Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
295/07.9TBVRS-B.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: ESTADO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Data do Acordão: 10/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não afasta a competência dos tribunais administrativos e fiscais a eventualidade de o Autor pedir, na acção, a condenação solidária de entidades públicas e de entidades particulares e o facto de para o conhecimento do pedido formulado contra estas últimas ser competente o tribunal de jurisdição comum.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Agravo n.º 295/07.9TBVRS-B.E1 (1ª secção cível)





ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

(…), instaurou ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra o Estado Português e Outros alegando factos, no âmbito de acidente de viação de que foi vítima, tendentes a peticionar a condenação solidária dos mesmos em indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
No essencial invoca três ordens de razões para a demanda conjunta dos réus, a saber:
- Os co-réus (…) e (…), co-responsáveis pelo acidente de viação de que foi vítima, encontrando-se irregulares em território nacional, foram deportados para o país de origem, a Roménia; e por virtude dessa expulsão não pode vir a receber a compensação/indemnização por parte dos mesmos; motivo porque deverá o Estado – que através do SEF e Ministério da Administração Interna os expulsou – ser obrigado a indemnizar o que for apurado pelo tribunal como emergente da responsabilidade dos ditos co-réus;
- Através de directivas comunitárias o Estado está obrigado a identificar as Estradas com mais acidentes de viação causados pela circulação de peões e de velocípedes sem motor, devendo construir zonas para circulação dos mesmos nas vias que se venham a constatar como mais perigosas, o que até ao momento não cumpriu, sendo que se o tivesse feito poderia ter evitado o acidente em causa nos autos;
- O Estado Português aboliu o seguro obrigatório nos velocípedes, permitindo que os mesmos circulem pelas vias públicas, não existindo, em consequência, instituições como o Fundo de Garantia Automóvel, que possam responsabilizar-se pelo pagamento de indemnizações em casos como o presente, motivo porque deverá o Estado assumir o seu pagamento;
Após ter sido citado veio o réu Estado Português, representado pelo Ministério Público, apresentar contestação, na qual arguiu, além do mais, a excepção de incompetência material do tribunal comum para conhecer do pedido contra o mesmo dirigido, por se tratar de matéria do foro administrativo.
Em sede de saneador considerou-se verificada a incompetência absoluta do tribunal comum quanto aos pedidos deduzidos contra o réu Estado Português, e absolveu-se o mesmo da instância.
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Irresignado com tal decisão veio a autor interpor o presente recurso, pugnando pela competência do tribunal para apreciar o pedido formulado contra o réu Estado Português, terminando, nas suas alegações, por formular as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1º O Tribunal absolveu o Estado da instância, por considerar haver uma incompetência absoluta do tribunal, sendo competente o Tribunal Administrativo;
2º O autor propôs a acção declarativa sob a forma de processo comum ordinário contra pessoas singulares; uma pessoa colectiva (Companhia de Seguros …) e contra o Estado Português;
3º Formulou um pedido único para pagamento de uma indemnização solidária dos réus, tendo como causa de pedir um conjunto de factos que consubstanciam responsabilidade civil extracontratual;
4º Os artigos 27º e 87º do CPC prevêem que o autor possa formular um pedido ou vários contra um ou vários réus se a relação material controvertida respeitar várias pessoas;
5º A função jurisdicional está repartida pela jurisdição comum ou civil, jurisdição penal jurisdição administrativa;
A função jurisdicional é unitária sendo o seu fim único não interessando um ramo de direito material que ele visse actuar;
7º A causa de pedir na acção é a mesma contra todos os réus, o direito aplicável é o mesmo, o pedido formulado é único e feito de forma solidária contra todos os réus;
Foram violados os artigos 87º e 272º do CPC;
9º Se assim não se entender, prescreve o artigo 105º do CPC como efeito da incompetência absoluta a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta, aproveitando-se os articulados desde que haja acordo das partes quer tácito quer expresso;
10º Em consequência desde já, o autor requer a remessa do processo para o Tribunal Administrativo, sendo certo que, se assim acontecer, o tribunal administrativo e o tribunal civil apreciarão os mesmos factos como causa de pedir, decidirão sobre o mesmo pedido, à luz do mesmo ordenamento jurídico, o que é absolutamente inaceitável perante a encomia processual e utilização de meio;
11º Foi violado o artigo 105º do CPC.
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Foram apresentadas alegações por parte do Estado Português defendendo a manutenção do julgado.
Em virtude do falecimento do autor, ocorrido em 08/02/213, vieram a ser habilitados, por decisão de 11/12/2014, como seus sucessores (…), (…) e (…).
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Apreciando e decidindo

O objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, a questão essencial que importa apreciar, resume-se em saber se o Tribunal da Comarca de Faro (foro comum) tem competência em razão da matéria para apreciar e decidir a ação instaurada contra o Estado Português, tendo em conta a natureza da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.

Para apreciação da questão há que ter em conta a matéria supra referenciada que nos dispensamos de transcrever.

Conhecendo da questão
O Julgador a quodeclinou a competência material do Tribunal Judicial de foro comum para conhecer da questão, relativa ao réu Estado Português, atribuindo-a aos Tribunais Administrativos, por entender que tal como foi apresentada a causa de pedir e o pedido formulado contra o Estado Português havia que ter-se em conta o disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea g), do ETAF no qual se estabelece que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígio que tenham nomeadamente por objeto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.

Desde já, diremos, que perfilhamos do entendimento que, no caso em apreço, e no que concerne ao réu Estado Português, deva ser atribuída aos tribunais administrativos, competência em razão da matéria para julgamento da causa, porque, embora sejam demandados conjuntamente outros réus, tal não influi na atribuição da competência material, como as normas inerentes definem e atribuem tal competência.
Nos termos do art. 211º, n.º 1, da CRP, “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais,” donde se concluiu que a competência dos tribunais comuns é meramente residual, competindo aos tribunais administrativos e fiscais “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (cfr. art. 212º, n.º 3, da CRP e artº 1º, n.º 1, do ETAF).
Dentro desse objecto compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios em que esteja em causa, nomeadamente:
- Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal.
- Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa (cfr. artº 4º n.º 1 al. a) e g) do ETAF).
Na determinação da competência dos tribunais em razão da matéria releva essencialmente os elementos identificadores da causa, designadamente a causa de pedir, o pedido alicerçado por esta, e as partes, tendo-se em atenção a pretensão tal como é configurada pelo autor. [1]
Por isso, não podemos deixar de ter em conta que a competência em razão da matéria deve aferir-se pela natureza da relação jurídica apresentada pelo autor na petição, havendo que fazer a ponderação do modo como autor configura a ação, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, e tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exata configuração da causa, sendo que, no caso, não há dúvida que a responsabilidade que o autor atribui ao réu Estado Português é uma responsabilidade extracontratual que decorre do exercício da função administrativa e legislativa, aliás que o próprio recorrente parece reconhecer, mas que desconsidera pelo facto de existir uma coligação de réus, sendo em maior número os réus que nada têm a ver com as funções, administrativa ou legislativa, do Estado.
Mas o facto de haver outros réus para além do Estado, ao contrário do que entendem os ora recorrentes, não implica que o tribunal comum recorrido passe a ser materialmente competente para conhecer da demanda contra todos, incluíndo o réu Estado Português.
Pois, a única extensão da competência que a lei permite é a prevista no art. 97º do VCPC (aplicável, porque era o Código que estava em vigor aquando da decisão) é a referente às “questões prejudiciais[2] quando prescreve: “se o conhecimento do objecto da acção depender da decisão de uma questão que seja da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo, pode o juiz sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie” e, não sendo proposta a acção no prazo de um mês ou se estiver parada por negligência das partes durante esse prazo, “o juiz da acção decidirá a questão prejudicial, mas a sua decisão não produz efeitos fora do processo em que for proferida”.
Por isso, não estando em causa uma situação que possa ser considerada questão prejudicial porque o que se trata é do verdadeiro objecto da ação e não de qualquer questão que constitua pressuposto necessário à decisão de mérito, estamos fora do âmbito de aplicação do artº 97º do VCPC.
