Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1810/17.5T8BJA.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: CONDUÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O direito de regresso compreende-se porque o condutor – que é civilmente responsável – tem a sua responsabilidade garantida pela seguradora para quem foi transferida a sua responsabilidade através do contrato de seguro, seguradora essa que, por sua vez, suportou a indemnização devida aos lesados numa situação em que a cobertura do risco estava excluída.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1810/17.5T8BJA.E1 (2ª Secção Cível)


ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

No Tribunal da Comarca de Beja (Juízo Central Cível e Criminal de Beja – Juiz 2), Companhia de Seguros (…), S. A., demanda em ação declarativa de condenação, com processo comum, (…), alegando circunstancialismo factual inerente ao exercício do direito de regresso que se arroga, tendente a peticionar a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 150.277,00 acrescida de juros de mora até efetivo pagamento.
Tramitada a causa, após realização de audiência final, foi proferida sentença que julgou a ação procedente e condenou o réu no pedido.
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Não se conformando com a sentença foi interposto pelo réu o presente recurso de apelação terminando por formular as seguintes conclusões que se transcrevem:
1. Vem o presente recurso interposto da decisão que condenou o apelante ao pagamento da quantia de € 150.277,00 (cento e cinquenta mil duzentos e setenta e sete euros), por considerar existir o direito de regresso da seguradora em matéria de responsabilidade extracontratual emergente de acidente de viação.
2. O Tribunal a quo a posição de que não é necessária alegação da prova do nexo de causalidade entre o estado de alcoolémia em que o condutor circulava e a eclosão do acidente, atento o disposto no n.º 1, alínea c), do DL 291/2007, de 21/8;
3. E considerou não resultar evidenciada a omissão do dever de informação a que alude o n.º 2 do art.º 27.º, do DL n.º 291/2007 de 21 de Agosto.
4. Não podendo o apelante concordar com tais decisões;
5. Esta não pode ser a interpretação a ser dada a estes normativos legais pois impera a necessidade de prova do nexo de causalidade entre o facto ilícito e o resultado e a prova – que cabe à seguradora – de que se o ora apelante não se encontrasse sob o efeito do álcool o acidente não teria ocorrido.
6. Apesar de a atual redação do art.º 27.º, n.º 1 al. c) do DL 291/2007, de 21 de Agosto, suportar duas interpretações, parece-nos lógico que apenas a o entendimento que não basta o condutor etilizado ter dado causa ao acidente, sendo necessário que esta causa tenha emergido da própria etilização, é não só a interpretação mais correta da Lei como a única aceitável, devendo ter sido a posição que o tribunal recorrido deveria ter adotado, impondo-se assim que tivesse proferido sentença diferente.
7. Como suporte do defendido pelo apelante, temos a história do instituto, porquanto a redação de 2007 vem na sequência do entendimento prevalecente anteriormente plasmado no acórdão uniformizador de jurisprudência 6/2002, de 28.05, no sentido de que tinha de haver uma relação de causalidade entre a etilização e o evento.
8. Se fosse o propósito do legislador romper com tal estado de coisas, teria utilizado uma técnica legislativa mais assertiva.
9. A referência a «tenha dado causa», visará, precisamente, consagrar a relação de causalidade entre a etilização e o acidente.
10. Por outro lado, a desconsideração do nexo de causalidade levaria a uma objetivação das consequências da condução sob a influência do álcool em benefício da seguradora.
11. Conforme sabemos, dispõe o art.º 9.º do Código Civil que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
12. Há que ter em consideração todos os elementos hermenêuticos de interpretação da lei e não dar apenas relevância ao elemento literal, descurando os restantes elementos históricos, sistemático e racional, conforme aliás, é defendido na Sentença do Tribunal a quo sobre a qual o presente recurso versa.
13. Ao defender a teoria adotada pelo tribunal recorrido e ao considerar-se que o segurado que provoca um acidente com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, por si só, é condição para legitimar o direito de regresso da seguradora, estar-se ia a sancionar (civilmente) o agente (segurado) pela taxa de álcool no sangue de que é portador, sem a necessidade de se estabelecer um nexo causal entre esse mesmo estado de alcoolemia e os danos resultantes do acidente, e consequentemente a alterar a natureza reparadora do direito civil (ao invés de sancionadora), pois que se sancionar-se-ia o agente em função da sua culpa e não da causalidade entre a sua ação e os danos casuísticos da mesma.
14. Conforme explanado parece-nos claro que a exigibilidade da prova de um nexo causal entre a condução sob efeito do álcool e a verificação do acidente, é não só a interpretação mais correta da Lei, como a única aceitável, andando mal o tribunal a quo quando tomou posição diferente.
15. Mal andou o tribunal ao considerar que não resulta evidenciada a omissão pela autora no respeitante à violação, por parte da seguradora, da obrigação de esclarecimento imposta pelo art.º 27 do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto.
16. Após importante alteração legislativa, deveria a seguradora ter informado o apelante, que as regras haviam mudado, pelo que não cuidou de cumprir com o disposto no n.º 2 de tal disposição legal.
17. A seguradora deveria ter esclarecido especial e devidamente o apelante, acerca do teor daquele artigo;
18. Desde logo porque a Autora não demonstrou ter cumprido o dever de informação resultante da indicada disposição legal e era a si que competia o ónus da prova;
19. E nessa medida, o facto constante da pg. 4, da Sentença recorrida, elencado sob a alínea B), dos factos não provados, deve considerar-se provado;
20. E, ainda que se entendesse não ser necessário à Seguradora alegar e provar o nexo causal devido à nova Lei, a consequência para a violação de tal dever jurídico (da nova Lei) só pode ser a necessidade de demonstrar o nexo causal entre o estado etílico do Réu e a produção do acidente.
21. Ao decidir pela forma que o fez, o Tribunal a quo violou as normas constantes dos art.ºs 9., 342.º e 483.º, do Código Civil e o art.º 27.º, n.º 1, alínea c) e 2, do DL 291/2007, de 21/8.

