Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3954/18.7T8STB.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: CONTA CONJUNTA
CONTA SOLIDÁRIA
Data do Acordão: 01/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A conta bancária solidária caracteriza-se pela faculdade de cada um dos seus titulares a poder movimentar, parcial ou totalmente, independentemente da propriedade dos valores nela depositados.
2. A titularidade da conta não predetermina a propriedade dos valores depositados, que podem pertencer apenas a algum dos seus titulares ou até a terceiro.
3. A existência de uma conta bancária solidária não implica que tenha havido tradição entre os seus titulares dos valores ali depositados.
4. Ocorrendo um depósito por parte de um titular, e afirmando outro titular que esse valor lhe foi doado, importa apurar se foi intenção do depositante que o dinheiro passasse a ser propriedade do contitular, podendo dele dispor como entendesse.
5. Existindo uma conta titulada pelo progenitor e também pela progenitora e pelo filho menor de ambos, procedendo o progenitor à transferência de certo valor para essa conta e retirando-o meses mais tarde, não se pode concluir que esse valor tenha sido transferido para o domínio exclusivo do filho menor.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
(…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Local Cível de Setúbal, (…), na qualidade de legal representante do seu filho menor (…), nascido a 18 de Fevereiro de 2014, propôs acção declarativa comum contra o pai deste, (…).
Formulou os seguintes pedidos:
a) “Ser declarado anulável a movimentação do R. efectuado na conta do menor (…), da qual resultou uma dissipação/alienação de depósitos titulados pelo menos no valor de 20.000 Euros;
b) Ser o R. condenado à restituição do valor de 20.000 € ao menor (…), acrescidos de juros de mora vencidos no valor de 1.733,80 € e dos vincendos até efectivo e integral pagamento.”
Alegou-se na petição inicial que, durante a vigência do casamento, A. e R. decidiram criar uma conta bancária para o filho de ambos onde seriam depositados todos os valores a ele exclusivamente destinados. Nesta sequência, depois da A. ter ordenado, em 15.07.2014, uma transferência para essa conta no valor de € 22.000,00, o R. comprometeu-se a transferir para essa conta um valor igual logo que recebesse uma indemnização devida pela morte da sua mãe. Assim, a 05.06.2015, o R. transferiu para essa conta a quantia de € 20.000,00, que aplicou no produto “Poupança a Crescer + IV”. Mais se alega que A. e R. decidiram constituir a conta bancária em nome do filho com o intuito de nela acumular rendimento e poupança para o seu futuro, e de modo a que este, aquando da sua maioridade, tivesse aforro suficiente para o início da sua vida, sem ajuda dos progenitores, e somente seria levantado antes em caso de absoluta urgência ocorrido em vida do menor. Uma vez que, após o divórcio, o R. transferiu os € 20.000,00 para conta por si titulada, apresenta-se a formular o pedido, argumentando que esse valor havia sido doado ao filho e que assim o R. não podia dele apropriar-se, sendo tal acto anulável nos termos dos arts. 1889.º, n.º 1, al. a), 1892.º, n.º 1 e 1893.º, n.º 1, do Código Civil.
Na contestação afirma-se que a conta era titulada pelo menor, pela A. e pelo R., podendo ser movimentada por qualquer um dos últimos, que a transferência de 05.06.2015 não constituiu doação de qualquer valor ao menor, argumentando que dividiu o valor recebido pela morte da sua mãe por duas contas para melhor rentabilizar as quantias depositadas, mantendo a possibilidade de movimentar as contas a todo o tempo e como bem entendesse, e que após o divórcio necessitou do valor depositado para fazer face a obras na nova casa onde iria passar a habitar com o menor, motivo pelo qual este não foi desapossado de qualquer valor que lhe pertencesse nem foi prejudicado.
Realizado julgamento, a sentença julgou a causa totalmente improcedente.

Recorre a A. e conclui:
1) A Recorrente não se conforma com a douta decisão proferida nos autos em epigrafe, por entender que foi produzida prova suficiente que conduza a um diferente julgamento de alguns pontos da matéria de facto provada e não provado, e ainda, porque a decisão proferida não contempla o sentido que se encontra expresso no disposto no art. 940.º do Cód. Civil, devendo, ao invés, considerar-se subsumida toda a factualidade demonstrada naquela norma e concluído que a transferência de Euros 20.000 efectuada pelo R. consubstancia uma verdadeira doação sujeita, por isso ao regime legal dos arts. 1889.º e ss. do Cód. Civil. Concretizando,
2) Impugna-se nesta sede o julgamento que o tribunal de primeira instância efectuou sobre os Pontos 4), 6) e 9) da Factualidade Provada e as alíneas a), b), c) e f) da matéria de facto julgada não provada. Porquanto,
3) No que concerne ao Ponto 4) da Factualidade Provada, cremos ter resultado da prova testemunhal, com suficiência e transparência, que a conta bancária a que aludem os presentes autos era do Menor e apenas para o mesmo era destinada, vide a este respeito os depoimentos de Depoimento de (…), inquirida na sessão de julgamento realizada a 4 de Abril de 2019, entre as 09.33.24 e as 09:50:55, Excerto 09:27 a 09:50, 10.41 a 10.42, de (…), inquirida na sessão de julgamento realizada a 4 de Abril de 2019, entre as 09.51.55 e as 10.06.21, Excertos 02.00 a 04.39, 04.59 a 05.55, 10.42 a 10.55; (…), inquirido na sessão de julgamento de 04 de Abril de 2019, entre as 11.01 e as 11.24, Excertos 07.46 a 08.48, 09.31 a 09.35, e (…), inquirida na sessão de julgamento de 04 de Abril de 2019, entre as 11.55 e 12.08, Excertos 02.51 a 03.47:
4) Com relevância para a prova deste facto encontramos também a documentação junta aos autos como documento n.º 8 junto com a petição inicial – aceite e não impugnado pelo Réu -, que corresponde a um extracto da conta criada para o Menor, sendo tal conta apelida de CONTA MESADA SELECT, tendo por NIB (…), que, devidamente confrontado com a informação constante das Condições Particulares e Especiais e com a Ficha de Informação Normalizada (FIN) junta aos autos a 21 de Maio de 2019, extrai-se que aquela conta visava abarcar apenas como titulares os menores, ainda que representados pelos seus progenitores, os quais era igualmente incluídos na titularidade das contas, mas relegados para segundo e terceiro titular, ficando a primeira titularidade sempre adstrita ao Menor;
5) Neste sentido também o facto de a partilha de bens efectuada juntamente com o divórcio por mútuo consentimento não incluir a conta em apreço resulta indiciado que, quer a Recorrente quer o Recorrido não a consideravam como bem comum, mas antes um activo do filho de ambos, alheio do acervo patrimonial conjugal, vide Doc. 1 junto com a petição inicial.
