Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
23/19.0TELSB.E1
Relator: CARLOS DE CAMPOS LOBO
Descritores: DETENÇÃO
PRESENÇA EM ATO PROCESSUAL
DESCONTO
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – A detenção sofrida a coberto do disposto no artigo 116.º, n.º 2 do CPPenal não releva para efeitos de desconto referido no artigo 80.º do CPenal.
II – O CPPenal parece referir-se à detenção em dois distintos momentos, os quais, se elevam para claras e específicas razões: a detenção para comparência a ato processual (artigo 116.º) e a detenção para efeitos de ser presente a julgamento em processo sumário ou ser presente ao juiz competente para o primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coação (artigos 254.º a 261.º).
III – Perante a inserção sistemática de tal normação, parece cristalino que as finalidades das “detenções” em causa, são completamente distintas e assumem-se com coloração, peso e significado diversos.
IV – Atentando à expressão inserta no artigo 116.º, n.º 2 (…) pelo tempo indispensável à realização da diligência (…), sem qualquer paralelo nas outras situações, parece claro que se trata de uma detenção sem qualquer outro propósito programático que não o aludido, e por um tempo restrito.
V - O suporte pessoal da detenção prevista neste dispositivo é toda e qualquer pessoa - testemunha, perito, consultor técnico, assistente, parte civil ou jurado - sem necessidade de qualquer relação pessoal com o crime, e também, por maioria de razão, o próprio arguido, o que revela ter sido intento do legislador que esta privação é apenas e só circunstancial, sem o menor relevo consequencial noutros momentos, nomeadamente em caso de condenação.
VI - A detenção para os efeitos do artigo 116.º, n.º 2 do CPPenal parece assim configurar-se como medida compulsória, coerciva, destinada a assegurar a presença para a prática de ato processual, aplicável tanto em inquérito, como em julgamento, a vincar o dever de cooperação com os tribunais a todos imposto, totalmente divergente da detenção regulada nos artigos 254.º a 261.º do CPPenal.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Criminal (2ª subsecção)

I – Relatório
1. No processo nº 23/19.6PBEVR.E1 da Comarca ... – Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., foi proferida sentença em que se decidiu condenar a arguida AA, filha de BB e de CC, natural de ..., nascida a .../.../1995, solteira, titular do número de identificação civil ..., residente na Rua ..., ...,
- pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1 alínea a) e nº 2, com referência ao artigo 132º, nº 2, alínea h) do CPenal, praticado na pessoa
de DD, na pena de 4 meses de prisão;
- pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1 alínea a) e nº 2, com referência ao artigo 132º, nº 2, alínea h) do CPenal, praticado na pessoa de EE, na pena de 6 meses de prisão;
- em cúmulo jurídico, na pena única de 7 meses e 15 dias de prisão, substituída pela pena de 240 dias de multa à razão diária de €5,00, o que perfaz o montante de €1200,00.
Mais se decidiu, descontar, ao abrigo do artigo 80º, nº 1 do CPenal, na pena aplicada, um dia de prisão, atenta a detenção sofrida, encontrando-se por cumprir uma pena de um 7 meses e 14 dias de prisão.

2.Inconformado com o decidido, recorreu o Digno Mº Pº questionando a decisão recorrida, concluindo: (transcrição)

1.º- Nos presentes autos de processo comum perante o Tribunal Singular, o Ministério Público acusou a arguida AA, imputando-lhe a autoria material dos factos descritos no despacho de acusação de fls. 108 a 110, que consubstanciam a prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previstos e puníveis no artigo 145.º n.º 1 alínea a) e n.º 2, com referência ao artigo 143.º n.º 1 e 132.º n.º 2 alínea h) do Código Penal.
2.º- Realizada Audiência de Julgamento foi julgada procedente por provada a acusação pública, e decidido condenar a arguida nos seguintes termos:
”a) Condenar a arguida AA pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º1, 145.º, n.º1 al. a), n.º2, com referência ao artigo 132.º, n.º2, al. h) do Código Penal, praticado na pessoa de DD, na pena de 4 meses de prisão;
b) Condenar a arguida AA pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º1, 145.º, n.º1 al. a), n.º2, com referência ao artigo 132.º, n.º2, al. h) do Código Penal, praticado na pessoa de EE, na pena de 6 meses de prisão;
c) Condenar a arguida AA, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 meses e 15 dias de prisão.
d) Descontar, ao abrigo do artigo 80.º, n.º1 do Código Penal, na pena aplicada um dia de prisão, atenta a detenção sofrida, encontrando-se por cumprir uma pena de um 7 meses e 14 dias de prisão.
e) Substituir a pena de 7 meses e 14 dias de prisão pela pena de 240 dias de multa à razão diária de €5,00, o que perfaz o montante de €1200,00;
(…)”.
3.º- Contudo, o Ministério Público não se conforma com a Douta Sentença proferida na parte em que decidiu descontar um dia de prisão na pena única aplicada, atenta a detenção sofrida, bem como não se conforma com a substituição da pena única aplicada por 240 dias de multa à razão diária de €5,00, o que perfaz o montante de €1200,00.
4.º- Com efeito, a privação da liberdade referida na Douta Sentença ocorreu na fase de inquérito, na sequência de falta injustificada a diligência processual para a qual havia sido regularmente notificada e faltou de forma injustificada – conforme resulta de fls. 78 a 86 e 98 a 101.
5.º- Ora, entendemos que o Tribunal a quo efetuou uma incorreta interpretação do regime previsto no artigo 80.º do Código Penal. Com efeito, citando o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 10/2009, “Nos termos do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, não é de descontar o período de detenção a que o arguido foi submetido, ao abrigo dos artigos 116.º, n.º 2, e 332.º, n.º 8, do Código de Processo Penal, por ter faltado à audiência de julgamento, para a qual havia sido regularmente notificado, e a que, injustificadamente, faltou.” (Relator Santos Monteiro, publicado em DR 139 SERIEI de 2009-07-21).
6.º- Desta forma, embora o dispositivo daquele AUJ apenas refira expressamente a falta acorrida em sede de Julgamento, os mesmos fundamentos devem ser usados relativamente a detenções ocorridas na fase de Inquérito (e Instrução) ocorridas por falta injustificada a diligência processual.
7.º- Pelo exposto, a Sentença recorrida violou o disposto no artigo 80.º do CPP, devendo ser alterada no sentido de não ser realizado o desconto e ser mantida a pena única de 7 meses e 15 dias de prisão.
8.º- Acresce que o Ministério Público considera que a pena de prisão não deve ser substituída por pena de multa.
9.º- As razões de prevenção geral e especial não se mostram devidamente acauteladas com a substituição operada na Douta Sentença Recorrida.
10.º- Para além disso, sublinhar que o artigo 145.º n.º 1 alínea a) e n.º 2, do Código Penal, define como moldura penal abstratamente aplicável a pena de prisão, inexistindo alternativa com a pena de multa, pelo que a substituição naqueles termos apenas deve ocorrer em casos excecionais e devidamente fundamentados.
11.º- A arguida permaneceu sempre totalmente alheada dos presentes autos, não tendo comparecido nas diversas sessões de julgamento e apenas compareceu na diligência em Inquérito na sequência da emissão de mandados de condução. A postura da arguida demonstra que não refletiu de modo crítico sobre a gravidade da conduta.
12.º- Pelo exposto, a Sentença recorrida violou o disposto nos artigos 45.º, n.º 1, e 50.º, n.ºs 1 e 5, ambos do Código Penal, devendo ser alterada no sentido de aplicada a pena única de 7 meses e 15 dias de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.
Contudo, Vªs. Exªs.
Decidirão Conforme for de LEI e JUSTIÇA.

