Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3014/24.1T8STR-C.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: ACORDO NÃO HOMOLOGADO
RECUPERAÇÃO DE EMPRESA
CREDOR SOCIAL
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Verifica-se uma abissal e injustificada diferença de tratamento entre o crédito garantido e os créditos comuns, bancários e não bancários, violadora do princípio da igualdade dos credores (artigo 194.º do CIRE).
2 – Tal violação subsistiria ainda que fosse previsível que os credores comuns, desproporcionalmente penalizados no acordo cuja homologação a recorrente pretende, o fossem ainda mais num hipotético cenário de liquidação.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3014/24.1T8STR-C.E1

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(…) – (…) de Cereais, S.A., requereu, nos termos do artigo 17.º-I do CIRE, a homologação de um acordo extrajudicial de recuperação de empresa, por si celebrado com (…) e (…), contitulares de um direito de crédito contra si.

Os credores Caixa Geral de Depósitos, S.A., e Still, SAL – Sucursal em Portugal, opuseram-se à homologação do acordo.

Foi proferida sentença, que recusou a homologação do acordo.

A requerente interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) O acordo extrajudicial de recuperação foi validamente apresentado ao abrigo do artigo 17.º-I do CIRE e cumpre as maiorias do artigo 17.º-F, n.º 5, alínea b), encontrando-se subscrito por credor detentor de 38,21% dos créditos com direito de voto.

B) Isto posto, o controlo jurisdicional subsequente deve incidir apenas sobre eventual violação não negligenciável de normas procedimentais ou materiais (artigos 194.º e 215.º CIRE), respeitando a autonomia colectiva dos credores que aprovaram o acordo.

C) S.m.o., o tribunal a quo errou na metodologia de apreciação, reduzindo a igualdade a uma leitura aritmética de percentagens de capital, quando a lei impõe um juízo material: classe e hierarquia dos créditos, garantias, valor temporal dos fluxos, remuneração e perdões.

D) Com efeito, o princípio da igualdade consagrado no artigo 194.º/1, do CIRE é mitigado: proíbe diferenciações arbitrárias, admitindo diferenciações justificadas por razões objectivas.

E) E, de facto, existem razões objectivas expressas no acordo para a diferenciação entre classes: (i) classificação e hierarquia do artigo 47.º CIRE (garantido vs. comuns); (ii) extensão das garantias reais sobre o imobiliário operacional; (iii) peso do credor garantido no passivo; (iv) função económica do financiamento bancário/financeiro para o fundo de maneio.

F) Nos termos do acordo aprovado, o credor garantido aceita um perdão integral de juros vencidos e vincendos (apurados, na presente data, em € 377.103,20), recebe apenas após o trânsito em julgado e em 120 prestações, suportando custo temporal e redução do valor actual.

G) Por seu turno, os comuns bancários recebem 20% do crédito consolidado (capital e juros vencidos) em 120 prestações, com juros (Euribor 6M + 2%) e início no mês seguinte à homologação, o que eleva o valor económico dos fluxos face à percentagem nominal.

H) Finalmente, os credores comuns não bancários recebem 10% do capital sem juros, em 109 prestações, com início no mês seguinte ao trânsito, beneficiando ainda de cláusula de melhor fortuna e proibição de distribuição de dividendos até integral cumprimento.

I) Em valor económico presente, a distância entre tratamentos reduz-se substancialmente face à leitura puramente nominal, pela conjugação de juros, timings de início (homologação vs. trânsito) e número de prestações.

J) O acordo contém, assim, mecanismos de equilíbrio intercalasses (melhor fortuna pró-rata; proibição de dividendos) que reforçam a justiça material e protegem os credores durante a execução.

K) Como tal, a alegada violação do artigo 194.º/1 não se verifica: o tratamento é diferente porque as situações são diferentes e a diferenciação está fundada em critérios objetivos e necessários à exequibilidade do plano.

L) A finalidade legal de recuperação reclama soluções que maximizem a satisfação dos credores no tempo e preservem a empresa viável; essa finalidade legitima derrogações moderadas à igualdade formal quando proporcionais.

M) E o certo é que o teste de prognose demonstra que nenhum credor fica previsivelmente pior com o acordo do que ficaria na ausência dele.

