Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | CRISTINA DÁ MESQUITA | ||
Descritores: | PRINCÍPIO DA ADESÃO DA ACÇÃO CÍVEL EM PROCESSO PENAL PRAZOS ULTRAPASSAGEM | ||
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Data do Acordão: | 03/13/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | 1 - A regra da adesão obrigatória prevista no artigo 71.º do Código de Processo Penal compreende uma norma processual penal, ao permitir o pedido civil nesse processo, e outra processual civil, ao consagrar uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso, em conjugação com o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.ºs 1 e 2, e 578.º, todos do CPC. 2 - O princípio de adesão é mitigado pela admissibilidade, em vários casos, da ação de responsabilidade civil em separado perante os tribunais civis. Com efeito, no artigo 72.º do Código do Processo Penal estão previstas as exceções ao referido princípio, nomeadamente, a obrigatoriedade da adesão só vigora (independentemente da gravidade do crime) na fase de inquérito, pelo período de 8 meses a contar da notícia do crime, pelo que decorrido esse prazo sem que tenha sido deduzida acusação, fica na disponibilidade do lesado propor a ação em separado nos tribunais civis [artigo 72.º/1, alínea a)]. 3 - No caso em apreço não existe nos autos qualquer referência a que os factos alegados pela autora tenham já levado à instauração de um processo criminal ou contra-ordenacional e a própria ré/apelante reconhece não haver notícia da abertura de inquérito criminal. 4 - Incumbia à ré/apelante a alegação e prova de que estava já pendente um processo penal ou contra-ordenacional instaurado por força dos factos que lhe são imputados pela autora (artigo 342.º, n.º 2, do Cód. Civil). 5 - A ultrapassagem do prazo previsto no artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do CPP para a dedução de acusação, configurando uma exceção ao princípio da adesão obrigatória, permite a instauração da ação indemnizatória nos tribunais cíveis, não se verificando, por isso, a exceção de incompetência material invocada pela apelante. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 2839/23.0T8PTM-B.E1 (2.ª Secção) Relatora: Cristina Dá Mesquita Adjuntos: Ana Margarida Leite Vítor Sequinho dos Santos Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora: I. RELATÓRIO I.1. (…) – Distribuição Alimentar, SA, ré na ação declarativa popular de condenação sob a forma única de processo comum que lhe foi movida pela (…) – Consumer (…) Association et al interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo Central Cível de Portimão, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual, julgou inverificada a exceção dilatória de incompetência do tribunal em razão da matéria. O despacho recorrido tem o seguinte teor: «10. Da incompetência em razão da matéria Na contestação, a ré arguiu a falta de competência material deste Tribunal, Juízo Central Cível de Portimão, por o pedido consistir em que o tribunal declare que o (…), S.A. teve um comportamento que consubstancia nas práticas de especulação de preços, publicidade enganosa e práticas comerciais desleais e restritivas da concorrência, agindo com culpa e consciência da ilicitude no que respeita a tais comportamentos, tendo com a totalidade ou parte de tais comportamentos lesado gravemente os interesses dos autores populares. Pedindo, em consequência desse reconhecimento, que os autores populares sejam indemnizados integralmente pelos danos causados por essas práticas, no que respeita ao sobre preço, aos danos morais e aos danos pela distorção da equidade das condições de concorrência. Antecipadamente, na petição, a autora havia já exposto por que tinha proposto a ação no Juízo Cível. Vejamos. É evidente que este Juízo Central Cível não tem competência em razão da matéria para condenar alguém pela prática de um crime ou por infração às regras da concorrência a que alude o artigo 112.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto). Mas a verdade é que, no pedido, tal como o Tribunal interpreta o teor da petição inicial, não consta qualquer pedido de condenação criminal, tal como de uma acusação em processo crime se tratasse. É a própria autora que no ponto 20 faz referência ao facto de não estar a formular qualquer pedido nesse âmbito criminal ou do domínio da concorrência. Por essa razão, tal como o Tribunal interpreta a petição prolixa, o pedido começa a fls. 68 a 149 da petição. Assim, julgo improcedente a exceção.» I.2. A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões: «1º. A Autora pede pela presente ação popular que se declare que a Ré cometeu um crime de especulação e as contraordenações de publicidade enganosa e práticas comerciais desleais e restritivas da concorrência, sustentando os pedidos indemnizatórios na violação das disposições legais que preveem aqueles tipos legais de ilícito. 2º. A interpretação feita pela Mm.