3.A arguida não apresentou qualquer resposta ao recurso.

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416º do CPPenal, emitiu parecer pronunciando-se no sentido da procedência do recurso, referindo, em síntese:
Ponderando os termos da decisão recorrida e a motivação do recurso interposto pelo Ministério Público, manifestamos a nossa concordância com os termos desta, pugnando pela procedência do recurso[1].

Não houve resposta ao parecer.

5. Efetuado exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1.Questões a decidir

Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no artigo 410°, n° 2 do CPPenal, o âmbito do recurso é dado, nos termos do artigo 412º, nº 1 do mesmo complexo legal, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, nas quais sintetiza as razões do pedido - jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.
Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo Digno Mº Pº e os poderes de cognição deste tribunal, surgem como questões colocadas para apreciação, abarcando todos os pontos referidos nas conclusões apresentadas:

- desconto de um dia de detenção na pena imposta à arguida, por força do plasmado no artigo 80º do CPenal;

- o regime de execução da pena de prisão aplicada.

2. Apreciação

2.1. O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos: (transcrição)

A) Factos Provados

1. No dia 6/01/2019, pelas 5 horas, a arguida AA conduzia um veículo automóvel ligeiro de passageiros, de cor ..., de marca ..., modelo ...00, com a matrícula ..-OP-.., na Rua ..., em ....
2. Em tais circunstâncias, a arguida AA avistou DD e EE que caminhavam naquela rua.
3. Ato contínuo, a arguida conduziu aquele veículo na direcção de DD, atingido a sua perna esquerda e provocando a sua queda no chão.
4. Em seguida, a arguida conduziu o mesmo veículo na direcção de EE, atingindo-o nas pernas, provocando a sua queda e o embate da sua cabeça no chão.
5. Em consequência da conduta da arguida, DD sofreu dores e traumatismo do membro inferior esquerdo, com escoriação do joelho esquerdo, o que lhe determinou 6 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.
6. Em consequência da conduta da arguida, EE sofreu dores e traumatismo crânio-encefálico e traumatismo dos membros inferiores, com edema parietal direito do crânio, o que lhe determinou 5 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho.
7. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente.
8. Ao conduzir o veículo automóvel, nos moldes sobreditos, na direcção de DD e EE, a arguida agiu com o propósito de molestar o corpo e a saúde daqueles, através da utilização de um veículo automóvel, tendo consciência da perigosidade, capacidade de agressão e das lesões graves que podia infligir, realidade que quis e representou, e que logrou conseguir.
9. A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Ficaram ainda provados os seguintes factos relativamente à situação económica e pessoal do arguido:
10. A arguida tem as seguintes condenações averbadas no certificado de registo criminal:
a. Condenada no processo n.º 7/21.... do Juízo Local Criminal ... – J... por decisão de 03/05/2021, transitada em julgado em 23/09/2021, pela prática em 17/04/2021, de um crime de desobediência, na pena de 70 idas de multa à razão diária de €5,00.
11. A arguida não se encontra registada como proprietária de bens móveis sujeitos a registo ou imóveis.
12. A última remuneração conhecida à arguida data de Setembro de 2022, no valor de €624,00, tendo sido colocada à disposição pela sociedade J M..., Lda. pessoa colectiva n.º ..., onde a arguida trabalha desde 01/08/2022.

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Resultaram demonstrados, ainda, emergentes da defesa:
13. Aquando do embate do veículo conduzido pela arguida em DD e EE, o veículo circulava a um velocidade reduzida.

B) Factos Não Provados

Não há factos não provados.

