Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
150/19.0TELSB.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: METADADOS
PROVA DIGITAL
DADOS DE TRÁFEGO
DADOS DE BASE
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Conforme vem sendo frisado pela jurisprudência, em matéria de telecomunicações, há que distinguir os dados de base (elementos de suporte técnico e de conexão estranhos à própria comunicação em si mesma, designadamente os relacionados com a identificação dos titulares de um determinado cartão de telemóvel ou de um IP), os dados de tráfego (elementos que se referem já à comunicação, mas não envolvem o seu conteúdo, por exemplo, referentes à localização do utilizador do equipamento móvel, bem assim como do destinatário, data e hora da comunicação, duração da mesma, frequência, etc.) e os dados de conteúdo (elementos que se referem ao próprio conteúdo da comunicação).
II - Apenas os dados de tráfego e localização conservados/armazenados pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas ou das redes públicas de comunicações estão abrangidos pela declaração de inconstitucionalidade das normas dos artigos 4º, 6º e 9º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, decidida no Acórdão do TC n.º 268/2022, de 19 de abril.
III - Já no referente aos dados de base, relacionados com a identificação do titular de um número de telefone ou de um IMEI, no caso de ser um assinante registado, tratando-se de elementos recolhidos aquando da contratação do serviço de telecomunicações e que se mantêm independentemente de qualquer comunicação efetuada, não respeitando à privacidade da vida da pessoa ou à sua esfera íntima, em termos de encontrarem proteção, no contexto dos bens jurídicos protegidos pela Constituição e, nessa medida, não são abrangidos pela declaração de inconstitucionalidade emanada do aludido Acórdão do TC n.º 268/2022.
IV - No que concerne ao endereço IP, associado ao perfil do Facebook Messenger, através da qual foram realizados os uploads com conteúdo de pornografia de menores, a solicitação, por parte da autoridade judiciária, à operadora, da identificação do utilizador daquele endereço IP, feita ao abrigo do disposto nos artigos 11º, n.º 1, alíneas b) e c) e 14º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro – estando em causa um crime de pornografia de menores, cometido por meio de um sistema informático, tal como o define o artigo 2º, al. a), da enunciada Lei n.º 109/2009 –, é legal, estando fora do âmbito da declaração de inconstitucionalidade emanada do Acórdão do TC n.º 268/2022.
V - Não estamos, pois, no caso dos autos, perante uma situação em que tenham sido utilizadas/valoradas pelo Tribunal a quo provas obtidas ao abrigo das normas declaradas inconstitucionais pelo acórdão do TC n.º 268/2022.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, n.º 150/19...., do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., foi submetido a julgamento o arguido AA, nascido a .../.../1958, melhor identificado nos autos, acusado da prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo, de quarenta e cinco crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo artigo 176º, n.º 5, do Código Penal e de quarenta e cinco crimes de pornografia de menores, agravados, p. e p. pelos artigos 176º, n.ºs 1, alíneas c) e d) e 8 e 177º, n.ºs 1, al. c), 7 e 8, ambos do Código Penal.
1.2. No decurso do julgamento, finda a produção da prova, o Tribunal Coletivo procedeu à comunicação ao arguido, ao abrigo do disposto no artigo 358º, n.ºs 1 e 3, do CPP, da alteração não substancial dos factos descritos na acusação, bem como da respetiva qualificação jurídica, sendo esta última, em termos de os factos pelos quais foi acusado serem puníveis com as penas acessórias previstas nos artigos 69º-B e 69º-C do Código Penal. Perante tal comunicação, o arguido nada requereu.
1.3. Foi proferido acórdão em 06/12/2022, depositado nessa mesma data, com o seguinte dispositivo:
«(...) acordam os Juízes que compõem o Tribunal Coletivo em:
a) Absolver o arguido, AA, da prática, como autor material, de 40 crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo art. 176º, nº 5 do Código Penal, de que se encontra acusado;
b) Absolver o arguido, AA, da prática, como autor material, de 37 crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo art. 176º, nº 1, als. c) e d) e nº 8 e art. 177º, nº 1, al. c) e nºs 7 e 8 do Código Penal, de que se encontra acusado;
c) Condenar o arguido, AA, pela prática, como autor material de 1 (um) crime de pornografia de menores, p. e p. pelo art. 176º, nº 1, al. c), e agravado pelo art. 177º, nº 7 do Código Penal, na redação vigente na data da prática dos factos, 5ª versão, ou seja, a decorrente das alterações pela Lei 103/2015, de 24/08, na pena de 2 (dois) anos de prisão (factos de 03/08/2018);
d) Condenar o arguido, AA, pela prática, como autor material de 1 (um) crime de pornografia de menores, p. e p. pelo art. p. e p. pelo art. 176º, nº 1, al. c), e agravado pelo art. 177º, nº 7 do Código Penal, na redação vigente na data da prática dos factos, 5ª versão, ou seja, a decorrente das alterações pela Lei 103/2015, de 24/08, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão (factos de 19/11/2018).
e) Condenar o arguido, AA, pela prática, como autor material de 1 (um) crime de pornografia de menores, p. e p. pelo art. 1 p. e p. pelo art. 176º, nº 1, al. c), e agravado pelo art. 177º, nº 7 do Código Penal, na redação vigente na data da prática dos factos, 5ª versão, ou seja, a decorrente das alterações pela Lei 103/2015, de 24/08, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão (factos de 30/11/2018).
f) Efetuado o cúmulo jurídico das penas referidas em c) a e), condenar o arguido na pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão.
g) Suspender a pena de prisão referida em f) pelo período de 3 anos e 3 meses, sob a condição de o arguido pagar à ... a quantia de € 2.000 (dois mil euros), no prazo de 3 anos, devendo efetuar o pagamento de pelo menos € 500 no primeiro ano e de pelo menos € 500 no segundo ano, devendo fazer prova nos autos dos pagamentos, no prazo de 10 dias após o terminus de cada período de pagamento estipulado.
h) Condenar o arguido, AA, nas penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, p. e p. pelo art. 69º-B, nº 2 do Código Penal, pelo período de 5 anos em relação a cada um dos crimes cometidos e referidos em c), d) e e);
i) Efetuado o cúmulo jurídico das três penas acessórias referidas em h), condenar o arguido na pena acessória única pelo período de 6 anos;
j) Condenar o arguido, AA, nas penas acessórias de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, p. e p. pelo art. 69º-C, nº 2 do Código Penal, pelo período de 5 anos em relação a cada um dos crimes cometidos e referidos em c), d) e e);
k) Efetuado o cúmulo jurídico das três penas acessórias referidas em j), condenar o arguido na pena acessória única pelo período de 6 anos;
l) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs;
m) Determinar a recolha de amostra-referência.
(...).».
1.4. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso apresentada as conclusões que seguidamente se transcrevem:
« I - O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos que condenou o recorrente pela prática do crime de pornografia de menores, p. e p. pelo art.º 176.º do CP.
II - O tribunal a quo considerou provado que o recorrente tinha consciência dos atos praticados serem ilegais.
II - Tal convicção assentou apenas em provas obtidas ilegalmente, conhecidas no nosso ordenamento jurídico como Metadados.
IV - Contradiz-se o Tribunal a quo no art.º 33.º e ss. da douta Sentença, ao confessar que o arguido não tinha consciência e consequentemente não estaria arrependido, pois até ao momento compreende porque é que tais atos são ilícitos.
V - Não fez o Tribunal a quo prova de que o Recorrente não padece de patologia que o leve a não ter consciência das ilegalidades cometidas.
VI - Foi o ora Recorrente confrontado com prova da sua esfera pessoal e intimidade, sendo obrigado a confessar factos da esfera pessoal, estando esta prova envenenada e ferindo o Princípio do Contraditório e o Princípio da Não auto incriminação.
VII - Assim, os factos ocorridos nos referidos dias 03.08.2018, pelas 14:06:07; a 19.11.2018, pelas 16:49:14; 19.11.2018, pelas 16:49:17; e 30/11/2018, pelas 14:38:37; foram incorretamente julgados como provados.
VIII - Ora, um dos princípios em que assenta o processo penal é o princípio do acusatório ou da acusação consagrado no art. 32º, nº 5, da CRP, nos termos do qual o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
IX - Pelo exposto, a sentença recorrida é nula.
X - A audiência de julgamento, violou, ainda, o disposto no art.º 355º, nº 1, do CPP.
XII - Pelo exposto, o tribunal não interpretou, nem aplicou, corretamente o art.º 176.º CP.
XIII - Em suma, não restam dúvidas de que o recorrente não praticou o crime em que foi condenado.
XIV – Nos termos do supra alegado e não tendo o recorrente praticado o crime em que foi condenado, deve o mesmo ser absolvido dos crimes de pornografia de menores.
XV - Assim, por tudo o supra exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, devem V/Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, atenta a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral e com efeitos retroativos – desde 2008 – dos artigos 4.º, 6.º e 9.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho,
XVI - Revogar a decisão condenatória, por assentar em prova nula – obtida unicamente através de Metadados - Com o que farão, como sempre, inteira Justiça material e evitando, assim, mais uma vez um ato de denegação de justiça ao aqui Recorrente.
PEDIDO
Pela fundamentação de factos e de direito acima explanada, deve ser dado provimento ao presente recurso nos termos apresentados atenta a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral e com efeitos retroativos – desde 2008 – dos artigos 4.º, 6.º e 9.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, e revogar a decisão condenatória, por assentar em prova nula – obtida unicamente através de Metadados.
Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser o recorrente absolvido dos crimes de pornografia de menores, p. e. p. art.º 176.º do CP, em que foi condenado, triplamente, o que também não é permitido por lei, sendo que ainda caso a prova fosse considerada legal, teria de ser condenado num único crime com a atenuação do facto de ficar provada a negligência inconsciente (art.º 15.º b) CP), não podendo ser ultrapassada a pena suspensa de 3 anos, fazendo-se assim a habitual e necessária Justiça.»
1.5. O recurso foi regularmente admitido.
1.6. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, apresentou resposta, pugnando para que seja negado provimento ao recurso e mantido o acórdão recorrido, nos seus precisos termos.
1.7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente.
1.8. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi exercido o direito de resposta.
1.9. Feito o exame preliminar e colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir:

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cf. artigo 428º do CPP.
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cf. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do CPP.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas alíneas a), b) e c), do nº. 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cf. Ac. do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
No caso vertente, considerando os fundamentos do recurso, são as seguintes as questões suscitadas:
- Nulidade do acórdão recorrido, por utilização de prova nula e proibida, respeitante a metadados;
- Violação do disposto no artigo 355º do CPP;
- Contradição entre os factos dados como provados no ponto 33 e nos pontos 11 e 14 a 17;
- Falta de consciência da ilicitude;
- Erro de subsunção;
- Medida da pena.

2.2. Acórdão recorrido
É o seguinte o teor do acórdão recorrido nos segmentos que relevam para a apreciação do mérito do recurso:
«(…)
II - FUNDAMENTAÇÃO
Discutida a causa, consideram-se provados os seguintes factos:
1. O arguido é titular da conta de Facebook, com o URL ... e com o ID ...45, através da qual, no dia 03.08.2018, pelas 14:06:07 UTC, efetuou o upload, através da plataforma Messenger e enviou para o utilizador da conta do Facebook com a identificação URL ..., do seguinte ficheiro de vídeo, com a duração de 1 minuto e 15 segundos, com as seguintes imagens repartidas: imagem de uma mulher, da cintura para cima, envergando uma blusa de alças e uma criança com menos de oito anos a tocar-lhe nos seios por cima da blusa enquanto lhe dá um beijo na bochecha; de uma criança com menos de 3 anos com a mesma mulher, em que ela coloca as mãos deste nos seus seios; após a mesma mulher numa casa de banho, envergando a mesma blusa, cuecas vermelhas e umas collants pretas transparentes, voltando o menor de oito anos a tocar-lhe nos seios, por cima da blusa, na presença do menor de 3 anos; após numa cama, a mulher sentada aperta a mão do menor de 3 anos e o menor de oito anos volta a tocar os seios da mulher, por cima da blusa; na mesma cama surge o menor de oito anos apenas em cuecas, tocando nos seios da mulher, já por baixo da blusa e xupando o mamilo da mesma, na presença do menor de 3 anos; a mesma mulher após coloca o pénis do menor de 8 anos na boca e efetua movimentos de vai, em várias posições (com o menor deitado, de pé em cima da cama); o mesmo menor efetua movimentos de vai e vem com o pénis no ânus e vagina da mulher, estando ele totalmente nu e ela em soutien, na cama e num sofá, acariciando ele também os seios dela por debaixo do soutien; na casa de banho, ambos totalmente nus, o menor toca nos seios da mulher adulta e ela coloca o pénis do menor na sua boca, estando ele de pé, fazendo movimentos de vai e vem com a cabeça;
2. Imediatamente antes do envio do referido vídeo, o arguido enviou por duas vezes um símbolo de uma mão com o polegar levantado e os demais dedos encolhidos.
3. Duas mensagens antes do vídeo referido em 2, o arguido efetuou o upload e, através da mesma conta e plataforma enviou, por duas vezes, para o mesmo utilizador, um vídeo com a imagem de uma menina inicialmente apenas de top e meias e após apenas com meias totalmente desnudada, com menos de catorze anos de idade, em pose lasciva, de pernas abertas a exibir os genitais e, alternadamente, o ânus para a câmara de filmar e a masturbar-se, tocando também nos seios, com a duração de 47 segundos.
4. Três mensagens antes do vídeo referido em 2, o arguido efetuou o upload e, através da mesma conta e plataforma enviou, por duas vezes, para o mesmo utilizador um vídeo com a imagem do corpo de uma mulher apenas com soutien e de uma criança desnudada, do sexo masculino, com menos de 14 anos de idade, a penetrar o ânus dessa mulher, com o pénis ereto, e a realizar movimentos de vai e vem dentro daquela, com a duração de 53 segundos;
5. O endereço eletrónico associado à criação da referida conta de facebook é ... e o contacto telefónico ...66.
6. Através da mesma conta e plataforma, no dia 19.11.2018, pelas 16:49:14 UTC, enviou para o utilizador da conta do Facebook com a identificação URL ..., um ficheiro de vídeo, com a duração de seis segundos, onde é possível visualizar uma imagem de uma mulher desnudada, de pernas fletidas e abertas, estando em cima dela uma criança do sexo masculino, com menos de oito anos de idade, desnudada, a efetuar movimentos de vai e vem com o seu pénis na vagina da mulher.
7. Através da mesma conta e plataforma Messenger, o arguido, no dia 19.11.2018, pelas 16:49::17 UTC, enviou para o utilizador da conta do Facebook com a identificação URL ..., o mesmo ficheiro de vídeo, ou seja, um ficheiro de vídeo, com a duração de seis segundos, onde é possível visualizar uma imagem de uma mulher desnudada, de pernas fletidas e abertas, estando em cima dela uma criança do sexo masculino, com menos de oito anos de idade, desnudada, a efetuar movimentos de vai e vem com o seu pénis na vagina da mulher.
8. Através da mesma conta, no dia 19.11.2018, pelas 16:49:22 UTC e usando de novo a plataforma messenger, enviou para o utilizador da conta de Facebook com a identificação URL ..., e com o ID ...25, o mesmo ficheiro de vídeo, ou seja, um ficheiro de vídeo, com a duração de seis segundos, onde é possível visualizar uma imagem de uma mulher desnudada, de pernas fletidas e abertas, estando em cima dela uma criança do sexo masculino, com menos de oito anos de idade, desnudada, a efetuar movimentos de vai e vem com o seu pénis na vagina da mulher.