Foram apresentadas alegações pelo recorrido, pugnando pela manutenção do julgado.

Cumpre apreciar e decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.

Tendo por alicerce as conclusões, a questão essencial que importa apreciar é a seguinte:
- Saber se, face ao disposto no D. Lei nº 291/2007, de 21/08, o direito de regresso da seguradora exige ou não a alegação e prova do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, ou, ao invés, tão só da taxa de alcoolemia do demandado no momento do acidente.

Discutida a causa, foram dados como assentes no tribunal recorrido os seguintes factos:
1. No âmbito da sua atividade a A. celebrou com o R. um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº (…), destinado a garantir a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo marca Peugeot, modelo 207 1.4 16V PREMIUM, com a matrícula 10-(…)-57;
2. No dia 28 de Abril de 2009, pelas 17h30, o veículo automóvel ligeiro, da Marca Peugeot, Modelo 207 1.4 16V PREMIUM, com a matrícula 10-(…)-57, esteve envolvido em acidente de viação;
3. O sinistro em apreço ocorreu na Estrada Nacional 260, KM 6,500, sentido Serpa/Beja, no Concelho de Beja, Distrito de Beja;
4. O veículo era conduzido pelo réu;
5. O réu entrou no troço supra identificado vindo de um entroncamento do lado direito da via, atento o sentido de marcha Serpa/Beja;
6. No local, à saída do entroncamento referido, encontra-se um sinal vertical de STOP;
7. Aí chegado, o réu imobilizou o veículo;
8. Face ao estado do piso, ao invés de se encostar à direita para entrar na E.N. 260, o réu entrou perpendicularmente nesta via;
9. Ao efectuar a referida manobra, não se apercebeu o Réu da aproximação de outra viatura, que circulava da sua esquerda para a sua direita na E.N. 260;
10. O veículo ligeiro de passageiros de marca Volkswagen, modelo Golf, com a matrícula 65-98-(…), conduzido por (…), que ali circulava, não conseguiu evitar o embate com o veículo conduzido pelo réu;
11. No veículo 65-98-(…) viajavam igualmente (…), (…) e (…);
12. O ponto de embate no veículo do Réu localiza-se na respectiva zona frontal lateral esquerda, aí se verificando os danos existentes no referido veículo;
13. Os danos no veículo terceiro situam-se na zona frontal direita do mesmo;
14. No local a via apresenta uma hemifaixa para cada sentido, separadas por uma linha longitudinal contínua;
15. O local permitia uma ampla visibilidade, uma vez que não existem obstáculos, e o Réu tinha visibilidade a qualquer viatura que se encontrasse a 200 metros – à sua esquerda;
16. No momento em que ocorreu o sinistro as condições climatéricas eram de “bom tempo” e a visibilidade era boa;
17. No local do sinistro, a via – E.N. 260, no sentido Serpa-Beja – configura uma curva ligeira à direita, a qual apenas termina no entroncamento com a via de onde vinha o Réu;
18. O Réu não fez uso do sistema de travagem do veículo nem de medidas para evitar o embate;
19. O Réu conduzia o veículo seguro com uma taxa de álcool no sangue de 0,82 gramas por litro;
20. A Autora pagou a (…) o valor de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) e suportou € 277,00 (duzentos e setenta e sete euros) com despesas com o tratamento e gestão do processo de sinistro;
21. Correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Beja o processo n.º 100/09.1GCBJA no âmbito do qual o Réu foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência;
22. A propósito do direito de regresso da seguradora prevê o artigo 25º das condições gerais do contrato de seguro celebrado entre as partes: “Satisfeita a indemnização a Seguradora apenas tem direito de regresso: (…) c) Contra o condutor (…) se este tiver agido sob a influência do álcool (…)”.
Foram considerados não provados os seguintes factos:
A) A condutora do veículo com a matrícula 65-98-(…) circulava a uma velocidade excessiva;
B) A autora não esclareceu o réu acerca do teor do art.º 27º do DL n.º 291/2007, de 21.08.