2.2. Motivação da Decisão de Facto (transcrição):

A convicção do Tribunal em relação à factualidade acima descrita e considerada como provada e não provada resulta da análise conjugada e crítica do conjunto da prova emergente da instrução e discussão da causa, ponderada à luz das regras da experiência comum e valorada de acordo com a livre convicção do julgador, nos termos previstos do art. 127.º do Código de Processo Penal, salvo quando a lei atribui força probatória diversa a outro meio de prova.
Deste modo, considerando que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de factos e de direito da decisão para que, deste modo, seja possível verificar as razões que conduziram à formulação do juízo – art. 97.º, n.º5 do Código de Processo Penal e art. 205.º, n.º1 da Constituição, bem como decidido pelo Acórdão da Relação do Porto de 09/12/2015, proc. 9/14.7T3ILH, rel. Eduarda Lobo-, consigna-se que o Tribunal fundou a convicção expressada na presente sentença na apreciação crítica da prova produzida na audiência de discussão e julgamento e constante dos autos, designadamente nas depoimento das testemunhas DD, EE e FF, que foram criticamente conjugados com os seguintes meios de prova:
a) Auto de denúncia de 06/01/2019, da Polícia de Segurança Pública, a fls. 3; b) Auto de notícia de 07/01/2019, da Polícia de Segurança Pública, a fls. 4;
c) Auto de denúncia de 06/01/2019, da Polícia de Segurança Pública, a fls. 16; d) Print de mensagens, a fls. 52 ss;
e) Consulta à base de dados de registo automóvel, de 03/07/2019, a fls. 67-68;
f) Certificado de registo criminal;
g) Consulta da base de dados de recluso (ref.ª ...08);
h) Consulta à base de dados da Segurança Social e Caixa Geral de Aposentações (ref.ª ...47);
i) Consulta da base de dados de registo automóvel e predial (ref.ª ...34).
Foi ainda valorada a seguinte prova pericial:
a) Relatório de exame de dano corporal n.º ...; b) Relatório de exame de dano corporal n.º ...1, a fls. 18-19;