9. No dia 30/11/2018, pelas 14:38:37 UTC, através da mesma conta e plataforma, o arguido enviou para utilizador não identificado, um ficheiro de vídeo, com a duração de 5 minutos e 58 segundos, onde é possível visualizar uma imagem de uma mulher desnudada deitada numa cama, de pernas fletidas e abertas, estando em cima dela uma criança do sexo masculino, com menos de oito anos de idade, desnudada, a efetuar movimentos de vai e vem com o seu pénis na vagina da mulher, recebendo instruções de um adulto de sexo masculino; a certa altura surge outro menor de 12 anos, igualmente desnudado, colocando-se ao lado, enquanto o menor de 8 anos introduz o pénis na vagina da mulher e recomeça os movimentos de vai e vem até que termina, voltando a repetir após a voz masculina, enquanto o menor de 12 anos coloca a boca num dos seios da mulher, colocando a mulher a mão do menor de oito anos no outro seio; o menor de 8 anos sai de dento da mulher e após instruções da voz masculina, volta a introduzir o seu pénis na vagina da mulher e efetuar movimentos de vai e vem, enquanto o menor de 12 anos continua com a boca nos seios da mulher e esta coloca uma mão na cabeça do menor de oito anos e lhe dá leves palmadas nas nádegas com a outra e após com as duas; o menor de 8 anos volta a retirar o pénis da vagina da mulher e senta-se em cima da mulher, colocando ela o pénis do menor na sua vagina, efetuando o menor de novo movimentos de vai e vem, enquanto o menor de 12 anos continua com a boca em dos um dos seios da mulher; após a mulher levanta as pernas para o ar e o menor de oito anos volta a colocar o seu pénis na vagina da mulher, efetuando movimentos de vai em vem, enquanto o menor de 12 anos mexe com a mão em um dos seios da mulher, enquanto ela lhe fricciona o pénis.
10. O arguido sabia que os ficheiros de vídeo que enviou através do Messenger do Facebook, nos termos supra descritos, representavam menores de 14 anos de idade, na prática de atos sexuais, nomeadamente coito vaginal e anal, e que a atividade de distribuição, exportação, divulgação e cedência a terceiros lhe estava vedada.
11. O arguido tinha perfeito conhecimento do teor dos vídeos e ficheiros que detinha, e que toda a atividade relacionada com esses vídeos e ficheiros, designadamente: utilização, detenção, divulgação, exportação ou cedência, lhe estavam vedadas.
12. Assim como sabia que os ficheiros já referidos, representavam menores de 14 anos de idade, expondo os seus órgãos genitais, de forma sugestiva à prática de atos sexuais.
13. Não obstante, e agindo deliberada, voluntária e conscientemente, o arguido para sua satisfação libidinosa e da sua vontade sexual, e bem assim das pessoas com quem partilhava os vídeos, decidiu, deter, armazenar, divulgar, exportar e ceder os referidos vídeos, contendo pornografia de menores, e decidiu partilhar os referidos vídeos contendo pornografia de menores.
14. O arguido bem sabia que os ficheiros que partilhou, com imagens pornográficas, expunham menores, com idade inferior a 14 anos, e que, por tal circunstância, estava proibida a sua detenção, exibição, cedência ou partilha.
15. Quis, ainda assim, deter, e ainda partilhar com terceiros, imagens de menores utilizados em filmes bem como gravações pornográficos representando menores de 14 anos de idade na prática de atos sexuais, designadamente de coito vaginal e anal, e ainda, para satisfazer a sua libido, o que conseguiu, bem sabendo que a partilha e a sua detenção eram proibidas.
16. O arguido tinha perfeito conhecimento de que as referidas imagens e filmes de teor pornográfico com utilização de crianças, induzem à exploração efetiva dessas crianças, utilizadas para a realização dos filmes em causa, não obstante, não se inibiu de as deter, exibir, partilhar, ceder, através da Internet.
17. O arguido atuou em todos os momentos de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
18. À data dos factos supra referidos, em 2018, a situação de AA, era relativamente idêntica à atual.
19. O arguido reside há 22 anos na morada dos autos, em ..., em casa própria, adquirida conjuntamente com a mulher com recurso a crédito bancário.
20. AA trabalha como taxista por conta própria desde 2009. Anteriormente trabalhou na construção civil, vários anos por conta de outrem e durante 8 anos em nome individual.
21. A mulher, de 62 anos, está reformada por invalidez há quase 20 anos, na sequência de doença oncológica. Antes era trabalhadora agrícola.
22. A situação económica do agregado é ajustada e garante a subsistência familiar sem constrangimentos significativos.
23. O processo de desenvolvimento de AA decorreu inserido no agregado de origem, de condição socioeconómica desfavorecida. A infância e adolescência são descritas como gratificantes, não obstante a vivências de pobreza até à adolescência. Neste contexto começou, ainda em criança, a trabalhar com o pai na construção civil, comprometendo o percurso escolar, entretanto retomado no ensino noturno, concluindo o 9.º ano. Aos 31 anos de idade fixou-se no ... com a família por motivos profissionais.
24. AA casou com a atual mulher, também natural de ..., aos 19 anos de idade e mantém com esta um relacionamento afetivo consolidado e estável. Conheceram-se na escola e começaram a namorar quando AA contava 16 anos de idade.
25. O matrimónio surgiu naturalmente e aconteceu por amor.
26. Ambos iniciaram vida sexual nessa altura.
27. Da união resultaram 2 filhos, com quem têm ligação de proximidade, ambos a residir no sotavento algarvio, convivendo frequentemente com estes, com os netos e bisnetos.
28. Todos têm conhecimento do atual processo e apoiam-no incondicionalmente.
29. No plano de saúde não há nada de relevante a assinalar, nomeadamente consumos de substâncias psicoativas ou álcool, potenciais desinibidores comportamentais e suscetíveis de influenciar o comportamento sexual.
30. No que toca à sexualidade, é referido um desenvolvimento ajustado, sem distorções, desvios ou procura de estímulos desajustados.
31. A vivência conjugal na intimidade é descrita por ambos como gratificante.
32. Face aos factos de que se encontra acusado, AA reconhece parcialmente o seu envolvimento, mas refuta ter sido motivado por impulsos sexuais, verbalizando que agiu apenas por diversão.
33. AA denota uma perceção difusa sobre a gravidade deste tipo de crimes e, consequentemente, défices de consciência do valor do bem jurídico em causa.
34. O arguido não demonstrou arrependimento, pese embora se mostre envergonhado pela sua submissão a julgamento e pelo facto de a sua mulher ter vindo a ter conhecimento dos factos referidos em 1 a 17.
35. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
*
2. Factos não provados:
Com relevo para a discussão da causa, não se provaram os seguintes factos constantes da acusação:
1 - Os factos descritos em 1 dos factos provados ocorreram no dia 26/07/2018.
2 - Os factos descritos em 1 dos factos provados ocorreram pelas 08:46:02 UCT.
3 - O menor a que respeita o vídeo referido em 1 dos factos provados tem menos de 6 anos.
4 - A menor referida em 3 dos factos provados tem menos de 12 anos de idade.
5 - O menor referido em 4 dos factos provados tem menos de 10 anos de idade
6 - O menor referido em 4 dos factos provados penetra a vagina da mulher.
7 - O menor referido em 4 dos factos provados ejacula.
8 - No dia 03/08/2018 foi também efetuado o upload da seguinte imagem: uma imagem do corpo desnudado de uma criança, do sexo masculino, aparentemente com menos de seis anos de idade, com as pernas abertas, deitado ao lado de uma rapariga, a qual lhe manipula os órgãos genitais, friccionando-os, ao mesmo tempo que a criança lhe apalpa as mamas.
9 - Os factos descritos em 6 dos factos provados ocorreram pelas 15:45:30 UTC.
10 - O menor referido em 6 dos factos provados tem menos de 6 anos de idade.
11- Os factos descritos em 7 dos factos provados ocorreram pealas 22:17:34.
12 - O menor referido em 7 dos factos provados tem menos de 6 anos de idade.
13 - Os factos descritos em 8 dos factos provados ocorreram no dia 31/10/2018.
14 - Os factos descritos em 8 dos factos provados ocorreram pelas 22:17:34UTC.
15 - O arguido também efetuou o upload dos ficheiros referidos em 1 a 9 dos factos provados através da rede social facebook nos dias 26 de Julho de 2018, 27 de Outubro de 2018 e 20 de Novembro de 2018.
16 - O arguido fez a divulgação dos vídeos a partir do endereço eletrónico que lhe pertencia, ....
17 - Foram em número de sete os ficheiros com imagens de menores enviados no dia 03/08/2018 para o utilizador da conta do Facebook com a identificação URL ....
18 - Foram em número onze os ficheiros de vídeo referentes a menores enviados a cada um dos utilizadores referidos em 6, 7 e 8 dos factos provados.
19 - Os factos descritos em 9 a 17 dos factos provados reportam-se a um total de 18 ficheiros, tendo-se provado apenas que se reportam aos ficheiros descritos em 1 a 4 e 6 a 8 do factos provados, num total de cinco ficheiros, sendo dois deles remetidos em repetição, no dia 03/08/2018 e um deles remetido para três utilizadores, no dia 19/11/2018.

*
Não se considerou nos factos provados e não provados a matéria descrita em 1 e 2 da acusação, por se tratar de uma formulação genérica da descrição factual concreta que o Mº Pº descreve nos demais artigos da acusação, sendo esta que interessa.
Igualmente não se considerou nos factos provados e não provados que tenham sido utilizadas ligações de internet às quais foram atribuídos o IP 87.103.65.215 (no dia 27-10-2018, às 09:35:22 UTC), o IP 87.103.71.65 (no dia 20-11-2018, às 09:47:54 UTC), o IP 87.103.20.16 (no dia 30-11-2018, às 19:32:26 UTC), o IP 87.103.21.78 (no dia 03-08-2018, às 01:19:53 UTC), e o IP 148.69.51.199 (no dia 03-08-2018, às 20:15:01), por tal se mostrar irrelevante ao preenchimento dos elementos do tipo de crime imputado ou circunstância do mesmo.
*
Motivação da decisão de facto:
O tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade.
Assim, o decidido em 1 a 9 dos factos provados e 1 a 19 dos factos não provados funda-se no teor das declarações prestadas pelo arguido, com o depoimento das testemunhas BB, inspetor da Polícia Judiciária, CC, conhecido do arguido e do consultor técnico DD, inspetor da Polícia Judiciária, tudo em conjugação com os relatórios do ... – ... que constituem fls. 14 a 18 dos autos principais e de fls. 11 a 17 e 30 a 33 dos autos apensos, o teor das imagens de fls. 18 e 34 dos autos apensos, cuja tradução consta de fls. 255 a 269, bem como o teor dos Cds que constam de fls. 40 dos autos principais e de fls. 81 dos autos apensos.
Assim, o arguido, AA, reconheceu que o perfil de facebook mencionado na acusação lhe pertence, assim, como o endereço de correio eletrónico e número de telemóvel aí indicados.
Negou, no entanto, que tivesse partilhado, pelo menos estando ciente de tal, os vídeos contendo imagens com menores que constam dos Cds.
A esse respeito refere que aderiu a um grupo no Whatsapp de pornografia com adultos, recebendo vídeos dessa natureza, que por vezes partilhava, mormente com o CC, seu colega de trabalho e o EE, seu conhecido, sendo que a maioria das vezes os partilhava sem previamente visionar o seu conteúdo, sempre através do Messenger do facebook, o que ocorreu ao longo de um período aproximado de 3 meses no ano de 2018.
Que, no entanto, pela ocasião desses envios a sua conta de facebook e Messenger associado foi bloqueada pelo próprio facebook, com a indicação de “publicação imprópria”.
Nega conhecer qualquer FF e, consequentemente, ter enviado para o mesmo qualquer vídeo.
Que todas as partilhas de vídeos tiveram lugar a partir do seu telemóvel, que andava sempre consigo, permanecendo na sua mesa de cabeceira, enquanto pernoitava, sendo que se deitava sempre cedo.
A testemunha BB depôs quanto ao conteúdo dos relatórios de fls. 14 a 18 dos autos principais e de fls. 11 a 17 dos autos apensos. Mormente esclareceu que respeitam aos dias 03/08/2018 e 19/11/2018, respetivamente e à partilha de sete e onze ficheiros, também respetivamente, sendo que poderão existir vídeos repetidos, no envio, se a pessoa clicar mais que uma vez no envio, não recordando se tal sucedeu in casu e que respeitam a uploads. Quanto a outras datas indicadas nos relatórios, respeitam muitas vezes à data de criação do perfil.
Quanto à forma de partilha dos vídeos em causa, refere que a mesma ocorreu exclusivamente através do Messenger e que o endereço de email indicado nos sobreditos relatórios é o endereço associado à criação da conta de facebook, sem qualquer ligação com o envio dos vídeos.
Que no que respeita ao relatório de fls. 11 a 17 dos autos apensos, se refere ao envio para três destinatários, sendo esses envios acompanhados (antes ou apos) de mensagens trocadas com os destinatários.
Que os relatórios contêm informação precisa acerca do seu conteúdo, apenas não sendo totalmente fiável a indicação da localização do IP, obtida através de geolocalização, esta a carecer de confirmação junto das operadoras telefónicas.
A testemunhas CC, colega de trabalho do arguido na profissão de taxistas, refere conhecer o arguido há pelo menos 9 anos, reconhecendo que por vezes, embora poucas, troca mensagens com o arguido através do facebook, sendo que geralmente as apaga logo, não reconhecendo envios de cariz sexual.
DD, por seu lado, após prévia análise dos relatórios que constituem fls. 14 a 18 dos autos principais e de fls. 11 a 17 e 30 a 33 dos autos apensos, o teor das imagens de fls. 18 e 34 dos autos apensos, além de reiterar aquilo que já fora explanado pela testemunha BB, esclareceu que UTC e PDT, associados aos períodos temporais constantes dos relatórios correspondem, respetivamente, ao nosso fuso horário e dos Estados Unidos.
Mais esclareceu que a fls. 15 o segundo IP indicado corresponde ao IP referente ao Upload, que o IP capture date corresponde à data em que o IP foi “captado”, que pode não corresponder à data do envio, já que hoje os IPs podem perdurar para além de uma utilização.
Esclareceu ainda que cada relatório contém a indicação do número e natureza (vídeo ou fotografia) do ficheiro e que esse número se encontra indicado em cada um dos vídeos, havendo que efetuar a respetiva correspondência.
Esclareceu também que a fls. 16 verso, o último upload indicado corresponde àquele que foi identificado como imagem de exploração infantil, o que não significa que qualquer das outras, que foram captadas e se mostram indicado como tendo antecedido esta não correspondam também a imagens de prática sexuais envolvendo menores. Que tal imagem, no relatório dos autos apensos referente ao dia 19/11, se mostra indicada a fls. 13 do mesmo.
No que respeita ao relatório de fls. 30 a 33 desse apenso, referente ao dia 30/11, refere que foi identificado o vídeo e, bem assim, que o mesmo foi partilhado, não se tendo, no entanto, revelado possível a identificação do destinatário do mesmo.
*
Ora, da conjugação de todos estes meios de prova, desde logo não restam dúvidas de que o arguido, através do Messenger associado ao perfil de facebook indicado na acusação, efetuou partilhas de ficheiros de vídeo e fotografia com terceiros; que tais partilhas tiveram lugar nos dias 03/08/2018, 19/11/2018 e 30/11/2018; que na primeira das referidas datas corresponderam a sete ficheiros, na segunda a onze ficheiros e na terceira a um ficheiro.
Quanto aos demais dias referidos na acusação como tendo sido objeto de partilhas, as mesmas não se verificaram, correspondendo as datas indicadas às datas de criação ou captação dos IPs associados às contas descritas na acusação.
Mais não restam dúvidas que esses ficheiros foram partilhados com os utilizadores indicados na acusação, na primeira e segunda datas supra referidas e que na terceira se desconhece o utilizador com o qual foi efetuada a partilha.
Por fim, igualmente resulta da conjugação dos referidos meios de prova que de entre os ficheiros supra referidos, constam os ficheiros que se fizeram constar dos factos provados.
Vejamos mais concretamente acerca das conclusões supra explanadas.
Os relatórios supra referidos são claros e precisos quanto à identificação do utilizador da rede social facebook, que através do Messenger efetuou o upload dos vídeos e os utilizadores com os quais foram partilhados.
