Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
531/15.8T8STR.E1
Relator: SILVIO SOUSA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PESSOA SINGULAR
Data do Acordão: 09/10/2015
Votação: MAIORIA COM VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: O processo especial de revitalização, instituído em 2012, teve, manifestamente, como objectivo travar, tanto quanto possível, “o empobrecimento do tecido económico português”, que, no contexto económico-financeiro, então, existente, dificilmente poderia recuperar com “o surgimento de novas empresas”; assim sendo, o devedor nele referido é, apenas, aquele que, directamente, cria riqueza e contribui para o crescimento económico; tal não acontece com o consumidor, apenas trabalhador por conta de outrem; como tal não pode este lançar mão do referido processo especial.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Apelação nº 531/15.8 T8STR.E1




Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:


Relatório

(…) e mulher, (…), residentes na Rua (…), nº 7, (…), Santarém, requereram abertura do presente processo especial de revitalização, articulando factos que, em seu critério, conduzem à sua procedência, que culminou com despacho de indeferimento liminar, a pretexto de a coligação activa de devedores não ser permitida neste procedimento, que não se aplica a pessoas singulares que trabalham por conta de outrem.


Inconformados com o decidido, recorreram os requerentes, culminando as suas alegações, com as seguintes “conclusões”:

- O despacho recorrido indefere, liminarmente, o processo especial de revitalização, requerido pelos recorrentes, com base na inadmissibilidade da coligação inicial activa de devedores, no processo de insolvência e no processo especial de revitalização;

- Ao contrário do que afirma o Tribunal a quo, o artigo 264º., nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas permite a coligação inicial activa de devedores, desde que verificados certos pressupostos, contidos, nessa disposição legal e no artigo 249.º do mesmo diploma e onde se destaca a necessidade de os devedores coligados serem casados entre si, com um regime de bens que não seja o da separação;

- Com efeito, o próprio preâmbulo do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas admite, expressamente, essa possibilidade, considerando-a, inclusive, uma das inovações deste diploma, afirmando que “É permitida a coligação activa e passiva dos cônjuges no processo de insolvência. Apresentando-se ambos à insolvência (…) a apreciação da situação de insolvência de ambos os cônjuges consta da mesma sentença, e deve ser formulada conjuntamente, por eles, uma eventual proposta de plano de pagamentos”;

- Nesse sentido, de resto, se tem pronunciado a jurisprudência, nomeadamente (…);

- Também na doutrina é pacificamente aceite, nos moldes já expostos a coligação inicial ativa dos cônjuges (…);

- O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não regula, no âmbito das normas específicas do processo especial de revitalização, a questão da legitimidade da coligação ativa, inicial ou superveniente; deve, por isso, e com as necessárias adaptações, aplicar-se o regime do processo da insolvência, pelo que se deve ter como legítima, no processo especial de revitalização, a coligação ativa dos cônjuges, desde que estes se encontrem numa situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente e não se encontrem casados sob o regime da separação (artigos 17º.-A, nº 1 e 264º., nº 1 do referido código);

- Como tempestivamente alegaram no requerimento inicial e, de resto, como resulta dos meios de prova documental com ele juntos, os requerentes estão casados entre si no regime da comunhão de adquiridos e encontram-se numa situação económica difícil, pelo que se encontram verificados os pressupostos legais, sendo, por isso, legítima a coligação;

- Sendo legítima a coligação dos requerentes no processo especial de revitalização, não se verifica a exceção dilatória prevista no artigo 577.º, f), do Código de Processo Civil, invocada pelo Tribunal a quo, pelo que o indeferimento liminar do presente processo carece de total fundamento;

- Concomitantemente, o Tribunal a quo, apoiado num acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, indeferiu o presente procedimento especial de revitalização com base no facto de os recorrentes serem ambos trabalhadores por conta de outrem;

- Este entendimento não merece a concordância dos recorrentes, nomeadamente, porque ainda que o diploma que introduziu o processo especial de revitalização tenha sido pensado, sobretudo, para a recuperação e revitalização de empresas, tal não significa que o legislador tenha pretendido vedar o acesso a este processo às pessoas singulares não titulares de empresa e não trabalhadores por conta própria;