6) Ante os concretos meios probatórios citados, entendemos que mal andou o douto tribunal a quo no julgamento que efectuou quanto ao Ponto n.º 4) da Factualidade Demonstrada, devendo antes ter-se como provado que: “Durante a vigência do matrimónio, autora e réu decidiram criar uma conta bancária para o filho de ambos, tendo ficado também ambos titulares, na qualidade de legais representantes.”
7) No que respeita aos factos constantes em 6) e 9) entendemos que o Tribunal não considerou o que resulta da prova documental que subjaz à criação de tais aplicações e produtos financeiros, v.g. As Condições Particulares e Especiais e as Fichas de Informação Normalizadas, juntos aos autos, respectivamente, como Documentos 5 e 6da petição inicial – Facto 6) – e por oficio do Santander remetido para os autos a 21 de Junho de 2019 – Facto 9) – Em ambos os casos, resulta daquela documentação que o único titular em nome do qual ficaram constituídas as aplicações - concretamente a que é alvo de toda a atenção nestes autos efectuada em 5 de Junho de 2015 – é o Menor (…), e apenas este, e não nenhum dos restantes titulares da conta, sendo as condições aqui previstas especialmente delineadas para titulares Menores representados pelos respectivos representantes legais.
8) Mais se esclarece nas Condições Particulares e Especiais e no clausulado da FIN do produto Financeiro Poupança A Crescer + IV que apenas o Menor (vg. os seus interesses) poderia ditar a respectiva movimentação, e tal produto destinava-se, unicamente, à acumulação de poupança e de rendimento do respectivo titular, v.g. do Menor (…);
9) Entendemos, por isso, que aos factos aqui em menção julgados como provados deveria ter-se adicionado em cada um deles o seguinte: Facto provado 6) Por sua vez, na conta aberta em nome do (…), foram criadas duas aplicações: uma no valor de € 10.000,00, denominada “Poupança A Crescer + II”, e outra no valor de € 9.000,00, denominada “Depósito Valor Inovação”, ambas a 17 de Julho de 2014, e em que o único titular é (…) e Facto Provado em 9) – Aquele valor foi aplicado no produto sob a designação “Poupança A Crescer + IV”, naquela mesma data, constando como único titular (…), e sendo as condições de movimentação as do Menor, destinando-se tal produto ao rendimento e à acumulação de poupanças.
10) No que respeita à factualidade não provada em a), b) e c), entende a Recorrente ter o tribunal incorrido num erro de julgamento, porquanto resultou do depoimento da prova testemunhal inquirida que a conta criada, bem como as respectivas aplicações, eram na verdade “um mealheiro” do Menor – ao tempo da constituição da conta e das aplicações financeiras –, e que o Réu, quando confrontado com o levantamento indevido da quantia reforçou a titularidade do Menor quando alegou tratar-se de apenas um empréstimo, sujeito à devida devolução, vide Depoimento de (…), inquirida na sessão de julgamento realizada a 4 de Abril de 2019, entre as 09.33.24 e as 09:50:55, Excerto 3.50 a 05.32, 05.53 a 06.20, 06.33 a 07.35, 07.47 a 08.58,09.27 a 09.50, 10.41 a 10.42, 16.59 a 17.28, Depoimento de (…), inquirida na sessão de julgamento realizada a 4 de Abril de 2019, entre as 09.51.55 e as 10.06.21, Excerto 02:00 a 04.39, 04.59 a 05.55, 06.51 a 07.15, 08.00 108.19, 09.29 a 09.49, 10.42 a 10.55, 12.28 a 12.50, Depoimento de (…), inquirida na sessão de julgamento de 4 de Abril de 2019, entre as 10.08 e as 10.37, Excerto 10.11 a 10.23, 18.37 a 19.14, 19.15 a 20.08, Depoimento de (…), inquirido na sessão de julgamento de 04 de Abril de 2019, entre as 11.01 e as 11.24, Excerto 04.43 a 05.11, 14.41 a 16.20, 16.42 a 17.01;
11) A testemunha (…) terá afiançado que apenas tomou conhecimento da conta do menor e das aplicações em seu nome, no momento em que o recorrido terá procedido ao levantamento da primeira quantia – assinalada em 11) dos Factos provados –, tendo promovido o confronto directo com o Recorrido por conferencia telefónica, finda a qual ficou descansada perante a promessa daquele que o levantamento havia sido de mero empréstimo e que seria reposto. Por sua vez, a mãe da Recorrente adiantou, o único conhecimento de que tinha e que lhe foi transmitido pelo próprio Recorrido, de que os valores pertenciam exclusivamente ao Menor.
12) Por sua vez, as testemunhas indicadas pelos Recorrido, ainda que tenham tentado escamotear a titularidade da conta e fazer realçar a capacidade de movimentação do Recorrido, acabavam por admitir que a conta “era do Menor” sem que tenham conseguido esclarecer porque razão, se tais valores eram do Recorrido, teria este optado por colocá-los em conta específica para Menores e com a primeira titularidade atribuída ao (…), quando outras opções teriam no seu enlace, de tal modo que no momento em que o Réu aplicou os Euros 20.000 na em produto Poupança A Crescer + IV, efectuou também outra aplicação em seu próprio nome no valor de Euros 40.000, na conta que era por si titulada, vide extractos bancários juntos aos autos em Março de 2019.