N) Em liquidação, grande parte do activo encontra-se afectado a garantias; após satisfação de créditos legalmente preferentes, a satisfação dos comuns é residual, muito inferior aos 20% (bancários) e 10% (não bancários) previstos no acordo.

O) A comparação correcta não é «100% versus 20%/10%», mas antes «capital sem juros, diferido (garantido) vs. percentagens com ou sem juros e arranque antecipado (comuns)», o que evidencia proporcionalidade material.

P) É factual que a antecipação do início dos pagamentos aos bancários (logo após homologação) constitui compensação objectiva face ao diferimento do garantido (após trânsito).

Q) Por seu turno, a remuneração moderada (Euribor 6M + 2%) dos bancários equilibra o esforço exigido, sem asfixiar a tesouraria da devedora, contribuindo para a viabilidade do plano.

R) A cláusula de melhor fortuna garante que ganhos adicionais face ao plano beneficiam todas as classes, evitando assimetrias injustificadas durante a execução.

S) Finalmente, a proibição de distribuição de dividendos até integral cumprimento ancora o compromisso de afectação de recursos à satisfação dos credores.

T) A objecção de que «o plano não justifica» a diferenciação não procede: as razões constam do acordo e dos seus mapas.

U) A invocação de igualdade formal para nivelar tratamentos de credores em situações objectiva e funcionalmente distintas contraria o próprio artigo 194.º/1 e a jurisprudência que admite diferenciações justificadas.

V) O acordo promove a continuidade da empresa viável, preservando 19 postos de trabalho e a actividade industrial regional, objectivos com relevância pública que a jurisprudência reconhece como legítimos fundamentos de derrogação moderada.

X) Lamentavelmente, a decisão recorrida não pondera adequadamente o custo temporal para o garantido (início após trânsito) nem o perdão integral de juros, desconsiderando factores determinantes do valor presente.

Y) Mas é incontroverso que a solução do acordo maximiza a satisfação possível no horizonte de execução, quando comparada com a liquidação, e distribui os sacrifícios de forma coerente com a classe e o risco de cada crédito.

Z) O equilíbrio global do plano resulta de um trade-off transparente entre juros, prazos, início de pagamento e perdões, que assegura equidade intercalasses e exequibilidade.

AA) O enquadramento das posições dos credores alinha-se com a sua função económica (garantido com colateral operacional; bancários/financeiros como fornecedores de funding do giro; não bancários com menor risco sistémico), justificando tratamentos diferenciados.

BB) A coerência interna do plano cumpre os princípios do Título IX do CIRE, não se verificando qualquer violação não negligenciável das previstas no artigo 215.º.

CC) Pelo que, e com o devido respeito, a recusa de homologação assenta em premissas incompletas, centradas em percentagens nominais e descurando a análise económico-temporal que o CIRE impõe; por isso, não se sustenta.

Atento o teor destas conclusões, está em discussão a conformidade do acordo extrajudicial de recuperação de empresa apresentado pela recorrente com o princípio da igualdade dos credores.


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Os trechos do acordo com maior relevância para a decisão do recurso são os seguintes:

«(…)

A subida dos preços da matéria-prima levou, tendo em conta o peso imposto pelo cumprimento do Plano de Recuperação, a períodos de desequilíbrio financeiro e à verificação, pela primeira vez desde a homologação do Plano, de uma situação de incumprimento deste junto de alguns credores, situação que se começou a verificar no início do presente ano (2024).

Impõe-se, tendo em vista garantir a manutenção no giro comercial e a liquidação do passivo da Devedora, uma nova reestruturação do seu passivo.

(…)

O objectivo principal do presente Acordo é reestruturar o passivo da Devedora e criar condições de satisfação efectiva dos credores, deixando-os numa situação bem mais vantajosa do que aquela em que ficariam num cenário de liquidação.

O Acordo (…) tem como principal objectivo a manutenção da actividade da Devedora e o pagamento aos seus credores, em obediência ao Princípio de Igualdade Material de Credores constante do artigo 194.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Devedoras.

Com efeito, é convicção da administração da Devedora e dos Credores subscritores que a sua manutenção em actividade constitui meio idóneo à satisfação dos interesses dos Credores, em condições mais vantajosas do que aquelas que seriam de supor num cenário alternativo, em que não se concede, de insolvência e liquidação.

