Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
42/11.0IDFAR-B.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: PENA DE MULTA
PRESCRIÇÃO DA PENA
PAGAMENTO
RESTITUIÇÃO
Data do Acordão: 11/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Deve ser devolvido ao arguido o montante que depositou nos autos de execução, por conta e em reporte ao pagamento parcial de pena de multa em que havia sido condenado, pena que, ao tempo do pagamento, se encontrava já prescrita.
(Sumário do relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 42/11.0IDFAR-B.E1


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

1 – Nos autos de processo comum em referência, o arguido, BB, foi condenado, pela prática de um crime de fraude fiscal, previsto e punível nos termos do disposto no artigo 103.º n.º 1 alínea b) do Regime Geral da Infracções Tributárias, na pena de 140 dias de multa, à razão diária de 4 euros, o que perfaz a pena de 560 euros de multa.

2 – Em decorrência do não pagamento pelo arguido da multa em questão, o Ministério Público instaurou a pertinente execução, no decurso da qual [precedendo requerimento para pagamento da multa em 3 prestações, e eventual (não certificado neste apenso, despacho de deferimento)], no dia 21 de Outubro de 2016, o arguido efectuou o depósito de 250 euros para pagamento parcial da multa.

3 – O Ministério Público promoveu «que o valor que se encontra à ordem dos presentes autos de execução seja computado no valor da pena de multa em dívida».

4 – Por despacho de 6 de Dezembro de 2016, o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido, decidiu nos seguintes termos:
«O arguido foi condenado na pena de 140 dias de multa por sentença de fls. 194 s., que transitou em julgado a 16/04/2012.
Nos termos do art. 122.º n.º 1 al. D) do Código Penal (CP), as penas de multa prescrevem no prazo de quatro anos.
No caso vertente não se vislumbra qualquer causa de suspensão ou de interrupção do prazo de prescrição da pena (arts. 125.º e 126.º do CP).
Assim sendo, de concluir pois que o prazo de prescrição da pena se iniciou no dia 16/04/2012 (art. 122.º n.º 2 do CP), tendo-se completado quatro anos depois, em 16/04/206.
Pelo exposto, declaro extinta, por prescrição, a pena de 140 dias de multa, a que foi condenado nestes autos o arguido BB.
[…]
Uma vez que o pagamento de fls. 28 dos autos apensos foi realizado em 21/10/2016, já após a prescrição da pena (embora ainda não declarada à data), não pode tal pagamento imputar-se no cumprimento da multa penal.
Restitua-se pois tal importância, sem prejuízo do art. 34.º do RCP.
[…]

5 – A Ex.ma Magistrada do Ministério Público em primeira instância interpôs recurso deste despacho, no segmento que ordena a restituição do pagamento documentado a fls. 28.
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcritas na parcela não descritiva):
«[…] 8. Contudo, somos do entendimento, que apesar da multa penal já se encontrar prescrita, mas ainda não declarada, tendo este [arguido] efectuado voluntariamente e de forma espontânea um pagamento parcial, tal quantia não lhe deverá ser restituída mas antes computada no valor da multa penal:
9. Para o efeito, teremos de nos socorrer dos contextos civilísticos, para integrar a situação.
10. A nosso ver, trata-se de uma obrigação natural, cujo pagamento parcial foi voluntário e espontâneo, que na sequência do decurso do prazo prescricional, simplesmente, deixa de poder ser legalmente exigível e cobrada;
11. Consequentemente, não deverá haver lugar à repetição da prestação, devolução ou “repetição do indevido”, exactamente porque corresponde ao cumprimento de uma obrigação natural, cfr. Art. 304.º n.º 2 e 403 do Cód. Civil;
12. Por outro lado, não há um enriquecimento sem causa, pois que não estão os requisitos legais para a sua verificação;
13. Ademais, não obstante o interesse punitivo do Estado ter diminuído em face do hiato temporal decorrido, o facto é que o arguido sabia que foi condenado pela prática de uma conduta ilícita, violadora das normas sociais, ressarcindo dste modo a violação por este cometida e tempestivamente punida ainda que não integralmente cobrada nem convertida;
14. Isto corresponde mais ainda a um dever de justiça embora não possa já ser judicialmente exigível;
15. Pelo que, deverá tal decisão ser revogada e substituída por outra que determine que a quantia entregue seja computada na multa penal em que o arguido havia sido condenado e reverta a favor dos cofres do Estado.»

