Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
8777/16.5T8STB.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: CASINO
ACESSO
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A proibição de acesso consagrada no art.º 38.º/1 da Lei do jogo reveste a natureza de uma norma de protecção dos interesses de terceiro, criando no jogador que se auto-exclui a expectativa de que lhe será vedada, mesmo (e sobretudo) contra a sua vontade, a entrada nos casinos, e fazendo nascer para as concessionárias o correlativo dever de cumprir com a proibição, actuando os meios necessários ao exercício de um controlo eficaz.
II. Tendo o jogador auto-excluído acedido sem entrave ao casino explorado pela ré concessionária a quem havia sido comunicada a auto exclusão, verifica-se a prática, por esta, de acto ilícito por violação daquele normativo.
III. Age sem culpa a concessionária se o jogador auto-excluído actuou de forma concertada com a sua acompanhante de modo a evitar os mecanismos de controlo, encarregando esta das operações de levantamento de dinheiro e movimentação de fichas que implicariam a sua identificação, e fornecendo mesmo uma identidade falsa quando abordado pelo serviço de bar, tratando-se de casino onde não era de ninguém conhecido sendo que, no limite, por aplicação do disposto no artigo 570.º do CC, sempre eventual indemnização se deveria ter por excluída.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo 8777/16.5T8STB.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Juízo de Competência Genérica de Grândola – Juiz 2


I. Relatório
(…), residente na Rua Dr. (…), Lote 43, 1º-Dt.º, em Leiria, instaurou contra (…) – Investimentos Turísticos, Jogo e Lazer, SA, com sede na Alameda do (…), Marina de Tróia, Carvalhal, a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação da demandada no pagamento da quantia de € 8.500,00 (oito mil e quinhentos euros), acrescido de juros de mora contados desde a prática do facto até integral pagamento.
Em fundamento alegou, em síntese, sofrer de perturbação de jogo patológico de ansiedade generalizada, tendo por isso requerido a sua autoexclusão de acesso às salas de jogos de mesa, requerimento que veio a ser deferido por despacho datado de 28 de Fevereiro de 2014.
Mais alegou que no fim de semana de 12 de Setembro de 2014, não tendo conseguido resistir ao impulso, entrou no Casino de Tróia e aí jogou compulsivamente, no que despendeu a quantia de € 6.000,00. Uma vez que a proibição de acesso às salas de jogo havia sido devidamente comunicada à ré, concessionária do casino, que nada fez para evitar o ingresso do demandante, incorreu em responsabilidade civil, estando obrigada a indemnizá-lo pelos danos de natureza patrimonial e não patrimonial sofridos e que aqui reclama.
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Regularmente citada, a ré contestou e, tendo alegado que foi o próprio autor quem, com o auxílio da sua acompanhante, frustrou qualquer possibilidade de ser identificado, sendo certo que não era conhecido no casino, refutou que alguma culpa lhe possa ser assacada sendo que, em todo o caso, sempre se estaria em presença de um exercício abusivo do direito, pelo que a acção deve ser julgada improcedente.
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Dispensada a realização de audiência prévia foi proferido despacho saneador com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Teve lugar audiência de julgamento, no termo da qual a acção foi julgada improcedente, com a consequente absolvição da ré do pedido.
Inconformado, apelou o autor e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“1.ª O facto provado L deveria ser considerado não provado.
2.ª Os factos não provados 8 e 9 deveriam ser considerados provados.
3. ª O facto não provado 1 deveria ser considerado provado.
Os factos não provados 13 a 15 deveriam ser considerados provados.
4.ª Ao decidir que o casino R agiu sem culpa porque “ arredada está a possibilidade de a Ré solicitar aos seus clientes, nomeadamente ao Autor que se identifique para aceder às salas de jogo”.
5.ª Referindo ainda a douta sentença que “sendo por imperativo legal o acesso a tais salas configurado como livre, impor aos respectivos clientes a obrigação de se identificarem será considerado um acto ilícito/abusivo “.