Como se salienta no Acordão 06/2007 do Tribunal de Conflitos proferido em 28/11/2007 “a atribuição de competência dos tribunais administrativos para o conhecimento destas acções de responsabilidade civil extracontratual ... não pode ser afastada por considerações de ordem prática ou princípios jurídicos gerais; na verdade, os princípios jurídicos são elaborados com base nas soluções legais e tanto eles como as razões de ordem prática só podem valer em sintonia com essas soluções ...; por isso não se pode afastar a aplicação de uma competência expressamente prevista na lei com base em considerações de economia processual ...”; e como o próprio diz, “este entendimento de que o regime do litisconsórcio voluntário não se sobrepõe ás normas de competência material insere-se numa posição bem enraizada na jurisprudência deste Tribunal de Conflitos”.
Jurisprudência que mantém atualidade, tal como decorre do afirmado no acordão do mesmo Tribunal de Conflitos, com o n.º 2/12, proferido em 29/09/2012 onde pode ler-se que “não afasta a competência dos tribunais administrativos e fiscais a eventualidade de o A. pedir, na acção, a condenação solidária de entidades públicas e de entidades particulares e o facto de para o conhecimento do pedido formulado contra estas últimas ser competente o «tribunal comum»”.
Entendimento que é também acolhido no acordão do STJ de 17/06/2010 no processo 686/08.8TBBRG.G1.S1 onde se refere expressamente que “no caso de litisconsórcio voluntário (art. 27º do CPC) deve verificar-se em relação a todos os contitulares da relação material controvertida, atento o pedido formulado, a compatibilidade processual a que alude o art. 31, nº:1 do CPC, ou seja, não será admissível o litisconsórcio voluntário quando ocorra incompetência absoluta do tribunal relativamente a algum ou alguns desses contitulares; o tribunal pode conhecer oficiosamente da excepção de competência em razão da matéria ...”, e “a acção prossegue contra os demais réus considerado o pedido contra eles deduzido relativamente ao qual o tribunal é o competente em razão de matéria”.
Do exposto resulta que bem andou o Julgador a quo em julgar verificada a exceção incompetência material e em absolver o réu Estado Português, da instância, pelo que se impõe a confimação do julgado, dada a irrelevâcia das conclusões apresentadas pelo recorrente, não sendo, de apreciar a questão relativa à pretensão de remessa do proceso para outro tribunal a coberto do artº 105º, n.º 2, do VCPC (artº 99º, n.º 2, do NCPC), uma vez que a pretensão é intempestiva por, apenas, dever ser requerida no prazo fixado no artº 153º, n.º 1, do VCPC (artº 149º, n.º 1, do NCPC,) após trânsito em julgado da decisão que decretou a incompetência.
No entanto, diga-se, desde já, que se tal pertensão, no caso em apreço, vier a ser formulada no momento oportuno, mesmo que tenha por verificado o acordo das partes, o que não tem por garantido, não pode, certamente, deixar de ser indeferida, uma vez que os autos prosseguiram, e prossseguem, seus termos no tribunal recorrido, de jurisdição comum, já que o óbice inerente à incompetência material dizia respeito, apenas, a um dos réus e não aos demais demandados em coligação.
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Para efeitos do n.º 7 do artº 663º do Cód. Processo Civil, em conclusão:
1 – Para aferir da competência material do tribunal não basta atender ao pedido, havendo que ponderar o modo como o autor configura a acção na sua dupla vertente, pedido e causa de pedir, tendo ainda em conta as circunstâncias disponíveis que revelem sobre a exacta configuração da causa.
2 – A competência dos tribunais comuns é residual, estendendo-se a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais.
3 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígio que tenham nomeadamente por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.
4 - Não afasta a competência dos tribunais administrativos e fiscais a eventualidade de o autor pedir, na acção, a condenação solidária de entidades públicas e de entidades particulares e o facto de para o conhecimento do pedido formulado contra estas últimas ser competente o tribunal de jurisdição comum.
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DECISÂO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao agravo e, consequentemente, confirmar a decisão impugnada.
Custas, pelos agravantes.


Évora, 08 de Outubro de 2015


Mata Ribeiro

Sílvio Teixeira de Sousa

Rui Machado e Moura

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[1] - v. Ac. STJ de 12/02/2004 in http://www.dgsi.pt, processo n.º 04B188.
[2] - v. Alberto dos Reis in Comentário ao Código de Processo Civil, 1º vol., 287.