certo para cumprimento, e não tendo havido celebração de novo contrato de comodato, o título que legitimava a ocupação do imóvel pela Requerente viu esse seu efeito jurídico extinto na data atrás indicada, pelo que a Requerente não pode ser equiparada a possuidora desde o dia 15.09.2019, data em que se extinguiu a qualidade de comodatária.
Na realidade, se atentarmos no disposto no artigo 1251.º do CC, a posse define-se como “o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”, enquanto a definição de simples detenção ou posse precária se infere do artigo 1253.º do CC, que qualifica como detentores ou possuidores precários “a) os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; b) os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito; c) os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuam em nome de outrem”.
Ora, a relevância da distinção entre ambas as situações não é de todo despicienda no caso em presença, porquanto apenas ao possuidor a lei faculta a possibilidade de se socorrer da tutela cautelar que a Requerente pretendeu exercer.
No caso, tendo fundado o seu direito num indemonstrado contrato de arrendamento, a Requerente não alegou qualquer factualidade da qual se pudesse extrair que a permanência da mesma no imóvel consubstanciava, por si mesma, um contrato de comodato, por acordo tácito entre as partes, cuja demonstração naturalmente e segundo as regras da repartição do ónus da prova estabelecidas no artigo 342.º do CC, sobre si impendia. Porém, não tendo alegado sequer que era comodatária mas arrendatária rural, a Requerente não cumpriu este ónus que sobre si recaía, desde logo porque nem sequer fez a alegação dos factos integradores daquela qualidade, pelo que, contra ela correm os inconvenientes dessa omissão, nenhuma relevância tendo, pois, na espécie, a circunstância de o comodato não estar sujeito a forma legal.
Na realidade, não está em causa que o contrato de comodato possa ser constituído sem sujeição a forma, como igualmente a natureza formal de uma declaração negocial não impede que seja tacitamente emitida, como se anuncia no n.º 2 do artigo 217.º do CC. O ponto é que tenha sido alegado pela parte a quem aproveita que houve esse encontro de vontades, e que a entrega decorreu do mesmo, e isso não aconteceu. Conforme esclarece JÚLIO GOMES[27] «mesmo o comodato de um imóvel não requer uma forma escrita e no nosso entender, a forma escrita, mesmo que porventura exista, não substitui a entrega da coisa».
Ora, na situação em apreço, o que se demonstrou e os autos inculcam foi que, à semelhança do que ocorreria anteriormente, entre a cessação de um contrato e o início do outro, a Requerente permanecia na herdade, por mera tolerância da Requerida, mas as sementeiras para o ano agrícola seguinte só eram efectuadas após a celebração de novo contrato de comodato. Portanto, os factos demonstrados não permitem concluir que houve a celebração de um contrato de comodato, antes da sua assinatura, porque só com esta a requerida autorizava a realização das sementeiras. Tanto assim é, que a julgadora se refere apenas à expectativa da sua celebração, como até aí tinha ocorrido. Ora, tal expectativa, e o demais invocado como comportamento da Requerida que a Requerente não perspectivou, poderão até enquadrar-se numa situação de responsabilidade pré-contratual, mas seguramente não sustentam a celebração de qualquer contrato que tutele a posse cuja existência, não podemos olvidar, é o primeiro fundamento onde assenta a procedência do pedido de restituição provisória.
Finalmente, e ainda que se considerasse que a permanência da Requerente na herdade, configurava a celebração tácita de um contrato de comodato, mesmo nesse hipotético caso, não tendo sido autorizada pela Requerida a realização das sementeiras, ou seja, a permanência para aquele uso determinado que, nos termos do artigo 1137.º, n.º 1, do CC, permitiria a sua permanência até ao final da época, caímos no preceituado no n.º 2, ou seja, não podendo entender-se ter sido convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa (por acordo, entenda-se), o comodatário é obrigado a restituí-la logo que assim o seja exigido pelo comodante, como foi (denúncia ad nutum)[28].
Conforme impressivamente se mostra sumariado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.2010[29] «[n]ão se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição da coisa, denunciando o contrato. (…)
O comodante não perde ou vê precludido o direito de denúncia do contrato de comodato, por abuso de direito, nomeadamente por enquadramento na figura do venire contra factum proprium ou na sua subespécie denominada supressio, se não adoptou um comportamento que, objectivamente, isto é, tendo por destinatário um sujeito que use de cuidado normal, se mostre idóneo ou adequado a criar no beneficiário do empréstimo a aparência de que jamais viria a exercer o seu direito de pôr termo ao uso».