Também não restam dúvidas de que esse utilizador foi o arguido, já que não só o nome do perfil de utilizador de facebook e do endereço de correio eletrónico associados a tal perfil contêm na sua formação o nome completo do arguido, como o próprio reconheceu que esse perfil, endereço de correio eletrónico e número de telefone associado e indicado nos relatórios lhe pertencem. Assim como referiu ter a sua conta, incluindo acesso ao Messenger, sido bloqueada pelo próprio facebook, com alusão a divulgação de conteúdo impróprio, pela ocasião das partilhas de vídeo que efetuava.
Não restam, assim, dúvidas, de que os envios foram efetuados através do Messenger do arguido.
Sustentou o arguido não poder ser valorada a informação que foi remetida aos autos pelas operadoras telefónicas e que consta de fls. 30 a 33 e 161 a 164 dos autos principais, bem como a fls. 74 a 75 dos autos apensos, em face da declaração de inconstitucionalidade por parte do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição.
Sucede que as referidas informações das operadoras telefónicas respeitam tão só à identificação e domicílio do utilizador dos IPs indicados nos sobreditos relatórios (o mesmo se dizendo quanto à informação do facebook de fls. 73 a 128, esta também quanto aos IPs utilizados e respetivo horário).
Ora, tal como supra referido, o nome do utilizador do perfil de facebook e do endereço de correio eletrónico, ambos com o nome do arguido, são de molde a que se conclua que pertencem ao arguido, que de resto reconheceu efetivamente não só pertencerem-lhe como terem sido bloqueados pelo próprio facebook após a partilha das imagens. Daí que se mostre totalmente desnecessária a valoração dos elementos de fls. 30 a 33 e 161 a 164 dos autos principais, bem como a fls. 74 a 75 dos autos apensos e a impossibilidade de valoração dos mesmos (por a sua obtenção ter ocorrido ao abrigo das aludidas normas cuja inconstitucionalidade foi declarada, com força obrigatória geral) se mostre totalmente irrelevante à demonstração dos factos dados como provados. O mesmo se dizendo quanto à informação de fls. 73 a 128 dos autos principais.
Quanto aos destinatários dos ficheiros, embora o arguido apenas reconheça ter enviado a CC e EE, o relatório de fls. 11 a 17 do apenso é claro quanto ao envio também para o utilizador FF, tendo tanto BB como DD esclarecido que nessa parte os relatórios são precisos e sem dúvidas quanto ao envio para um tal utilizador.
E se é certo que o arguido tentou passar a ideia de que poderia ter sido um terceiro a efetuar o envio, acaba por reconhecer que os envios foram sempre a partir do seu aparelho telefónico e que este andava sempre consigo e que enquanto dormia o mantinha junto da sua mesa de cabeceira. De resto, como esclareceu BB, uma utilização da conta por terceiro implicaria uma alteração do IP, que não se verificou, tal como resulta do teor do relatório de fls. 11 a 17 do apenso.
Por fim, quanto ao conteúdo dos vídeos, compulsados os Cds juntos aos autos principais e apensos conclui-se que o Cd dos autos principais contém um total de sete ficheiros, todos eles identificados no respetivo relatório (o número aposto em cada imagem gravada no CD mostra-se descrito no relatório), sendo que desses sete ficheiros dois deles foram remetidos duas vezes e um outro corresponde a uma imagem de uma mão com quatro dedos fechados e o polegar apontado ao ar, este também remetido duas vezes.
No que respeita aos autos apensos, o CD contém a gravação referente aos dias 19 e 30 de novembro. Quanto ao primeiro dos referidos dias, verifica-se que para os três destinatários foi remetido o mesmo vídeo com a imagem de uma criança em práticas sexuais com uma adulta. Quanto às demais partilhas constantes do CD e relatório, mencionadas como tendo antecedido aquela imagem, verifica-se que se trata de vídeos de cariz sexual, mas envolvendo adultos ou animais, estando também um vídeo que em grande plano aparenta uma vagina a ser friccionada, mas ao afastar a imagem corresponde a uma das extremidades do olho a ser friccionada.
Assim, não se pode concluir, contrariamente ao que faz a acusação, que os onze ficheiros remetidos correspondem a imagens envolvendo prática sexuais com menores, apenas se podendo concluir que três das partilhas o foram, todas elas atinentes ao mesmo vídeo, que se mostra em triplicado no CD.
Assim, quanto aos demais ficheiros não descritos nos factos provados (a acusação refere um total de 18 ficheiros, embora apenas aí conste a descrição de 4 ficheiros diferentes), embora efetivamente se mostrem gravados nos Cds um total de 18 ficheiros e que correspondam a partilhas por parte do arguido, estando todos eles descritos nos relatórios supra referidos, os ficheiros não mencionados nos factos provados correspondem a imagens de prática sexuais, mas com adultos ou animais, pelo que não se efetuou a sua descrição, havendo que considerar não provado que todos os 18 ficheiros correspondem a imagens de cariz sexual envolvendo crianças.
Por fim, quanto ao vídeo correspondente ao dia 30/11, verifica-se que se trata de um único vídeo, sendo isso que também resulta do relatório de fls. 30 a 33 do apenso. Note-se que o vídeo que foi remetido a 19/11 corresponde a um excerto deste vídeo, amplamente mais extenso.
Da compulsão dos Cds resultaram ainda as descrições do teor de cada vídeo, nos termos que se fizeram constar em 1 a 9 dos factos provados.
Também se mostra seguro que o arguido sabia o conteúdo dos vídeos que enviou e toda a factualidade descrita em 10 a 17 dos factos provados. A esse respeito, pese embora o arguido refira que habitualmente efetuava partilhas sem sequer visionar o seu conteúdo e que essas partilhas eram esporádicas, a partilha com os mesmos interlocutores de vídeos de cariz sexual com adultos antes das partilhas das imagens atinentes a práticas sexuais com menores, associada aos comentários que acompanham tais partilhas, tais como “Kit mãos livres”, referente a um vídeo de com prática de poerismo, com a expelição de 3 bolas de uma vagina sem qualquer auxílio das mãos, ou “é fodida por dois pretos e ainda fica mais gostosa”, sendo que em um dos vídeos se verifica a penetração simultânea, no ânus e vagina, de uma mulher por dois pénis de indivíduos negros ou “para quem diz que apenas coloco vídeos de foda, aqui fica um de música”, sendo visível um cão com head-phones colocados a ouvir música, enquanto assiste na televisão a um ato sexual entre dois cães.
É certo que o arguido referiu desconhecer essas mensagens e nunca as ter enviado. Porém, quanto a tal, os relatórios são claros e o seu conteúdo mostra-se, nessa parte, absolutamente fidedigno, tal como foi esclarecido por BB e DD (repita-se que apenas quanto à indicação da localização do endereço de IP, à sua geolocalização foi referido que o conteúdo dos relatórios não é fiável, sendo-o quanto aos demais dados neles constantes).
A partilha dos vídeos em questão, associada aos referidos comentários é de molde a que se mostre posta em causa a versão do arguido, sendo patente que o arguido sabia bem o conteúdo do que partilhava e que via os vídeos partilhados antes do seu envio. Igualmente não colhe que desconhecesse que a partilha constituía crime, numa época em que a criminalização de tais condutas se mostra amplamente divulgada na comunicação social e até redes sociais, que de resto o arguido utilizava.
Por fim, refira-se, quanto à idade dos menores, que resulta claramente do teor dos vídeos que os menores neles envolvidos têm pelo menos idade inferior à que, em cada caso, se fez constar nos factos provados, face ao seu desenvolvimento físico e aspeto. Já não se considerou seguro que face a um tal desenvolvimento tivessem a idade constante da acusação, que, assim, se deu como não provada.
O supra exposto funda, assim, o decidido em 1 a 17 dos factos provados e em 1 a 19 dos factos não provados.
Por fim, o decidido quanto à factualidade descrita em 18 a 34 dos factos provados funda-se no teor do relatório social de fls. 225 a 229. Mormente quanto à falta de arrependimento demonstrada pelo arguido, além do referido no relatório social, a conjugação desse elemento com a conduta do arguido adotada em julgamento, que denota essa falta de arrependimento. O arguido não se limitou a exercer o direito ao silêncio, como negou veementemente factos, bem sabendo da sua prática e demonstrando indiferença pelo bem jurídico protegido.
E quanto à descrita em 35 dos factos provados no teor do CRC de fls. 233 verso.
*
III - Aspetos Normativos:
1- Enquadramento jurídico-penal
O arguido encontra-se acusado da prática, como autor material, de quarenta crime de pornografia de menores, p. e p. pelo art. 176º, nº 5 do Código Penal e de quarenta crime de pornografia de menores, agravados, p. e p. pelo art. 176º, nº 1, als. c) e d) e nº 8 e art. 177º, nº 1, al. c), nº 7 e nº 8, todos do Cód. Penal.
Dispõe o artigo 176º do Código Penal, sob a epígrafe «Pornografia de Menores», na redação vigente na data da prática dos factos, ou seja, a quinta versão, decorrente das alterações pela Lei nº 103/2015, de 24/08.
1 - Quem:
a) Utilizar menor em espetáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim;
b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim;
c) Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior;
d) Adquirir ou detiver materiais previstos na alínea b), com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
5 - Quem, intencionalmente, adquirir, detiver, aceder, obtiver ou facilitar o acesso, através de sistema informático ou qualquer outro meio aos materiais referidos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão até 2 anos.
7- Quem praticar os atos descritos nos n.ºs 5 e 6 com intenção lucrativa é punido com pena de prisão até 5 anos.
8 - A tentativa é punível.
Por seu lado, dispõe o artigo 177.º, sob a epígrafe “Agravação”, na redação vigente na data da prática dos factos, ou seja, a quinta versão, decorrente das alterações pela Lei nº 103/2015, de 24/08 e na parte que ora interessa:
1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou
b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.
(...)
6 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos.
7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.
8 - Se no mesmo comportamento concorrerem mais do que uma das circunstâncias referidas nos números anteriores só é considerada para efeito de determinação da pena aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou outras valoradas na medida da pena.
*
Os arts. em análise foram objeto de alteração pela Lei nº 40/2020, de 18/08, passando a ser do seguinte teor, na parte que ora interessa:
Art. 176º:
Quem
c) Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir, ceder ou disponibilizar a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior;
d) Adquirir, detiver ou alojar materiais previstos na alínea b) com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder;
(...)
8 - Para efeitos do presente artigo, considera-se pornográfico todo o material que, com fins sexuais, represente menores envolvidos em comportamentos sexualmente explícitos, reais ou simulados, ou contenha qualquer representação dos seus órgãos sexuais ou de outra parte do seu corpo.
9 - (Anterior n.º 8.)
O art. 177º, por seu lado, foi objeto de alteração pela Lei nº 101/2019, de 05/09, passando a ser do seguinte teor:
Art. 177º:
1- ...
c) For pessoa particularmente vulnerável, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.
(...)
6 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 16 anos;
7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 14 anos.
8 - ...»
Por sua vez, a já referida Lei nº nº 40/2020, de 18/08, igualmente alterou este
Artigo 177.º, passando a ser do seguinte teor:
(...)
7 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º e 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos.
8 - ...»
*
Verificando-se uma sucessão de leis penais, como sucede, in casu, já que o crime base imputado ao arguido se encontra abrangido por 2 regimes diferentes e agravação por três regimes diferentes, terá o julgador que determinar qual das leis em confronto é mais favorável ao infrator (art. 2º, nº 4 do Código Penal).
Tal apreciação não poderá fazer-se em abstrato, tendo antes que reconduzir-se à apreciação das circunstâncias concretas do caso, o que implica que o tribunal realize todo o processo de determinação da medida concreta da pena face a cada uma das leis em confronto (art. 2º, nº 4 do Cód. Penal).
O juízo de favor deve resultar da consideração da totalidade do regime a que o caso se submete e não da consideração isolada de um elemento do tipo legal ou da sanção. A este propósito refere M. Gonçalves (CP Português, Anotado e Comentado, 12ª ed. - 1998, p. 55), na mesma linha de orientação do Assento do STJ, publicado em 17 de Março de 1989 que, com a substituição de normas (Projecto de 63) por regime (CP), pretendeu-se "acentuar bem haver que optar em bloco pelo regime anterior ou pelo novo (...), não sendo por isso, à falta de lei expressa, lícito aplicar normas de um e de outro regime".
Antes de se proceder a uma análise mais detalhada do ilícito, cumpre referir que as alterações ocorridas ao art. 176º não são, in casu, relevantes, porquanto apenas foram aditadas às alíneas c) e d) do nº 1 as expressões/condutas supra sublinhadas, sendo que as condutas descritas na acusação e imputadas ao arguido se integram nas demais condutas descritas no preceito e que não foram objeto de alteração.
Apenas o nº 8 do preceito constitui uma inovação em relação à redação vigente na data da prática dos factos.
Porém, um tal preceito constitui apenas elemento definidor do que seja material pornográfico, o que até então era integrado pelo julgador, com recurso a critérios doutrinários e jurisprudenciais, no essencial os que vieram a ser plasmados no preceito.
No que respeita à agravação do art. 177º, verifica-se, no que ao caso dos autos interessa, que a única alteração relevante consiste na redação dada à al. c) do nº 1 do preceito, que se mostra imputada ao arguido na acusação e constitui uma neocriminalização, já que inexistente redação semelhante na data da prática dos factos.
Igualmente a punição das condutas levadas a efeito na presença de menor de 16 anos constituem uma neocriminalização não prevista na data da prática dos factos.
Assim sendo, inexistindo alteração relevante no que concerne ao crime base, o mesmo não se diga perante a alteração ao art. 177º, referente à agravação da conduta, que veio punir condutas imputadas ao arguido na acusação e não previstas na data da prática dos factos, pelo que terá de se concluir que o regime vigente na data da prática dos factos se mostra mais favorável ao arguido, sendo esse o regime aplicável.
*
Analisemos agora os elementos objetivos e subjetivos do tipo.
A) TIPO OBJETIVO DE ILÍCITO:
Conforme refere FIGUEIREDO DIAS [p. 342, § 20, da obra citada supra], é possível identificar, no tipo objetivo de ilícito, os seguintes conjuntos de elementos:
- Os que dizem respeito ao autor, pois, vem sendo entendimento pacífico que o autor da ação, apesar da sua natureza “subjetiva” ou “intersubjetiva”, é elemento constitutivo do tipo objetivo de ilícito [vide FIGUEIREDO DIAS, in ob. e loc. cit.; TERESA BELEZA, in Direito Penal II, pp. 116 e ss.; HENRIQUE SALINAS MONTEIRO, in Comparticipação em Crimes Próprios, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1999, p. 11 e JOSÉ LOBO MOUTINHO, in Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português, p. 255];
- Os relativos à conduta, que assumem a função de delimitação ou função negativa de excluir da tipicidade de comportamentos jurídico-penalmente irrelevantes [Cf. FIGUEIREDO DIAS, in ob. e loc. cit., pp. 355/356, §37.]. Nos elementos relativos à conduta encontramos a descrição da(s) ação(ões) típica(s) e, nalguns casos, o objeto da ação.
- Os relativos ao bem jurídico [configurado como expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, constituindo um bem em si mesmo, como tal, juridicamente protegido], que não se confundem com os elementos relativos ao objeto da ação, os quais se apresentam como uma manifestação real da noção do mesmo [Cf. de FIGUEIREDO DIAS, in ob., cit., p. 359, § 44 e MARIA FELINO RODRIGUES, in “As incriminações de Perigo e o Juízo de Perigo no Crime de Perigo Concreto”, p. 22, nota 15, em que a autora refere que na doutrina alemã se distingue entre o Tatobjekt (que corresponde ao objeto material do crime/ação), por contraposição ao Rechtsgutsart (que corresponde o bem jurídico-valor, bem jurídico-categoria)].