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A convicção do Tribunal resultou, em especial, a respeito da situação pessoal, do resultado obtido das pesquisas determinadas uma vez que tendo sido determinada a realização de relatório social, a arguida não compareceu junto da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais ou em julgamento, razão pela qual não podendo o Tribunal permanecer numa situação de non liquet relativamente ao mínimo enquadramento sócio-económico da arguida, procedeu ao seu apuramento tendo em consideração os elementos informativos disponíveis, sujeitos a contraditório.
No demais, prestou declarações DD, ofendida, narrou conhecer a arguida, de vista, desde a escola secundária, tendo explicado que na data anterior à apresentação de queixa, quando se encontravam no ..., ..., por volta das 6h com a sua irmã e EE, a arguida agrediu este último com uma chapada uma vez que este se encostou a amiga dela, razão pela qual decidiram sair desse estabelecimento, tendo a arguida e os amigos que a acompanhavam adoptado igual comportamento com, de acordo com a sua percepção, a intenção de lhes bater, narrando ainda que aquando da saída do bar, a arguida tentou novamente bater em EE, ainda que refira que nada viu uma vez que houvera voltado ao interior do bar para ir buscar um casaco.
Instada, esclareceu que a arguida seguiu em direcção ao Largo ..., tendo a declarante, a sua irmã e EE seguido em direcção à Rua ..., utilizando para o efeito as travessas existentes.
Nega que tivesse ocorrido, em momento anterior, qualquer problema entre a arguida e EE, tendo referido que ambos se encontravam alcoolizados, explicando que os viu a ingerir bebidas alcoólicas.
Esclareceu quando atingiram a rua ..., ... e enquanto caminhava agarrada a EE no lado da estrada, no sentido descendente (seguindo a sua irmã FF no passeio), a arguida seguia ao volante de um veículo cinzento (identificando como razão de ciência que “nós vimos que era ela que ia lá dentro” (sic), tendo embatido em si e em EE com uma pancada forte quando caminhavam de costas para o sentido de trânsito, o que lhe provocou algumas dores na perna esquerda (no joelho) e que implicou que faltasse 4 dias ao trabalho, tendo detalhado que EE foi cair mais à frente e bateu com a cabeça no chão, tendo ficado inconsciente.
Instada a respeito da dinâmica, narrou que “ouvimos um carro e vimos um carro” (sic) que estaria a cerca de 5 metros de si, tendo sido efectuada uma manobra num único movimento, tendo o veículo dirigido-se inicialmente para a direita do seu sentido de marcha e, depois, para a esquerda, tendo seguido caminho sem parar. Declarou ainda que viu o veículo em data posterior, onde identificou uma amolgadela do lado direito. Narrou, ainda, ter olhado para o veículo antes do embate, o que lhe permitiu ver que era a arguida a condutora, o que fez para se precaver, e, ainda, que ia acompanhada por GG, tendo o embate acontecido quando se encontrava de lado na rua, ficando o seu lado esquerdo próximo do sentido de marcha de onde vinha a arguida.
Esclareceu que lhe foram posteriormente remetidas mensagens através das redes sociais pela arguida.
Narrou que EE já se apresentava embriagado uma vez que houvera bebido nessa noite, explicando que tanto a declarante como a irmã não o fizeram, declarações que corrigiu, tendo referido posteriormente que efectivamente consumiram álcool, ainda que não tenha sido em excesso.
FF, irmã da ofendida, narrou conhecer a arguida de vista, tendo explicado que esta e o seu amigo EE houveram tido um problema no ..., nessa noite, quando este se encontrava um pouco alcoolizado e se quis introduzir no grupo de amigos daquela, tendo a arguida desferido-lhe uma chapada nessa ocasião.
Narrou que após ter saído do bar, com a irmã e EE, se dirigiram a pé pelas ruelas até à Rua ... sendo que quando chegaram a esse local e quando se encontrava no passeio, a arguida atingiu com o veículo que conduzia a sua irmã na perna, tendo EE colocado-se à frente do carro com os braços estendidos, tendo sido embatido no pé e perna e, ainda, batido com a cabeça.
Instada, esclareceu que a sua irmã e EE iam a sair do passeio para a estrada, explicando que ficou com a perspectiva que a sua irmã não foi atingida de propósito mas sim em EE, explicando que a arguida fez uma manobra específica para atingir aquele, uma vez que se imobilizou após ter batido na sua irmã. Declarou que viu que o veículo era conduzido pela arguida, a qual se encontrava acompanhada por GG, uma das raparigas que estava no grupo no bar, uma vez que se apercebeu da chegada do veículo, tendo retido a sua atenção antes de embater nas pessoas que seguiam consigo.
Esclareceu que o veículo, cinzento, circulava a baixa velocidade.
Inquirida a respeito da dinâmica no bar, esclareceu que EE se encostou a uma das raparigas que acompanhava a arguida, sendo que na sequência da desinteligência havida, a declarante, a irmã e EE saíram do bar em primeiro lugar, tendo posteriormente a arguida e o seu grupo saído para a rua, negando que tenham deixado algum objecto esquecido no interior do bar.
EE, ofendido, narrou que interagiu com a arguida na noite do evento, depois de se ter encostado a uma amiga daquela, tendo a arguida batido-lhe no ... em ..., tendo sido convencido por DD a ir-se embora para casa, no bairro da ..., o que fizeram, tendo seguido a pé pelas travessas até à Rua .... Narrou que nesse momento, enquanto FF circulava pelo passeio, o declarante e DD preparavam-se para atravessar a rua para o passeio do lado contrário, tendo visto as luzes de um carro (das quais só deu conta quando ouviu o veículo a acelerar em direcção a si e de DD), o qual bateu inicialmente em DD e, depois, dirigiu-se a si, embatendo no seu corpo. Explicou que previamente ao embate na sua pessoa levantou as mãos e dirigiu-as na direcção do caro, tendo ainda assim sido embatido com zona do farol e espelho, tendo caído ao chão e batido com a cabeça (o que lhe provocou um hematoma), perdendo os sentidos.
Declara que viu que a condutora do veículo era a arguida (que seguia acompanhada ainda por outra rapariga) e, ainda, que esta conseguia circular na rua sem lhes bater, dado que estavam encostados ao passeio, antes de atravessar a rua. Indagado a respeito do veículo, descreveu-o como um carro pequeno, género ... ou ..., de traseira curta e com as luzes mais modernas.
Assume que efectivamente houvera bebido nessa noite, explicando que quando saiu do bar, a arguida se encontrava à porta.