6 – O recurso foi admitido, por despacho de 8 de Fevereiro de 2017.

7 – Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta é de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente.
Pondera, doutamente e em resumo, (i) que «a prescrição da pena é um pressuposto negativo da punição que implica que a sanção não pode ser executada», (ii) «no momento do pagamento já não havia lugar ao cumprimento da pena de multa e, em consequência, ao pagamento parcial que foi levado a cabo pelo arguido», (iii) «a prescrição opera ope legis não dependendo a respectiva eficácia de despacho judicial a declará-la».

8 – O objecto do recurso reporta a saber se o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido incorreu em erro de jure, do passo que foi de decidir que o montante depositado pelo arguido, em pagamento parcial de pena de multa já prescrita não devia ser computado na dívida pré-existente, antes devendo ser-lhe restituído.
II

9 – Como decorre do iter processual acima editado, o arguido efectuou um depósito nos autos de execução, por conta e em reporte ao pagamento parcial de pena de multa em que havia sido condenado, pena que, ao tempo do pagamento, se encontrava já prescrita.

10 – Como sublinha a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, e sem quebra de respeito pelo esforço argumentativo da Dg.ª recorrente, a questão não se reconduz à obrigação civilística de restituir, em cuja sede devem ser tratados o enriquecimento sem causa e a repetição do indevido (cfr. artigos 403.º, 404.º, 430.º e 476.º, do Código Civil, e vd, a respeito, por mais recente, Ana Prata, em «Código Civil, Anotado», Volume I, Almedina, 2017, pp. 498, 554 e 616/617), antes devendo ser enquadrada, em sede de direito penal, na estrutura, ampla e constitucionalizada, do princípio da legalidade prevenido, maxime, no artigo 1.º, do Código Penal, em particular por referência à natureza jurídica e aos efeitos da prescrição penal – artigos 118.º s. (122.º), do Código Penal.

11 – Vejam-se, neste particular, com particular relevo, François Ost, em «Le Temps du Droit», Editions Odile Jacob, 1999, pp. 140 s., (adiante publicada como «O Tempo do Direito», Instituto Piaget, 2001), Jorge de Figueiredo Dias, em «Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime», Editorial Notícias, 1993, pp. 684 s. (702/703), e Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, em «Código Penal – Anotado», Rei dos Livros, Volume II, 4.ª edição, 2015, pp. 592 s. e 633 s.

12 – Como sublinha o Professor Figueiredo Dias (ob. cit., p. 702, § 1130), «a prescrição da pena cria um obstáculo à sua execução […] e ganha, nesta medida, o carácter de um autêntico pressuposto negativo ou de um obstáculo de realização (execução) processual», adiantando que «a prescrição se funda, na verdade, em que o decurso do tempo tornou a execução da pena sem sentido e, por aí, o facto deixou de carecer de punição».

13 – Assim, no caso, se «o decurso do tempo tornou a execução da pena sem sentido» e se «o facto deixou de carecer de punição», mal se entenderia que o arguido suportasse, mesmo que só em parte, a pena de que, pelo decurso do tempo, o Estado fez olvido, como se repristinando o poder punitivo a que renunciara.

14 – Assim, atento que a prescrição opera ope legis, não carecendo pois de declaração validatória, e não se encontrando razão para a pretextada aspiração, a favor do Estado, do montante que o arguido depositou, ex abundanti, nos autos de execução, a quantia em referência não pode deixar de lhe ser devolvida, como ademais determinou o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido, em decisão que, pela razões expostas, não merece suprimento ou reparo.

15 – Em síntese conclusiva: deve ser devolvido ao arguido o montante que depositou nos autos de execução, por conta e em reporte ao pagamento parcial de pena de multa em que havia sido condenado, pena que, ao tempo do pagamento, se encontrava já prescrita.

16 – Não cabe tributação – artigo 522.º, do Código de Processo Penal.
III

17 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.

Évora, 21 de Novembro de 2017
António Manuel Clemente Lima (relator)
Alberto João Borges (adjunto)