Analisemos cada um desses conjuntos relativamente ao crime que nos ocupa, começando pelo bem jurídico protegido, dado que uma correta interpretação dos elementos que dizem respeito ao autor e à conduta pressupõe, antes de mais, a determinação do respetivo objeto de tutela [dito de outra forma, o modus aedificandi criminis, reflete a opções do legislador relativamente ao bem jurídico a proteger].
1. O BEM JURÍDICO PROTEGIDO:
O bem jurídico protegido pela norma em causa está longe de ser consensual, quer ao nível da doutrina, quer ao nível da jurisprudência.
Dado que a tomada de posição sobre tal discussão assume enorme relevância prática, quer ao nível da interpretação dos elementos objetivos do tipo, quer ao nível do número de crimes efetivamente cometidos [a chamada problemática, objeto de acesa e muito complexa discussão, do concurso de crimes], quer ainda ao nível da relevância do consentimento dos maiores de 16 anos, entende-se, ainda que em moldes de síntese apertada, expor as principais posições relativamente ao bem jurídico protegido pelo tipo de crime descrito nas alíneas c) e d), do n.º 1 do artigo 176º, do Código Penal e nºs 4 e 5 (dado que os factos descritos na acusação, parcialmente considerados provados, não são subsumíveis às modalidades previstas nas alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 176º, do Código Penal).
A primeira grande divergência verifica-se entre aqueles que sustentam que bem jurídico protegido, nas alíneas c) e d), do n.º 1 e números 4 e 5, do artigo 176º, do Código Penal, à semelhança do que sucede nas alíneas a) e b), do n.º 1, do mesmo artigo [em que todos estão de acordo quanto ao bem jurídico protegido], é iminentemente pessoal e aqueles que sustentam que o bem jurídico protegido pelas normas em causa é supra individual.
A primeira das posições sustenta que se está perante um bem iminentemente pessoal, porque o bem jurídico protegido à autodeterminação sexual. Para o efeito, argumenta que é a própria lei que equipara e agrupa numa mesma unidade punitiva a utilização de menor (als. a) e b) do nº 1 do artº 176º) com a produção, aquisição, distribuição etc. do material proveniente da atuação prevista nas primeiras duas alíneas (als. c) e d) do nº 1 do artº 176º). Ou seja, é tão grave quem utiliza o menor na produção pornográfica como aquele que adquire esse material.
Por outro lado, o artigo 176º encontra-se inserido na secção II do Código Penal dedicado aos crimes contra a autodeterminação sexual.
Por último, argumenta que quem produz, divulga, importa ou exporta pornografia infantil contribui para a proliferação de material cuja génese é a violação de um dos direitos mais fundamentais das crianças.
Na realidade a pornografia infantil não implica somente a coação sobre um menor, limitando a sua liberdade e autodeterminação sexual através da imposição de práticas de atos sexuais (muitas vezes de toda a espécie e aberração) para os quais o mesmo não esteja preparado e que para as quais não tenha sequer o discernimento e consciência de compreender, ela implica, na esmagadora maioria dos casos, especialmente quando está em causa a pornografia industrial que prolifera na darkweb, o tráfico de crianças, o seu maus-tratos físico para além de psicológico, a sua violação repetida, muitas vezes filmada como objeto do próprio espetáculo pornográfico, o seu desenraizamento familiar, a sua venda e escravização.
Por isso é que o legislador português, seguindo diretrizes internacionais no campo de defesa dos menores, classificou e agrupou vários atos como integrando o conceito de pornografia de menores e previu a mesma moldura penal.
No sentido desta posição o acórdão da Relação de Lisboa de 17-3-2021.
A segunda das posições, isto é, a que defende que o bem jurídico protegido é supra individual, é sustentada pela grande maioria da doutrina, que, no essencial, argumenta, em defesa de tal posição, que como as condutas descritas alíneas c) e d), do n.º 1 e nos n.os 4, 5 e 6, do artigo 176º, do Código Penal, não há, ao contrário do que sucede nas alíneas a) e d b), do n.º 1, do citado preceito, uma relação direta com o menor ou com o menor representado de forma realista, as mesmas não violam a liberdade do menor uma vez que esta já foi violada ab initio com o uso do mesmo nos materiais pornográficos.
A violação do bem jurídico individual liberdade/autodeterminação sexual em momento anterior à produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, cedência e disponibilização impossibilita que se possa estabelecer um nexo causal entre a conduta do agente que divulga os materiais pornográficos com a conduta que lesa a liberdade/autodeterminação sexual, relativamente à qual tais condutas constituem uma referência longínqua, permanecendo válidas, a este propósito, a palavras de FIGUEIREDO DIAS, a propósito da então alínea d), do artigo 172º, na redação em vigor entre 1998 e 2011, em que aquele autor, sustentou que a criminalização de fotografias, filmes e gravações pornográficas com crianças “ não pode deixar se ser iluminada por um bem jurídico (supraindividual) diverso do da liberdade e autodeterminação sexual de uma pessoa (de uma criança)” [in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp. 542 e 548.]
No sentido de que está perante um bem jurídico supraindividual se pronunciaram também MARIA JOÃO ANTUNES e CLÁUDIA SANTOS [in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2012, pp. 867 e 881] PEDRO SOARES DE ALBERGARIA/PEDRO MENDES LIMA [in “O crime de detenção de pseudopornografia infantil – evolução ou involução?”], MARIA JOÃO ANTUNES [in “Crimes contra a Liberdade e a Autodeterminação Sexual dos Menores”, ambos publicados na Revista Julgar, Especial, n.º 12, Set./Dez.2010], INÊS FERREIRA LEITE [in “Pedofilia- Repercussões nas novas formas de criminalidade na teoria geral da infração”, 2004, pág. 28 ss.], ANA RITA ALFAIATE [“A relevância penal da sexualidade dos menores”, 2009, pág. 90 e ss. ], ANDREIA ALMEIDA [in “A relevância processual dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual dos menores”, FDUNL, 2013, pág. 19] e MOURAZ LOPES/TIAGO MILHEIRO [in “Crimes Sexuais, análise substantiva e processual”, dezembro de 2019, p. 221].
Relativamente à identificação de qual o bem jurídico supraindividual, os autores acima citados divergem entre si, assumindo os juízes que compõem o tribunal coletivo preferência pela posição que argumenta que o bem jurídico protegido é diretamente a proteção da personalidade em desenvolvimento dos menores, entendida tanto numa dimensão interior (psico-física ou moral) como noutra exterior (social ou relacional), embora não deixando de atentar, ainda que remotamente, na sua autodeterminação sexual, a qual é posta em causa com a exibição e cedência de fotografia, filmes ou gravações pornográficos, desde que aí seja utilizados menores [ou seja, a sustentada por de PEDRO SOARES DE ALBERGARIA/PEDRO MENDES LIMA, in ob., acima citada].
Com efeito, tanto a produção como a proliferação dos materiais pornográficos que utiliza os menores e contribuem para as perturbações psicológicas das crianças e os jovens, que, dessa forma, são “coisificadas”.
2. O AUTOR DA AÇÃO:
O crime de pornografia de menores não atribui à pessoa pressuposta no vocábulo “quem” uma determinada qualidade ou sobre mesma faz recair um dever especial, pelo que pode ser cometido por qualquer pessoa individual ou coletiva [cf. n.º 2, do artigo 11º, do Código Penal] e, como tal, consubstancia um crime comum [sobre o conceito de crime comum, por contraposição aos crimes específicos, vide, para maiores desenvolvimentos, FIGUEIREDO DIAS, com colaboração de MARIA JOÃO ANTUNES; SUSANA AIRES DE SOUSA; NUNO BRANDÃO e SÓNIA FIDALGO, in ob., cit., pp. 353/354, § 34º].
Quanto ao conceito de autor, rege o acima transcrito artigo 26º [1ª preposição, a única que nos interessa para o caso que nos ocupa], segundo o qual é autor quem executar o facto, por si mesmo.
Nos delitos dolosos de ação, o direito português consagra, um conceito restritivo de autor, ancorado na chamada teoria do «domínio (funcional) do facto».
A ideia central da referida teoria pode traduzir-se, de forma sintética e conclusiva, nos seguintes termos: autor é quem domina o facto, quem dele é “senhor”, quem toma a execução “nas suas próprias mãos”, de tal modo que dele depende decisivamente o se e o como da realização típica [Cf. FIGUEIREDO DIAS, in ob., cit., p. 894, §16]. Quando é o próprio agente que procede à realização típica, quem leva a cabo o comportamento com o seu próprio corpo estamos no chamado domínio da autoria imediata [ROXIN, in “Autoria e Domínio do Facto» com 1ª edição em de 1963, e 7ª edição de 2000, apud FIGUEIREDO DIAS, in ob., cit., § 19, p. 896 e apud CONCEIÇÃO VALDÁGUA, in Início da Tentativa do Coautor, Contributo para a Teoria da Imputação do Facto na Coautoria, 2ª Edição, Lex, Lisboa, 1993. P. 31, 133 e ss. e 145 e ss].
3. A CONDUTA:
No caso que nos ocupa as únicas condutas com relevo para a decisão são as previstas na alínea c) e d), do n.º 1 do artigo 176º, do Código Penal, já que as demais alíneas são manifestamente inaplicáveis aos factos considerados provados.
No que se refere à conduta prevista na alínea c) [produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título, fotografias, filmes ou gravações pornográficas que utilizem menores], a ação típica pretende, como assinalam JOSÉ MOURAZ LOPES/TIAGO CAIADO MILHEIRO [in Crimes Sexuais, análise substantiva e processual, Almedina, dezembro de 2019, anotação 5 ao artigo 176º, do Código Penal, p. 221], cobrir todo o tipo de disseminação, sem contrapartidas, dos referidos materiais, aí se englobando a venda o empréstimo, o aluguer ou qualquer outra forma de transmissão dos mesmos, através de quaisquer meios de comunicação conhecidos, mormente publicações escritas, meios audiovisuais [televisão] e meios de divulgação por via telemática, mormente redes digitais como a internet, acessíveis a partir computadores, telemóveis ou tablet que, assim, se tornam meios aptos divulgar os materiais em causa, por transferência de ficheiros para outro computador, telemóvel ou tablet, através de específicos programas de partilha, de redes sociais ou de e-mail.
No que se refere ao conceito de importação, não acompanhamos a jurisprudência [vide acórdão da Relação do Porto de 3-12-2014] que sustenta que o download de ficheiros contendo pornografia de menores preencher o conceito de importação, mas sim a jurisprudência, que cremos ser maioritária, que tem sustentado que o download não constitui importação de pornografia de menores [nesse sentido, o já acima referido acórdão da Relação de Évora, de 17-3-2015, acórdão da Relação de lisboa de 15-12-2015].
Porém, as imagens captadas de naturismo, ainda que de crianças, de acordo com o contexto em que se inserem, são apropriadas [caso do trabalho da fotógrafa Sally Mann] e, por isso, não se adequa à categoria de pornografia.
O facto destas imagens poderem causar desejos sexuais não lhes atribui um carácter pornográfico [assim MAXTAYLOR e ETHEL QUAYLE, 2003, Child pornography: an Internet crime, New York, Brunner- Routledge página 3 e 4].
Dito de outra forma, tais imagens e filmes não visam fins sexuais [finalidade exigida pelo n.º 8, do artigo 176º, do Código Penal], mas sim fins que se prendem com a filosofia de vida adotada. Tanto assim é, que tais imagens e filmes não contêm atos sexuais explícitos e os menores que se encontram desnudados, estão enquadrados em cenários que se prendem com as atividades praticadas em espaços destinados à prática do nudismo/naturismo, os quais têm tutela legal [veja-se, no caso português, a Lei n.º 53/2010, de 20 de dezembro].
No que se refere à alínea d), do n.º 1, do artigo 176º, do Código Penal, ela situa-se num patamar ex ante em relação à al. c), mas que o legislador equipara à conduta da al. c). Assim, ali pune-se a conduta de divulgação de material pornográfico com menores, ao passo que aqui se pune a adquisição, detenção, alojamento desse tipo de material, previsto na alínea b), com o propósito de os divulgar através de distribuir, importação, exportação, divulgação, exibição ou cedência.
Também o nº 5 do preceito se situa num patamar ex ante de proteção, desta vez não equiparado em termos de proteção. Com efeito, aqui se punem as condutas consistentes em aquirir, deter, aceder, obter ou facilitar o acesso ao material referido em b) do nº 1), através de sistema informático ou qualquer outro meio. Mas neste caso sem que exista intenção de divulgação ou a própria divulgação.
Ou seja, as condutas descritas no nº 1, als. c) e d) constituem um maius em relação ao minus que constitui a conduta prevista no nº 5. Daí que, sempre que o agente pratica as condutas descritas naquelas condutas o mesmo pratica também as condutas descritas no nº 5, mas com algo mais.
Não obstante a redação vigente na data da prática dos factos não contivesse a definição do que deva entender-se por material pornográfico, o conceito que viria a ser consagrado correspondia ao que vinha sendo entendido como tal na doutrina e jurisprudência, pelo que, face às imagens descritas nos factos provados, não restam dúvidas de que os vídeos aí indicados constituem material pornográfico.
As condutas do arguido descritas nos factos provados preenchem, sem qualquer dúvida, todos os elementos do tipo previstos nas als. c) e d) do nº 1 do art. 176º, bem como do nº 5 do mesmo preceito.
Como referido, no caso dos autos, a conduta que agrava o crime base pelo nº 7 do preceito não oferece dúvidas, dado que o conceito de menoridade de 14 anos é objetivo (sendo que a imputação do nº 1, al. c) era inexistente na data da prática dos factos, havendo, como supra referido, considerar a redação então vigente, por mais favorável ao arguido).
*
B) TIPO SUBJETIVO DE ILÍCITO:
B1) O DOLO DO TIPO:
Da conjugação dos já mencionados e transcritos artigos 13º, 14º e n.º 1 176º, do Código
Penal, o tipo subjetivo do crime de pornografia [matricial ou agravado] exige o dolo.
Quanto ao conceito de dolo e as modalidades que reveste remete-se para o que ficou dito em sede de fundamentação de facto.
Assim sendo, e no que para o caso que nos ocupa interessa, o agente tem de representar que detém e partilha material pornográfico envolvendo menores e, no caso da conduta agravada, envolvendo menores de 14 anos.
B2) ESPECIAL ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO:
No que se refere à alínea d), do n.º 1, do artigo 176º, do Código Penal, ao dolo tipo, seja na forma direta, necessária ou eventual, encontra-se acoplado ao elemento “com o propósito de”, o qual se configura um especial elemento subjetivo do tipo, que faz do crime prevista na referida norma, um crime intencional.
Nesta linha, FIGUEIREDO DIAS, na 3ª edição sua obra Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime [escrita com colaboração de MARIA JOÃO ANTUNES; SUSANA AIRES DE SOUSA; NUNO BRANDÃO e SÓNIA FIDALGO, p. 442], sustenta que estamos especiais elementos subjetivos, que não se confundem com os elementos pertencentes ao dolo do tipo, pois ainda que se liguem à vontade do agente de realização do tipo, o seu objeto situa-se fora do tipo objetivo de ilícito, não havendo, por isso, na parte que lhe toca, uma correspondência ou congruência entre o tipo objetivo e subjetivo.
Todavia, cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado.
Apreciando o caso dos autos à luz das considerações de índole jurídica ora tecidas, é de afirmar que a conduta do arguido, refletida nos factos provados, é suscetível de preencher os elementos subjetivos do tipo de crime de que se encontra acusado.
DO NÚMERO DE CRIMES COMETIDOS:
Assente que o arguido, em três ocasiões espaço-temporais diversas, se encontrava na posse de ficheiros suscetíveis de preencher o crime de pornografia de menores na sua forma agravada, os quais partilhou com terceiros, levanta-se a questão de saber se o arguido incorreu em tantos crimes quanto o número de ficheiros detidos e partilhados.