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Aqui chegados e tendo em consideração a prova produzida, entende o Tribunal que pese embora sejam identificáveis discrepâncias nos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, estas mostram-se razoável no concreto contexto da unidade de acção e, ainda, tendo em consideração que se mostram praticamente decorridos quatro anos desde a dinâmica em apreciação, sendo natural, aliás, que a memória dos envolvidos tenha sido preenchida pelos relatos prestados pelas co-testemunhas, atentas as diversas posições de observação da dinâmica e a natural valorização e/ou preterição de determinados detalhes.
Assim e pese embora se sublinhe a permanente utilização do plural por parte de DD (ao declarar transversalmente ao longo do seu depoimento que “nós fomos” e “nós vimos”, o que poderia ser sugestivo da existência de um eventual relato conjunto de factos com razão de ciência directa e indirecta), a verdade é que inexistem dúvidas que no referido circunstancialismo de tempo, lugar e modo, as três testemunhas inquiridas asseveram que visualizaram a arguida a conduzir um veículo de pequeno porte, de cor ... e natureza citadina, na Rua ..., o qual veio a embater, a baixa velocidade e com a sua parte lateral, em DD e EE, os quais circulavam no limite direito dessa faixa de rodagem, tendo provocado as lesões devidamente descritas nos relatórios periciais.
Sendo objectivos: é incontrovertido que houvera uma altercação entre a arguida e EE em momento anterior ao evento em apreciação, parecendo ainda claro das testemunhas prestadas por todas as pessoas inquiridas que, em maior ou menor quantidade (o que não cuida apurar nesta sede), todos os envolvidos houveram ingerido bebidas alcoólicas (o que sabem porque o fizeram ou porque viram os demais fazer).
Poder-se-ia conceber como hipótese (o que foi sustentado pela defesa) que as testemunhas tenham actuado com um instinto de vingança sobre a pessoa da arguida, procurando retirar desforço desse evento no bar.
Contudo, sendo objectivos, inexiste qualquer elemento que permita extrair tal conclusão. Mostra-se objectivamente demonstrado que os ofendidos DD e EE sofreram, efectivamente, lesões no seu corpo, circunstância devidamente documentada pela apreciação pericial, sendo as lesões evidenciadas compatíveis com a dinâmica narrada.
Ademais, resulta desde logo dos elementos documentais dos autos a identificação, na esfera da arguida, de um veículo que, com maior ou menor detalhe, corresponde a um veículo registado como propriedade daquela desde 06/11/2017, elemento que foi imediatamente identificado aquando da ocorrência, o que elimina a existência de um qualquer plano com o escopo de incriminar quem quer que seja, sendo certo que tal versão se mostra, nos seus traços elementares, uniforme desde 06/01/2019, não sendo previsível que decorridos praticamente 4 anos desde o evento, as referidas testemunhas prosseguissem com uma qualquer intenção persecutória relativamente à pessoa da arguida, especialmente tendo em consideração a natureza menor da origem do conflito, sendo de assinalar que EE se mostrou particularmente assertivo e detalhado nas suas declarações, as quais corroboram em grande medida o relato de FF (e, em menor grau, o relato de DD, aquele que foi considerado menos credível dos três tendo em consideração diverge amiúde do relato uniforme destes dois), sendo ainda de salientar que as aludidas testemunhas não tiveram rebuço em afirmar factos aptos a atenuar a conduta da arguida (nomeadamente, a baixa velocidade do veículo, o que se admite como altamente provável à luz das regras de experiência comum, tendo em consideração – conhecido pelo Tribunal – estado de consolidação da via, composta por empedrado bastante irregular, inapto à circulação em velocidades significativas).
Donde, a conjugação dos relatos com os elementos probatórios colhidos (mormente, registo automóvel e exames periciais de dano corporal), permitem concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que a factualidade aconteceu nos termos descritos no despacho de acusação, tendo logrado convencer o Tribunal da verificação dessa realidade para além de qualquer dúvida razoável, logrando assim o Ministério Público demonstrar a realidade
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Concretizando o raciocínio anteriormente enunciado, a factualidade enunciada foi considerada provada, em especial, aos seguintes elementos de prova:
O facto 1) resulta demonstrado a partir da conjugação das declarações prestadas pelas testemunhas, da certidão de registo automóvel e, ainda, dos autos de notícia e denúncia, tendo as testemunhas logrado convencer, para além de qualquer dúvida razoável, que era a arguida que tripulava o veículo (aquele concreto veículo, sua propriedade e que corresponde às características identificativas) naquele concreto lugar e demais circunstancialismo de tempo e modo.
Os factos 2) a 6) resultaram demonstrados a partir das declarações prestadas por FF e EE os quais, de modo uniforme, narraram que se encontravam a caminhar em direcção a casa, no bairro da ..., tendo percorrido as artérias paralelas à rua do ... até chegarem à Rua ..., onde a arguida, conduzido o referido veículo tripulou o veículo na direcção de DD e EE, tendo-os atingido sequencialmente pela ordem exposta, sendo o segundo atingido após o embate em DD, tendo provocado a queda de ambos ao solo, o embate da cabeça de EE no solo e, ainda, as consequências no seu corpo, as quais são ainda corroboradas pelo teor dos relatórios periciais constantes dos autos.
Os factos 7) a 9) resultam demonstrados a partir da factualidade objectiva constante dos autos, à luz das regras de experiência comum, sendo prudente inferir da factualidade demonstrada que a arguida, como pessoa socializada que é – profissionalmente integrada e, à data dos factos, proprietária de um veículo -, conhece o comando geral de protecção da integridade física dos cidadãos e, consequentemente, o carácter juridicamente desvalioso e ilícito da conduta adoptada.
O facto 10) resulta do teor do certificado de registo criminal.
Os factos 11) e 12) resultam demonstrados do teor das pesquisas efectuadas na base de dados da Segurança Social, registo predial e automóvel, tendo sido os elementos passíveis de apuramento na medida em que a arguida não compareceu junto da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais nem em julgamento, facto que impediu a recolha directa dos elementos junto da arguida.
O facto 13) resultou demonstrado a partir da conjugação das declarações de DD, FF e, ainda, de EE, mostrando-se ainda de acordo com as regras de experiência comum tendo em consideração as condições de circulação na referida artéria (conhecida pelo Tribunal), composta por empedrado irregular, impeditivo da impressão de velocidades relevantes nos veículos que a percorrem.