ª Juíza a quo de que o pedido começa a fls. 68/149 da petição, ignora a dupla dimensão do ato postulativo tal como apresentado pela Autora, que comporta um pedido de declaração e, como consequência deste, os pedidos de condenação da Ré no pagamento de várias indemnizações (cfr. artigo 10.º, n.º 3, alínea b), do CPC). 3º. O acto postulativo tem não só uma eficácia vinculante para o tribunal, como também uma função delimitadora da actuação do tribunal, ditando designadamente que o juiz não possa condenar em objecto diverso do que se pedir, sob pena de nulidade – artigos 3.º, 609.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC. 4º. Vale por dizer que, logicamente, não faz sentido, nem é admissível, interpretar restritivamente o petitório da Autora, desmembrando-o do pedido declarativo apresentado pela Autora, tanto mais que a própria Autora formulou os pedidos de condenação como consequência do pedido de declaração de que a Ré cometeu o crime e as contraordenações que identifica. 5º. Por outro lado, o pedido, como acto postulativo, tem de ser interpretado de acordo com as regras do artigo 236.º do Código Civil e, atendendo ao alegado e pedido pela Autora, é manifesto que esta está precisamente a pedir à la carte ao tribunal que aprecie matéria do foro criminal, mas sem as suas consequências penais, e que, por outro lado, com base nessa mesma matéria, aprecie e julgue os pedidos de condenação em indemnização que deduziu. 6º. Sendo evidente que não compete ao juízo central cível ajuizar e declarar (mesmo que a declaração seja desacompanhada da correspondente punição) se a Ré cometeu um crime de especulação ou as contraordenações que a Autora lhe imputa, por serem matérias da competência dos juízos criminais, tampouco faz sentido ignorar aquele. 7º. Por conseguinte, impunha-se que o Tribunal tomasse posição sobre o pedido declarativo que antecede o teor de fls. 68/149, declarando a sua incompetência material, com a consequente incompetência para conhecer dos pedidos de condenação que, de acordo com a própria versão da Autora, são consequência daquele (cfr. artigo 10.º, n.º 3, al. b), do CPC). 8º. Assim, ao limitar o pedido ao teor de fls. 68/149 e dispondo-se a conhecer aquém do pedido, o Tribunal violou os artigos 3.º, 10.º, n.º 3, alínea b), 609.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC. 9º. O crime de especulação, previsto e punido pelo artigo 35.º do D/L n.º 28/84, de 20 de janeiro, é um crime público e, como tal, de denúncia obrigatória (artigo 286.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal), pelo que é irrelevante que a Autora não tenha pedido a condenação criminal da ré. 10.º Desde logo, consta dos autos que o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Autora reclamou os factos da p.i. no Livro de Reclamações, devendo essa reclamação ser entregue à ASAE e por esta participada ao Ministério Público para efeitos de instauração de procedimento criminal (cfr. artigos 5.º e 6.º do D/L n.º 156/2005, de 15 de setembro, artigo 242.º, n.º 1, alínea a), do CPP e artigo 15.º, n.º 1, da Lei Orgânica da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica aprovada pelo Decreto-Lei n.º 194/2012, de 23 de agosto). 11.º Ainda que tal reclamação não se tivesse verificado, a mera apresentação em juízo da P.I. da Autora, mediante a qual se imputa à Ré a prática de um crime de especulação, obrigará o tribunal a denunciar tais factos, pois trata-se de um crime de denúncia obrigatória. 12.º Por isso, a Autora, patrocinada por mandatário, seguramente sabia que não poderia pedir a condenação criminal da Ré neste foro, bem como que a matéria por si alegada foi ou deve ser necessariamente denunciada, dando lugar ao correspondente inquérito criminal, sendo, pois, irrelevante que a Autora não tenha pedido a condenação da Ré pela prática de um crime de especulação (e das contraordenações que identificou). 13.º Assim, vigorando no nosso ordenamento o princípio da adesão obrigatória (artigo 71.º do Código de Processo Penal), os pedidos de indemnização formulados pela autora nesta ação, assentes na alegada prática de um crime de especulação e das contraordenações que identifica têm de ser necessariamente processados juntamente com a ação penal. 14.º Sendo o tribunal criminal o materialmente competente para proceder ao julgamento e aos termos subsequentes no processo de crime de especulação (cfr. artigos 118.º, n.º 1, a contrario e 130.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), não pode a factualidade atinente aos alegados crimes de especulação e ilícitos contraordenacionais e os consequentes pedidos de condenação em indemnização serem apreciados pelo tribunal cível. 15.º A tanto não obsta a circunstância de não haver indicação nos autos de ter sido determinada a abertura de inquérito criminal, apesar de, como documentado pela autora com a P.I. (doc. 22), em articulação com a Acta anexa ao mesmo articulado (Doc. 2), os factos terem sido participados pelo Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Autora e serem, em todo caso e nos presentes autos, sujeitos a denúncia obrigatória. 