(…)

Em suma, podemos concluir que a presente proposta de Plano tem como objectivo a recuperação económica e financeira da Devedora através da reestruturação do seu passivo, permitindo a sua manutenção em actividade.

(…)

5.1. Créditos garantidos

- Perdão de juros vencidos e vincendos;

- Pagamento do capital em dívida em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas;

- Início no mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do presente acordo.

5.2. Créditos comuns bancários

O pagamento dos créditos comuns bancários será feito nos termos constantes da seguinte ficha técnica:
Créditos reconhecidos
LC Asset 2 S.á.r.l.; Caixa Geral de Depósitos; BPI S.A.; Banco BIC S.A.; Caixa Económica Montepio Geral; Banco Português de Investimento S.A.

Modificação do crédito [alínea a) do n.º 2 do artigo 212.º do CIRE]

Consolidação do capital e juros vencidos à data da publicação da lista definitiva de créditos.

Financiamento de longo prazo (dívida a ser regularizada pelo PER)

Capital: Reembolso de 20% do valor do crédito consolidado e reconhecido;

Prazo de reembolso: 120 meses (início no mês seguinte ao da data da homologação do Acordo);

Taxa de juro: EURIBOR 6 M + Spread 2% [sendo que em qualquer circunstância, designadamente se o valor do indexante for negativo, este considera-se como zero (floor zero) e a taxa de juro nominal anual aplicável nunca será inferior ao valor do spread];

Reembolso de capital e pagamento de juros: 120 prestações mensais, iguais e sucessivas.


Contratualização

A definir.
5.3. Créditos comuns não bancários

- Perdão de juros vencidos e vincendos;

- Perdão de 90% do capital em dívida;

- Pagamento do valor em dívida em 108 prestações mensais, iguais e sucessivas;

- Início no mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do presente Acordo.

A diferenciação objectiva existente entre os créditos comuns bancários/financeiros e não bancários – nomeadamente no que toca à diferença, ainda que reduzida, do perdão imposto – é justificada, fundamentalmente, pela eventual necessidade que a Devedora venha a ter no sentido de obter financiamentos bancários de curto prazo, com o objectivo de suprir, a espaços, necessidades de fundo de maneio e caixa, garantindo a alavancagem da actividade em termos que permitam o cumprimento do presente Acordo.

Esta diferenciação encontra ainda justificação na própria estrutura do passivo da Devedora, com os credores comuns bancários/financeiros a corresponderem a mais de 33,92% do total do passivo relacionado, praticamente o dobro relativamente aos credores comuns não bancários.

Por último, (…) esta diferenciação não coloca, ainda assim, nenhum credor numa situação mais desvantajosa do que aquela que resultaria da ausência do presente Acordo.

(…)

Caso se verifique que a Devedora se encontra em melhor situação económica do que a prevista no presente Acordo e sem prejuízo da não descapitalização da sociedade que torne impossível o integral cumprimento do presente Acordo e, assim, a Recuperação projectada, será equacionada a antecipação total ou parcial dos pagamentos parciais previstos no presente Acordo, sempre com respeito pelos limites máximos previstos no presente Acordo, rateado pelos credores, sem prejuízo da preferência dos novos credores (»melhor fortuna»).

Enquanto não forem liquidados a totalidade dos créditos reconhecidos no presente Processo não haverá qualquer distribuição de dividendos aos accionistas da Empresa.

(…)»

A argumentação vertida na sentença recorrida resume-se assim:

«(…) a manifesta discrepância conferida ao único credor garantido (e subscritor do acordo) e aos demais credores comuns, bancários e não bancários, não se mostra justificada no plano apresentado. Com efeito, no plano não é apresentada pela devedora qualquer justificação para o tratamento diferenciado entre o credor garantido e os demais credores comuns, bancários e não bancários, sendo totalmente omisso quanto às razões que justificam tal diferenciação.

Não constam do plano quaisquer razões objectivas que justifiquem que os credores comuns bancários recebam apenas 20% do capital e juros vencidos e que os credores comuns não bancários recebam apenas 90% do capital, por contraponto com o único crédito garantido que receberá a totalidade do capital (ainda que com perdão dos juros).