13) Mais, não deixa de se frisar nesta sede que não se alcança porque razão afirmou o douto tribunal a quo a existência de alguma parcialidade por parte da prova testemunhal da A. quando foram as testemunhas dos R. que evidenciaram um conhecimento não comum sobre os valores e as condições de conta bancaria de um menor, cujo tema costuma ser reservado ao seio familiar, restrito ao casal, e não à partilha como amigos e terceiros! Acresce que, da prova documental junta aos autos resulta com saciedade que:
14) Em Julho de 2014 o R. actuando em nome da A. transfere para uma conta criada com o nome do Menor, e cujas condições de acesso se referiam a Menores representados pelos seus progenitores ou outros representantes legais, a quantia de Euros 22.000, constituindo produtos de poupança adequados à acumulação de rendimento e poupança, um no valor de Euros 10.000,00 outro no valor de Euros 9.000,00, vide Documentos 4, 5 e 6 juntos aos autos;
15) A 13 de Maio de 2015 o R. recebeu na sua conta a quantia de Euros 104.966,44, tendo sido confessado por si, e aflorado por quase todas as testemunhas em tribunal, que era oriundo de indemnização resultante de um processo judicial em curso, por morte de sua progenitora, vide extracto de Maio de 2015 junto aos autos pelo R. na sequência do dever de colaboração a 22 de Março de 2019;
16) A 5 de Junho de 2015 regista-se uma transferência apelidada de “Transf. (…)” para a conta do Menor objecto destes autos, vide extracto de Junho de 2015 junto aos autos pelo R. na sequência do dever da colaboração a 22 de Março de 2019;
17) Naquela mesma data o R. efectua outra transferência para uma poupança apenas titulada por si, no valor de Euros 40.000,00, produto “Aforro Prémio I”, vide extracto de Junho de 2015 junto aos autos pelo R. na sequência do dever da colaboração a 22 de Março de 2019;
18) A 5 de Junho de 2015 é subscrito pelo R. um Produto Financeiro apelidado de Poupança A Crescer + IV em nome do Menor (…), sendo este o único titular desta poupança, sendo indicado como condições de movimentação a expressão MENOR e esclarecido na FIN (Ficha de Informação Normalizada) que os titulares deste produto são apenas os “Titulares da Super Conta Mesada e Super Conta Jovem” destinando-se tal aplicação a “depósito à ordem – conta de rendimento e poupança destinada à acumulação de poupanças”, vide Condições Particulares e Especiais e FIN junta aos autos aos autos a 21 de Junho de 2019;
19) Na Relação de bens e na partilha efectuada no processo de divórcio por mútuo consentimento, não é incluída a conta bancária objecto destes actos nem os produtos financeiros aplicados em nome do menor Guilherme, vide certidão dos autos de divórcio, Documento 1 junto com a petição inicial;
20) Naquela relação de bens resulta ainda a distribuição de bens entre os cônjuges tendo sido à A. adjudicado a casa de morada de família, mas também a assunção do empréstimo hipotecário – no valor de cerca de Euros 68.000,00 – que incidia sobre o referido imóvel e a obrigação de pagamento de tornas ao R. no valor de Euros 34.414,86, vide Documento 1 junto com a petição inicial;
21) Entendemos, portanto que se encontra claramente demonstrado que a conta criada e objecto destes actos era a conta do Menor (…) e que nela pretendiam A. e R. acumular poupança para o filho, sendo este aliás um dos escopos sempre referidos nos produtos financeiros subscritos pelo R. em nome exclusivo do filho, que sempre figurou como único titular de tais aplicações bancárias.
22) Termos em que, ante a prova documental e testemunhal aqui específica e concretamente referenciada, cremos que mal andou o douto tribunal a quo quando julgou como não provado os factos que aqui se analisam, devendo por isso revogar-se o julgamento efectuado pelo Tribunal a quo e julgar-se como provado os seguintes factos: “Autora e réu decidiram que na conta referida em 4) seriam depositados valores que a ele seriam exclusivamente destinados”; “A Autora e Réu decidiram constituir a conta bancária em nome do (…) com o intuito de nela acumular rendimento e poupança para o futuro do menor, e de modo a que este, aquando da sua maioridade, tivesse aforro suficiente para o início da sua vida, sem ajuda dos progenitores.”; “Mais se comprometeram autora e réu que o dinheiro existente na conta titulada pelo (…) apenas seria para usufruto deste para o período posterior à sua maioridade e somente seria levantado antes em caso de absoluta urgência ocorrida na vida do menor, sendo que todos os custos e encargos decorrentes do crescimento e educação do menor ao longo do tempo seriam suportados por autora e réu, sem que tivessem que recorrer àquela conta.”
23) Por fim, não se alcança a razão pela qual o douto tribunal da instância transacta, não considerou o facto evidenciado na al. f) como demonstrado, porquanto, demostrou a A. por título de bilhete de avião junto com a petição inicial como Documento n.º 9, que no momento em que foi efectuada a primeira transferência de valores – a referida no facto provado em 11) – a A. encontrava-se em Angola tendo sido o depoimento da sua irmã, muito claro e honesto em afirmar que a Recorrente não tinha sido consultada a respeito de tal levantamento, tendo sido surpreendida com semelhante comportamento do Recorrido, vide Depoimento de (…), inquirida na sessão de julgamento realizada a 4 de Abril de 2019, entre as 09.33.24 e as 09:50:55,Excerto 2.33 a 03.40, 05.30 a 05.53, 07.34 a 07.47, 11.08 a 11.42;
24) Por conseguinte, deve o julgamento produzido pelo tribunal recorrido ser revogado e considerado provado que: “O réu procedeu ao levantamento referido em 11) sem que previamente tivesse consultado a autora ou obtido o seu consentimento”.
25) Nesta senda, obtendo-se provimento na revogação do julgamento da matéria de facto que supra se propôs, teremos reunidos os factos necessários e suficientes para se julgue a transferência efectuada pelo Réu no valor de Euros 20.000,00 a 5 de Junho de 2015 e a aplicação daquele valor no produto financeiro apelidado de Poupança A Crescer + IV em nome do (…), como sendo uma transmissão gratuita a favor daquele Menor, ante o que se dispõe nos arts. 940.º, 947.º e 951.º do Cód. Civil.