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, existindo somente mera detenção, conclui-se, como a Recorrente, que não podia a sentença recorrida, sob pena de violação do disposto nos artigos 1253.º, alínea h), e 1133.º, n.º 2, ambos do CC e do artigo 377.º do CPC, ter decretado (e mantido) a providência cautelar, designadamente por não se verificar preenchido o 1.º requisito inerente à mesma, ou seja, a existência de posse em nome de outrem.
Nestes termos, a presente apelação procede, sendo consequentemente de revogar a sentença que decretou a restituição provisória de posse à ora recorrida, levantando a decretada providência cautelar.
Vencida, a Apelada suportará as custas, em primeira instância e as de parte do recurso, de harmonia com o princípio da causalidade ínsito no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
*****
IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar procedente o presente recurso de apelação, revogando a decisão recorrida que decretou a restituição provisória de posse à Requerente, ora Recorrida.
Custas pela Recorrida.
Évora, 21 de Maio de 2020
Albertina Pedroso (relatora)[30]
Tomé Ramião
Francisco Xavier
__________________________________________________
[1] Juízo Central Cível e Criminal de Beja - Juiz 1.
[2] Relatora: Albertina Pedroso; 1.º Adjunto: Tomé Ramião; 2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] As quais não obedecem ao figurino sintético previsto no artigo 639.º, n.º 1, do CPC, e se restringem às necessárias à compreensão do objecto do recurso.
[4] Doravante abreviadamente designado CPC.
[5] Que se transcrevem corrigindo os lapsos de escrita detectados.
[6] Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, COIMBRA EDITORA, 1985, págs. 669 a 672; ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, COIMBRA EDITORA, pág. 140, e abundante jurisprudência proferida nesse sentido pelos tribunais superiores, citando-se a título meramente exemplificativo o Acórdão STJ de 14-02-2013, proferido no processo n.º 806/07.0TBTND.C1.S1, e disponível em www.dgsi.pt, como os demais que sejam citados sem menção de outra fonte.
[7] Cfr. para maior desenvolvimento, Ac. TRP de 05.03.2015, proferido no processo n.º 1644/11.0TMPRT-A.P1.
[8] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, ALMEDINA, 2017, pág. 736.
[9] Cfr. ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, ALMEDINA, 2014, pág. 139.
[10] Pois como se refere no Ac. STJ de 21.05.2009, “Se a questão é abordada, mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fáctica, há erro de julgamento, não “error in procedendo”.
[11] Proferido no processo 3118/16.4T8VNF-A.G1.
[12] Obra citada na nota 7, pág. 59.
[13] In Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª edição, ALMEDINA, 2004, págs. 356 e 357.
[14] Proferido no processo n.º 707/14.5TBBNV.E1.
[15] Proferido no processo n.º 00A382.
[16] Processo n.º 32262/15.3T8LSB.L3.S1, que sublinhou conhecer do recurso, não obstante em sede de procedimentos cautelares a regra geral ser a da inadmissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões neles proferidas, por na espécie estar em causa a violação de uma regra de competência em razão da hierarquia, caso em que a impugnação é sempre admissível, nos termos dos artigos 370.º, n.º 2 e 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC.
[17] In BMJ 499, pág. 205, citado por LOPES DO REGO.
[18] In “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. III, pág. 256.
[19] Para melhor compreensão, reportamo-nos à identificação da primeira decisão e da final nos termos referidos pela Recorrente.
[20] Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, COIMBRA EDITORA, 1985, pág. 23.
[21] Cfr. Ac. STJ de 22-03-2000, Agravo n.º 154/00 - 7.ª Secção, disponível in www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[22] Doravante abreviadamente CC.
[23] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª edição revista e actualizada, COIMBRA EDITORA,1986, págs. 660 a 662.
[24] Idem, pág. 675.
[25] Proferido no processo n.º 2/16.5T8MGL.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

[26] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 24.06.2003, Processo n.º 03A1751.
[27] No Artigo intitulado “Do contrato de comodato”, para o qual remetemos para maiores desenvolvimentos, publicado in Cadernos de Direito Privado, n.º 17, Janeiro/Março 2007, pág. 18.
[28] Cfr. neste sentido, Acs. STJ de 16.11.2010 e de 15.12.2011, proferidos respectivamente nos processos n.º
7232/04.0TCLRS.L1.S1 e 3037/05.0TBVLG.P1.S1.
[29] Proferido no processo n.º 1584/06.5TBPRD.P1.S1.
[30] Texto elaborado e revisto pela Relatora, e assinado electronicamente pelos três desembargadores desta conferência.