Conhecendo da questão
Como decorre dos autos, a Autora vem exercer o direito de regresso contra o réu, ao abrigo do disposto no artº 27º, nº 1, alínea c), do D. Lei nº 291/2007, de 21/08, relativamente à indemnização que pagou com base num contrato de seguro que havia celebrado e pelo qual havia assumido a responsabilidade civil emergente da circulação de um veiculo que veio a ser interveniente num acidente de viação quando era conduzido pelo réu com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei.
Considerou a sentença recorrida, que face à atual previsão legal do artº 27º, nº 1, al. c), do D. Lei nº 291/2007, de 21/08, deixou de se exigir que a seguradora alegue e prove o nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia em que o condutor circulava e a ocorrência do acidente, bastando-lhe apenas provar que o condutor deu causa ao acidente e que conduzia com taxa de alcoolemia superior à permitida.
E, tendo-se provado que o condutor deu causa ao acidente e que conduzia com taxa de álcool no sangue de 0,82 gramas por litro, condenou o réu no pagamento peticionado pela companhia de seguros.
O recorrente, por sua vez, alega que é exigível a prova efectiva do nexo de causalidade entre a conduta ilícita e a culpa do agente e o resultado, in casu, entre a condução sob o efeito de álcool e a provocação do acidente. E, nessa medida, impera a necessidade de prova do nexo de causalidade entre o facto ilícito e o resultado e a prova, que cabe à seguradora, de que se o ora apelante não se encontrasse sob o efeito de álcool o acidente não teria ocorrido.
A sentença recorrida fez uma alusão à jurisprudência que vai no sentido por ela considerado.
E, diremos que estamos em consonância com o que foi decidido.
Como é por todos sabido, em regra, a companhia de seguros, por força do contrato de seguro que haja celebrado com o seu segurado, desde que esse contrato se mostre válido e em vigor à data do acidente, paga a indemnização devida pelos danos por ele causados, em acidente de viação da sua responsabilidade, e assume integralmente esse pagamento sem nada exigir do seu segurado.
Isto, em virtude de termos instituído no nosso sistema legal o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Efetivamente, a institucionalização do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel foi introduzida entre nós, pela primeira vez, com o D. Lei nº 408/79, de 25/09, como uma medida de alcance social, para dar resposta aos legítimos interesses dos lesados por acidentes de viação. Posteriormente o D. Lei nº 522/85, de 31/12, veio revogar o anterior D. Lei.
Acontece que a nossa lei, consagrando embora o sistema da socialização do risco, reforçada com a criação do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, não descurou, no entanto, a responsabilidade individual do interveniente no acidente, em determinadas situações, impondo-lhe a obrigação de ressarcir (ou reembolsar) a seguradora da indemnização paga ao lesado.
Tais situações estão contempladas no citado artº 27º, nº 1, do D. Lei nº 291/2007, de 21/08, que a verificarem-se, levam a que a companhia de seguros pague a indemnização devida ao lesado, mas ficando com o direito de receber do seu segurado a quantia que tiver pago ao terceiro não responsável pelo acidente.
Estamos então no âmbito do direito de regresso da seguradora sobre o seu segurado.
A seguradora terá de demonstrar judicialmente os pressupostos do direito de regresso invocado. Tratando-se de acidente de viação causado por condutor portador de uma taxa de álcool no sangue superior à legal, terá de invocar os pressupostos desse direito, que são, atualmente, os previstos na alínea c) do nº 1 do artº 27º do D. Lei nº 291/2007, de 21/08.
Ora, uma das questões mais debatidas na nossa jurisprudência, no âmbito das ações de regresso a favor das seguradoras, tem sido precisamente, a situação contemplada na primeira parte da alínea c) do nº 1 do citado artº 27º, no qual se prevê que a seguradora tem direito de regresso “contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida…”.