26) Pelo que, ante o disposto nos 1889.º, n.º 1, al. a), 1892.º e 1893.º, n.º 1 e 289.º, n.º 1 do Cód. Civil, deve ser julgado anulado o levantamento/transferência para conta própria efectuado pelo R. daquela quantia – demonstrados em 11) e 16) dos factos provados –, e o recorrido condenado a devolver ao Menor tal importância, acrescida de juros demora, calculados à taxa legal civil desde 30 de maio de 2016 – Facto provado em 18) -, vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
27) Sem conceder, por dever de cautela e de patrocínio, caso V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores entendam por não merecer provimento o que atrás se expandiu, sempre se diria que resulta da factualidade demonstrada os factos necessários para a subsunção no disposto nos arts. 940.º e ss. do Cód. Civil, tendo mal aplicado o douto, respeitosamente, tribunal a quo a factualidade demonstrada à citada norma. Vejamos,
28) Considerado como demonstrado que o R. transferiu para a conta do Guilherme a quantia de Euros 20.000,00 a 5 de Junho de 2015 tendo-a aplicado no produto financeiro Poupança A Crescer + IV na mesma data – vide Factos Provados em 8 e 9 – não podemos deixar de analisar o regime jurídico que decorre das Condições Particulares e Especiais e da Ficha de Informação Normalizada daquele produto, para alcançarmos o seu escopo de aplicação;
29) E resulta daquela análise – aos citados documentos juntos aos autos a 21 de Junho de 2019 devidamente coordenados com o extracto da conta do Recorrido do mês de Junho de 2015 juntos aos autos por Requerimento daquele em Março de 2019 – que o próprio Recorrido apelidou a transmissão de tais valores de “TRANSF (…)”, e quando subscreveu o Produto Poupança A Crescer + IV fê-lo identificando como único titular o Menor, apondo como “Condições de Movimentação: MENOR”, mais se esclarecendo na FIN em “Modalidade: Depósito à Ordem – Conta de rendimento e poupança destinada à acumulação de poupanças”, sendo tais elementos por si só indicativos de que os valores ficaram a pertencer, por doação do seu pai, ao Menor;
30) E nem se obste com o facto de naqueles documentos também constar a livre movimentação dos valores aplicados, porquanto, aquela liberdade é a bancária e não a civil, cuja apreciação caberá em última instancia, aos tribunais, e não às instituições de crédito;
31) Portanto, entendemos ser diversa a aplicação do disposto no art. 940.º do Cód. Civil da propugnada pelo tribunal a quo, pelo que se requer a revogação da sentença aqui recorrida no sentido de se terem por integralmente subsumidos no disposto daquele preceito legal os factos constante em 8) e 9), concluindo-se ter o Recorrido doado aquantia de Euros 20.000,00 ao Menor, doação que se deve considerar efectivada, concluída, aceite e eficaz.
32) Nesta conformidade, ante os levantamentos do Réu demonstrados em 11) e 16) da factualidade demonstrada, entendemos ter aquele progenitor – aqui recorrido – violado o que se consigna nos preceitos constantes na al. a) do n.º 1 do art. 1889.º e 1892.º do Cód. Civil, devendo por isso serem julgados anulados [os levantamentos] e o Recorrido condenado a restituir ao menor a quantia de Euros 20.000,00, acrescida de juros demora vencidos desde pelo menos 30 de Maio de 2016 – facto provado em 18 – e vincendos até efectivo e integral pagamento, cfr. art. 289.º, n.º 1 do Cód. Civil.
33) A tal conclusão não obsta a factualidade descrita em 17) a respeito da informação prestada pelo recorrido quanto a necessidade de obras na casa onde habitaria, porquanto, o facto que aqui se alude traduz-se na mera informação e não na constatação e prova de que a aplicação de tal valor terá ocorrido nas citadas obras, nem que as mesmas fossem necessárias para o bem-estar e crescimento do Menor.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO deve o presente Recurso ser admitido, porque legal e tempestivo, e obter provimento integral, revogando-se, na sequência, a douta sentença proferida pelo tribunal a quo, nos seguintes termos:
a) Julgar-se como demonstrado na Factualidade Provada que:
i. Ponto 4) Durante a vigência do matrimonio, autora e réu decidiram criar uma conta bancária para o filho de ambos, tendo ficado também titulares, na qualidade de legais representantes.”
ii. Ponto 6) Por sua vez, na conta aberta em nome do (…), foram criadas duas aplicações: uma no valor de € 10.000,00, denominada “Poupança A Crescer + II”, e outra no valor de € 9.000,00, denominada “Deposito Valor Inovação”, ambas a 17de Julho de 2014, e em que o único titular é (…).
iii. Ponto 9) Aquele valor foi aplicado no produto sob a designação “Poupança A Crescer * IV”, naquela mesma data, constando como único titular (…), e sendo as condições de movimentação as do Menor, destinando-se tal produto ao rendimento e à acumulação de poupanças.
b) Adicionar-se à Factualidade Provada que:
i) “Autora e réu decidiram que na conta referida em 4) seriam depositados valores que a ele seriam exclusivamente destinados”;
ii) “A Autora e Réu decidiram constituir a conta bancária em nome do (…) com o intuito de nela acumular rendimento e poupança para o futuro do menor, e de modo a que este, aquando da sua maioridade, tivesse aforro suficiente para o início da sua vida, sem ajuda dos progenitores.”;
iii) “Mais se comprometeram autora e réu que o dinheiro existente na conta titulada pelo Guilherme apenas seria para usufruto deste para o período posterior à sua maioridade e somente seria levantado antes em caso de absoluta urgência ocorrida na vida do menor, sendo que todos os custos e encargos decorrentes do crescimento e educação do menor ao longo do tempo seriam suportados por autora e réu, sem que tivessem que recorrer àquela conta.”