16.º Ao decidir nos termos constantes do despacho saneador recorrido, o tribunal recorrido terá violado os artigos 3.º, 609.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, o artigo 112.º da LOSJ e o artigo 71.º do CPP. (…) Nestes termos e nos melhores de Direito que o Venerando Tribunal ad quem suprirá, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, o despacho recorrido ser revogado e substituído por acórdão que, julgando procedente a exceção de incompetência material, declare o Juízo Central Cível de Portimão incompetente e absolva a Ré da Instância (cfr. artigos 64.º, 65.º, 96.º, alínea a), 99.º, 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a), todo do Código de Processo Civil), com todas as legais consequências.» I.3. A recorrida respondeu às alegações de recurso, que culminam com as seguintes conclusões: «1. O tribunal a quo considerou-se, quanto a nós bem e pelos vistos em perfeita sintonia com as decisões dos tribunais superiores, competente ratione materiae, por entender, em suma, que não estamos perante um caso de adesão obrigatória ao processo penal. 2. Os factos que estribam a causa de pedir são os que contam no § 3, que aqui se dão como reproduzidos por uma questão de proficiência, mas que se resume à ré cobrar aos consumidores, no momento do pagamento, um valor superior ao que anunciava para os produtos vendidos, onerando assim os autores populares com um sobrepreço ilícito. 3. O petitum, tal como articulado na petição inicial, para onde se remete, é que a presente ação seja julgada procedente e que seja declarado que, a ré, ora recorrida, incorreu nos comportamentos ilícitos descritos no § 3 da petição inicial (e que são a causa de pedir referida no número anterior), pretendendo-se, então, quem virtude desses comportamentos, a ré seja condenada ao pagamento de indemnizações aos autores populares pelos prejuízos causados – sendo este o fim último da ação. 4. Exceções ao Princípio da Adesão Obrigatória: Embora o princípio da adesão obrigatória ao processo penal esteja previsto no artigo 71.º do CPP, existem exceções significativas elencadas no artigo 72.º (1) do mesmo código, as quais permitem a dedução de pedido de indemnização civil em separado, perante o tribunal civil. Este caso particular enquadra-se em várias dessas exceções, justificando a tramitação da ação civil independente do processo penal. Vejamos quais: 5. Até à data da sentença, não foi deduzida acusação contra a ré nem iniciado qualquer processo penal pelos factos aqui alegados, apesar da notícia do crime datar a 8 meses antes. Esta demora ultrapassa o prazo referido no artigo 72.º (1), a), do CPP, configurando uma das exceções ao princípio da adesão obrigatória e justificando a separação dos processos penal e civil. 6. À data da propositura da presente ação era impossível identificar todos os lesados e conhecer a total extensão dos danos, especialmente os indiretos, como os que afetam a equidade concorrencial. Tal situação configura mais uma exceção ao princípio da adesão obrigatória, conforme previsto no artigo 72.º (1, d, i), do CPP. 7. O princípio da adesão, tal como estruturado no artigo 71.º do CPP, não se coaduna com a natureza das ações populares, que possuem uma dimensão coletiva e visam tutelar interesses individuais homogéneos com base numa origem fáctica comum. Assim, aplicar rigidamente este princípio a ações populares poderia resultar numa restrição inadmissível ao acesso à justiça e ao direito de ação popular, contrariando tanto o direito constitucional de acesso aos tribunais quanto o princípio da efetividade no âmbito do private enforcement das regras da União Europeia em matéria de concorrência. 8. A aplicação estrita do artigo 71.º do CPP às ações populares, sem considerar as exceções do artigo 72.º (1, d, i), constituiria uma dupla inconstitucionalidade material, por violar os princípios constitucionais do direito de ação popular e do acesso ao direito e aos tribunais. Tal interpretação poderia impedir indevidamente o exercício da ação popular em defesa de interesses coletivos, em casos onde os lesados, apesar de determináveis, não estão individualmente identificados. 9. Finalmente, menciona-se vária jurisprudência dos tribunais superiores, tanto dos Venerandos Tribunais de diversas Relações, como do Colendo Supremo Tribunal de Justiça para onde se remete, para melhor compreensão, sem prejuízo de se recortar o seguinte segmento do douto e muito bem fundamentado acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, 25.01.2024, processo n.º 6271/23.7T8VNG.P1, que concluiu que a competência material seria do Juízo Central Cível (destaque nosso): A causa de pedir, e os consequentes pedidos de pagamento de indemnização, assentam nessa diferença e no prejuízo que causa ao consumidor, podendo a atuação consistir num ilícito civil que lesa direitos subjetivos (artigo 483.