(…) o crédito do credor garantido representa 38,21% do total dos créditos reconhecidos, à excepção do credor privilegiado (trabalhador), da AT e da SS), cujos créditos assumem reduzida expressão no universo de créditos reconhecidos, é o único que verá ser pago totalmente o seu crédito, a título de capital.

Em conclusão, o acordo extrajudicial de recuperação apresentado pela devedora viola, de forma manifesta, o princípio da igualdade entre credores previsto no artigo 194.º do CIRE, o que constituiu violação não negligenciável relativa ao seu conteúdo, o que impõe a recusa da sua homologação nos termos do artigo 215.º do CIRE.»

Analisemos a questão acima enunciada.

Este processo iniciou-se mediante a apresentação, pela recorrente, de um acordo extrajudicial de recuperação de empresa, por si celebrado com os contitulares do único direito de crédito garantido, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 17.º-I do CIRE (diploma ao qual pertencem todas as disposições legais adiante referenciadas). A recorrente pretende a homologação judicial desse acordo, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo.

O n.º 4 do artigo 17.º-I determina a aplicabilidade, com as necessárias adaptações, das regras previstas no n.º 7 e nos n.ºs 9 a 14 do artigo 17.º-F e no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º.

Interessa-nos, em particular, o disposto no artigo 194.º. Decorre do seu n.º 1, devidamente adaptado ao processo previsto no artigo 17.º-I do CIRE, que o acordo extrajudicial de recuperação de empresa deverá obedecer ao princípio da igualdade dos credores, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas. Estamos perante uma cláusula geral, que teremos de aplicar tendo em consideração as particularidades do caso concreto.

É abissal a diferença de tratamento dada, no acordo apresentado pela recorrente, ao crédito garantido, por um lado, e aos créditos comuns, bancários e não bancários, por outro. Quando ao primeiro, apenas se prevê o perdão dos juros vencidos e vincendos, ficando integralmente salvaguardado o capital. Relativamente aos segundos, prevê-se o perdão da quase totalidade do capital: 80% para os créditos bancários e 90% para os créditos não bancários. Para os créditos bancários, prevê-se o pagamento de juros sobre o remanescente do capital. Os juros, vencidos e vincendos, dos créditos não bancários, são perdoados. Em todos os casos, prevê-se o pagamento fraccionado.

Em qualquer hipótese, tal diferença de tratamento teria de ser justificada no acordo. Tratando-se de uma diferença tão vincada, maior era a necessidade de uma sólida fundamentação. Porém, como bem salienta a sentença recorrida, o acordo não contém qualquer justificação para tal diferença de tratamento. É dada uma justificação para a diferença de tratamento entre os créditos comuns bancários e os créditos comuns não bancários, mas, no que concerne à, de longe, mais significativa diferença de tratamento, que é entre o crédito garantido e os créditos comuns, o acordo nada justifica.

Nas suas alegações, a recorrente afirma que tal justificação consta do acordo. Porém, os trechos que reproduz com essa finalidade não fundamentam a radical diferença de tratamento entre o crédito garantido e os créditos comuns, antes se limitando a tecer considerandos genéricos acerca dos objectivos visados pelo acordo na sua globalidade, bem como a salientar que, num cenário de liquidação, os credores comuns ainda ficariam mais penalizados, o que, como adiante veremos, constitui questão diversa. Em suma, o acordo não explicita a razão ou o conjunto de razões que levaram à salvaguarda da totalidade do capital do crédito garantido e, em contraponto, ao sacrifício da quase totalidade do capital dos créditos comuns.

Na realidade, aquilo que a recorrente faz é criar, ex novo, nas suas alegações, uma fundamentação para a diferença de tratamento entre o crédito garantido e os créditos comuns. Fundamentação essa que não convence.

Argumenta a recorrente que «a imposição de perdão de capital a credores comuns em face da não imposição de perdões de capital a um credor garantido não chega, per se, para se concluir pela violação do princípio da igualdade». Esta afirmação é correcta, mas passa ao lado do problema que temos em mãos, que decorre, não de uma mera «imposição de perdão de capital» aos credores comuns, mas sim da imposição da perda da quase totalidade do capital a estes credores, em flagrante contraste com a salvaguarda da totalidade do capital do crédito garantido. Perante uma discrepância com a magnitude da dos autos, aquela argumentação é inócua, por não tocar no essencial.

