Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1004/14.1T8FAR .E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: PROVA DOCUMENTAL
IMPUGNAÇÃO DE DOCUMENTOS
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A simples afirmação de que se impugna um documento apresentado pela parte não é impugnação da letra ou assinatura a que se refere o art.º 374.º nem arguição da falsidade do documento a que se refere o art.º 376.º, ambos do Cód. Civil.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1004/14.1T8FAR .E1 (1.ª Secção)
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

GINÁSIO AA, associação desportiva sem fins lucrativos, instituição de utilidade pública, propôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum contra o CLUBE BB, associação desportiva sem fins lucrativos, peticionando que seja declarada a nulidade do contrato de mútuo alegadamente celebrado entre as partes, em 4 de Outubro de 2004 e que, consequentemente, o réu seja condenado a restituir-lhe a quantia de € 300 000,00 (trezentos mil euros), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, que se venham a vencer desde a citação do réu para contestar a ação até integral pagamento.
Alegou para o efeito e, em suma, que a solicitação do réu, em 14 de setembro de 2004, procedeu a uma transferência bancária no valor de € 300 000,00 (trezentos mil euros) para a conta bancária cujo NIB lhe foi indicado pelo réu, sendo que este deu quitação dessa importância e declarou-se devedor da mesma ao autor.
Não tendo sido reduzido a escritura pública, tal empréstimo é nulo, por falta de forma, devendo ser restituído ao autor, tudo o que havia sido prestado.
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O R. contestou impugnando os factos alegados.
Porém, admitiu expressamente que a dívida estava reconhecida na sua contabilidade (artigo 22.º da contestação), mas sem que a quantia tenha dado «entrada nos cofres da ré». Donde, em seu entender, não se verifica um dos elementos constitutivos essenciais à formação do contrato de mútuo que consiste na entrega da coisa.
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O A. requereu a condenação do réu como litigante de má-fé, pelos prejuízos que se vieram a liquidar em execução de sentença.
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O réu respondeu pugnando pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má fé.
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Findos os articulados, foi proferida sentença cuja parte decisória é a seguinte:
Em conformidade com o exposto, julgo procedente a ação e, consequentemente:
1. Declaro a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre o autor e o réu; e, por conseguinte,
2. Condeno o réu a restituir ao autor a quantia de € 300 000,00 (trezentos mil euros), acrescidos de juros legais a contra da sua citação para a presente ação;
3. Condenar o réu como litigante de má-fé em multa equivalente a 10 UC´s e indemnização, cujo montante será liquidado em execução de sentença;
4. Condenar o réu nas custas do processo, por ter dado causa à ação e nela ter ficado vencido (artigo 527.º, do Código de Processo Civil).
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Desta sentença recorre o R. centrando as suas alegações em quatro temas:
- valor probatório de uma declaração de reconhecimento de dívida;
- reconhecimento da dívida em 2016;
- existência do contrato de mútuo e consequente necessidade de os autos seguirem para julgamento;
-litigância de má fé.
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O A. contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos.
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A matéria de facto é a seguinte:
1. Autor e réu têm a natureza jurídica de associações sem fins lucrativos, considerados como dois clubes históricos e tradicionais da cidade de Faro, com raízes profundas na sociedade civil (artigo 1.º da petição inicial).
2. A relação entre os dois clubes pautou-se sempre pelo profundo respeito e reconhecimento mútuo da sua importância desportiva (artigo 2.º da petição inicial).
3. No documento que constitui fls. 20 dos autos, onde consta aposta a assinatura legível de CC, na parte destinada à aposição de assinaturas pelo “G.AA.” e “C.BB.”, intitulado “RECONHECIMENTO DE DÍVIDA”, pode ler-se que:
“Ginásio AA emprestou ao Clube BB a quantia de 300 000,00 (trezentos mil euros), empréstimo efetuado através de conta bancária, Banco na conta depósitos à ordem pelo Clube BB.
O Clube BB declara ter recebido a importância de 300 000,00 (trezentos mil euros) e em simultâneo reconhece ser devedor ao Ginásio AA da importância acima referida.
Por ser verdade este documento irá ser assinado pelas partes”.
4. O Dr. CC é (em 2004) simultaneamente, Presidente da autora e da ré (artigo 10.º da contestação).
5. Tal dívida estava reconhecida na sua contabilidade (1.ª parte do artigo 22.º da contestação).
6. Tal dívida foi reconhecida pelo réu no “Estudo de Viabilidade Económica” por ela apresentado em Maio de 2006 ao IAPMEI, bem como em todos os balanços e demonstrações de resultados, desde 2004 a 2012, inclusive (artigo 18.º do requerimento de fls. 48 e ss)
7. Tal conta era também utilizada para pagar contas da Clube BB SAD (Sociedade Anónima Desportiva) – (artigo 14.º do requerimento de fls. 63 e ss.)