Por outro lado, dado que conduta do arguido é suscetível de preencher as condutas previstas nas alíneas c) e d), do n.º 1, e do n.º 5, do artigo 176º, do Código de Processo Penal, também na forma matricial e na forma agravada, levanta-se a questão se saber se o mesmo deve ser punido autonomamente por cada uma das condutas que se enquadram nessas normas.
Como já acima ficou dito, a problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infrações), das mais complexas na teoria geral do direito penal, sendo inabarcável considerar todas as teses de mestrado, doutoramento, que se pronunciaram sobre tal questão.
Atalhando caminho, somos da opinião que, em face do disposto no n.º 1, do artigo 30º, do Código Penal, a unidade ou pluralidade de infrações afere-se à luz do concreto número de tipos legais de crime, enquanto portadores de valores jurídico criminais distintos negados, que um determinado comportamento humano viola.
Como se refere no acórdão do STJ de 27-5-2010 [in, dgsi.pt] por ser particularmente claro sobre assunto merece aqui o seguinte destaque: o critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efetivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.
Porém, àquela conclusão sempre há que acrescentar dois limites, enxergados em momentos analíticos posteriores: a culpa do agente e a conexão temporal.
No que se refere à questão da conexão temporal cumpre ter presente que se provou que o arguido praticou as condutas em três momentos espaço-temporais diversos (03/08/2018, 19/11/2018 e 30/11/2018) e violou o mesmo bem jurídico, sendo que em 03/08/2018 a sua conduta respeita ao envio de três vídeos diferentes, ou seja, atinentes a diferentes vítimas e no dia 19/11/2018 estão em causa três partilhas do mesmo vídeo, ou seja, a partilha do mesmo vídeo com três diferentes utilizadores através do messenger.
Considerando que, pelas razões acima expostas, se está perante um bem jurídico supraindividual e não perante um bem jurídico iminentemente pessoal, nada obsta, antes se impõe, que relativamente às partilhas de mais que um vídeo no dia 03/08/2018 se afirme a existência de um único crime, o mesmo se dizendo quanto à partilha do mesmo vídeo com três utilizadores no dia 19/11/2018, com escassos segundos de intervalo entre as três partilhas, já que se terá de concluir nestes dois casos pela inexistência de várias resoluções criminosas.
O mesmo já não se diga quanto às partilhas em 3 dias diversos, já que o espaço temporal que medeia entre esses três envios inculca a formulação de uma nova resolução criminosa em cada uma delas.
Por outro lado, as condutas menos graves, isto é, a mera posse de ficheiros envolvendo menores de 14 anos e a posse com intenção de partilha, fica consumida pela conduta mais grave, isto é, posse e partilha de ficheiros envolvendo menores de 14 anos, ou seja, a conduta prevista no n.º 5 e a conduta prevista na alínea d), do n.º 1, do artigo 176º, do Código Penal ficam consumidas pela conduta descrita na al. d) do nº 1 do art. 176º do Código Penal.
Com efeito, tal como supra referido, as condutas descritas no nº 1, als. c) e d) constituem um maius em relação ao minus que constitui a conduta prevista no nº 5.
Daí que, sempre que o agente pratica as condutas descritas naquelas condutas o mesmo pratica também as condutas descritas no nº 5, mas com algo mais.
Assim, sempre que a conduta do agente preencha os elementos do tipo das als. c) ou d), verifica-se um concurso meramente aparente ou ideal de infrações com as condutas do nº 5 do preceito.
Estas apenas merecerão punição autónoma sempre que a conduta do agente consista na prática dos atos aí descritos, mas já não nos descritos nas als. c) ou d), ou seja, sempre que inexista intenção de divulgação, cedência, etc. ou a existência desta.
Reportados ao caso dos autos, verifica-se que não obstante a acusação impute ao arguido a prática de 40 crimes do nº 5 do art. 176º e de 40 crimes do nº 1, als. c) e d) do art. 176º, o que resulta da matéria de facto provada é que, em três circunstâncias espaço-temporais diversas o arguido partilhou com terceiros determinados ficheiros de vídeo contendo imagens pornográficas de menores.
Nenhuma situação resultou provada em que a conduta se resuma à mera detenção de material dessa natureza, antes todas à partilha desse material, pelo que a conduta objetiva do arguido se reconduz à al. c) do nº 1 do art. 176º do Código Penal, com a agravação decorrente do nº 7 do art. 177º do Código Penal, na redação vigente na data da prática dos factos, havendo o arguido que ser absolvido da prática dos 40 crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo art. 176º, nº 5 do Código Penal, de que se encontra acusado.
De resto, este entendimento mostra-se defendido no acórdão da Relação de Évora de 23-6-2020 [disponível em texto integral no endereço eletrónico www.dgsi.pt], cujo sumário se transcreve, dada a sua pertinência:
“1 – Estando provado que o arguido detinha ficheiros informáticos com conteúdo de pornografia infantil que enviou a terceiros e, ao mesmo tempo, detinha outros ficheiros com igual conteúdo que não enviou a terceiros, deve considerar-se que não praticou em concurso efetivo um crime p. e p. no artº 176º, nº 1, al. c), do C.P. e um crime p. e p. no artº 176º, nº 5, do mesmo Código, mas tão só um crime da al. c) do nº 1 do artº 176º do C.P.
2 – Com efeito, sendo o crime de pornografia de menores um crime de perigo (perigo abstracto), norteado por uma lógica de perigo, o ato de divulgar ou partilhar os ficheiros em causa (modalidade do artº 176º, nº 1, al. c), do C.P.) representa um estádio mais avançado dessa lógica de perigo.
3 – Daí que a pena prevista para esse comportamento seja superior à prevista para a mera detenção, que representa tão só um estádio menos avançado da agressão ao bem jurídico (modalidade do artº 176º, nº 5, do C.P.).
4 – Tendo-se já configurado juridicamente (e bem) a atuação do arguido como sendo de unidade de crime, tendo o agente percorrido diferentes estádios de agressão ao bem jurídico, dentro da mesma “lógica de perigo” que a norma incriminadora consagra, então ele deve ser punido (e só punido) à luz da alínea que prevê o estádio mais avançado dessa agressão, ou seja, da al. c) do nº 1 do artº 176º do C.P.
Sendo que in casu não resultou sequer provado que o arguido detivesse ficheiros pornográficos com menores de 14 anos para além daqueles que partilhou.
Termos em que, deverá o arguido ser punido apenas pela prática de três crimes de pornografia de menores, cada um p. e p. pelos arts. 176º, nº 1, al. c) e 177º, nº 7 do Código Penal, na redação vigente na data da prática dos factos.
*
Das penas acessórias
Dispõe o art. 69º-B do Código Penal:
“1- (…)
2- É condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor.
Por seu lado, dispõe o art. 69º-C do mesmo diploma legal:
«1- (…)
2- É condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre cinco e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A, quando a vítima seja menor”.
Tem vindo a ser discutida nos nossos tribunais superiores a constitucionalidade da aplicação, a certas situações, das penas acessórias previstas nestes preceitos, por violação do princípio da proporcionalidade.
In casu, perante a situação dos autos, nenhuma questão de constitucionalidade se nos suscita, pelo que o arguido incorreu também e vai condenado, por cada um dos crimes cometidos, nas sanções acessórias previstas nos arts. 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2 do código Penal.
*
2- Da Escolha e Medida da Pena Principal
A moldura penal abstrata do crime é, face à agravação do nº 7 do art. 177º, de prisão de 1 ano e 6 meses até 7 anos e 6 meses.
Posto isto, há de seguida que determinar, de harmonia com os princípios e critérios constantes do art. 71º do C. P. a medida concreta da pena de prisão a aplicar ao arguido.
De harmonia com esse artigo, a determinação da medida da pena far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as circunstâncias apontadas no nº 2 daquele normativo.
A aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. Assim o dispõe a norma do art. 40º do Código Penal (nºs 1 e 2), quando estabelece as finalidades das penas. A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva), é a finalidade primeira, que se prossegue no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (cfr. Fig. Dias, "Direito Penal Português...", £ 301 e ss. e Ac do STJ, de 15 de Outubro, de 1997, proferido no proc. nº 589/97 - 3ª secção - 1ª subsecção).
A medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida culpa.
"A culpa constitui um limite inultrapassável a todas e quaisquer considerações preventivas. É o limite máximo da pena adequada à culpa que não pode ser ultrapassado. Uma tal ultrapassagem, mesmo em nomes das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por razões jurídico-constitucinais, inadmissível." (1) - F. Dias, "As Consequências Jurídicas do Crime", p. 284
Até ao limite máximo consentido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos que vai determinar em definitivo a medida da pena.
De resto, dificilmente surgirão conflitos entre a culpa e a prevenção geral positiva, pois as razões justificativas da culpa são em princípio também comunitariamente compreensíveis e aceitáveis.
De acordo com o art. 71º -2, não devem ser tomadas em consideração na medida da pena as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime: nisto se traduz o essencial do princípio da proibição da dupla valoração, ou seja, não devem ser utilizadas pelo julgador para agravar ou atenuar a responsabilidade do agente, circunstâncias que já tenham sido tomadas em consideração pelo legislador ao estabelecer a moldura penal do facto. Isto não obsta a que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico e, portanto, da concretização deste segundo as especiais circunstâncias do caso. No caso, não poderão, assim, considerar-se as circunstâncias que determinaram a atenuação especial da pena supra referidas.
Assim, considerando:
- são elevadas as exigências de prevenção geral, atendendo a que o tipo de crime praticado repugna muito à consciência coletiva, sendo muito praticado, embora com enormes cifras negras.
- no grau de ilicitude, há a ponderar contra o arguido o facto de a sua conduta preencher duas das alíneas do nº 1 do art. 176º, bem como o nº 5 do mesmo;
- quanto ao primeiro dos crimes cometidos a partilha ter sido efetuada com um indivíduo, respeitando a três imagens de pornografia de menores; quanto ao segundo dos crimes, a partilha ter sido efetuada com três utilizadores, mas respeitar com cada um deles a um único vídeo de pornografia envolvendo menores; quanto ao terceiro dos crimes ser uma partilha apenas com um utilizador de um único vídeo, mas ter este uma duração e conteúdo muito mais amplo que os anteriores, com um superior grau de violação do bem jurídico;
- sem prejuízo, sempre se refira que, tendo em conta o tipo de crime análise e as práticas habitualmente violadoras do mesmo, o número de imagens partilhadas é reduzido e é curto o período temporal que medeia as partilhas.
- a intensidade do dolo (dolo direto).
- a falta de arrependimento demonstrada.
- são reduzidas as exigências de prevenção especial, atendendo a que o arguido é primário e se mostre integrado, tendo já 64 anos, embora não mínimas, já que o arguido não demonstra arrependimento e se mostra indiferente à gravidade do crime cometido, gravidade que resulta desde logo de ser o mercado deste tipo de imagens que fomenta o abuso sexual de crianças expostas nos vídeos.
*
Tudo ponderado, atendendo aos limites abstratos da pena de prisão (1 ano e 6 meses a 7 anos e 6 meses), afiguram-se adequadas as seguintes penas:
- 2 anos de prisão para os factos praticados em 03/08/2018;
- 2 anos e 3 meses de prisão para os factos praticados em 19/11/2018;
- 2 anos e 6 meses de prisão para os factos praticados em 30/11.
*
Tendo o arguido praticado mais do que um crime antes de ter transitado em julgado a condenação por qualquer deles (concurso de crimes), vejamos quais as regras aplicáveis para a sua punição. A punição do concurso de crimes faz-se de acordo com o estipulado no art. 77º do C. P.
Dispõe o referido preceito:
1. "Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores."
Considerando o disposto no sobredito nº 2, a pena de prisão única aplicável ao arguido tem como limite máximo 6 anos e 9 meses de prisão e mínimo 2 anos e 6 meses de prisão.
Considerando em conjunto os factos praticados pelo arguido, nomeadamente que os crimes foram cometidos num curto espaço temporal (cerca de 3 meses), tendo um percurso de vida normativo, contando já com 64 anos de idade, entende-se como adequado aplicar ao arguido a pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão.
*
Vejamos agora se a pena do arguido deverá ser suspensa na sua execução.
Em primeiro lugar, cumpre afirmar que na escolha da pena devem apenas ser consideradas exigências de prevenção, geral e especial, não cabendo aqui á culpa qualquer papel autónomo e independente.
"Ao estabelecer que a execução da prisão, com os limites de duração fixados na lei, pode ser substituída por outra penas, o legislador não está apenas a fazer jus a uma certa orientação político criminal, está também a admitir que tal só é possível porque a fidelidade do público ao direito e a manutenção da ordem jurídica não são postas em causa. O que vale por dizer que a prevenção geral, num certo grau, fica assegurada. Nestes casos, de substituição da pena, não se manifesta, pois, o grau de componente preventiva geral presente no momento de aplicação daquela pena, mantendo-se antes a substituição no âmbito do indispensável para assegurar a manutenção da confiança do público no direito."
Assim, "enquanto nos casos normais, o legislador se preocupa em fazer com que seja aplicada uma pena que, no caso concreto, representa o óptimo de um ponto de vista de prevenção geral - sendo esta a pena da culpa - confiando que as finalidades preventivas especiais se alcancem, nos casos referidos de substituição da pena de prisão, o legislador permite que se aplique uma pena diversa daquela que corresponde, no caso concreto, à culpa do agente - por ser claro que a aplicação dessa pena teria, no caso, um efeito dessocializador - confiando então, ao contrário da hipótese anterior, que o efeito de prevenção geral possa ser alcançado com alguma medida". (2) Anabela Rodrigues, ob. cit., ps. 21 e 22
"A sociedade tolera uma certa perda de efeito preventivo geral -isto é, conforma-se com a aplicação de uma pe de substituição; mas quando a sua aplicação possa ser entendida pela sociedade, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão". (3) A. Rodrigues, ob. cit., p. 23
*
Segundo o art. 50º, nº 1 do C. P., "O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."
Por seu lado, o nº 5 do mesmo preceito legal, estipula que o período da suspensão tem duração mínima de um ano e máxima de 5 anos.
"Ao estabelecer que a execução da prisão, com os limites de duração fixados na lei, pode ser substituída por outra penas, o legislador não está apenas a fazer jus a uma certa orientação político criminal, está também a admitir que tal só é possível porque a fidelidade do público ao direito e a manutenção da ordem jurídica não são postas em causa. Nestes casos de substituição da pena não se manifesta, pois, o grau de componente preventiva geral presente no momento de aplicação daquela pena, mantendo-se antes a substituição no âmbito do indispensável para assegurar a manutenção da confiança do público no direito." (4) Anabela Rodrigues, "Critério de Escolha das penas de substituição", ps. 21 e 22
De acordo com o art. 50º exige-se apenas para a suspensão da execução da pena de prisão aplicada em não superior a cinco anos que a simples censura do facto e a ameaça da prisão "realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo para tanto atender à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao facto e às circunstâncias deste”.
Pese embora as exigências de prevenção geral sejam elevadas, pelo alarme social que a prática de crimes de idêntica natureza causam na população, afigura-se que no caso concreto, atendendo a que o arguido é primário e não há notícia que tenha voltado a delinquir, tendo já 64 anos de idade, a simples censura do facto resultante da aplicação de uma pena em processo judicial e a ameaça da prisão, são suficientes para afastar o arguido da prática de futuros crimes, sendo que a confiança da comunidade na validade e vigência da norma violada, também se basta com tal ameaça sobre o arguido (artigo 50º, nº 1 do Código Penal), desde que a suspensão fique sujeita, face à gravidade da conduta, a pagar à ... (instituição de acolhimento de crianças do sexo masculino, principais vítimas dos vídeos partilhados pelo arguido) a quantia de € 2000, sendo € 500 até ao final do primeiro ano, outros quinhentos até ao final do segundo ano e o restante até ao final do terceiro ano, devendo o arguido fazer prova do pagamento no prazo de 10 dias após o terminus de cada período fixado (arts. 50º, nºs e e 2, 51º, nº 1, al. c) e 52º, nº 1 do Cód. Penal).