Exige-se, desde logo, naquela alínea que o condutor da viatura tenha sido o causador do acidente, o que nos reconduz a considera-lo culpado pela ocorrência do mesmo, o que pressupõe também que a sua responsabilidade civil seja subjetiva ou fundada na culpa; e exige-se também que o mesmo condutor conduzisse com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente admitida, ou seja, superior a 0,5g/litro (nos termos previstos no artº 81º, nº 2, do Código da Estrada).
A questão que se coloca então é a de saber se é exigível a verificação do nexo de causalidade entre a taxa de álcool no sangue do condutor e a produção do acidente.
E a conclusão a que se tem chegado de forma maioritária é a de que já não é exigível, face à lei atual, a prova do nexo de causalidade entre o grau de alcoolemia do condutor e a ocorrência do acidente.
O Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, veio entretanto aprovar o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, com a transposição parcial para a ordem jurídica interna de diferentes Diretivas do Parlamento Europeu e do Conselho, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, revogando o anterior diploma, o Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de dezembro.
Houve uma alteração legislativa nesta matéria, com a alteração da redação da alínea c) do nº 1 do artº 27º do D.L. nº 291/2007, de 21/08, a qual veio substituir a anterior alínea c) do artº 19º do revogado D.L. nº 522/85, de 31/12.
Previa-se, no preceito legal revogado que, satisfeita a indemnização, a seguradora tinha direito de regresso e/ou reembolso, conforme os casos “contra o condutor (…) se este tiver agido sob a influência do álcool”,
Agora, o artº 27º, nº 1 alínea c), do D. Lei nº 291/2007, estabelece que:
“Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida (…)”.
A jurisprudência, nomeadamente (Acs. do STJ de 28/11/2013, proc. 995/10.6TVPRT.P1.S1; de 09/10/2014, proc.582/11.1TBSTB.E1.S1; de 06/04/2017, proc.1658/14.9TBVNG.P1.S1 e de 07/02/2017, proc. 29/13.9TJVNF.G1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt, sustentam que na referida alínea c) do nº 1 do artº 27º do DL nº 291/2007 se atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente. Este entendimento é partilhado por inúmera jurisprudência das Relações, vide, nomeadamente nos Acs. do TRP de 16/12/2015, proc.4678/13.7TBVFR.P1; TRL de 04/02/2016, proc.2559/13.3TBMTJ.L1-8; TRE de 05/05/2016, proc.82/14.8T8STC.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No Ac. do STJ de 07/02/2017, no proc. 29/13.9TJVNF.G1.S1, pode ler-se o seguinte:
“A letra da lei (citada alínea c) do nº 1 do artº 27º do DL nº 29/2007) não distingue para o efeito entre causas do acidente, e daqui que, causado ou não o acidente por motivo relativo à etilização do condutor, sempre o direito de regresso existe, posto que o condutor seja portador de uma TAS superior à legalmente permitida.
Como se aponta no Ac. do STJ de 28/11/2013, a interpretação da lei exige que se parta do elemento literal e tendo-se sempre em conta que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artº 9º, nº 3, do C.C.), e sendo que esse elemento é também um elemento irremovível de toda a interpretação. Deste modo, remata-se no mesmo acórdão, e subscrevemos, “O elemento filológico de exegese tirado do teor das locuções que integram o texto do preceituado no artº 27º do D.L nº 291/2007 – apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de superior à legalmente admitida (…) – cinge o intérprete a discorrer que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, o direito de regresso conferido à seguradora ser-lhe-á irrestritamente concedido sempre que o condutor, julgado culpado pela eclosão do acidente, conduza a viatura com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.
Também como se observa no Ac. do STJ de 09/10/2014, acima citado, “o legislador não podia ignorar a controvérsia que a propósito desta temática fora travada na vigência da alínea c) do artº 19º do DL nº 522/85 (resolvida depois pelo AUJ nº 6/2002), e se acaso fosse seu propósito manter a solução que veio a ser definida na jurisprudência uniformizada, significá-lo-ia implícita ou expressamente, ora mantendo a redação do anterior texto ora introduzindo uma redação compatível com a interpretação defendida no AUJ, mas não o fez. Antes, curou de alterar o texto, expurgando-o da expressão (deveras ambígua) tiver agido sob a influência do álcool e substituindo-a por outra, objetiva e clara: conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