c) Como consequência, revogar-se a douta sentença a quo, julgando-se a transferência efectuada pelo Réu no valor de Euros 20.000,00 a 5 de Junho de 2015 e a aplicação daquele valor no produto financeiro apelidado de Poupança A Crescer + IV em nome do (…), como sendo uma transmissão gratuita, ante o que se dispõe nos arts. 940.º, 947.º e 951.º do Cód. Civil, condenando-se o Recorrido a devolver tal valor ao Menor, nos termos do disposto nos arts. 1889.º, n.º 1, al. a), 1892.º e 1893.º, n.º 1 e 289.º, n.º 1 do Cód. Civil, acrescidos de juros de mora vencidos à taxa legal em vigor, vencidos, desde 30 de maio de 2016, até efectivo e integral pagamento; Sem conceder por dever de patrocínio:
d) Revogar-se a douta sentença recorrida, porque ilegal e contrária ao sentido expresso nas disposições constantes nos arts. 940.º, 947.º e 951.º do Cód. Civil, condenando-se o Recorrido a devolver ao Menor a quantia de Euros 20.000,00 e a pagar juros de mora à taxa legal em vigor, vencidos, desde 30 de Maio de 2016, até efectivo e integral pagamento, ao abrigo do disposto nas supra citadas normas.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Dispensados vistos, cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – art. 607.º n.º 5 do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.”
Deste modo, a reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.[1]
Por outro lado, o art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Na reapreciação da matéria de facto o Tribunal da Relação deve lançar mão de todos os meios probatórios à sua disposição e usar de presunções judiciais para obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, não incorrendo em excesso de pronúncia se, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retirar dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso.[2]
Expostos os princípios gerais, passemos à análise dos pontos da matéria de facto impugnados pela Recorrente, adiantando desde já que, pretendendo esta a reapreciação da prova gravada, se procedeu à audição dos depoimentos prestados em audiência, complementada pela análise dos elementos documentais juntos aos autos.
*
Começando pelo ponto 4 do elenco de factos provados, a primeira instância fixou-o nos seguintes termos: “Durante a vigência do matrimónio, autora e réu decidiram criar uma conta bancária conjuntamente com filho de ambos.”
Pretende a Recorrente que este ponto se fixe assim: “Durante a vigência do matrimónio, autora e réu decidiram criar uma conta bancária para o filho de ambos, tendo ficado também titulares, na qualidade de legais representantes.”
Para o efeito argumenta que a aludida conta bancária era do menor e apenas a ele destinada, o que resultaria dos depoimentos das testemunhas (…), (…), (…) e (…), e ainda do extracto bancário dessa conta relativo ao mês de Agosto de 2015, do qual se poderia extrair que aquela conta apenas visava titulares menores, ainda que representados pelos seus progenitores.
Quanto aos depoimentos, (…) e (…), respectivamente irmã e mãe da A., não tinham qualquer conhecimento das condições concretas em que foi aberta no Banco (…) a conta n.º (…) e das contas de instrumentos financeiros a ela associadas, não tendo consultado qualquer dos documentos relativos à respectiva abertura e titulação. A circunstância destas testemunhas terem mantido conversas com o R. acerca da existência da conta e dos valores nela depositados, não permite concluir o que seja acerca da efectiva titulação da conta e das condições de movimentação da conta, e muito menos concluir que a conta era apenas titulada pelo menor, intervindo nela os seus progenitores como meros representantes legais.
De igual modo, a testemunhas (…) e (…) apenas puderam tecer conjecturas acerca da titulação da conta, de reduzida utilidade para a dilucidação desta questão.
Quanto aos documentos juntos aos autos, teremos a apontar que o extracto consolidado da conta relativo ao mês de Agosto de 2015 (doc. n.º 8 junto à p.i.), revelando que se trata de uma “Conta Mesada Select”, analisado conjuntamente com a Ficha de Informação Normalizada (FIN) dessa conta, apresentada pelo Banco com o seu ofício de 21.05.2019, não permite concluir que aquela conta apenas poderia ser titulada por menores, intervindo os seus pais como meros representantes legais.
Na verdade, a referida FIN, no capítulo relativo às condições de acesso, afirma o seguinte: “Clientes Particulares Select ou filhos de Clientes Particulares Select. Jovens com idades compreendidas entre os 0 e os 13 anos, representados pelos seus pais ou representantes legais. Conta aberta pelos pais ou representantes legais, sendo o menor obrigatoriamente o 1.º titular.” Se bem se interpreta este documento, a mencionada conta permite o acesso a clientes com um perfil especial, normalmente associado à posse de determinado património ou à existência de determinados rendimentos, a quem o Banco entende atribuir um tratamento preferencial – neste caso, os “Clientes Particulares Select” – podendo a conta ser titulada por esses clientes ou pelos seus filhos.
Se este documento não permite concluir que a conta era titulada apenas pelo menor, intervindo os seus pais como meros representantes legais, também não retiramos qualquer esclarecimento da relação de bens elaborada na sequência do divórcio, tanto mais que ali não se relaciona qualquer depósito bancário – e os autos revelam que as partes eram titulares de outras contas – podendo tal omissão justificar-se pelas mais variadas razões, nomeadamente porque consideravam os valores ali depositados como bens próprios ou não comuns.
De concreto, o que subsiste é a alegação constante do art. 17.º da petição inicial, expressamente aceite na contestação: “A conta criada e titulada pelo (…) era também titulada pela A. e pelo R.”
Como matéria assente que é, importa inseri-la no elenco fáctico, no uso dos poderes concedidos à Relação pelo art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, importando a parcial alteração do ponto 4 do elenco de factos provados, eliminando também o advérbio “conjuntamente” ali utilizado, que aponta para outra realidade bancária – as “contas conjuntas”, cuja movimentação obriga à intervenção de todos os titulares, ao contrário das “contas solidárias”, que permitem a movimentação isoladamente por qualquer dos seus titulares, sendo que ninguém alegou a realidade fáctica subjacente à configuração da conta naquela primeira categoria (bem pelo contrário, os movimentos efectuados pelo R., em 22.03.2016, e pela A., em 29 seguinte, revelam que a conta era movimentada por eles isoladamente, sem necessidade de autorização dos restantes).