Quanto ao período da suspensão, considera-se adequado fixá-lo em período idêntico ao da pena, ou seja, em 3 anos e 3 meses (art. 50º, nº 5 do Cód. Penal).
*
Da determinação da medida concreta das penas acessórias:
Considerando que é elevada a moldura abstrata das penas acessórias e considerando que o arguido é primário, que praticou três crimes da mesma natureza, em um espaço curto e que em relação a cada um dos crimes cometidos, é reduzido o número de imagens partilhadas, mas que o considera-se adequado fixar em 5 anos cada uma das penas acessórias.
*
No que respeita ao cúmulo jurídico das penas acessórias, ele tem um limite mínimo de 5 anos e um máximo de 15 anos
Considerando os critérios supra referidos, considera-se adequado fixar em 6 anos cada uma das penas acessórias únicas.
(...).».

2.3. Apreciação do mérito do recurso
2.3.1. Da nulidade do acórdão recorrido, por utilização de prova nula e proibida
Alega o recorrente que o acórdão recorrido enferma de nulidade por o Tribunal a quo ter usado prova nula e de utilização proibida, para fundamentar a convicção sedimentada, dando erradamente como provados factos constantes dos pontos 1, 6, 7 e 9 – ocorridos nos dias 03/08/2018, pelas 14:06:07 horas, 19/11/2018, pelas 16:49:14 horas e pelas 16:49:17 horas e 30/11/2018, pelas 14:38:37 horas –, que levaram à sua condenação em 1.ª instância, pela prática de três crimes de pornografia de menores.
Concretamente, alega o recorrente terem sido utilizados metadados, tratando-se de prova ilegalmente obtida e de utilização proibida, em virtude da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória e geral, dos artigos 6º e 9º da Lei 32/2008, de 17 de julho, pelo acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 268/2022.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente, na medida em que resulta da motivação da decisão de facto não terem sido utilizadas pelo Tribunal a quo, para a formação da sua convicção, as informações remetidas pelas operadoras de comunicações.
Vejamos:
A questão da ilegalidade da prova pretensamente obtida através de “metadados” foi suscitada pelo ora recorrente, perante o Tribunal a quo, que a esse propósito, na motivação da decisão de facto exarada no acórdão recorrido, consignou o seguinte:
«Sustentou o arguido não poder ser valorada a informação que foi remetida aos autos pelas operadoras telefónicas e que consta de fls. 30 a 33 e 161 a 164 dos autos principais, bem como a fls. 74 a 75 dos autos apensos, em face (...) do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição.
Sucede que as referidas informações das operadoras telefónicas respeitam tão só à identificação e domicílio do utilizador dos IPs indicados nos sobreditos relatórios (o mesmo se dizendo quanto à informação do facebook de fls. 73 a 128, esta também quanto aos IPs utilizados e respetivo horário).
Ora, tal como supra referido, o nome do utilizador do perfil de facebook e do endereço de correio eletrónico, ambos com o nome do arguido, são de molde a que se conclua que pertencem ao arguido, que de resto reconheceu efetivamente não só pertencerem-lhe como terem sido bloqueados pelo próprio facebook após a partilha das imagens. Daí que se mostre totalmente desnecessária a valoração dos elementos de fls. 30 a 33 e 161 a 164 dos autos principais, bem como a fls. 74 a 75 dos autos apensos e a impossibilidade de valoração dos mesmos (por a sua obtenção ter ocorrido ao abrigo das aludidas normas cuja inconstitucionalidade foi declarada, com força obrigatória geral) se mostre totalmente irrelevante à demonstração dos factos dados como provados. O mesmo se dizendo quanto à informação de fls. 73 a 128 dos autos principais.
Quanto aos destinatários dos ficheiros, embora o arguido apenas reconheça ter enviado a CC e EE, o relatório de fls. 11 a 17 do apenso é claro quanto ao envio também para o utilizador FF, tendo tanto BB como DD esclarecido que nessa parte os relatórios são precisos e sem dúvidas quanto ao envio para um tal utilizador.
E se é certo que o arguido tentou passar a ideia de que poderia ter sido um terceiro a efetuar o envio, acaba por reconhecer que os envios foram sempre a partir do seu aparelho telefónico e que este andava sempre consigo e que enquanto dormia o mantinha junto da sua mesa de cabeceira. De resto, como esclareceu BB, uma utilização da conta por terceiro implicaria uma alteração do IP, que não se verificou, tal como resulta do teor do relatório de fls. 11 a 17 do apenso.
(...)
Analisada a motivação da decisão de facto exarada no acórdão recorrido, a asserção por parte do Tribunal a quo de não ter utilizado, para sedimentar a convicção formada, dando como provados os factos postos em causa pelo recorrente, provas obtidas através das operadoras telefónicas, que constituam “metadados”, abrangidos pela declaração de inconstitucionalidade, no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 268/2022, não nos merece qualquer reparo.
Explicitando:
Conforme vem sendo frisado pela jurisprudência, em matéria de telecomunicações, há que distinguir os dados de base (elementos de suporte técnico e de conexão estranhos à própria comunicação em si mesma, designadamente os relacionados com a identificação dos titulares de um determinado cartão de telemóvel ou de um IP), os dados de tráfego (elementos que se referem já à comunicação, mas não envolvem o seu conteúdo, por exemplo, referentes à localização do utilizador do equipamento móvel, bem assim como do destinatário, data e hora da comunicação, duração da mesma, frequência, etc.) e os dados de conteúdo (elementos que se referem ao próprio conteúdo da comunicação)[1].
Apenas os dados de tráfego e localização conservados/armazenados pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas ou das redes públicas de comunicações estão abrangidos pela declaração de inconstitucionalidade das normas dos artigos 4º, 6º e 9º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, do aludido Acórdão do TC n.º 268/2022. Como assinalou o TC no referenciado Acórdão «o que está em causa nos metadados é que são dados que revelam, a todo o tempo, aspectos da vida privada, familiar e social dos cidadãos, permitindo rastrear a localização do indivíduo ao longo do dia, todos os dias, desde que transporte o telemóvel e identificar quem contactou, quando, duração e regularidade
Já no referente aos dados de base, relacionados com a identificação do titular de um número de telefone ou de um IMEI, no caso de ser um assinante registado, tratando-se de elementos recolhidos aquando da contratação do serviço de telecomunicações e que se mantêm independentemente de qualquer comunicação efetuada, não respeitando à privacidade da vida da pessoa ou à sua esfera íntima, em termos de encontrarem proteção, no contexto dos bens jurídicos protegidos pela Constituição[2] e, nessa medida, não são abrangidos pela declaração de inconstitucionalidade emanada do Acórdão do TC n.º 268/2022.
Assim, como se refere no Acórdão do STJ de 13/04/2023[3]:
«As normas da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais, com força obrigatória geral, no acórdão n.º 268/2022 (publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 03.06.2022), relacionam-se com o armazenamento (conservação) de dados em arquivos, durante o período de 1 ano, pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações.
Relembrando a decisão, disse o Tribunal Constitucional:
“[…] Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei; declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros. […]”.
A Lei n.º 32/2008 regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Diretiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas.
A Diretiva n.º 2006/24/CE, adotada com base no artigo 95.º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (que dizia respeito ao funcionamento do mercado interno – antigo 1.º pilar da União), teve como principal objetivo harmonizar as disposições dos Estados-Membros relativas às obrigações dos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas ou das redes públicas de comunicações assegurarem a conservação de dados de tráfego e de localização, mas não de conteúdo, bem como de dados conexos, necessários para identificar o assinante ou o utilizador dos serviços de comunicações eletrónicas, para determinar a data, a hora, a duração e o tipo de uma comunicação e o equipamento de comunicação dos utilizadores, bem como para localizar o equipamento de comunicação móvel durante um determinado período, de 6 meses a dois anos (artigo 6.º), tendo em vista garantir a disponibilidade desses dados – que são os dados indicados no artigo 5.º, a que corresponde o artigo 4.º da Lei n.º 32/2008 – para efeitos de investigação, de deteção e de repressão de crimes graves, tal como definidos no direito nacional de cada Estado-Membro, em derrogação aos artigos 5.º (sobre “confidencialidade das comunicações”), 6.º (sobre “dados de tráfego”) e 9.º (sobre “dados de localização para além dos dados de trafego”) da Diretiva 2002/58/CE, que transpôs os princípios estabelecidos na Diretiva 95/46/CE relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados [transposta pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, atualmente substituída pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados - Regulamento(UE) n.º 679/2016, de 27 de Abril (RGPD] para regras específicas do sector das comunicações eletrónicas.».
No tocante aos designados dados de base, designadamente, no que para o presente caso releva, a identificação do titular do número de telemóvel indicado no perfil da página do facebook como sendo do respetivo utilizador, apurando-se ser do arguido/recorrente, não está abrangida pela declaração de inconstitucionalidade referenciada.
No que concerne ao endereço IP, associado ao perfil do Facebook Messenger, através da qual foram realizados os uploads com conteúdo de pornografia de menores, dados como provados, o arguido/recorrente surge identificado como utilizador daquele perfil, como decorre do teor dos relatórios remetidos pelo National Center For Missing & Exploited Children (NCMEC), na sequência da receção através da sua Cyber Tipline Report, Madrid, de haverem sido efetuados os referidos uploads (cf. relatórios de fls. 14 a 18 dos autos principais e de fls. 11 a 17 e 30 a 33 dos autos apensos, cuja tradução foi efetuada e consta a fls. 255v a 269 dos autos principais). Perante o reportado nos aludidos relatórios e os factos aí denunciados, aberto o inquérito, foi solicitada à operadora a identificação do utilizador do endereço IP referenciado, ao abrigo do disposto nos artigos 11º, n.º 1, alíneas b) e c) e 14º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (cf. despachos de fls. 25 e 26 do processo principal)[4], resultando confirmado ser o arguido/recorrente, tendo este último admitido esse facto, designadamente, nas declarações prestadas na audiência de julgamento.
Não estamos, pois, perante uma situação em que tenham sido utilizadas/valoradas pelo Tribunal a quo provas obtidas ao abrigo das normas declaradas inconstitucionais pelo acórdão do TC n.º 268/2022.
Neste sentido, poderão ver-se, entre outros, os seguintes Acórdãos do STJ, cujos sumários, na parte que aqui releva, se transcrevem:
- Acórdão de 06/09/2022[5]:
«(...)
IV. Não assiste razão ao arguido quando pretende considerar o acesso à identificação do n.º de telefone e da IMEI, para a execução de interceções telefónicas, abrangido pela declaração de inconstitucionalidade invocada – trata-se de acesso a dados que não respeitam a comunicações efetuadas, tratadas e armazenadas ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho e constituem “caracteres permanentes, pelo que a identificação do sujeito a que pertencem pode ser obtida independentemente de qualquer comunicação”(Ac. 268/2022, TC).
V. Por outro lado, tratando-se de elementos de identificação constantes dos contratos celebrados com os operadores e/ou ligados ao reconhecimento da posse de equipamentos móveis, os respetivos registo e fornecimento à autoridade judiciária competente não importam desproporcionalidade ou desadequação face ao fim em vista, nem a afetação do direito fundamental à autodeterminação informativa.
VI. Nem demanda tal acesso, sem relação com qualquer comunicação efetuada, notificação específica ulterior, assemelhando-se, do ponto de vista da natureza e do regime, à obtenção, em processo penal, de outros dados pessoais, mormente, de identificação.
(...).»;
- Acórdão de 01/02/2023[6]:
«I- Estando o arguido a ser investigado por crime de pornografia de menores p. e p. no artigos 176.º, n.º1, alíneas b), c) e d) do CP, com a moldura abstrata de 1 ano a 5 anos de prisão, os elementos relativos à identificação do utilizador do IP podiam ser requeridos à operadora pela autoridade judiciária nos termos dos referidos arts. 187.º, n.º 1, al. a), 189.º, n.º 2, do CPP e do art. 14.º, da Lei n.º 109/2009, de 15.09.
II- Aliás, o que sucedeu foi o acesso à operadora para identificar o titular do contrato correspondente ao IP utilizado na prática do crime, o que não tem a ver com comunicação efetuada, nem se relaciona com a Lei 32/2008, de 17.07, mesmo que essa lei ou normas a ela pertencentes tivessem sido mal invocadas, entre as normas que eram aplicáveis ao caso, acima indicadas.
III- Portanto, os elementos de prova avaliados pelo Coletivo, que serviram para formar a sua convicção, observaram o formalismo legal, constituindo provas válidas e, por isso legais, sendo que o raciocínio feito pelo recorrente assenta em pressupostos errados, uma vez que neste caso concreto, a prova não foi recolhida por aplicação da Lei n.º 32/2008, de 17.07, designadamente, dos artigos que foram declarados inconstitucionais pelo acórdão do TC n.º 268/2022.
(...).».
No caso vertente, as informações fornecidas pelas operadoras de telecomunicações, que foram valoradas, respeitam apenas à identificação do titular do n.º de telefone e do utilizador do endereço IP associado ao perfil da rede social Messenger Facebook, referenciados nos relatórios remetidos pelo National Center For Missing & Exploited Children (NCMEC), na sequência da receção através da sua Cyber Tipline Report, Madrid, de haverem sido efetuados uploads de imagens, com conteúdo de pornografia de menores, por pessoa com o endereço IP indicado, identificada na web como sendo arguido/recorrente (cf. relatórios de fls. 14 a 18 dos autos principais e de fls. 11 a 17 e 30 a 33 dos autos apensos, cuja tradução foi efetuada e consta a fls. 255v a 269 dos autos principais).
Por outro lado, importa ter-se presente que na origem dos presentes autos, esteve a referida denúncia/participação feita pela NCMEC, tendo as imagens/vídeos com o conteúdo descrito nos pontos 1 a 4 e 6 a 9 dos factos provados, gravadas nos CDs insertos a fls. 40 dos autos principais e de fls. 81 dos autos apensos e “imagens capturadas”, constantes a fls. 18 e 34 dos autos apensos, sido extraídos dos CDs remetidos pela mesma Organização.
Neste contexto, forçoso é concluir que, no presente caso, não houve utilização/valoração pelo Tribunal a quo de prova proibida, para sedimentar a sua convicção quanto aos factos que deu por provados.
Na decorrência do acabado de decidir, carece de qualquer fundamento válido a alegação do recorrente no sentido de que foi confrontando com provas obtidas ilegalmente – por via aplicação da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, designadamente, dos artigos que foram declarados inconstitucionais pelo acórdão do TC n.º 268/2022 – e, nessa situação, ter sido “obrigado” a confessar factos da esfera pessoal e íntima, estando a sua confissão “envenenada” e existindo violação dos princípios do contraditório e à não autoincriminação.
Improcede, assim, o invocado fundamento de nulidade do acórdão recorrido.

2.3.2. Violação do disposto no artigo 355º do CPP
Alega o recorrente ter, na audiência de julgamento, sido violado o artigo 355º do CPP.
Contudo, não fundamenta o recorrente, a razão pela qual considera ter existido violação do enunciado preceito legal.
Ainda, assim, sempre diremos o seguinte:
De harmonia com o disposto no artigo 355º, n.º 1, do CPP, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
Conforme vem sendo reiteradamente afirmado pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, o preceituado no artigo 355º, n.º 1, do CPP, que consagra o princípio da imediação, visa apenas evitar que concorram para a formação da convicção do tribunal provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo com respeito pelo princípio do contraditório[7].
Daí que se considere que a previsão do n.º 1 do artigo 355º do CPP não abrange a prova documental que já se encontre junta aos autos, em momento anterior ao do julgamento, podendo essa prova ser valorada e usada na fundamentação da sentença, ainda que não tenha sido examinada em audiência.
Estando os documentos incorporados nos autos, em momento anterior ao do julgamento, tendo o arguido conhecimento da sua existência, podendo, se assim o entender, contraditar o respetivo valor probatório, mostra-se observado o princípio do contraditório e plenamente assegurado o direito de defesa.