- Com efeito, nem o artigo 1.º do Decreto-Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, onde se encontra definido o objecto do diploma, nem as restantes normas que o compõem, estabelecem, expressa ou tacitamente, tal restrição;

- Também o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não estabelece qualquer restrição subjetiva ao universo de devedores que podem lançar mão do processo especial de revitalização: o artigo 1º., nº 2 deste código apenas impõe que o devedor esteja “em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente” e mais explicitamente, o artigo 17º.-A, nº 2 do mesmo diploma estabelece que o processo especial de revitalização “pode ser utilizado por todo o devedor”;

- Também a doutrina se vem pronunciando a favor da legitimidade do acesso de pessoas coletivas não titulares de empresas e não trabalhadores por conta própria ao processo especial de revitalização; é essa aposição assumida por (…);

- Do exposto resulta que não existe, no regime legal do processo especial de revitalização, qualquer restrição subjetiva que impeça que pessoas singulares não titulares de empresas e não trabalhadores por conta própria utilizem este processo, pelo que não procede o segundo argumento movido pelo Tribunal a quo para indeferir, liminarmente, o presente processo especial de revitalização.

Nestes termos, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por um que admita a coligação inicial ativa dos recorrentes e admita o presente processo de especial de revitalização.


Inexistem contra-alegações.

Face às conclusões das alegações, o objeto do recurso circunscreve-se à apreciação das seguintes questões: a) saber se os trabalhadores por conta de outrem podem ou não lançar mão ao processo especial de revitalização; b) saber se este procedimento admite ou não a coligação inicial ativa de devedores.


Foram colhidos os vistos legais.

Fundamentação


A - Decisão recorrida


“(…) e (…) vieram apresentar-se a PER em coligação, por serem casados em regime de comunhão de adquiridos.


Convidados para eliminarem a coligação, os mesmos declararam pretender mantê-la.


Ora, considerando que a coligação inicial activa de devedores não é permitida nem na insolvência, nem neste procedimento (neste sentido “Processo Especial de Revitalização, Notas Práticas e Jurisprudência Recente”, Fátima Reis Silva, Porto Editora, pág. 23), tem o Tribunal de julgar verificada a excepção dilatória do art. 577.º, al. f, do CPC.


Concomitantemente, resulta do artigo 2º da p. i. que o requerente marido é empregado de escritório e a requerente mulher é operadora de caixa especializada no Pingo Doce.


Conforme se decidiu no Ac. TRG de 23-2-2015, proc. n.º 3700/13.1TBGDM.P1, “O Processo Especial de Revitalização não se destina aos devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários nem exerçam, por si mesmos, qualquer atividade autónoma e por conta própria”. Explanando melhor esta conclusão, consideram (…)”.


(…)


Esta interpretação é, efetivamente, a que parece mais conforme ao Tribunal com o espirito da lei, mais precisamente do instituto do processo especial de revitalização.


Em face do exposto, indefiro liminarmente o presente processo especial de revitalização em que são devedores (…) e (…), ao abrigo do art. 27º/1-a, CIRE.


(…)”


B - O direito


Quanto a saber se os trabalhadores por conta de outrem podem ou não lançar mão ao processo especial de revitalização


- Na interpretação da lei, o intérprete não pode esquecer “os fins que a lei prossegue, as soluções que tem em vista realizar, e que constituem a sua razão de ser” ou, noutras palavras, “o interesse específico socialmente relevante que a lei pretende tutelar”; além disso, a lei a interpretar tem de ser vista no âmbito da “disciplina jurídica em que ela está inserida”, e não isoladamente, uma vez que “a relevância de um interesse é sempre medida e condicionada pela relevância reconhecida a outros interesses”; ao intérprete é, finalmente, exigido que “atenda, por um lado às circunstâncias em que foi elaborada, e por outro às condições específicas do tempo em que é aplicada, isto é, que a interpretação seja coerente com o sistema de valores que a comunidade aceita como fundamento da própria convivência” [1];


- Sempre que a vontade real do legislador não seja clara e inequívoca, importa ter em consideração “critérios de carácter objetivo”, como sejam o da presunção de que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” e da rejeição de um sentido decisivo da lei, se no texto desta “não se encontrar um mínimo de correspondência verbal” [2].