º, do C.C.); sabemos que essa alegada atuação pode configurar um ilícito criminal, previsto no artigo 35.º, n.º 1, c), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20/01[5] e que, se houvesse notícia que estava pendente o respetivo processo criminal, porventura o tribunal cível não seria o materialmente competente, por força do princípio da adesão, previsto no artigo 71.º, do C.P.P. (o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.).[6] E isto sem se entrar na análise sobre se em sede criminal é admissível pedido de indemnização civil com base na prática deste crime atento o interesse protegido (regular funcionamento da economia – veja-se Crime de especulação de preços, Marcelino António Abreu, portal da O. A., https://portal.oa.pt/upl/%7B48bb29b1-8c11-4b30-9d1a-582f9748cbe9%7D.pdf). 10. Nesse sentido, procuramos aqui também refletir o ensinamento de Marcelino António Abreu, apud, no douto acórdão supra citado e que aparentemente tira legitimidade aos autores populares para exercer os direitos de ação popular nos termos do artigo 25 da lei 83/95, ou seja, o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público que se revistam de natureza penal, bem como a constituírem-se assistentes no respetivo processo, porquanto, dita o seguinte: Porque assim é, na esteira do Acórdão da Relação de Lisboa, de 9 de Março de 1988 (16), “não é admissível a fixação de indemnização a favor dos prejudicados no crime de especulação, por estes não terem a natureza de ofendidos pela comissão desse crime”. Ora, se o legislador tivesse querido proteger diretamente os interesses dos consumidores, ainda que paralelamente aos interesses próprios do sector económico, então o consumidor ofendido no crime de especulação poderia ver-lhe ser fixada uma indemnização, quando lesado por uma atuação especulativa do agente económico. Pertence, pois, este normativo legal ao direito penal económico (17), ou direito penal secundário, por contraposição ao direito penal de justiça. Sendo um bem jurídico próprio da economia e relacionado, em particular, com o funcionamento dos mercados (18) (na medida em que é um bem jurídico que diz respeito a um fator — os preços — de cuja estabilidade depende, em muito, a estabilidade do mercado e da economia na sua globalidade), poder-se-ia, numa primeira análise, considerar que é um bem jurídico, transindividual, no sentido que lhe é dado por Faria Costa (19), na medida em que lhe faltaria o referente pessoal 11.Pelo que, também assim, por impossibilidade de ação penal no sentido de obterem, por essa via a reparação dos danos causados, sempre ficaria excecionado, ou melhor dizendo, verdadeiramente afastado, por inaplicável, o princípio da adesão ao processo penal. 12. Dada a complexidade e a novidade das questões de direito da UE suscitadas neste caso, é imperativo solicitar uma interpretação prejudicial ao TJUE para garantir uma decisão informada e alinhada com os princípios e normativas europeias. Tal passo é crucial não apenas para a resolução justa do caso em apreço mas também para estabelecer precedentes valiosos para litígios futuros com questões semelhantes, tal como se sustenta em § 7, que aqui se considera reproduzido por questão de ineficiência, mas que em resumo se justifica pelo seguinte: 13. Jurisprudência Relevante do TJUE: São mencionados acórdãos significativos do TJUE no § 7 para onde se remete, como são os casos Sales Sinués e Agrokonsulting, que fornecem orientações pertinentes para o caso em análise. Estes acórdãos ilustram a interpretação do TJUE sobre a interação entre ações coletivas e individuais, bem como os princípios da equivalência e da efetividade, enfatizando a necessidade de não impedir ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pela legislação da UE. 14. Compatibilidade do Princípio da Adesão com o Direito da UE: Solicita-se uma análise específica sobre a compatibilidade do princípio da adesão obrigatória ao processo penal, especialmente em casos de ações coletivas como a ação popular é essencial para entender se o direito interno, no que se refere ao princípio da adesão, alinha-se com os requisitos e expectativas do direito da União, garantindo a tutela efetiva dos direitos dos consumidores e outros participantes do mercado. Esta solução processual adotada no atual direito processual (penal e civil) português foi determinada pela «natureza consequencialmente complexa do facto material que dá origem a ambas as ações», pelo «princípio da economia processual», o objetivo de «promover o resultado de uniformização de julgados», a «ideia de maior rapidez de decisão sobre a reparação devida pelo crime», as «vantagens que possam resultar da própria cooperação dada, em função ou por força de interesses privados, ao processo penal» e o fim de «uma eficaz proteção a muitas vítimas de uma infração penal»[7]. E ela articula-se com outro dois princípios, a saber: 1) a indemnização por perdas e danos emergentes de crime tem natureza civil[8]; 2) a ação civil enxertada no processo penal «conserva (…) para todos os efeitos, a sua especificidade de verdadeira ação civil»[9]. A regra da adesão obrigatória compreende uma norma processual penal, ao permitir o pedido civil nesse processo, e outra processual civil, ao consagrar uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso, em conjugação com o disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.