6.ª A douta sentença violou os art.ºs 29.º, 36.º e 38.º da Lei do Jogo.
7.ª Acresce que a Lei 83/17, de 18.08, relativa ao branqueamento de capitais, tem concretas obrigações de identificação de jogadores para os casinos, conforme o art.º 76.º, que no n.º 1 estabelece que “os concessionários de exploração de jogo em casinos, a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º, identificam e verificam a identidade dos frequentadores e, sempre que aplicável, dos respetivos beneficiários efetivos, no momento da entrada dos frequentadores na sala de jogo ou quando os mesmos adquirirem ou trocarem fichas de jogo ou símbolos convencionais utilizáveis para jogar. “;pelo que também este normativo foi violado pela douta sentença.
8.ª A douta sentença deverá ser alterada, por outra que condene a sociedade Rda nos termos peticionados”.
Contra alegou a ré e, tendo suscitado nas alegações a inadmissibilidade do recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto, por incumprimento dos ónus prescritos no art.º 640.º do CPC, pugnou pela manutenção do julgado.
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Questão prévia
Conforme enunciado, a apelada defendeu nas contra alegações que o recurso, na parte em que impugna a decisão sobre a matéria de facto, deve ser rejeitado, acusando o recorrente de não ter especificado os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e ainda por ter incumprido o comando ínsito no n.º 2 do art.º 640.º do CPC ao omitir a identificação com exactidão das passagens da gravação em que funda o seu recurso.
No que respeita à primeira objecção não assiste claramente razão à recorrida, uma vez que, quer nas alegações de recurso, quer nas conclusões que a final formulou, o autor indicou com precisão que tem por erradamente julgados os pontos de facto constantes da al. L) dos factos assentes e 1, 8, 9 e 13 a 15 dos factos não provados, remanescendo a questão de saber se deu cumprimento a quanto impõe a al. b) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, conjugada com o n.º 2 do preceito.
O citado art.º 640.º impõe ao impugnante da matéria de facto, para além do mais que ali se enuncia, que especifique “Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (cfr. alínea b), acrescentando o n.º 2 que “No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”, tudo sob pena de rejeição.
No caso em apreço, resulta das alegações que o recorrente se escusou a apontar com exactidão as passagens da gravação dos testemunhos que invocou em abono da sua pretensão modificativa da decisão proferida, tendo-se limitado a referenciar os tempos dos respectivos início e termo, em conformidade com o que ficou a constar da acta de julgamento, o que não corresponde ao cumprimento rigoroso do aludido ónus. Não obstante, não deixou de proceder à transcrição das passagens em causa, o que vem sendo aceite pelo STJ como procedimento passível de suprir aquela omissão (cfr. acórdão do STJ de 18/6/2019, no processo 152/18.3 T8GRD.C1.S1, com recenseamento de outras decisões). Deste modo, e tendo presente que, tal como vem sendo igualmente defendido de forma consistente pelo mesmo STJ, a verificação do cumprimento dos ónus impostos pelo art.º 640.º há-de orientar-se, no que respeita a aspectos de ordem formal, por critérios de proporcionalidade e razoabilidade, conclui-se não existir fundamento para rejeitar o recurso, no que à impugnação da decisão da matéria de facto diz respeito.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, as questões colocadas pelo recorrente vinculam a decidir se ocorreu erro de julgamento quanto aos factos e também quanto à interpretação e aplicação das normas constantes dos art.ºs 29.º,36.º e 38.º da Lei do Jogo e art.º 76.º da Lei 83/17, de 18.08, devendo concluir-se pela responsabilização da ré/apelada e consequente condenação no pedido formulado.
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i. impugnação da matéria de facto
O apelante diz ter sido mal julgada a matéria constante da al. L) dos factos assentes, que, em seu entender, deveria ter sido considerada não provada por não ter sido produzida prova que a sustentasse; ao invés, pugna pela consideração como assentes dos factos vertidos nos n.ºs 1, 8, 9 e 13 a 15 dos factos não provados.