2.3. Das questões a decidir

Foi a arguida recorrente condenada, como autora material de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1 alínea a) e nº 2, com referência ao artigo 132º, nº 2, alínea h) do CPenal, na pena única de 7 meses e 15 dias de prisão, substituída pela pena de 240 dias de multa à razão diária de €5,00, o que perfaz o montante de €1200,00, sendo que foi decidido descontar, ao abrigo do artigo 80º, nº 1 do CPenal, na pena aplicada, um dia de prisão, atenta a detenção sofrida.
Como primeiro segmento recursivo surge a questão do desconto de um dia de detenção sofrido pela arguida, defendendo o Digno Mº Pº que, no quadro em presença, tal não tem a cobertura do plasmado no artigo 80º, nº 1 do CPenal.
O instrumento recursivo, neste conspecto, aponta a privação da liberdade referida na Douta Sentença ocorreu na fase de inquérito, na sequência de falta injustificada a diligência processual para a qual havia sido regularmente notificada e faltou de forma injustificada – conforme resulta de fls. 78 a 86 e 98 a 101 (…) entendemos que o Tribunal a quo efetuou uma incorreta interpretação do regime previsto no artigo 80.º do Código Penal. Com efeito, citando o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 10/2009, “Nos termos do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, não é de descontar o período de detenção a que o arguido foi submetido, ao abrigo dos artigos 116.º, n.º 2, e 332.º, n.º 8, do Código de Processo Penal, por ter faltado à audiência de julgamento, para a qual havia sido regularmente notificado, e a que, injustificadamente, faltou.” (Relator Santos Monteiro, publicado em DR 139 SERIEI de 2009-07-21).
Este passo de discordância apela à enunciação do prescrito no supra dito inciso legal, onde se escreveu, (a) detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
Opina o recorrente que esta normação não tem aplicação ao caso vertente pois, o tempo de privação sofrido pela arguida decorre da falta a diligência de inquérito para a qual estava devidamente notificada, tendo ocorrido a sua detenção a coberto do que fixa o artigo 116º, nº 2 do CPPenal.
Em abono do propugnado, o Digno Mº Pº ancora-se no aresto propalado pelo STJ – Acórdão de Uniformizador de Jurisprudência, nº 10/2009 de 21/05/2009, publicado no DR nº 120/2009, Iª Série, de 29/06/2009 – onde se pode ler, em conclusão, (n)os termos do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, não é de descontar o período de detenção a que o arguido foi submetido, ao abrigo dos artigos 116.º, n.º 2, e 332.º, n.º 8 , do Código de Processo Penal, por ter faltado à audiência de julgamento, para a qual havia sido regularmente notificado, e a que, injustificadamente, faltou.
Avultando, numa primeira leitura, uma pronta tendência para considerar que terá andado bem o tribunal ad quo ao considerar ser de proceder ao desconto do dia de detenção sofrido pela arguida, crê-se que, de facto, cotejando todo o ordenamento jurídico existente, no que concerne ao alcance / sentido / dimensão dos diversos quadros limitativos da liberdade – detenção, prisão preventiva, obrigação de permanência na habitação – difícil se torna questionar a linha seguida pelo dito AUJ.
Com efeito, em suporte do entendido pelo tribunal recorrido, podem invocar-se razões como: o AUJ refere-se somente à falta de arguido a julgamento (momento de maior solenidade e o cerne processual de decisão); a normação do artigo 80º, nº 1 utiliza sem qualquer destrinça o vocábulo detenção sem nenhuma limitação relativa a qualquer situação de detenção enunciada no CPP, quer seja a detenção nos termos do artigo 116º, nº 2, do CPPenal, quer seja a regulamentada no artigo 254º, nº 1, do mesmo diploma; as razões de justiça material que fundamentam o instituto do desconto estão presentes quer o arguido seja presente para aplicação ou execução de uma medida de coação ao abrigo do artigo 254º, nº 1, alínea a), do CPPenal, quer seja para assegurar a sua presença ante a autoridade judicial ou em ato processual; referindo o legislador que também conduz ao desconto a privação sofrida em processo diferente, faz sentido atender para os mesmos efeitos a detenção ocorrida no âmbito do próprio processo, por força do mecanismo do artigo 116º, nº 2 do CPPenal; não exibindo a lei alguma restrição não cabe ao intérprete o fazer, mormente em sentido desfavorável ao arguido.
A sufragar este percurso de entendimento, cite-se ainda a circunstância de que não aceitar o desconto neste quadro, pura e simplesmente faz esquecer / apagar / eliminar toda a natureza objetiva da privação da liberdade e, destarte, a ideia / noção / conceito inerente à natureza do instituto do desconto[2].
Conquanto, importa atender a toda a fundamentação expressa no citado AUJ que, versando especificamente sobre falta a julgamento, em termos de elenco de razões a ponderar, parece ter aqui aplicação.
O CPPenal parece referir-se à detenção em dois distintos momentos, os quais, se elevam para claras e específicas razões. A detenção para comparência a ato processual (artigo 116º) e a detenção para efeitos de ser presente a julgamento em processo sumário ou ser presente ao juiz competente para o primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coação (artigos 254º a 261º).
Atendendo aos preceitos em causa, desde logo perante a sua inserção sistemática – neste último caso especialmente dedicado à detenção, como se retira do título do Capítulo III, Título I, Livro VI -, parece cristalino que as finalidades das “detenções” em causa, são completamente distintas e assumem-se com coloração, peso e significado diversos.
Basta até olhar à expressão inserta no artigo 116º, nº 2 (…) pelo tempo indispensável à realização da diligência (…), sem qualquer paralelo nas outras situações, ou seja, trata-se de uma detenção sem qualquer outro propósito programático que não o aludido, e por um tempo restrito.
Diga-se, também, que o suporte pessoal da detenção prevista neste dispositivo é toda e qualquer pessoa - testemunha, perito, consultor técnico, assistente, parte civil ou jurado - sem necessidade de qualquer relação pessoal com o crime, e também, por maioria de razão, o próprio arguido. E, nesta senda, podendo ser detida qualquer pessoa para estes efeitos, parece ter sido intento do legislador que esta privação é apenas e só circunstancial, sem o menor relevo consequencial noutros momentos, nomeadamente em caso de condenação.
A detenção para os efeitos do artigo 116º, nº 2 do CPPenal parece assim configurar-se como medida compulsória, coerciva, destinada a assegurar a presença para a prática de ato processual, aplicável tanto em inquérito, como em julgamento, a vincar o dever de cooperação com os tribunais a todos imposto, totalmente divergente da detenção regulada nos artigos 254º a 261º do CPPenal.
Aqui apela-se a ideias de proteção imediata a bens jurídico-penais postos em crise, como é timbre da prisão preventiva, olhando a princípios próximos e comuns àquela medida de coação, por exemplo, o da adequação, do pedido, prazo, proporcionalidade e necessidade, não dispensando como a prisão preventiva, condições materiais de justificação e índices racionais de culpabilidade[3].
Em presença destes considerandos, perfila-se a tese adiantada pelo Digno Mº Pº, pelo que não será de descontar na pena imposta à arguida, o dia de detenção por esta sofrido, nos termos do disposto no artigo 116º, nº 2 do CPPenal.