ºs 1 e 2, e 578.º, todos do CPC. O princípio de adesão é, porém, mitigado pela admissibilidade, em vários casos, da ação de responsabilidade civil em separado perante os tribunais civis. Com efeito, no artigo 72.º do Código do Processo Penal estão previstas as exceções ao referido princípio. Sob a epígrafe Pedido em separado aquele normativo dispõe o seguinte: «1 – O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando: a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo; b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento; c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular; d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão; e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 3 artigo 82.º; f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada nessa ação, a intervenção principal do arguido; g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal coletivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular; h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima; i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos dos artigos 75.º, n.º 1, e 77.º, n.º 2; 2 – No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito.»
A amplitude dos casos em que cessa obrigatoriedade de adesão e a margem de livre decisão do lesado nessa sede revelam que o ordenamento tem subjacente a suscetibilidade de pendência simultânea de dois processos independentes fundados em factos constitutivos similares, um sobre responsabilidade criminal e outro relativo à responsabilidade civil. Assim, para além de nos crimes semipúblicos e particulares não existir a obrigatoriedade de adesão [artigo 72.º/1, alínea c)], outras hipóteses de separação admitidas pela lei têm em atenção o direito do lesado à instauração de ação de responsabilidade civil não condicionada pelo processo penal. Nomeadamente, a obrigatoriedade da adesão só vigora (independentemente da gravidade do crime) na fase de inquérito, pelo período de 8 meses a contar da notícia do crime, pelo que decorrido esse prazo sem que tenha sido deduzida acusação, fica na disponibilidade do lesado propor a ação em separado nos tribunais civis [artigo 72.º/1, alínea a)]. No caso em apreço, não existe nos autos qualquer referência a que os factos alegados pela autora tenham já levado à instauração de um processo criminal ou contraordenacional. Aliás, a apelante alega que: «A Autora, através do seu Presidente da Mesa da Assembleia Geral, já participou os mesmos factos à ASAE, mediante reclamação escrita no Livro de Reclamações». «(…) A tanto não obsta a circunstância de não haver indicação nos autos de ter sido determinada a abertura de inquérito criminal, apesar de, como documentado pela Autora com a p.i. (…) os factos terem sido participados pelo Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Autora e serem, em todo o caso e nos presentes autos, sujeitos a denúncia obrigatória». Também a apelada, na sua resposta às alegações de recurso, sustenta que «não foi deduzida acusação contra a ré nem iniciado qualquer processo penal pelos factos aqui alegados, apesar da notícia do crime datar a 8 meses antes». Incumbia à ré/apelante a alegação e prova de que estava já pendente um processo penal ou contraordenacional instaurado por força dos factos que lhe são imputados pela autora (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil). No caso, como se disse, não resulta dos autos que tal processo (criminal / contraordenacional) já tivesse sido instaurado, apesar de os factos em causa já terem sido participados pelo Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Autora. E a própria apelante reconhece não haver notícia da abertura de inquérito criminal. A ultrapassagem do prazo previsto no artigo 72.º, n.º 1, alínea a), do CPP para a dedução de acusação configura, como dissemos, uma exceção ao princípio da adesão obrigatória, permitindo a instauração da ação indemnizatória nos tribunais cíveis. Logo, havendo fundamento para a autora instaurar a ação de indemnização perante os tribunais cíveis, improcede a presente apelação.
Sumário: (…)
III. DECISÃO Em face do exposto, acordam julgar a apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida. As custas na presente instância de recurso são da responsabilidade da apelante. Notifique. Évora, 13 de março de 2025 Cristina Dá Mesquita Vítor Sequinho dos Santos Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
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