O facto vertido em L) tem a seguinte redacção:O Autor foi abordado pelo serviço de bar e identificou-se pelo nome de (…)”.
Insurge-se o recorrente com fundamento no facto de a Mm.ª juíza ter apelado aos testemunhos prestados por (…) e (…) para fundamentar a sua decisão, uma vez que, argumenta, “a concordância de[stes] testemunhos termina na oferta das bebidas”. Mas a objecção não tem qualquer razão de ser, uma vez que foi isso mesmo que a Mm.ª juíza fez consignar na motivação da decisão a propósito deste específico facto. Por outro lado, tendo aludido ainda aos depoimentos, tidos por altamente credíveis, prestados por (…) e (…), respectivamente o Director do casino e o Chefe de Sala, que se referiram à falsa identificação dada pelo recorrente, nada se diz no recurso em ordem a contrariar quanto por aqueles foi, a propósito, afirmado, inexistindo pois fundamento para a pretendida modificação.
Acrescenta-se finalmente que nada obstava a que a Mm.ª juíza tivesse dado como provado que o autor/recorrente deu uma identidade falsa, facto que emergiu da prova produzida e integra a previsão do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC.
Requer ainda o apelante a inversão do decidido no que respeita à matéria vertida nos pontos 1, 8, 9 e 13 a 15 dos factos não provados, que pretende terem resultado, todos eles, demonstrados, tendo indicado para prova dos primeiros a declaração emitida pelo psicólogo que acompanha o autor, situação aditiva que teria sido ainda confirmada pelas testemunhas (…) e (…), nas passagens que transcreveu.
Está em causa a seguinte factualidade:
1) O Autor sofre de perturbação de jogo patológico e de ansiedade generalizada.
8) E como “boa anfitriã” a Ré, querendo manter o conforto e o interesse do Autor no jogo, fazia ofertas de comida e bebidas, que iam toldando o discernimento do Autor.
9) E consequentemente diminuindo o seu autocontrolo, e a vontade de parar.
13) Pelo comportamento da Ré o Autor sentiu-se angustiado e viu-se a braços com mais uma recaída na sua adição,
14) Situação que o deixou sem dormir e preocupado com o facto de não conseguir fazer face às suas despesas.
15) Alem disso viu-se o Autor obrigado a reforçar as suas consultas de psicologia, sentindo-se deprimido e diminuído perante os seus amigos e familiares por mais uma vez ter falhado, sentindo-se deprimido e angustiado.
Começando por estes últimos factos, impõe-se liminarmente observar que as passagens dos testemunhos invocados em suporte da modificação do decidido são completamente omissos quanto a tais aspectos, dando inteira razão à Mm.ª juíza quando fez consignar que “Quanto aos factos reconduzidos a 13), 14), 15) e 16) não foi feita absolutamente nenhuma prova”.
No que concerne ao facto referido em 1, explicitou a Mm.ª juíza na motivação (na qual incluiu também o facto provado sob 2., aqui não impugnado), que “(…) pretendia o Autor com a declaração de seguimento terapêutico de fls. 6 provar a existência de uma patologia pré-existente e diagnosticada, que terá sido inclusive determinante no pedido de auto-exclusão que fez.