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Prosseguindo no intento recursivo, há então que focar a atenção na suscitada questão da pena, sendo que o Digno Mº Pº vem sustentar que o palco factual existente não permite a solução perseguida pelo tribunal ad quo, devendo antes ser aplicada à arguida a pena única de 7 meses e 15 dias de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.
Este vetor recursório, tendo em atenção o posicionamento envergado, reclama uma visita e abordagem ao decidido em 1ª instância.
Viajando pelo processo decisório, e quanto a este traço, ao que emerge, crê-se que desponta o vício consignado na alínea a) do nº 2 do artigo 410º do CPPenal – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – que, não tendo sido sequer sugerido pelo sujeito recorrente, é do conhecimento oficioso.
Esta mácula ocorre quando a factualidade dada como provada na sentença não é a bastante para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final ou, de outro modo, quando a matéria de facto se mostra insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida, por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito[4].
Como vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena[5].
O tribunal deve, assim, indagar os factos necessários não só para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição, mas também para, no caso de condenação, poder determinar a escolha e a medida concreta da pena, quer se trate de factos alegados pela acusação ou pela defesa, quer de factos que resultem da discussão da causa, ou que nela devessem ter sido averiguados por força da sua relevância para a decisão.
Extrai-se de forma expressa da lei - artigos 369.º a 371.º do CPPenal - que em caso de condenação e aplicação de pena é essencial a prova relativa aos antecedentes criminais do arguido, à sua personalidade e às suas condições pessoais. A lei prevê até a possibilidade de produção suplementar de prova, tendo em vista a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar, para o que, sendo necessário, poderá ser reaberta a audiência.
Para a determinação da medida concreta da pena, nos termos do artigo 71º, nº 1, do CPenal, olhando à respetiva moldura abstrata, e apelando aos critérios da culpa e da prevenção – geral e especial –, há que, de acordo com o seu nº 2, atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando-se, entre outras, as condições pessoais do agente e a sua situação económica- alínea d) do nº 2. Fixa ainda o nº 3 do mesmo artigo que a sentença tem que expressamente referir os fundamentos da medida da pena.
O CPPenal atribui ao momento da escolha da pena e da determinação da sanção uma certa autonomia, concedendo ao juiz amplos poderes de indagar os factos que julgue necessários à correta determinação da sanção, designadamente com recurso à elaboração de relatório social ou, mesmo à produção de prova suplementar sobre a personalidade do arguido e às suas condições de vida. É o que se retira dos supracitados dispositivos legais – artigos 369º a 371º.
Concatenando tais ensinamentos com o que brota dos autos, exulta que para além dos antecedentes criminais da arguida, a sentença condenatória, quanto aos supostos aspetos relativos à sua personalidade, situação económica e social, limitou-se a referenciar (…) A arguida não se encontra registada como proprietária de bens móveis sujeitos a registo ou imóveis (…) A última remuneração conhecida à arguida data de Setembro de 2022, no valor de €624,00, tendo sido colocada à disposição pela sociedade J M..., Lda. pessoa colectiva n.º ..., onde a arguida trabalha desde 01/08/2022.
Estas menções, ao que se crê, não permitem concluir com segurança qual a situação económica e social da arguida, nem revelar qualquer traço da sua personalidade. A circunstância de alguém não ter registado em seu nome bens móveis sujeitos a registo ou imóveis, e ter como última remuneração conhecida a percebida em setembro de 2022, é informação notoriamente escassa e falha, para indicar esta ou aquela situação económica, este ou aquele quadro social, e em termos de personalidade nada esclarecem.
Acresce que alusões pela negativa, como se assume o facto descrito em 11. pode até ser elucidativo de outras realidades menos claras. Daí que a mera constatação de um “não”, como facto negativo que é, não conduz necessariamente a qualquer assertiva conclusão.
Constata-se assim que como factos seguros e incontornáveis, quanto a aspetos pessoais da arguida, apenas se consignaram no propalado, os seus antecedentes criminais e o facto de ter como última remuneração conhecida, a respeitante ao mês de setembro de 2022. Nada mais foi apurado quanto às suas condições pessoais, à sua situação económica, ou à sua personalidade.
Porém, o tribunal não pode olvidar que constituem objeto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança, bem como os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil, se existir pedido civil - cf. artigo 124º, n.º 1 e 2, do CPPenal.
Mostra-se patente que a arguida foi julgada na ausência e que o tribunal consignou em sede de fundamentação de facto que a arguida não compareceu junto da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais ou em julgamento, razão pela qual não podendo o Tribunal permanecer numa situação de non liquet relativamente ao mínimo enquadramento sócio-económico da arguida, procedeu ao seu apuramento tendo em consideração os elementos informativos disponíveis, sujeitos a contraditório.
Conquanto, tal como se notou, este esforço de apuramento que se diz ter sido feito, salvo melhor e mais avisada opinião, denota-se insuficiente.
Decorre dos princípios da investigação e da verdade material que ao tribunal cumpre investigar, independentemente da acusação e da defesa, com os limites previstos na lei, os factos sujeitos a julgamento, de forma a criar as bases necessárias para a decisão.
Nessa medida, o tribunal tem o poder-dever de, oficiosamente, socorrer-se do disposto no artigo 340º, do CPPenal para investigar os factos sujeitos a julgamento, procedendo, autonomamente, às diligências que, numa perspetiva objetiva, possam ser razoavelmente consideradas necessárias, de modo a se habilitar a proferir uma decisão justa, não lhe sendo consentido remeter-se a uma atitude passiva e meramente dependente da iniciativa probatória dos sujeitos processuais.
Ora, o tribunal recorrido não procurou indagar de modo mais fundamentado das condições de vida da arguida.
Referindo que a arguida não compareceu à convocatória realizada pelos Serviços de Reinserção Social e Prisionais (DGRSP), como decorre de fls. 179 dos autos, não se tomaram outras iniciativas / diligências, possíveis e fazíveis no sentido de se apurar matéria neste circunspecto.
Desde logo, ao que se pensa, mesmo não comparecendo a arguida à solicitação levada a cabo, o relatório social pode ser feito recorrendo à audição de familiares, mediante pedido de informações à autoridade policial, ou, até mesmo, através do contacto com vizinhos, pessoas que conhecessem a arguida, para suprir o seu défice de conhecimento.
E seguindo este percurso, crê-se que não se está a exigir o impossível ou de impor que a sentença, sob pena de incorrer num vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, tenha de conter todos os elementos que, idealmente, deveriam ser considerados para a determinação concreta da pena.
No caso concreto, ficou-se aquém do razoavelmente exigível, carecendo a sentença recorrida de elementos que habilitassem o tribunal recorrido a, conscienciosa e seguramente, levar a bom termo o procedimento de determinação individualizada da pena, dentro dos parâmetros legais.
E tanto mais evidente tal se torna, quando se decide por uma pena substitutiva, dentre várias possíveis, sem cuidar de se ponderar / aquilatar, com base em sólido sustentáculo fáctico, qual a que melhor se adequa à situação em concreto. Ao que transparece, mesmo para o caminho encetado – aplicação de pena de multa -, tendo como presente o que reza o nº 2 do artigo 47º do CPenal - o tribunal fixa em função da situação económica e financeira e dos seus encargos pessoais -, todo o elenco factual existente como provado é manifestamente parco.
Uma avaliação e consequente decisão desta dimensão, tendo ainda em presença os ilícitos em causa, todo o modo como tudo terá sucedido, sua contextualização e todo o posicionamento processual tido pela arguida, cristalinamente denotado e salientado pelo Digno Mº Pº, demandam um juízo de prognose rigoroso e suficientemente sustentado, só alcançável com base em factos concretos atinentes à situação económica, pessoal e social da arguida e à sua personalidade.
Apenas seria aceitável que o tribunal decidisse sobre a pena com base apenas nos elementos referidos, quando se demonstrasse que inequivocamente tentou diversos caminhos, e não o conseguiu. Como se deixa antever, o tribunal parece ter partido da premissa que não iria conseguir.
Ora, não tendo o tribunal ad quo procedido à indagação necessária e bastante à determinação da situação pessoal, económica e social da arguida, a sentença enferma, nesta parte, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que importa oficiosamente conhecer[6].
Vício que este Tribunal da Relação não pode suprir por falta de elementos que constem dos autos.
Constatada a existência deste vício, é entendimento maioritário na jurisprudência dos Tribunais Superiores que há determinar o reenvio do processo para novo julgamento, cingido à investigação dos factos relativos à situação pessoal e económica da arguida, nos termos dos artigos 426º, nº 1 e 426º-A, do CPPenal.