Em suma e citando o sumário do Acórdão desta Relação de Évora, de 16/02/2016[8], diremos que:
«I. O que se pretende com o art.º 355.º, do Cód. Proc. Penal, é evitar que concorram para a formação da convicção provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo pelos intervenientes, com respeito pelo princípio do contraditório;
II. Porém, tais provas não têm que ser reproduzidas na audiência, isto é, não têm que ser lidas ou apresentadas formalmente aos sujeitos processuais todas as provas documentais dos autos constantes: basta que existam no processo com pleno conhecimento dos sujeitos processuais, que puderam inteirar-se da sua natureza, da sua importância e do seu conteúdo, bem como do seu valor probatório, para que qualquer desses sujeitos possa, em audiência, requerer o que se lhe afigurar sobre elas, examiná-las, contraditá-las e realçar o que, do seu ponto de vista, valem em termos probatórios.».
As enunciadas considerações e conclusão são igualmente válidas para a desnecessidade de reprodução/exibição/visualização, em audiência, dos ficheiros apreendidos, contendo imagens/fotos/vídeos de carácter pornográfico infantil, desde que os mesmos tenham sido objeto de perícia[9] ou, estando em causa a partilha de conteúdos em páginas web, desde que o suporte digital com o registo/gravação dessas imagens/fotos/vídeos e respetivo relatório de análise e visionamento constem nos autos. Tratando-se de prova documental, adquirida no processo, na fase de inquérito, suscetível de ser contraditada pelo arguido e, como tal, assegurando a viabilidade da defesa e o respeito pelo princípio do contraditório. Isto sem prejuízo de poder ser requerida, designadamente pela defesa, com vista a contraditar, v.g. a idade dos intervenientes naquelas imagens/fotos/filmes, que se proceda à respetiva reprodução/exibição/visualização, na audiência de julgamento, o que in casu, não aconteceu.
Nesta conformidade, estando os elementos de prova documental incorporados nos autos, desde a fase de inquérito, sendo indicados na acusação, tendo os sujeitos processuais, designadamente, o arguido/recorrente, oportunidade de examinar essas provas e de exercer o contraditório em relação às mesmas, nada tendo requerido, nesse âmbito, não tinham de ser examinadas, na audiência de julgamento, para que pudessem ser, como foram, valoradas, pelo tribunal, no acórdão recorrido.
Destarte, também este fundamento do recurso tem de improceder.

2.3.3. Da falta de consciência da ilicitude
Alega o recorrente ter atuado sem que tivesse consciência do caráter proibido dos factos praticados, não existindo prova de que tivesse agido com dolo, tendo atuado com negligência inconsciente, nos termos do disposto no artigo 15º, al. b), do CP.
Neste enfoque, entende o recorrente, ter o Tribunal a quo incorrido em contradição, no acórdão recorrido, ao dar como provados os factos constantes do ponto 33, por um lado e dos pontos 11 e 14 a 17, por outro lado.
Invoca, ainda, não ter o Tribunal a quo feito prova de que o recorrente “não padece de patologia que o leve a não ter consciência das ilegalidades cometidas”.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente, em qualquer das vertentes enunciadas.
Vejamos:
De harmonia com o entendimento jurisprudencial consolidado constitui matéria de facto saber se o agente age sem consciência da ilicitude.
Como se faz notar no Acórdão desta RE, de 26/06/2018[10], «A consciência da ilicitude não é elemento constitutivo dos tipos criminais definidos pela lei penal. Pelo contrário, é a inconsciência da ilicitude que, em certas circunstâncias que revelem que a mesma não pode ser censurada ao agente, pode excluir a culpa e, por essa via, a responsabilidade criminal.».
Volvendo ao caso dos autos, com relevância para a apreciação da questão que agora nos ocupa, foram dados como provados os seguintes factos:
10. O arguido sabia que os ficheiros de vídeo que enviou através do Messenger do Facebook, nos termos supra descritos, representavam menores de 14 anos de idade, na prática de atos sexuais, nomeadamente coito vaginal e anal, e que a atividade de distribuição, exportação, divulgação e cedência a terceiros lhe estava vedada.
11. O arguido tinha perfeito conhecimento do teor dos vídeos e ficheiros que detinha, e que toda a atividade relacionada com esses vídeos e ficheiros, designadamente: utilização, detenção, divulgação, exportação ou cedência, lhe estavam vedadas.
12. Assim como sabia que os ficheiros já referidos, representavam menores de 14 anos de idade, expondo os seus órgãos genitais, de forma sugestiva à prática de atos sexuais.
13. Não obstante, e agindo deliberada, voluntária e conscientemente, o arguido para sua satisfação libidinosa e da sua vontade sexual, e bem assim das pessoas com quem partilhava os vídeos, decidiu, deter, armazenar, divulgar, exportar e ceder os referidos vídeos, contendo pornografia de menores, e decidiu partilhar os referidos vídeos contendo pornografia de menores.
14. O arguido bem sabia que os ficheiros que partilhou, com imagens pornográficas, expunham menores, com idade inferior a 14 anos, e que, por tal circunstância, estava proibida a sua detenção, exibição, cedência ou partilha.
15. Quis, ainda assim, deter, e ainda partilhar com terceiros, imagens de menores utilizados em filmes bem como gravações pornográficos representando menores de 14 anos de idade na prática de atos sexuais, designadamente de coito vaginal e anal, e ainda, para satisfazer a sua libido, o que conseguiu, bem sabendo que a partilha e a sua detenção eram proibidas.
16. O arguido tinha perfeito conhecimento de que as referidas imagens e filmes de teor pornográfico com utilização de crianças, induzem à exploração efetiva dessas crianças, utilizadas para a realização dos filmes em causa, não obstante, não se inibiu de as deter, exibir, partilhar, ceder, através da Internet.
17. O arguido atuou em todos os momentos de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
33. AA denota uma perceção difusa sobre a gravidade deste tipo de crimes e, consequentemente, défices de consciência do valor do bem jurídico em causa.
Na motivação da decisão de facto, no respeitante a esta matéria, consignou o Tribunal a quo o seguinte: «(...). É certo que o arguido referiu desconhecer essas mensagens e nunca as ter enviado. Porém, quanto a tal, os relatórios são claros e o seu conteúdo mostra-se, nessa parte, absolutamente fidedigno, tal como foi esclarecido por BB e DD (...).
A partilha dos vídeos em questão, associada aos referidos comentários é de molde a que se mostre posta em causa a versão do arguido, sendo patente que o arguido sabia bem o conteúdo do que partilhava e que via os vídeos partilhados antes do seu envio. Igualmente não colhe que desconhecesse que a partilha constituía crime, numa época em que a criminalização de tais condutas se mostra amplamente divulgada na comunicação social e até redes sociais, que de resto o arguido utilizava. (nosso sublinhado).
Por fim, refira-se, quanto à idade dos menores, que resulta claramente do teor dos vídeos que os menores neles envolvidos têm pelo menos idade inferior à que, em cada caso, se fez constar nos factos provados, face ao seu desenvolvimento físico e aspeto. Já não se considerou seguro que face a um tal desenvolvimento tivessem a idade constante da acusação, que, assim, se deu como não provada.
O supra exposto funda, assim, o decidido em 1 a 17 dos factos provados e em 1 a 19 dos factos não provados.
Por fim, o decidido quanto à factualidade descrita em 18 a 34 dos factos provados funda-se no teor do relatório social de fls. 225 a 229. Mormente quanto à falta de arrependimento demonstrada pelo arguido, além do referido no relatório social, a conjugação desse elemento com a conduta do arguido adotada em julgamento, que denota essa falta de arrependimento. O arguido não se limitou a exercer o direito ao silêncio, como negou veementemente factos, bem sabendo da sua prática e demonstrando indiferença pelo bem jurídico protegido.»
Neste quadro, contrariamente ao defendido pelo recorrente, entendemos não existir qualquer contradição entre os factos dados como provados no ponto 33, por um lado e nos pontos 11 e 14 a 17, por outro lado.
A asserção de que o arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei em nada contraria a asserção de que o arguido denota uma perceção difusa da gravidade do crime em causa e, consequentemente, défices de consciência do valor jurídico em causa.
Na verdade, a circunstância de o arguido apresentar deficiências ao nível da consciência crítica relativamente ao bem jurídico protegido pela incriminação de que se trata, não implica que estivesse em erro sobre a ilicitude ou sobre a punibilidade das suas condutas em apreço.
A propósito da alegação do recorrente no sentido de o Tribunal a quo não ter feito prova de que “não padece de patologia que o leve a não ter consciência das ilegalidades cometidas”, a mesma revela-se destituída de qualquer fundamento válido. Com efeito, não existindo nos autos, nem resultando da prova produzida, na audiência de julgamento, quaisquer elementos dos quais resultasse poder o arguido/recorrente sofrer de alguma anomalia psíquica ou de perturbação da personalidade, que o impedisse de avaliar a ilicitude dos factos praticados ou de se determinar de acordo com essa avaliação ou lhe acarretasse a sensível diminuição dessa capacidade (cf. artigo 20º do CP), não existia fundamento para o Tribunal a quo ter determinado a realização de perícia sobre o estado psíquico do arguido (cf. artigo 351º do CPP)[11].
Importa, ainda referir, que, como se faz notar no acórdão recorrido «mostrando-se a criminalização de tal tipo de condutas amplamente divulgada na comunicação social e até redes sociais, que de resto o arguido utilizava», o eventual erro sobre a ilicitude do facto, nunca poderia levar à exclusão do dolo (artigo 16º, n.º 1, do CP), nem da culpa (artigo 17º, n.º 1, do CP).
O erro sobre a ilicitude do facto, caso existisse – não resultando, in casu, provada a sua ocorrência – seria sempre censurável, dado estarmos perante um tipo de conduta cuja ilicitude, na atualidade, está sedimentada na consciência ético-social, sendo a respetiva punibilidade conhecida pela generalidade dos cidadãos e, neste quadro, o erro seria revelador de uma atitude («ético-pessoal jurídica[12]») de indiferença, por parte do agente, «perante o dever-ser jurídico-penal, isto é, perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente[13].». E a ser esse o caso, sempre seria de afastar a atenuação especial da pena, nos termos previstos no artigo 17º, n.º 2, do Código Penal.
Nesta conformidade, perante a matéria factual dada como provada, fica afastado que o arguido tivesse atuado com negligência inconsciente, antes tendo agido com dolo.
E não se mostra verificada a circunstância invocada pelo arguido/recorrente, excludente da culpa ou passível de poder fundamentar a atenuação especial da pena, nos termos do disposto no artigo 17º, n.º 2, do Código Penal.
Improcede, assim, também este segmento do recurso.

2.3.4. Permanece, pois, inalterada a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido.

2.3.5. Do erro de subsunção
Sustenta o arguido/recorrente ser errada a qualificação jurídica dos factos provados efetuada pelo Tribunal a quo, por um lado, ao considerar que integram o crime de pornografia de menores, agravado, p. e p. pelos artigos 176º, n.º 1, al. c) e 177º, n.º 7, ambos do Código Penal, quando, na realidade, apenas seriam suscetíveis de integrar o crime de pornografia de menores, p. e p. pelo n.º 6 desse artigo 176º e, por outro lado, ao concluir estarmos perante uma pluralidade de crimes, quando se trata de um único crime.
Vejamos:
No tocante à modalidade da ação típica do crime de pornografia de menores de entre as previstas no artigo 176º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, em vigor à data da prática dos factos, dando-se aqui por reproduzidas as considerações jurídicas expendidas no acórdão recorrido acerca dos elementos do objetivo do crime em apreço, entendemos mostrar-se correto o decidido pelo Tribunal a quo ao concluir que as condutas empreendidas pelo arguido/recorrente integram a previsão das alíneas c) e d), do n.º 1, do enunciado artigo 176º, conquanto a punição, no caso concreto, deva ser apenas pela alínea c).
De forma muito sintetizada, diremos que na alínea c) do n.º 1 do artigo 176º se incrimina a produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, exibição ou cedência, a qualquer título ou por qualquer meio, dos materiais pornográficos previstos na alínea b) do mesmo artigo, ou seja, fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, em que seja utilizado menor; já no n.º 6 do artigo 176º, aditado pela revisão de 2015[14] ao Código Penal, é estabelecida a incriminação da mera assistência – «presencial ou através de sistema informático ou por qualquer outro meio» – ou a facilitação do acesso «a espetáculo pornográfico envolvendo a participação de menores de 16 anos de idade».
No n.º 6 do artigo 176º do Código Penal, aditado pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, criminaliza-se a conduta do agente que sendo maior, assista, presencialmente, através de sistema informático[15] ou qualquer outro meio[16], ou que facilite o acesso a outrem, para assistir, a espetáculo pornográfico envolvendo a participação de menores de 16 anos de idade.
Neste enquadramento, mostra-se isento de dúvida que as condutas do arguido/recorrente apuradas, ao deter e partilhar com terceiros, divulgando, dessa forma, ficheiros com conteúdo pornográfico sendo neles utilizados menores de 14 anos de idade, não se enquadram na previsão do n.º 6 do artigo 176º do Código Penal, mas antes na do n.º 1 do mesmo artigo, nas modalidades da ação previstas nas respetivas alíneas c) e d).
Falece, pois, neste conspecto razão ao recorrente ao defender a existência de erro de subsunção, mostrando-se correto o enquadramento jurídico-penal dos factos efetuado pelo Tribunal a quo, ao crime de pornografia de menores, agravado, p. e p. pelos artigos 176º, n.º 1, al. c) e 177º, n.º 7, ambos do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto, nos termos decididos no acórdão recorrido.
Passando agora a apreciar a questão do invocado erro de subsunção, no referente ao número de crimes cometidos:
Como se dá conta no acórdão recorrido, existe controvérsia na doutrina e jurisprudência, no que diz respeito ao número de crimes praticados, estando em causa a partilha, pelo agente, com diversas pessoas, de ficheiros com conteúdo pornográfico de menores, obtidos a partir de determinados sites[17].
Conquanto a aludida controvérsia esteja interrelacionada com a definição/delimitação do bem jurídico protegido pelo crime em apreço, entendemos que seja qual for a posição perfilhada, nunca se poderão perder de vista os critérios legais estabelecidos para se aferir se estamos perante uma unidade ou uma pluralidade de crimes.
Assim, haverá que atender ao disposto no n.º 1 do artigo 30º do Código Penal, que, sob a epígrafe “concurso de crimes e crime continuado” estatui que: «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
A realização plúrima do mesmo tipo de crime constituirá, em princípio um concurso de infrações, mas pode constituir um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou a resolução inicial.
Deste modo, para que se verifique um crime único, mesmo que traduzido em diversas condutas semelhantes, é necessário que estas últimas resultem de uma só e única resolução criminosa.
Temos, pois, que no caso de se tratar do "mesmo tipo de crime", "o número de vezes que ele é preenchido", conta-se pelo número de resoluções criminosas.
E, havendo mais do que uma resolução, a regra será a do concurso real de crimes.
No acórdão recorrido concluiu-se ter o arguido/recorrente praticado, em concurso efetivo, três crimes de pornografia de menores, agravados, p. e p. pelos artigos 176º, nº 1, al. c) e 177º, nº 7 do Código Penal, na redação vigente na data da prática dos factos, o que Tribunal a quo fundamentou nos seguintes termos:
«(...) somos da opinião que, em face do disposto no n.º 1, do artigo 30º, do Código Penal, a unidade ou pluralidade de infrações afere-se à luz do concreto número de tipos legais de crime, enquanto portadores de valores jurídico criminais distintos negados, que um determinado comportamento humano viola.
Como se refere no acórdão do STJ de 27-5-2010 [in, dgsi.pt] por ser particularmente claro sobre assunto merece aqui o seguinte destaque: o critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efetivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.
Porém, àquela conclusão sempre há que acrescentar dois limites, enxergados em momentos analíticos posteriores: a culpa do agente e a conexão temporal.