8. Os salários dos jogadores que reclamaram os seus créditos no processo de insolvência da Clube BB SAD também foram pagos através daquela conta bancária e com dinheiro proveniente da autora (parte do artigo 17.º e artigo 18.º do requerimento de fls. 252 e seguintes).
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O tribunal deu por provado (n.º 3 da respectiva exposição) o seguinte:
No documento que constitui fls. 20 dos autos, onde consta aposta a assinatura legível de CC, na parte destinada à aposição de assinaturas pelo “G.AA” e “C.BB.”, intitulado “RECONHECIMENTO DE DÍVIDA”, pode ler-se que:
«Ginásio AA emprestou ao Clube BB a quantia de 300 000,00 (trezentos mil euros), empréstimo efetuado através de conta bancária, Banco na conta depósitos à ordem pelo Clube BB.
«O Clube BB declara ter recebido a importância de 300 000,00 (trezentos mil euros) e em simultâneo reconhece ser devedor ao Ginásio AA da importância acima referida.
«Por ser verdade este documento irá ser assinado pelas partes».
E fê-lo com os seguintes motivos:
«(…) dispõe o artigo 376.º, n.º 1, do Código Civil que, o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
«Ora, não tendo sido arguida a falsidade do documento que constitui fls. 20 dos autos, nem tendo sido impugnada a assinatura constante do mesmo, temos que, dele resulta prova plena dos factos que aí constam».
O recorrente discorda deste modo de ver uma vez que «impugnou, expressamente, a veracidade da declaração de reconhecimento de dívida (cfr. art.º n.º 2 da contestação)» e que, não obstante, «entendeu o Tribunal que deveria ter sido arguido pelo Réu o incidente de arguição de falsidade da declaração e reconhecimento de dívida».
O R. afirmou na contestação o seguinte (transcreve-se também o art.º 1.º):
«1) Corresponde à verdade o alegado na douta petição inicial sob os artigos 1 e 2, sendo que todos os outros factos alegados pela Autora não correspondem à verdade, pelo que vão impugnados em toda a linha e para todos os efeitos legais.
«2) Sendo igualmente impugnados os documentos juntos pela Autora sob os n.ºs 1 a 4».
Não é, pois, inteiramente certo que tenha sido impugnada a veracidade da declaração, tal como não é inteiramente certo que o tribunal recorrido tenha fundamentado a decisão só com base na não dedução do incidente de falsidade; é que o R. não impugnou as assinaturas apostas no documento.
Invocando o disposto no art.º 374.º, Cód. Civil, o recorrente defende que a autenticidade do documento particular só pode ser aceite mediante reconhecimento tácito ou expresso da parte contra a qual é oferecido. Conclui que não sendo estabelecida a genuinidade do documento particular, porque impugnado, e não demonstrada a sua veracidade pelo apresentante, o mesmo constitui apenas um meio de prova livremente apreciado pelo julgador, ficando arredada a sua força probatória plena
Mas não é bem assim.
Sem dúvida que o art.º 444.º, Cód. Proc. Civil, não impõe a dedução de qualquer incidente de falsidade (aliás, desaparecido desde 1996, por força do Decreto-Lei n.º 180/96). Por isso, a impugnação da letra ou assinatura ou a declaração de que não se sabe se elas são verdadeiras faz-se nos termos normais do processo.
Mas a simples afirmação «impugnam-se os documentos» não configura uma real impugnação da letra ou assinatura ou da genuidade do documento. Dizer aquilo ou nada é a mesma coisa. É que daquele art.º 2.º da contestação nada se pode retirar; o que a lei exige (neste caso, o art.º 374.º citado e o art.º 376.º, n.º 1, parte final) é que a parte tome posição expressa sobre aqueles três pontos.
Por isso, a lei diz que a letra e assinatura «consideram-se verdadeiras» quando (na parte que agora interessa):
- reconhecidas ou não impugnadas:
- a parte declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas.
Isto para estabelecer a autoria da assinatura, para que se possa afirmar que o documento provem de determinada pessoa. Não é relevante a mudança dos titulares dos órgãos da pessoa colectiva.
Já no campo da força probatória do documento cuja autoria esteja já reconhecida, é que a lei afasta a força probatória plena quanto às declarações (não tem ainda que ver com os factos declarados) quando a parte contra quem ele é apresentado argua e prove a falsidade do documento. Daqui resulta linearmente que esta parte tem o dever de alegar o que achar relevante para que se possa concluir que o documento oferecido foi forjado, que ele não é genuíno. Assim, a simples afirmação do art.º 2.º da contestação nenhum relevo tem nesta sede nem põe em crise a genuidade do documento apresentado.