Assim, o aludido ponto 4 passará a ter a seguinte redacção: “Durante a vigência do matrimónio, foi criada uma conta bancária, titulada pelo (…) e também titulada pela autora e pelo réu.”
*
Abordando agora a impugnação relativa aos pontos 6 e 9 do elenco de factos provados, pretende a Recorrente que se adite ao ponto 6 que as aplicações realizadas em 17.07.2014 tinham como único titular o menor, e quanto ao ponto 9, que a aplicação realizada em 05.06.2015 tinha “como único titular (…), e sendo as condições de movimentação as do Menor, destinando-se tal produto ao rendimento e à acumulação de poupanças.”
Segundo a Recorrente, tal matéria estaria demonstrada, quanto ao ponto 6, pelas Condições Particulares e Especiais e FIN relativas à aplicação de € 10.000,00 realizada em 17.07.2017 no produto “Poupança A Crescer + II”, e pelo boletim de subscrição relativo à aplicação de € 9.000,00 realizada na mesma data no produto “Depósito Valor Inovação”.
Ainda de acordo com a argumentação da Recorrente, quanto ao ponto 9, a matéria por si alegada estaria demonstrada pelas Condições Particulares e Especiais e FIN relativas à aplicação de € 20.000,00 realizada em 05.06.2015 no produto “Poupança A Crescer + IV”, juntas aos autos pelo ofício de 26.06.2019.
Pretende, basicamente, a Recorrente que se considere demonstrado que os referidos produtos financeiros tinham como único titular o menor, apenas podendo ser movimentadas pela A. e pelo R. na sua qualidade de legais representantes.
Os extractos bancários consolidados relativos à conta n.º (…) revelam que os supra referidos produtos financeiros foram constituídos em contas associadas àquela conta principal e dela dependentes, de tal modo que todos os movimentos relativos às referidas aplicações vêm reflectidos naqueles extractos. De igual modo, as Condições Particulares e Especiais desses produtos financeiros identificam o número daquela conta principal, reforçando esta conclusão.
Estando aquelas aplicações financeiras associadas à conta n.º (…), não resulta dos documentos invocados pela Recorrente que a titularidade, modalidade, forma e condições de movimentação sejam diversos da conta principal.
Em especial, no que respeita às aplicações “Poupança A Crescer + II” e “Poupança A Crescer + IV”, as respectivas Condições Particulares e Especiais estabelecem que se trata de contas de rendimento e poupança, na modalidade de depósitos à ordem, sendo aplicáveis as Condições Gerais que regulam as relações entre o Banco e todos os seus clientes decorrentes da abertura da conta de depósitos à ordem, em tudo o que não seja contrariado pelas Condições Particulares e Especiais – cláusula 1.ª n.ºs 1 e 2 de ambos os produtos. Quanto às regras de movimentação, poderiam ser movimentadas “a qualquer momento para levantamento de fundos, através de transferência bancária, via ATM, Netbanco, Banca Telefónica ou através de ordens ou instruções do Cliente dadas no Balcão”, e em caso de utilização parcial ou total do saldo, a importância utilizada ou o respectivo saldo seria transferida para a conta de depósito à ordem – cláusula 5.ª n.ºs 1 e 2. Finalmente, o saldo da conta poderia ser mobilizado (total ou parcialmente) a qualquer momento, sem penalização de juros – cláusula 6.ª.
A mera circunstância do menor vir identificado nas Condições Particulares e Especiais daqueles produtos, não permite concluir que ele era o seu único titular, na medida em que as condições de movimentação continuam a ser as da conta principal n.º (…), que de resto vem expressamente identificada naquele documento.
Tal é impressivo no produto “Poupança A Crescer + IV”, no valor de € 20.000,00, constituído em 05.06.2015, cujo valor foi movimentado em metade pelo R. em 22.03.2016, e a outra metade movimentada pela A. em 29.03.2016 (que nessa data também movimentou a quantia de € 10.000,00 existente no produto “Poupança A Crescer + II”, constituído em 17.07.2014). Nas Condições Particulares e Especiais e na FIN estipula-se que o montante máximo de subscrição é de € 10.000,00 (por Cliente), e que valores superiores a esse montante não serão remunerados. Visto que este produto foi subscrito pelo valor de € 20.000,00, torna-se evidente que o mesmo não poderia ter como titular um único Cliente.
Logo, ao contrário do que pretende a Recorrente, não está demonstrado que apenas o menor era o titular dos supra mencionados produtos, ou que apenas ele (através dos seus legais representantes) os poderia movimentar, pelo que improcede a arguição da Recorrente no sentido dos mencionados produtos terem apenas como único titular o menor (…).
No art. 13.º da petição inicial a Recorrente alegou que o produto “Poupança A Crescer + IV” se destinava ao rendimento e à acumulação de poupança para o futuro do menor, e é nessa sequência que impugna o ponto 9 do elenco de factos provados. Porém, não demonstrado que o referido produto, como os demais, fosse unicamente titulado pelo menor, também esta parte da impugnação necessariamente improcede.
*
Nas alíneas a), b) e c), a sentença recorrida declarou não provado que: “Autora e réu decidiram que na conta referida em 4) seriam depositados valores que a ele seriam exclusivamente destinados”; “A Autora e Réu decidiram constituir a conta bancária em nome do (…) com o intuito de nela acumular rendimento e poupança para o futuro do menor, e de modo a que este, aquando da sua maioridade, tivesse aforro suficiente para o início da sua vida, sem ajuda dos progenitores”; “Mais se comprometeram autora e réu que o dinheiro existente na conta titulada pelo (…) apenas seria para usufruto deste para o período posterior à sua maioridade e somente seria levantado antes em caso de absoluta urgência ocorrida na vida do menor, sendo que todos os custos e encargos decorrentes do crescimento e educação do menor ao longo do tempo seriam suportados por autora e réu, sem que tivessem que recorrer àquela conta.”
Sustenta a Recorrente que esta matéria deveria ser considerada provada, porquanto estaria demonstrada pelos depoimentos de (…), (…), (…) e (…), e pelos documentos associados à constituição dos produtos financeiros supra mencionados.