No que se refere à questão da conexão temporal cumpre ter presente que se provou que o arguido praticou as condutas em três momentos espaço-temporais diversos (03/08/2018, 19/11/2018 e 30/11/2018) e violou o mesmo bem jurídico, sendo que em 03/08/2018 a sua conduta respeita ao envio de três vídeos diferentes, ou seja, atinentes a diferentes vítimas e no dia 19/11/2018 estão em causa três partilhas do mesmo vídeo, ou seja, a partilha do mesmo vídeo com três diferentes utilizadores através do messenger.
Considerando que, pelas razões acima expostas, se está perante um bem jurídico supraindividual e não perante um bem jurídico iminentemente pessoal, nada obsta, antes se impõe, que relativamente às partilhas de mais que um vídeo no dia 03/08/2018 se afirme a existência de um único crime, o mesmo se dizendo quanto à partilha do mesmo vídeo com três utilizadores no dia 19/11/2018, com escassos segundos de intervalo entre as três partilhas, já que se terá de concluir nestes dois casos pela inexistência de várias resoluções criminosas.
O mesmo já não se diga quanto às partilhas em 3 dias diversos, já que o espaço temporal que medeia entre esses três envios inculca a formulação de uma nova resolução criminosa em cada uma delas.
Por outro lado, as condutas menos graves, isto é, a mera posse de ficheiros envolvendo menores de 14 anos e a posse com intenção de partilha, fica consumida pela conduta mais grave, isto é, posse e partilha de ficheiros envolvendo menores de 14 anos, ou seja, a conduta prevista no n.º 5 e a conduta prevista na alínea d), do n.º 1, do artigo 176º, do Código Penal ficam consumidas pela conduta descrita na al. d) do nº 1 do art. 176º do Código Penal.
Com efeito, tal como supra referido, as condutas descritas no nº 1, als. c) e d) constituem um maius em relação ao minus que constitui a conduta prevista no nº 5.
Daí que, sempre que o agente pratica as condutas descritas naquelas condutas o mesmo pratica também as condutas descritas no nº 5, mas com algo mais.
Assim, sempre que a conduta do agente preencha os elementos do tipo das als. c) ou d), verifica-se um concurso meramente aparente ou ideal de infrações com as condutas do nº 5 do preceito.
Estas apenas merecerão punição autónoma sempre que a conduta do agente consista na prática dos atos aí descritos, mas já não nos descritos nas als. c) ou d), ou seja, sempre que inexista intenção de divulgação, cedência, etc. ou a existência desta.
Reportados ao caso dos autos, verifica-se que não obstante a acusação impute ao arguido a prática de 40 crimes do nº 5 do art. 176º e de 40 crimes do nº 1, als. c) e d) do art. 176º, o que resulta da matéria de facto provada é que, em três circunstâncias espaço-temporais diversas o arguido partilhou com terceiros determinados ficheiros de vídeo contendo imagens pornográficas de menores.
Nenhuma situação resultou provada em que a conduta se resuma à mera detenção de material dessa natureza, antes todas à partilha desse material, pelo que a conduta objetiva do arguido se reconduz à al. c) do nº 1 do art. 176º do Código Penal, com a agravação decorrente do nº 7 do art. 177º do Código Penal, na redação vigente na data da prática dos factos, havendo o arguido que ser absolvido da prática dos 40 crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo art. 176º, nº 5 do Código Penal, de que se encontra acusado.
De resto, este entendimento mostra-se defendido no acórdão da Relação de Évora de 23-6-2020 [disponível em texto integral no endereço eletrónico www.dgsi.pt], cujo sumário se transcreve, dada a sua pertinência:
“1 – Estando provado que o arguido detinha ficheiros informáticos com conteúdo de pornografia infantil que enviou a terceiros e, ao mesmo tempo, detinha outros ficheiros com igual conteúdo que não enviou a terceiros, deve considerar-se que não praticou em concurso efetivo um crime p. e p. no artº 176º, nº 1, al. c), do C.P. e um crime p. e p. no artº 176º, nº 5, do mesmo Código, mas tão só um crime da al. c) do nº 1 do artº 176º do C.P.
2 – Com efeito, sendo o crime de pornografia de menores um crime de perigo (perigo abstracto), norteado por uma lógica de perigo, o ato de divulgar ou partilhar os ficheiros em causa (modalidade do artº 176º, nº 1, al. c), do C.P.) representa um estádio mais avançado dessa lógica de perigo.
3 – Daí que a pena prevista para esse comportamento seja superior à prevista para a mera detenção, que representa tão só um estádio menos avançado da agressão ao bem jurídico (modalidade do artº 176º, nº 5, do C.P.).
4 – Tendo-se já configurado juridicamente (e bem) a atuação do arguido como sendo de unidade de crime, tendo o agente percorrido diferentes estádios de agressão ao bem jurídico, dentro da mesma “lógica de perigo” que a norma incriminadora consagra, então ele deve ser punido (e só punido) à luz da alínea que prevê o estádio mais avançado dessa agressão, ou seja, da al. c) do nº 1 do artº 176º do C.P.
Sendo que in casu não resultou sequer provado que o arguido detivesse ficheiros pornográficos com menores de 14 anos para além daqueles que partilhou.
Termos em que, deverá o arguido ser punido apenas pela prática de três crimes de pornografia de menores, cada um p. e p. pelos arts. 176º, nº 1, al. c) e 177º, nº 7 do Código Penal, na redação vigente na data da prática dos factos.»
Que dizer?
No tocante ao bem jurídico protegido pelo crime de pornografia de menores, nas modalidades típicas previstas nas al. c) e d), do n.º 1, do artigo 176º do Código Penal, perfilhamos o entendimento de que não é, imediatamente, a liberdade e autodeterminação sexual do menor que se visa tutelar, ainda que remotamente o seja. A incriminação em apreço tem em vista tutelar, diretamente, a proteção da personalidade em desenvolvimento dos menores, na dupla dimensão, interior (física, psíquica, emocional) e exterior (social ou relacional) e a defesa da dignidade de menores, passível de ser atingida com a divulgação ou circulação de conteúdos pornográficos pela comunidade[18].
Como refere o Prof. Figueiredo Dias[19], a propósito da al. d), do n.º 1 do artigo 172º do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 99/2001, de 5 de agosto[20]: «(...) para além da uma tutela da liberdade e autodeterminação sexual do menor, proibindo todo o mercado de produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, cedência de material pornográfico, também se procura através da incriminação evitar danos na esfera pessoal do menor, que decorre da sua associação ao mercado pornográfico, com as sequelas físicas, emotivas, de reputação e honra que daí advêm. Existe uma tutela antecipada do interesse superior da criança, e do seu direito a ser acautelado o seu bem-estar físico e psíquico. Ora, todas as atuações ali descritas são suscetíveis de causar tais danos, pela expansão do conhecimento de tal material pornográfico».
Considerando o bem jurídico protegido pela incriminação, entendemos que, como se considerou no acórdão recorrido, diversamente do que sucede com a utilização direta, por parte do agente, de menor, nas modalidades de conduta previstas nas alíneas a) e b), do artigo 176º, em que o agente comete tantos crimes quantos os menores que utilizar em espetáculo, fotografia, filme ou gravação pornográficos, dada a natureza pessoal do crime, quando estão em causa as modalidades de ação previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 176º o número de menores utilizados nos materiais pornográficos mencionados na al. b) – fotografia, filme ou gravação –, não determina o número de crimes praticados, em termos de os fazer coincidir.
Por conseguinte, apelando aos critérios estabelecidos no artigo 30º, n.º 1, do Código penal, para se aferir se estamos perante uma unidade ou uma pluralidade de crimes, quando estiverem em causa uma multiplicidade de condutas que integrem as modalidades típicas do crime de pornografia de menores, previstas nas alíneas b) e/ou c), do artigo 176º do Código Penal, no caso dessas condutas se revelarem essencialmente homogéneas e terem sido empreendidas em obediência a uma mesma resolução criminosa, abarcando ab inicio as circunstâncias de modo e lugar em atuou, integrarão um único crime[21]; já no caso de se concluir pela existência de várias resoluções criminosas do agente, estando afastado o crime continuado, por força do disposto no n.º 3 do artigo 30º, na redação da Lei n.º 40/2010, de 03 de setembro, estaremos perante uma pluralidade de crimes.
Esta última situação e a que ocorre no caso dos autos.
Com efeito, em nosso entender, tal como considerou o Tribunal a quo, as condutas do arguido/recorrente, perpetradas nos dias 03/08/2018, 19/11/2018 e 30/11/2018, foram concretizadas em execução de várias resoluções criminosas, tomadas em distintas ocasiões, traduzindo-se, cada uma daquelas condutas, numa autónoma lesão do bem jurídico protegido, existindo, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica»[22] e, portanto, de outros tantos crimes, a punir em concurso efetivo, nos termos do artigo 30º, n.º 1, do Código Penal.
Destarte, deve manter-se a condenação do arguido/recorrente, pela prática, como autor material e em concurso efetivo, de três crimes de pornografia de menores, agravados, p. e p. pelos artigos 176º, n.º 1, al. c) e 177º, n.º 7, ambos do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto.
Improcede, assim, também, nesta parte, o recurso.

2.3.6. Da medida da pena
Mantendo-se a qualificação jurídica dos factos, nos termos decididos na 1.ª instância, a moldura penal abstrata aplicável a cada um dos três crimes de pornografia de menores, agravados perpetrados pelo arguido/recorrente, em concurso efetivo, é a que foi considerada no acórdão recorrido, correspondendo a pena de prisão de 1 (um) ano e 6 (seis) meses a 7 (sete) anos e 6 (seis) meses (cf. artigos 176º, n.º 1 e 177º, n.º 7, ambos do CP).
A fundamentação aduzida pelo recorrente para pugnar pela redução da pena, por força da atenuação desta, qual seja a de que teria agido em erro sobre a ilicitude dos factos, não vingou, pelo que se mostra prejudicada a apreciação da questão.
Não obstante, sempre se dirá que foram devidamente ponderadas pelo Tribunal a quo, as circunstâncias a atender, na determinação da medida concreta das penas parcelares, designadamente, o elevado grau de ilicitude dos factos, a intensidade do dolo com que o arguido agiu, as exigências de prevenção especial e as de prevenção geral que, no caso se fazem sentir, bem como as condições pessoais do arguido, a sua inserção familiar, laboral e social e a ausência de antecedentes criminais, entendendo-se que as penas parcelares fixadas em 2 (dois) anos, 2 (dois) anos e 3 (três) meses e 2 (dois) anos e 6 (seis) meses [fixadas no primeiro terço da respetiva moldura penal abstrata aplicável], se mostram ajustadas e proporcionais, não excedendo o grau de culpa do arguido, pelo que devem manter-se.
No atinente à pena única, fixada 3 (três) anos e 3 (três) meses, atendendo à moldura penal abstrata correspondente ao concurso de crimes, sendo o limite mínimo 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e o limite máximo 6 (seis) anos e 9 (nove) meses e ponderando, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido (cf. artigo 77º n.º 1 do Código Penal), sendo o grau de ilicitude dos factos mediano (efetuando a partilha com três pessoas de ficheiros de imagem e vídeo de conteúdo sexual explícito envolvendo menores de 14 anos, o que correu num período temporal de três meses) e denotando o arguido uma personalidade com fraca interiorização da censurabilidade do tipo de condutas em causa, referindo não “compreender” a razão pela qual são criminalizadas, conquanto o arguido seja primário, contando 64 anos de idade, aquela circunstância constitui um fator de risco de reiteração de comportamento semelhantes, tem-se como justa, adequada e proporcional a pena única aplicada pelo Tribunal a quo [fixada no primeiro terço da moldura penal abstrata aplicável], pelo que também a mesma é de manter.
Nesta conformidade, deve manter-se a condenação do arguido/recorrente, nos precisos termos decididos no acórdão recorrido.
Improcede, por conseguinte, o recurso.

3. DECISÃO
Pelo exposto e em conformidade, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido/recorrente AA e, em consequência, confirmar, na íntegra, o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (cf. artigo 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, artigo 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).

Notifique.
Évora, 09 de maio de 2023

Fátima Bernardes
Fernando Pina
Beatriz Marques Borges

_____________________________________
[1] Cf., entre outros, Ac. da RL de 03/03/2022, proc. n.º 106459/20.6YIPRT.L1-6 e Ac. do STJ de 06/09/2022, proc. 243/17.0T9PRT-K.S1, in www.dgsi.pt
[2] Cf. citado Acórdão da RL de 03/03/2022.
[3] Proferido no proc. 4778/11.8JFLSB-B.S1, in www.dgsi.pt.
[4] O “facebook” é uma rede social que funciona através da internet e que, por isso, opera no âmbito de um sistema informático, tal como o define o artigo 2º, al. a), da enunciada Lei nº 109/2009.
[5] Proferido no proc. 243/17.0T9PRT-K.S1, in www.dgsi.pt.
[6] Proferido no proc. 7035/20.5T9LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[7] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. da RE de 12/02/2016, proc. 3/14.8GAMRA.E1 e Ac. da RL de 21/04/2022, proc.1062/15.1GEALM.L1-9, acessíveis in www.dgsi.pt.
[8] Proferido no proc. 3/14.8GAMRA.E1, in www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, vide Ac. desta RE de 17/03/2015, proc. 524/13.0JDLSB.E1, in www.dgsi.pt.
[10] Proferido no proc. 8001/15.8TDLSB.E1, in www.dgsi.pt.
[11] Cf., entre outros, Ac. do STJ de 19/06/2019, proc. 98/17.2GAPTL.S1RL e Ac. da RL de 05/12/2008, proc. 10442/2008-3, in www.dgsi.
[12] Nas palavras de Américo Taipa de Carvalho, in Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, Teoria Geral do Crime, 3ª edição, 2016, Universidade Católica Editora, Porto, págs. 488 e 489.
[13] Idem.
[14] Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto.
[15] Como refere André Lamas Leite, “As Alterações de 2015 ao Código Penal em matéria de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexuais – Nótulas Esparsas, estabelecida na Lei do Cibercrime”, in Rev. Julgar, n.º 28, 2016, págs. 69-70, a noção de de sistema informático a considerar, neste âmbito, é a constante do artigo 2º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime).
[16] O legislador pretendeu ajustar a lei à realidade contemporânea, considerando a existência de espetáculos pornográficos em tempo real, acessíveis através da internet, em páginas/plataformas de live strems.
– cf. sobre o tema João Miguel Almeida da Silva, “Cibercrime: O Crime de Pornografia Infantil na Internet”, Dissertação em Ciências Jurídico-Forenses, janeiro de 2016, Universidade de Coimbra,
in https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/34801/1/Cibercrime_o%20Crime%20de%20Pornografia%20Infantil%20na%20Internet.pdf.
[17] Sobre esta problemática, cf., João Pedro Pereira Cardoso, “Pornografia real infantil: Unidade ou pluralidade de crimes?”, in DataVenia, n.º 13 – Ano 2022, acessível em https://datavenia.pt/ficheiros/edicao13/datavenia13_p243_286.pdf.

[18] Cf., neste sentido, entre outros, na doutrina, Pedro Soares de Albergaria/Pedro Mendes Lima, in “O crime de detenção de pseudopornografia infantil – evolução ou involução?”, in Revista Julgar, n.º 12 (especial) – 2010, acessível in julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/195-220-Detenção-de-pseudopornografia.pdf e, na jurisprudência, Ac. da RE de 23706/2020, proc.
8225/18.6T9LSB.E1 e Ac. do STJ de 17/05/2017, in www.dgsi.pt.
[19] In Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, 2ª ed., Coimbra Editora, Tomo I, 2012, pág. 548.
[20] Reportando-se à exibição ou cedência a qualquer título ou por qualquer meio de fotografia, filme ou gravação pornográficos, em que fosse utilizado menor de 14 anos em fotografia.
[21] Foi essa a situação subjacente à decisão proferida no já citado Acórdão do STJ de 17/05/2017.
[22] Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias, a que supra se aludiu.