- “O processo especial de revitalização pretende assumir-se como um mecanismo célere eficaz que possibilite a revitalização de devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenha entrado em situação de insolvência atual. A presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e suficientes no combate ao “desaparecimento” de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas” [3];


- “O regime específico da insolvência dos devedores não empresários (…) reside na possibilidade de apresentação de um plano de pagamentos aos credores (…)” [4].


Quanto a saber se este procedimento admite ou não a coligação inicial ativa de devedores


- Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns e, finalmente, pelo que se acha estabelecido para o processo comum [5];


“Perante a existência de uma lacuna na lei, importará averiguar se, no caso concreto, a filosofia e a finalidade subjacentes aos PER consentem uma aplicação subsidiária (de primeira, segunda ou terceiras linhas)” [6];


- Não sendo o regime de bens do casal o da separação de bens e encontrando-se ambos os cônjuges insolventes, pode estes apresentar- se, conjuntamente, à insolvência, em coligação activa [7].


C- Aplicação do direito aos factos


Quanto a saber se os trabalhadores por conta de outrem podem ou não lançar mão ao processo especial de revitalização


O processo especial de revitalização, instituído em 2012, teve, manifestamente, como objetivo travar, tanto quanto possível, “o empobrecimento do tecido económico português”, que, no contexto económico-financeiro, então, existente, dificilmente poderia recuperar com “o surgimento de novas empresas”. Ou seja: face a dificuldades conjunturais de criação de novas empresas, importaria garantir, às que tinham viabilidade económica, a possibilidade de continuar a laborar, apesar das dificuldades de cumprir as suas obrigações.


Este foi, pois, o fim prosseguido com o procedimento em causa, a razão de ser da lei, o interesse específico que se pretendeu acautelar.


Sendo este o objectivo da lei, nem todos os devedores podem utilizar o processo especial de revitalização, mas apenas os “agentes económicos”, cujo desaparecimento “gera desemprego”.


Manifestamente, não é o caso que dos recorrentes (…) e mulher, (…) – trabalhadores por conta de outrem, meros consumidores, com um rendimento global mensal líquido na ordem dos € 1.200,00 –, na medida em que a sua eventual insolvência não “representa um custo apreciável para a economia”.


Acresce que o referido procedimento não pode ser visto, isoladamente, e, sim, em conjugação com outros, nomeadamente, com o “regime específico da insolvência dos devedores não empresários (…)”, susceptível de, em principio, conduzir à salvaguarda, no essencial, dos interesses que os ditos recorrentes pretendem alcançar com os presentes autos.


É, assim, possível concluir, em sede de interpretação da lei, que o devedor referido no processo especial de revitalização é, apenas, aquele que, directamente, cria riqueza e contribui para o crescimento económico.


Improcede, pois, esta parte do recurso.


Quanto a saber se este procedimento admite ou não a coligação inicial activa de devedores


Esta questão encontra-se prejudicada pelo anteriormente decidido, razão pela qual dela não se toma conhecimento.


Decisão


Pelo exposto, decidem os juízes desta Relação, julgando o recurso improcedente, manter a decisão recorrida.


Custas pelos recorrentes.


Évora, 10 de Setembro de 2015


Sílvio José Teixeira de Sousa


Rui Machado e Moura


Maria da Conceição Ferreira (vencida)


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[1] Artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil e Jacinto Fernandes Rodrigues Basto, in Notas ao Código Civil, vol. I, pág. 39.
[2] Artigo 9.º, nºs 1 e 2, do Código Civil e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, págs. 58 e 59.
[3] Proposta de Lei nº 39/XII, que originou a Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, que, por seu turno, consagrou o processo especial de revitalização.
[4] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 2ª edição, pág. 810, e artigos 251.º do mesmo diploma.
[5] Artigo 549.º, nº 1, do Código de Processo Civil.
[6] Artigo 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e acórdão da Relação de Lisboa de 16 de Junho de 2015 (processo nº 811/15.2T8FNC-A.L1-7), in www.dgsi.pt..
[7] Artigo 264.º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.