Porém, para além das referidas testemunhas não terem conhecimento directo das condições concretas em que foram constituídos os referidos produtos – não assistiram à respectiva subscrição nem consultaram os documentos que os titulam – apenas foram capazes de relatar conjecturas acerca do propósito das partes, e mesmo os relatos das conversas que as duas primeiras testemunhas tiveram com o R. são meras interpretações do diálogo ocorrido, já em clima de conflito motivado pelo divórcio.
De todo o modo, a circunstância da conta não ser titulada apenas pelo menor, mas também titulada pela A. e pelo R. – facto este alegado logo na petição inicial e expressamente aceite na contestação – desde logo prejudica a conclusão da referida conta ser destinada apenas ao depósito de valores exclusivamente destinados ao menor, matéria de resto desconhecida pelas testemunhas inquiridas, que a respeito deste assunto apenas puderam tecer considerações gerais ou meras conjecturas acerca das intenções das partes.
De igual modo, ninguém sabia se o propósito das partes foi no sentido dos valores depositados na aludida conta constituírem mera acumulação de rendimento e poupança para a maioridade do menor, apenas podendo ser levantados antes em caso de absoluta urgência, ou ainda que os encargos associados ao crescimento e educação do menor seriam suportados sem recurso àquela conta.
De resto, a constituição de produtos financeiros que são meras modalidades de depósitos à ordem e que permitem a movimentação, total ou parcial, a qualquer momento e sem penalização de juros – casos dos produtos “Poupança A Crescer + II” e “Poupança A Crescer + IV” – e por mera transferência bancária, via ATM, Netbanco, Banca Telefónica ou ordens dadas ao balcão, permite concluir que se tratava de aplicações com perspectiva de movimentação não demasiada alongada, pouco consentânea com uma perspectiva de manutenção até aos 18 anos de idade do menor.
Mesmo o “Depósito Valor Inovação”, realizado em 17.07.2014 pelo valor de € 9.000,00, apesar de não poder ser mobilizado antecipadamente, tinha uma data de vencimento a 30.08.2017, altura em que o Guilherme tinha menos de quatro anos de idade, o que também não se mostra coerente com a alegação dessa aplicação se destinar apenas à sua maioridade.
Improcede, também, esta parte da impugnação da matéria de facto.
*
Finalmente, argumenta a Recorrente que deveria estar provado que “O réu procedeu ao levantamento referido em 11) sem que previamente tivesse consultado a autora ou obtido o seu consentimento.”
Se é certo que nessa data a A. se encontrava em Angola – o bilhete junto à petição inicial titula o voo para Luanda a 20.03.2016, com regresso a 12.04.2016 – haverá a notar que, para além de não estar demonstrado que o R. carecia de autorização ou consentimento da A. para movimentar a conta, também a irmã da A., a testemunha (…), apenas relatou que ela lhe telefonou a queixar-se do R. ter movimentado a conta, o que apenas por si não demonstra que o R. não tivesse consultado previamente a A. acerca da sua necessidade ou intenção de levantar, em 22.03.2016, o montante de € 10.000,00 – a A. poderia ter sido consultada e ter discordado, e mesmo assim o R. ter procedido à operação, motivo pelo qual também aqui improcede a impugnação.
*
Em resumo, improcede a impugnação fáctica deduzida, mas no uso dos poderes conferidos pelo art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil determina-se que o ponto 4 do elenco fáctico passe a ter a seguinte redacção: “Durante a vigência do matrimónio, foi criada uma conta bancária, titulada pelo (…) e também titulada pela autora e pelo réu.”

O relevo factual fica assim estabelecido:
1. A autora e o réu foram casados desde 12 de Abril de 2013 até 12 de Fevereiro de 2016, data em que foi decretado o divórcio entre ambos.
2. Da referida relação nasceu, a 18 de Fevereiro de 2014, (…).
3. Aquando do divórcio, (…) foi sujeito a guarda e exercício conjunto do poder parental por autora e réu.
4. Durante a vigência do matrimónio, foi criada uma conta bancária, titulada pelo (…) e também titulada pela autora e pelo réu.
5. Assim, a 15 de Julho de 2014 foi ordenada uma transferência da conta n.º (…) do Banco (…), titulada pela autora no valor de € 22.000,00, para a conta com o NIB (…), conta criada em nome do (…).
6. Por sua vez, na conta aberta em nome do (…), foram criadas duas aplicações: uma no valor de € 10.000,00, denominada “Poupança A Crescer + II”, e outra no valor de € 9.000,00, denominada “Depósito Valor Inovação”, ambas a 17 de Julho de 2014.
7. Os restantes € 1.000,00 da transferência ficaram depositados na conta principal titulada pelo (…) com o NIB (…) e sem que fossem afectos a qualquer aplicação.
8. Em 5 de Junho de 2015, o réu transferiu para mencionada conta o valor de € 20.000,00, na sequência do recebimento de uma indemnização pelo falecimento da respectiva progenitora.
9. Aquele valor foi aplicado no produto sob a designação “Poupança A Crescer + IV”, naquela mesma data.
10. As contas da autora eram tituladas pelo réu e as contas do réu eram tituladas pela autora, titulação que efectuaram depois do casamento.
11. Em 22 de Março de 2016, o réu retirou da conta criada em nome do (…) a quantia de € 10.000,00 e transferiu para conta por si titulada, também no Banco (…), n.º (…).
12. A autora a 29 de Março de 2016 transferiu da conta do (…) para a sua conta, também no Banco (…), n.º (…), a quantia de € 20.000,00.
13. No dia 28 de Março de 2016 a autora retirou da conta titulada do réu a quantia de € 5.000,00.
14. Em 4 de Abril de 2016, a autora transferiu e repôs os € 5.000,00 ao réu.
15. Como a 19 de Abril de 2016, o réu continuava sem devolver os valores para a conta do (…), a autora retirou da conta titulada pelo réu a quantia de € 2.800,00.
16. Em acto contínuo, no dia 19 de Abril de 2016, o réu, que também ainda mantinha acesso à conta da autora, retirou desta para uma conta por si titulada e à qual a autora não tinha acesso, a quantia de € 12.800,00.