Resulta do exposto que, face à atitude do recorrente (não impugnação), considera-se reconhecida a autoria do documento (art.º 374.º).
Por outro lado, e porque não foi sequer alegada a falsidade do mesmo, temos que as declarações dele constantes são reais (art.º 376.º, n.º 1).
Por último, consideram-se provados os factos compreendidos na declaração na medida em que sejam contrários aos interesses do declarante (art.º 376.º, n. 2). Assim, e de acordo com o teor do documento em questão, temos que o A. emprestou ao R. €300.000 e que este os recebeu.
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Isto leva-nos para o segundo ponto das alegações e que diz respeito ao facto n.º 6: «Tal dívida foi reconhecida pelo réu no “Estudo de Viabilidade Económica” por ela apresentado em Maio de 2006 ao IAPMEI, bem como em todos os balanços e demonstrações de resultados, desde 2004 a 2012, inclusive».
O reconhecimento da dívida deve ser feito perante o credor e não perante terceiros. A afirmação feita a terceiros de que eu devo dinheiro a Fulano não constitui reconhecimento da dívida; pode valer, claro, como elemento de prova numa acção em que se discuta tal dívida mas não mais do que isso. Mas isto não significa que se trate de um facto absolutamente irrelevante; ele não define a sorte da acção mas revela a atitude do R. sobre o assunto (afirma dever, perante terceiros, o que o A. pede mas nega a este o seu direito).
O facto descrito no n.º 3 (a declaração acima analisada) é que é um reconhecimento da dívida.
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O recorrente defende ainda que o tribunal não deveria ter decidido como decidiu, condenando a Recorrente ao pagamento de uma quantia, que não ficou apurado que lhe tivesse sido entregue e que esta teria sido o seu aproveitamento. Pretende, com isto, que os autos prossigam para julgamento.
O art.º 595.º, n.º 1. al. b), Cód. Proc. Civil, permite que o tribunal conheça imediatamente (no despacho saneador) do mérito da causa «sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos». Se for necessário produzir prova sobre algum facto relevante, o tribunal não pode conhecer de mérito sem que tal prova se faça.
No nosso caso, o recorrente defende que não se apurou se o montante mutuado lhe foi entregue. Tal entrega é fundamental no contrato de mútuo, dado o seu carácter real «no sentido de que só se completa pela entrega (empréstimo) da coisa» (Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 601; cfr. também Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 464). Se estiver em dúvida a realidade desta entrega, deverá ser feita prova sobre ela, o que, por sua vez, impede o tribunal de julgar a causa no saneador.
Mas acontece, por força da eficácia probatória do documento atrás analisado, que tal entrega está provada: o R. declarou ter recebido os €300.000 e o teor desta declaração, porque contrário aos interesses do R., é verdadeiro, considera-se provado, como diz o n.º 2 do art.º 376.º. No há necessidade de provar em julgamento um facto que está já provado em momento anterior. É verdade que o dinheiro foi depositado numa conta bancária cujo titular não é o R. mas tal não significa que este não tenha recebido a quantia mutuada; recebeu-a porque assim o declarou, sendo indiferente se a entrega foi feita por intermédio de outra pessoa ou não.
Por estes motivos, não tinha o processo que prosseguir para julgamento.
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O último tema do recurso prende-se com a litigância de má-fé.
Sobre isto, escreve-se na sentença:
«Aqui chegados há que sublinhar o facto do réu ter contestado a ação, sem por em causa a autenticidade do documento, através do qual, a anterior Direção assumiu a dívida, declarando-se devedora da mesma. Por outro lado, da factualidade provada referida nos pontos 5.º e 6.º dos factos provados resulta que, o réu reconheceu a existência da dívida em causa na sua contabilidade, aportando tais elementos contabilísticos ao procedimento extra-judicial junto do IAPMEI.
«Mostra-se evidente que o réu violou o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não deveriam ignorar e omitiu factos relevantes para a decisão da causa».
Não podemos deixar de concordar.
O R. soube sempre que o mútuo foi realizado, que o dinheiro lhe foi entregue, como ele próprio declarou; e declarou, note-se, directamente ao A. (nos termos do documento descrito no n.º 3, onde afirma, também, que por ser verdade este documento irá ser assinado!) bem como a terceiros. Como pode vir agora negar tal realidade? Como pode, a reboque de uma errada e ineficaz impugnação de documento, vir afirmar que não deduziu oposição infundada?
O conhecimento pessoal que o R. tinha dos factos em questão não permite a sua futura negação.
Por isso, foi bem condenado como litigante de má fé.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente.
Évora, 21 de Abril de 2016

Paulo Amaral


Rosa Barroso


Francisco Matos