Argumenta a recorrente, por outro lado, que a discrepância de tratamento no que concerne à manutenção ou à perda de capital, em benefício dos contitulares do crédito garantido, é compensada pela previsão de tratamento mais favorável dos credores comuns em aspectos relacionados com o pagamento de juros e o prazo de reembolso. Contudo, estes últimos aspectos são insignificantes face à dimensão da diferença entre a salvaguarda da totalidade do capital do crédito garantido e a perda da quase totalidade do capital dos créditos comuns. O problema da compatibilidade do acordo com o princípio da igualdade dos credores subsiste.

Argumenta a recorrente, em terceiro lugar, que nenhum credor fica previsivelmente pior com o acordo do que ficaria num cenário de liquidação. Com este argumento, a recorrente procura misturar questões que são e devem permanecer distintas. O simples facto de nenhum credor ficar previsivelmente pior com um acordo extrajudicial de recuperação de empresa do que ficaria num cenário de liquidação desta não assegura o cumprimento do princípio da igualdade dos credores. Este princípio exprime uma relação entre credores e não uma relação entre a situação em que cada credor fica por efeito de um acordo e aquela em que ficaria num cenário de liquidação.

Argumenta a recorrente, finalmente, que o crédito garantido, resultante de um contrato de mútuo, concedido por um particular e de elevado montante (€ 1.575.580,00), «patenteia uma inusual disponibilidade para financiar a empresa, ao longo dos anos e, ainda, viabilizar a sua recuperação, participando no processo sub judice», estando, assim, justificada a diferenciação do seu tratamento face aos créditos comuns.

Também este argumento não convence.

Desde logo, a recorrente apela a factos que não foram considerados na sentença recorrida, sendo certo que o recurso não teve por objecto a base factual desta, nomeadamente visando a sua ampliação. Concretamente, carece de fundamento factual a afirmação de que a concessão do crédito garantido revela «uma inusual disponibilidade para financiar a empresa, ao longo dos anos». A disponibilidade para a concessão de crédito à recorrente, por diversas formas, inclusivamente a de financiamento directo ao desenvolvimento da sua actividade, é comum à generalidade dos credores, entre os quais se contam várias instituições de crédito. Mais, a concessão de financiamento sob a condição de a recorrente prestar garantias reais até demonstra uma menor disponibilidade para correr riscos por parte de quem o fez, em comparação com quem concedeu crédito sem exigir garantias dessa natureza.

A disponibilidade dos contitulares do crédito garantido para, assinando o acordo, viabilizarem a recuperação da recorrente, não pode justificar o tratamento privilegiado que lhes é dado naquele acordo. Por um lado, não está demonstrado que a disponibilidade para viabilizar a recuperação da recorrente não existisse da parte de outros credores, ainda que em termos mais equitativos. Por outro, a própria disponibilidade dos contitulares do crédito garantido para aquele efeito poderá ser explicada pela posição de desproporcionado privilégio em que o acordo os colocou face aos restantes credores. Manter-se-ia tal disponibilidade se os termos do acordo fossem mais equitativos?

No fundo, a recorrente pretende justificar o privilégio concedido aos contitulares do crédito garantido com um facto (a disponibilidade para celebrar o acordo) que, com toda a probabilidade, foi, ele próprio, determinado pela concessão desse mesmo privilégio, o que não faz sentido. Na realidade, o que isto indicia é que a concessão do referido privilégio constituiu uma contrapartida pela assinatura do acordo pelos contitulares do crédito garantido. A isso parece resumir-se a alegada disponibilidade inusual destes para a viabilização da recuperação da recorrente.

Concluindo, verifica-se uma enorme e injustificada diferença de tratamento entre, por um lado, os credores garantidos e, por outro, os credores comuns, bancários e não bancários, que tem de ser considerada violadora do princípio da igualdade dos credores, consagrado no artigo 194.º. Em face disso, o tribunal a quo decidiu bem ao recusar a homologação do acordo, devendo o recurso ser julgado improcedente.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.


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Sumário: (…)

27.11.2025

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Ana Margarida Leite (1ª adjunta)

Maria Isabel Calheiros (2ª adjunta)