III – Dispositivo
Nestes termos, acordam os Juízes Secção Criminal – 2ª Subsecção - desta Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Digno Mº Pº, e em consequência decidem;
a) Determinar que não será de descontar na pena imposta à arguida, o dia de detenção por esta sofrido, nos termos do disposto no artigo 116º, nº 2 do CPPenal;
b) Anular parcialmente a sentença recorrida, ordenando a remessa do processo para novo julgamento, nos termos do plasmado nos artigos 426º, nº 1 e 426º-A, do CPPenal para apurar dos factos em falta relativos às condições pessoais, personalidade e situação económica e social da arguida e, posteriormente, em face deles, determinar a medida concreta da pena.

Sem custas.

Évora, 9 de maio de 2023
(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, nº 2, do CPPenal)

(Carlos de Campos Lobo)

(Ana Bacelar- 1ª Adjunta)

(Renato Barroso – 2º Adjunto)

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[1] Cfr. fls. 301.
[2] Neste sentido, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, 2021, Universidade Católica Editora, p. 428.
[3] AUJ supra citado.
[4] Neste sentido, LEAL-HENRIQUES, Manuel e SANTOS, Manuel Simas, Recursos em Processo Penal, 6.ª Edição, p. 69 e SILVA, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2.ª Edição, p. 340.
[5] Neste sentido Acórdão do STJ, de 4/10/2006, Processo n.º 06P2678.0, disponível em www.dgsi.pt. e ainda os Acórdãos do mesmo Tribunal de 05/09/2007, Processo n.º 2078/07 e de 14/11/2007,Pprocesso n.º 3249/07, sumariados em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais.
Cite-se ainda a título de exemplo o Acórdão do STJ, de 14/03//2013, proferido no Processo nº 1759/07.0TALRA.C1.S1” (…) o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do nº2 do artigo 410.º do CPP, verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito, quando existe uma lacuna, deficiência ou omissão, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto (…)”.
[6] Neste sentido os Acórdãos já citados e ainda Acórdãos da Relação de Lisboa de 10/02/2010, proferido no Processo n.º 372/07.6GTALQ.L1-3, Relação de Guimarães de 05/06/2006, proferido no Processo n.º 765/05-1, Relação de Coimbra de 23/02/2011, proferido no Processo n.º 83/09.8PTCTB.C1, Relação do Porto de 02/12/2010, proferido no Processo n.º 397/10.4PBVRL.P1, Relação de Évora de 29/10.2013, proferido no Processo n.º38/02.3GTSTR.E1, disponíveis em www.dgsi.pt.
Refira-se ainda o Acórdão do Acórdão do STJ, proferido no Processo nº 1759/07.0TALRA.C1.S1 de 14/03/2013, já acima citado, onde se pode ler “ (…) Do texto da decisão recorrida, por si só considerado, perfila-se a existência do vício aludido na alínea a), porquanto a matéria de facto provada não é bastante para a determinação da pena a aplicar, sendo omissa na indicação de dados sobre a personalidade e a inserção familiar, social, ou profissional do arguido (…) verificados os vícios de insuficiência para a matéria de facto provada (…), inultrapassáveis e insusceptíveis de saneamento, deve ser determinado o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do nº2do art. 426º do CPP”.