Sucede que tal documento foi impugnado e sobre o mesmo não foi feita qualquer prova. Fica assim à livre apreciação do tribunal. Ora, o documento não se encontra datado. (…), à data da companheira do Autor, declarou que “só mais tarde” o Autor começou a ter acompanhamento especializado. Além do mais, a própria (…) – ainda que neste segmento em concreto não nos tenha merecido grande credibilidade – declarou que não tinha conhecimento do pedido de auto-exclusão do Autor. É certo que tal afirmação não se nos afigurou muito credível, não só pela especial relação de proximidade existente entre o Autor e a testemunha – que afinal viveram em união de facto 10 anos – mas igualmente por alguma hesitação ou “baralhação” que a testemunha denotou, num depoimento que no demais se afigurou muito seguro. Instada a explicar por que razão não impediu o Autor de jogar ou por que razão não era o Autor a proceder aos levantamentos ou porque não alertou o pessoal do casino para o impedir de jogar, a sua explicação foi confusa e hesitante. Por um lado, afirmou se o casino tinha um papel e nada fazia, o que podia fazer a testemunha, para logo explicar que não sabia da auto-exclusão. Quanto às movimentações do dinheiro, justificou que era a própria a fazê-los porque “nunca tinha tido problemas com pagamentos” e era costume ser a testemunha a fazê-lo. Contudo, instada a explicar as transferências efectuadas das sociedades para a sua conta, isso já era com o Autor porque era ele que detinha os códigos, etc. Naturalmente, que as explicações da testemunha se afiguraram confusas e pouco credíveis nesta parte e nada consentâneas com as regras da normalidade social, tendo o tribunal ficado convicto que as movimentações de dinheiro a efectuar pela testemunha provinham de um acto deliberado e pré-organizado.
E neste conjunto de convicções, o Tribunal não ficou devidamente convencido da bondade do teor da declaração de fls. 6, razão pela qual considerou não provada a factualidade que alicerçava no mesmo (…)”.
Ora, sendo rigoroso quanto vem afirmado a propósito do valor probatório do documento apresentado pelo recorrente e que pretende agora fazer valer em ordem a obter a pretendida alteração, e considerando que nenhum elemento probatório foi oferecido que levasse este tribunal a contrariar o entendimento da 1.ª instância, não se vê razão para lhe atribuir valor probatório diverso. Acresce que ouvidos os testemunhos prestados pela então companheira do autor, a testemunha (…), e também pela amiga (…), que os acompanhou ao casino explorado pela Ré, para além das reservas que suscitaram, justamente notadas e com rigor apontadas na decisão recorrida em termos que merecem a nossa absoluta concordância, nada de concludente referiram -nem o recorrente de resto indicou quaisquer passagens com tal conteúdo- capaz de contrariar a decisão que incidiu sobre os pontos agora em apreciação, impondo-se, ao invés, a sua confirmação.
Improcede, pois, totalmente, por infundamentada, a impugnação que pelo apelante foi dirigida à decisão proferida sobre a matéria de facto.
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II. Fundamentação
De facto
É a seguinte a matéria de facto a atender, lógica e cronologicamente ordenada:
1. A Ré é concessionária da exploração dos jogos de fortuna ou azar na zona de jogo permanente de Tróia, desenvolvendo a sua actividade no Casino de Tróia, do qual é proprietária.
2. Por requerimento de 26 de Fevereiro de 2014 dirigido ao Director do Departamento de Planeamento e controlo da Actividade de Jogo – Turismo de Portugal, foi requerida a exclusão de acesso às salas de jogo de mesa do Autor.
3. O Autor pediu a sua autoexclusão em território nacional, o que veio a ser deferido por despacho de 28 de Fevereiro do ano de 2014.
4. O teor da tal decisão foi comunicado a todos os casinos do território nacional, no qual se inclui a Ré.
5. O Autor jogou no Casino de Tróia nos dias 12, 13 e 14 de Setembro.
6. A Ré não fez qualquer tipo de objecção à presença do Autor e nunca questionou a sua identidade ou capacidade para permanecer no casino.
7. O Autor não é e nunca foi cliente da Ré, não sendo conhecido dos seus funcionários.
8. O Autor encontrava-se acompanhado da sua companheira, (…).
9. O Autor nunca se aproximou do caixa a movimentar fichas.
10. Era (…), através do seu multibanco no POS do caixa, a movimentar dinheiro/fichas.
11. O Autor foi abordado pelo serviço de bar e identificou-se pelo nome de (…).
12. No período de 12 a 14 de Setembro de 2016, a acompanhante do Autor movimentou nas instalações da Ré a quantia de € 6.230,00.