17. Questionado sobre a razão de tal movimento bancário referido em 11), o réu informou a autora de que carecia daquele valor para efectuar obras na casa onde estava a habitar.
18. Pelo menos, desde 30 de Maio de 2016, que a autora solicitou ao réu a restituição dos valores retirados da conta referida em 4) e 5).

Aplicando o Direito.
Da propriedade de dinheiro depositado em conta bancária solidária e do animus donandi
O conjunto dos factos reproduzidos nos pontos 4, 11 e 12 (relativos à titularidade da conta e aos movimentos unilateralmente realizados pelo R. e pela A. em 22 e em 29.03.2016), revela que a conta n.º (…), titulada pelo menor e também titulada pela A. e pelo R., era uma conta solidária, caracterizada pela faculdade de cada um dos seus titulares a poder movimentar, parcial ou totalmente, independentemente da propriedade dos valores nela depositados.[3]
No entanto, a titularidade da conta não predetermina a propriedade dos valores depositados, que podem pertencer apenas a algum dos seus titulares ou até a terceiro. As questões de titularidade da conta bancária e de propriedade dos valores nela depositadas são distintas, porquanto a faculdade de mobilizar os fundos depositados na conta não pré-determina a propriedade dos activos contidos na mesma.[4]
Pretende a A. a devolução da quantia de € 20.000,00, que o R. transferiu para a conta n.º (…) em 05.06.2015, argumentando que se tratou de uma doação ao menor (…) e que assim constituiria sua propriedade exclusiva, não podendo ser movimentada sem autorização judicial, nos termos do art. 1889.º, n.º 1, al. a), do Código Civil.
No entanto, competiria à A. demonstrar o animus donandi de tal quantia, facto que a primeira instância considerou não demonstrado e a levou a determinar a improcedência da causa.
Está demonstrado que a referida quantia teve a sua origem numa indemnização recebida pelo R. na sequência do falecimento da respectiva progenitora – as testemunhas inquiridas reconheceram unanimemente esse facto e que a indemnização foi atribuída após processo judicial que durou algumas décadas (inclusive, a testemunha …, avó materna do R., referiu que a sua filha faleceu quando o seu neto tinha apenas dois anos de idade e teve ela de o criar, enquanto o processo era tramitado em várias instâncias judiciais).
Apesar da A. e do R. terem sido casados de 12.04.2013 até 12.02.2016 (a acta da conferência de divórcio e o título de partilha do património conjugal, anexos à petição inicial e não impugnados, referem que eram casados no regime da comunhão de adquiridos), a referida indemnização não constituiu bem comum, por ter sido adquirida pelo R. por virtude de direito próprio anterior – art. 1722.º, n.º 1, al. c), do Código Civil – e daí que o montante relativo a essa indemnização não tenha sido incluído na relação de bens e partilha do património conjugal realizada na sequência do divórcio.
Poderia configurar-se a transferência ocorrida em 05.06.2015 como um caso de doação de coisa móvel, acaso se demonstrasse que o R., em espírito de liberalidade e à custa do seu património, tinha decidido dispor gratuitamente do seu dinheiro – no caso, € 20.000,00 – em benefício exclusivo do seu filho (…). Tal atribuição patrimonial, sem qualquer contraprestação, teria a aptidão para manifestar o intuito de proceder a uma liberalidade a favor do donatário menor, e configuraria animus donandi, válido para os fins do art. 940.º, n.º 1, do Código Civil.[5]
No entanto, os factos demonstram que a transferência foi efectuada para uma conta bancária da qual o R. também era titular, mantendo o seu domínio sobre a dita conta, a título pessoal e não apenas como mero representante do seu filho menor, mantendo a possibilidade de a movimentar, em termos idênticos, aliás, aos da A., que igualmente era titular da conta e a movimentou unilateralmente, em 29.03.2016.
Nestas circunstâncias, mantendo o R. o seu domínio sobre a quantia de € 20.000,00, não se pode concluir que esta tenha sido doada ao menor, ou sequer que existisse tal intenção. Os autos demonstram, apenas, a mera constituição de uma conta de rendimento e poupança, mas na modalidade de depósito à ordem, permitindo a sua mobilização, parcial ou total, a todo o tempo e sem penalização de juros, e por qualquer dos titulares da conta, o que é incompatível com o intuito de atribuição exclusiva ao menor (…) do referido montante, como bem se concluiu na sentença recorrida.
Com efeito, a existência de uma conta bancária solidária, caracterizada pela faculdade de poder ser livremente movimentada por qualquer titular, não implica que tenha havido tradição dos valores depositados entre os contitulares. Como já se escreveu no Supremo, “importa apurar se foi intenção do titular que depositou o dinheiro que este passasse a ser propriedade do contitular, podendo dele dispor como entendesse.”[6]
Não tendo a A. logrado essa prova, a apelação improcede.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 30 de Janeiro de 2020
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

_________________________________________________
[1] Cfr. os Acórdãos da Relação de Guimarães de 04.02.2016 (Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1), e do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016 (Proc. 1572/12.2TBABT.E1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2015 (Proc. 219/11.9TVLSB.L1.S1), sempre na mesma base de dados.
[3] Cfr., a propósito, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04.06.2013 (Proc. 226/11.1TVLSB.L1.S1), de 24.03.2017 (Proc. 1769/12.5TBCTX.E1.S1) e de 15.11.2017 (Proc. 879/14.9TBSSB.E1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Para além da jurisprudência citada na nota anterior, vide ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.10.2004 (Proc. 04A3101) e de 15.03.2012 (Proc. 492/07.TBTNV.C2.S1), e ainda da Relação de Guimarães de 07.04.2016 (Proc. 1171/09.6TBPTL-A.G1), igualmente na mesma base de dados.
[5] Vide, a propósito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.05.2017 (Proc. 1695/12.8TBMTJ.L1.S1), sempre em www.dgsi.pt.
[6] Em Acórdão de 25.06.2015 (Proc. 26118/10.3T2SNT.L1.S1), publicado no mesmo local.