A desconsideração do nexo de causalidade no artº 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida, perspetivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extracontratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre nem poderia cobrir os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve. E dizemos nem poderia cobrir porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (artº 81º, nº 1 e 2, do Cód. Estrada e 292º do Cód. Penal), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (artº 280º, nº 1, do CC).
Compreende-se assim que, nesse caso, o contrato de seguro não funcione quando o condutor conduza com uma TAS proibida ou, de outro modo dito, que a condução com TAS superior à legalmente permitida exclua a cobertura do seguro.
E, sem prejuízo da garantia que o contrato de seguro representa para o lesado, satisfeita a indemnização devida a este pela seguradora, o direito de regresso visa, afinal, restabelecer o equilíbrio interno do contrato de seguro, comprometido quando se impôs à seguradora uma obrigação de indemnização por danos verificados quando a responsabilidade civil do condutor não estava (nem podia estar) garantida e coberta pelo contrato de seguro.
A concentração de álcool no sangue para além de certo limite implica um agravamento do risco de acidentes que, por romper o equilíbrio contratual convencionado na proporção entre o risco (normal) assumido e o prémio estipulado e pago não pode deixar de ser juridicamente relevante, em termos de, sem comprometer a indemnização dos lesados, fazê-la repercutir sobre o condutor que deu causa ao acidente.
O direito de regresso emerge, assim, do contrato de seguro e não de responsabilidade extracontratual.
Assim sendo, podemos concluir (…) que o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre o grau de TAS do condutor e o acidente: aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condição ou pressuposto do direito de regresso (independentemente da sua relação causal com o acidente) e não da responsabilidade civil; logo, a seguradora não tem que demonstrar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas respetivas capacidades psico-motoras que o condutor praticou este ou aquele erro na condução e com isso, deu causa ao acidente, bastando-lhe demonstrar que, nesse momento, ele acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei. (…)
Como escreve Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro, a propósito desta alteração legislativa: “o legislador não exige qualquer relação entre os dois requisitos, bastando-se com a sua verificação objectiva para fundamentar o direito de regresso do segurador, favorecendo o seu exercício” (cfr. O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, 2010, 212).
Também Mafalda Miranda Barbosa (v. Cadernos de Direito Privado, nº 50, Abril/Junho de 2015, p. 45) entende que ao segurador apenas cabe provar a presença de uma taxa de alcoolemia superior à permitida na lei, afirmando que “ao conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, o condutor não só violou deveres de segurança no tráfego em relação ao lesado, como chamou a si o risco de suportar o prejuízo”, de sorte que “o juízo imputacional não deve ser substituído pela procura da causa efetiva ou da causa próxima, segundo a posição de alguns autores” (sem embargo, importa observar que esta autora não defende uma automaticidade incontornável do direito de regresso, admitindo, ao invés, que se permita ao autor da lesão provar que a causa do acidente não se radicou na etilização).
O direito de regresso compreende-se, portanto, porque, o condutor – que é civilmente responsável – tem a sua responsabilidade garantida pela seguradora para quem foi transferida a sua responsabilidade através do contrato de seguro, seguradora essa que, por sua vez, suportou a indemnização devida aos lesados numa situação em que a cobertura do risco estava excluída.