Factos não Provados
a) O Autor sofre de perturbação de jogo patológico e de ansiedade generalizada.
b) Devido à patologia de que sofre, o Réu foi aconselhado pelo seu psicólogo que utilizasse os meios ao seu dispor para inibir a sua presença nas salas de jogo.
c) O Autor, além de ter pedido a sua autoexclusão em território nacional, fê-lo também quanto aos casinos em Espanha.
d) Por se encontrar em Tróia de fim de semana de 12 de Setembro de 2014, o Autor decidiu dar uma volta pela zona e, não conseguindo resistir ao impulso, acabou por entrar no casino, tendo jogado compulsivamente.
e) Dado o facto de ser uma patologia clinicamente comprovada, não estava na disposição do Autor o controlo dos seus instintos.
f) Sendo o Autor um “bom apostador” na medida em que estava a gastar desmesuradamente quantias avultadas.
g) O Autor fazia levantamentos consecutivos de € 1.000,00.
h) E como “boa anfitriã” a Ré, querendo manter o conforto e o interesse do Autor no jogo, fazia ofertas de comida e bebidas, que iam toldando o discernimento do Autor.
i) E consequentemente diminuindo o seu autocontrolo e a vontade de parar.
j) O valor do montante gasto pelo Autor nesses três dias ascendeu a um total superior a € 6.000,00.
k) Que na altura do ano e pela fraca ocupação do casino se deveu muito ao facto de as mesas estarem quase vazias tendo o Autor estado a apostar muitas vezes sozinho.
l) Apesar de, pelo tipo de jogo arrojado do Autor, com constantes idas à máquina levantar dinheiro e do casino ter pouca frequência.
m) Pelo comportamento da Ré o Autor sentiu-se angustiado e viu-se a braços com mais uma recaída na sua adição,
n) Situação que o deixou sem dormir e preocupado com o facto de não conseguir fazer face às suas despesas.
p) Além disso viu-se o Autor obrigado a reforçar as suas consultas de psicologia, sentindo-se deprimido e diminuído perante os seus amigos e familiares por mais uma vez ter falhado, sentindo-se deprimido e angustiado.
q) O Autor já não se encontra em situação de auto-exclusão desde Março de 2016.
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De Direito
Da responsabilidade da Ré: os pressupostos da responsabilidade civil
Está em causa, conforme sem divergência consideraram as partes e foi aceite pelo Tribunal, o direito do autor e ora recorrente a ser indemnizado ao abrigo do instituto da responsabilidade civil por acto ilícito que, no caso, seria consubstanciado pela violação, por banda da apelada, dos seus deveres de fiscalização, em ordem a impedir que o autor, autoexcluído, ingressasse no casino de Tróia, de que a demandada é a concessionária.
É aplicável ao caso o Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 114/2011, irrelevando as resultantes da publicação dos Decreto-Lei n.º 64/2015 e das Leis n.ºs 42/2016 e 114/2017, diplomas posteriores à data dos factos em apreciação, tal como irreleva, pelo mesmo motivo, a nas alegações invocada Lei 83/17, de 18.08, relativa ao branqueamento de capitais.
A propósito da Lei do Jogo afigura-se oportuno recordar quanto consta da recomendação N.º 10/A-8/B/2012 da Provedoria da Justiça, quando chama a atenção para o facto de ter vigorado em Portugal, desde 1927 e até às alterações introduzidas pelos DL n.º 10/95, de 19 de Janeiro, e pelo DL 40/2005, de 17 de Fevereiro, a obrigatoriedade de exibição do bilhete de identidade, controlo que hoje em dia se mantém apenas em relação ao acesso às salas de jogos tradicionais (cf. art.º 35.º). E tal alteração deu-se, conforme expressa o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 40/2005, pela constatação de que as condições estabelecidas para o acesso às salas mistas (criadas em 1995 por via do Decreto-Lei n.º 10/95, e onde se podem praticar jogos tradicionais e de máquinas), iguais às exigidas para as salas de jogos tradicionais, não têm favorecido o sucesso da sua exploração, situação que a eliminação da exigência de cartões de acesso visou reverter. Com tal declarado desiderato veio todavia o legislador a dispensar, de uma assentada, não só a emissão de cartões de acesso às referidas salas, como também o controle de entrada nos casinos mediante a exibição de documento oficial de identificação, sem que tivesse criado qualquer meio alternativo.
Pese embora a ausência de um controlo formal, que deixou de existir, foi mantido sem alterações o regime que visa impedir o acesso às salas de jogos de todos os casinos em território nacional por parte dos chamados jogadores patológicos o que, como seria de prever, levantou sérias dificuldades às concessionárias no cumprimento da imposição de vedar a entrada aos excluídos, quer por sua iniciativa, quer por decisão do Serviço de Inspecção de Jogos ou ainda por ordem judicial, conforme se prevê no art.º 38.º, n.º 1, dada até a forma como a proibição é divulgada.
Assente que a entrada e permanência nas salas mistas, de máquinas e de bingo é apenas sujeita, como resulta do disposto no n.º 3 do art.º 41.º, à posse (e não exibição) de um dos documentos de identificação previstos no artigo 39.º, impõe-se aos porteiros de tais salas o dever de solicitarem a exibição do mesmo numa única situação, a saber, quando a aparência do frequentador for de molde a suscitar dúvidas sobre o cumprimento do requisito da maioridade, o que deixa patente a dificuldade de detecção nestas salas, quando não seja conhecido, do auto excluído, uma vez que não existe nenhum dever de o identificar e não se trata, ao invés do que ocorre com a menoridade, de uma condição aparente.
Não obstante, o STJ decidiu, em aresto de 29/3/2012, proferido no processo n.º 1840/05.0 TBESP.P1.S1, que o pedido de auto-proibição de acesso às salas de jogos “configura uma providência que visa salvaguardar um direito subjetivo de personalidade do autor em conformidade com o estatuído no n.º 2 do artigo 70.º do Código Civil (...) que merece a tutela do direito”, visando proteger os indivíduos “de si mesmos, procurando contê-los da adição, do vício a que estão sujeitos, e assim evitando a sua degradação, tanto como pessoas individualmente consideradas ou em sociedade, como financeiramente”, acrescentando que o artigo 38.º da Lei do Jogo protege “(…) a integridade moral, integridade moral essa que, nos termos do art.º. 25.º, n.º 1, da Constituição é inviolável e que, como tal impõe uma exigência muito positiva de atuação dos poderes públicos no sentido de assegurar a sua tutela, adotando medidas legislativas correspondentes. Dúvidas não subsistem, por isso, que o âmbito de proteção da norma que permite a proibição de acesso a salas de jogo abrange a proteção do indivíduo de um estado de sujeição gerado pela dependência”.
O referido entendimento veio a ser reafirmado no acórdão do mesmo STJ de 25/6/2013, no processo 948/09.7TVPRT.P1.S1, no qual se deixou ainda expresso que “A par da facilitação no acesso às salas de jogos – salas de máquinas e salas mistas – criadas em 1995, e justificadas pelo legislador de 2005 com o objectivo de rentabilizar a exploração do jogo concessionado, assistiu-se a um acréscimo de responsabilização das concessionárias pela legalidade dessa exploração (…) que estão legal e contratualmente obrigadas a cumprir as exigências de acesso às salas de jogos, a organizar e manter os meios necessários ao cabal cumprimento dessa obrigação, a determinar a quem “for encontrado numa sala de jogos em infracção às disposições legais” que se retire (art.º. 37.º da Lei do Jogo), e – em particular – a desenvolver os actos necessários a impedir o acesso às salas de jogos de quem requereu e obteve do Inspector-Geral de Jogos a proibição de acesso às mesmas, nos termos do art.º. 38.º da supra referida lei”, tudo para concluir que “A Lei do Jogo – ao deixar de impor a identificação prévia – não pode ser interpretada no sentido de inviabilizar um controlo por parte da concessionária, que a própria lei exige, e a dificuldade de executar esse controlo não justifica o incumprimento do dever de vigilância” (v., no mesmo preciso sentido, o acórdão do TRL de 2/6/2016, processo 2381/12.4TBCSC.L1-8, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Deve ter-se pois por assente que a proibição de acesso consagrada no art.º 38.º/1 da Lei do jogo reveste a natureza de uma norma de protecção dos interesses de terceiro, criando no jogador que se auto exclui a expectativa de que lhe será vedada, mesmo (e sobretudo) contra a sua vontade, a entrada nos casinos, fazendo nascer para as concessionárias o correlativo dever de cumprir com a proibição, actuando os meios necessários ao exercício de um controlo eficaz.
Atento o que vem de se dizer, e regressando ao caso dos autos, somos a concluir que o acesso do autor recorrente, sem entrave, ao casino de Tróia durante o período de vigência da proibição configura a violação pela ré da aludida norma, sendo portanto susceptível de gerar obrigação de indemnizar se verificados os restantes pressupostos da responsabilidade civil exigidos pelo art.º 483.º do CC. E aqui reside o nó górdio dos presentes autos, uma vez que a factualidade apurada não suporta a conclusão de que o autor sofreu quaisquer danos, nem tão pouco, a nosso ver, um juízo de censura sobre a actuação da ré, culpa que em lado algum é dispensada, uma vez que não estamos perante uma responsabilidade objectiva da concessionária.
Assim, e antes de mais, está dado como provado apenas e tão-somente que a acompanhante do autor movimentou nas instalações da Ré a quantia de € 6.230,00, nada se dizendo quanto a quem pertenceria esse dinheiro, se todo ele foi aplicado, sem retorno, no jogo, e por quem, naufrágio probatório que depõe contra a pretensão do recorrente, onerado com a prova respectiva (art.º 342.º, n.º 1 do CC).
Por outro lado, e quanto ao requisito da culpa, aceitando-se que a ré está legalmente vinculada, conforme se deixou referido, a fazer actuar os meios necessários ao cumprimento do normativo que garante aos auto excluídos a protecção que para eles representa a proibição de acesso às salas de jogo, ainda que com as dificuldades mencionadas, a verdade é que o autor -que nem sequer fez prova de que sofresse de uma patologia aditiva, como tal diagnosticada- actuou de forma concertada com a sua acompanhante e à data companheira, a testemunha Ana Silva, em ordem a frustrar a possibilidade de controlo, abstendo-se de movimentar quaisquer quantias ou levantar fichas, operações que implicariam a sua identificação, e fornecendo mesmo uma identidade falsa quando abordado pelo serviço de bar, sendo certo que, conforme igualmente se apurou, não era conhecido no casino (situação diversa da contemplada nos arestos que se deixaram citados). Deste modo, ainda a ter-se apurado um qualquer prejuízo, que não se provou (cfr. facto não provado sob a al. j), e mesmo a admitir que a ré tivesse actuado com alguma culpa, o que, no descrito contexto, não se vislumbra, sempre se imporia considerar que, dada a acentuada culpa do recorrente, seria de excluir o arbitramento de qualquer indemnização por aplicação do disposto nos art.ºs 570.º e 572.º do CC.
Não merece por isso censura a sentença recorrida, que vai confirmada.
*
III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção do TRE em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente.
*
Sumário:
(…)

Évora, 12 de Setembro de 2019

Maria Domingas Alves Simões

Vítor Sequinho dos Santos

José Manuel Lopes Barata