A responsabilidade primeira é sempre a do condutor, como autor do facto ilícito que desencadeou a sua responsabilidade civil extracontratual e que, por via do contrato de seguro, foi transferida para a seguradora; logo, a responsabilidade da seguradora é meramente derivada daquela e do contrato de seguro.
Consideramos, pelas razões acabadas de expor, que houve uma efetiva alteração legislativa, com o propósito do legislador do D.L. nº 291/2007, de 21/08, de libertar as seguradoras de provarem o nexo de causalidade entre a taxa de álcool no sangue de que sejam portadores os seus segurados e a produção do acidente, bastando-lhes agora provar que foi o seu segurado (ou o condutor da viatura segura) que deu causa ao acidente, qualquer causa que tenha estado na origem do mesmo, e que ele se encontrava a conduzir com uma taxa de álcool no sangue superior à legal.
Face aos factos dados como provados, nomeadamente os nºs 8, 9,19 e 21, bem andou a M.ª Juiz do Tribunal “a quo”, ao decidir pela existência do direito de regresso da seguradora e, por conseguinte, pela condenação do apelante no montante despendido pela ora apelada, não merecendo qualquer censura.
Pois, ficou provado, que o apelante além de conduzir sob o efeito do álcool, também deu causa ao acidente.
No caso dos presentes autos é inquestionável a verificação dos pressupostos da responsabilidade, subjetivamente imputada ao condutor alcoolizado, já que o mesmo foi condenado, no foro penal, como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, com base precisamente na versão factual do acidente que subjaz à pretensão deduzida pela seguradora, valendo tal condenação, nos termos do artº 623º, do CPC, como presunção da existência dos factos que integram os pressupostos da punição contida no referido tipo penal; ora, esta presunção legal não pode ter-se por afastada perante a factualidade apurada nos presentes autos, no que respeita à censurabilidade do comportamento do condutor que desencadeou o acidente.
Alega, também, o recorrente que a Autora não cumpriu o dever de informação a que alude o nº 2 do artº 27º do D.L. nº 291/2007, de 21/08.
Quanto a esta questão, estamos com a Mª Juiz “a quo”, quando afirma:
Determina o mencionado preceito que a empresa de seguros, antes da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade automóvel, deve esclarecer especial e devidamente o eventual cliente acerca do teor do presente artigo.
Em primeiro lugar diga-se que não resulta evidenciada a omissão pela autora. No entanto, ainda que assim não se entendesse, sempre teria que se questionar qual a consequência de tal omissão. O Decreto-lei n.º 291/2007, de 21.08 é omisso a esse respeito. A consequência não pode no entanto passar pela desresponsabilização do réu.
Conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 03.10.2017:
II - Consideram-se excluídas do contrato singular as cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efetivo (art. 8.º, al. b), da LCCG).
III - A proteção concedida à parte mais fraca não abrange as situações em que a falta de conhecimento das cláusulas apenas decorre de um comportamento negligente ou pouco diligente dessa parte que, apesar de ter sido colocado em posição de conhecer essas cláusulas, não teve preocupação em assegurar-se do seu teor.
Ora considerando o teor do artigo 25º do contrato de seguro celebrado entre as partes resulta claro que o réu não pode alegar não lhe ter sido prestada a informação necessária, por forma a que tivesse conhecimento do direito de regresso da autora nestas condições. Com efeito, a cláusula contratual é clara quando prevê o direito de regresso da seguradora no caso de o condutor se encontrar sob a influência do álcool.”
Nestes termos, a decisão recorrida é de manter, improcedendo as conclusões formuladas pelo apelante, não tendo sido violados os preceitos legais cuja violação foi invocada.

DECISÃO

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

Custas de parte, pelo apelante.

Évora, 28 de Fevereiro de 2019

Maria da Conceição Ferreira

Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura

Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes