Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1865/13.1TBSTR-K.E1
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: INSOLVÊNCIA
ENCERRAMENTO DO ESTABELECIMENTO
AUTORIDADE TRIBUTÁRIA
COMUNICAÇÃO
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - Quando na assembleia de apreciação do relatório é tomada a deliberação de encerramento do estabelecimento nos termos do artigo 156.º, n.º 2, o tribunal comunica o facto oficiosamente à administração tributária, dando cumprimento à obrigação que decorre do artigo 65.º, n.º 3, do CIRE.
II - Não tendo havido nessa oportunidade aquela deliberação de encerramento do estabelecimento, nos termos propostos pelo Sr. AI no relatório, mas decorrendo manifestamente dos autos que o mesmo se encontrava já nesse momento encerrado, o que então era do conhecimento de todos os credores, não tendo nem o AI nem o tribunal proposto na própria assembleia tal deliberação expressa, mas tendo os autos seguido para liquidação por não haver oposição à proposta efectuada, aquela omissão não pode significar que se devem manter inexoravelmente todas as obrigações declarativas e fiscais da insolvente.
III - Estando provado que o estabelecimento não se encontra em funcionamento desde o dia 14.05.2013, data em que a empresa insolvente deixou de exercer a actividade e encerrou as instalações, o encerramento de facto na situação vertente é em tudo análogo ao encerramento antecipado previsto no artigo 157.º, já que foi a própria devedora que tomou essa iniciativa, a assembleia de credores não deliberou a continuação da exploração da actividade empresarial ou alguma medida que contrariasse a sua imediata liquidação, e aquele encerramento foi proposto pelo Sr. AI, não tendo havido qualquer oposição a tal proposta.
IV - Assim, tal como nos casos em que, se a assembleia não tivesse sido convocada, o juiz podia em caso de encerramento antecipado do estabelecimento proceder à aplicação analógica do preceito, verificando-se uma situação de facto como a vertente, a aceitação tácita do encerramento que decorre do que vimos de descrever, e constatando-se a necessidade de proceder à comunicação do encerramento da actividade do estabelecimento à administração fiscal para efeitos de cessação de actividade, nada obsta a que o julgador aplique, por analogia, a disciplina do n.º 3 do artigo 65.º do CIRE.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1865/13.1TBSTR-K.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém[1]
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]

I – RELATÓRIO
1. BB, por si e em representação da MASSA INSOLVENTE “CC, LD.ª”, tendo sido notificado do despacho datado de 19.11.2018, que indeferiu o requerimento que aquele havia apresentado em 07.11.2018, por considerar que «da acta da assembleia de apreciação do relatório não existe qualquer referência à votação da proposta de encerramento da actividade do estabelecimento, motivo pelo qual não está em falta o cumprimento do art. 65º/3 do CIRE, nem o Tribunal pode determinar essa comunicação com efeitos retroactivos àquela data», interpôs o presente recurso de apelação, finalizando a minuta recursória com as seguintes conclusões:
«I. A sociedade “CC, Lda.” foi declarada insolvente, em 30.06.2014, e o recorrente foi nomeado Administrador de Insolvência.
II. No Relatório, elaborado nos termos do art.º 155º do CIRE, e levado a aprovação, o recorrente requereu a cessação da actividade da insolvente junto dos serviços competentes, conforme o n.º 3 do art.º 65º do CIRE, designadamente em sede de IVA e IRC, atendendo a que a sociedade deixou de exercer a actividade com a declaração de insolvência e que já tinha o seu estabelecimento comercial encerrado.
III. Relatório esse que foi aprovado em assembleia de credores, em 18.08.2014, por unanimidade,
IV. como consta, aliás, da respectiva acta: “por ausência de oposição pela proposta efectuada pelo Sr. Administrador de Insolvência seguem os autos para liquidação”.
V. De acordo com o estipulado no n.º 3 do art. 65º do CIRE, “com a deliberação do encerramento da actividade do estabelecimento, nos termos do n.º 2 do artigo 156º, extinguem-se necessariamente todas as obrigações declarativas e fiscais o que deve ser comunicado oficiosamente pelo Tribunal à administração fiscal para efeitos da cessão da actividade.”
VI. Todavia, tal não sucedeu, tendo sido o recorrente notificado, em 16.10.2018 e 18.10.2018, de duas liquidações oficiosas de IVA referentes à insolvente por parte do Serviço de Finanças de Santarém, respeitantes aos períodos 201803T e 201806T, no valor de 363,75€ e 435,00€, respectivamente.
VII. Na decorrência de tais notificações, o recorrente, no dia 07.11.2018, enviou, por carta registada com aviso de recepção, requerimento dirigido ao Chefe do supra-referido Serviço de Finanças, através do qual explanou a situação supra descrita, requerendo, in fine, a anulação das liquidações oficiosas de IVA em questão.
VIII. Nessa mesma data (07.11.2018), o recorrente reiterou junto do Tribunal o encerramento da actividade em termos fiscais, com efeitos retroactivos à data da assembleia de credores para apreciação do relatório (18.08.2014), conforme já havia sido solicitado no Relatório, nos termos do art.º 155º do CIRE.
IX. Por despacho datado de 19.11.2018, informou o Tribunal a quo que “da acta da assembleia de apreciação do relatório não existe qualquer referência à votação de proposta de encerramento da actividade do estabelecimento, motivo pelo qual não está em falta o cumprimento do art. 65º/3 do CIRE, nem o Tribunal pode determinar essa comunicação com efeitos rectroactivos àquela data.”
X. Simultaneamente, o Tribunal deu conhecimento ao recorrente do Ofício do Serviço de Finanças de Santarém, n.º 6075, datado de 07.11.2018, com a Ref.ª 79510549, através do qual este comunicou estarem por regularizar “dívidas em fase da execução fiscal respeitantes à massa insolvente do executado supra referido, cujo montante totaliza na presente data a quantia de 199.910,75€.”
XI. Salvo o devido respeito, não pode o recorrente concordar com o douto despacho proferido pelo Tribunal, uma vez que da acta consta a deliberação de encerramento da actividade ou pelo menos da deliberação incompatível com a manutenção de tal actividade. Ora vejamos:
XII. Como já foi anteriormente referido, consta expressamente do Relatório que a assembleia de credores aprovou em acta, sem qualquer oposição, a proposta de encerramento da actividade da insolvente.
XIII. Prova disso mesmo é que os autos prosseguiram para a fase de liquidação.
XIV. Ora, o prosseguimento para a fase de liquidação não se revela compatível com a manutenção da actividade da insolvente, sobretudo quando não foi apresentado nenhum plano de insolvência nesse sentido,
XV. pelo que, a deliberação do prosseguimento para a fase de liquidação equivale à decisão de encerramento da actividade.
XVI. Tanto mais que o encerramento do estabelecimento comercial da insolvente já era um facto consumado ainda antes da declaração de insolvência.
XVII. Ante o exposto, deve ser revogado o douto despacho, ordenando-se a sua substituição por outro que ordene a comunicação oficiosa do encerramento da actividade em termos fiscais, nos termos do art.º 65º, n.º 3 do CIRE, com efeitos retroactivos à data da Assembleia de credores de apreciação do relatório (18.08.2014).
XVIII. Cautelarmente, ainda que não tivesse sido deliberada a proposta de encerramento da actividade do estabelecimento, tal omissão não determina a rejeição da requerida cessação, mas antes a obrigação de o Tribunal suprir tal omissão, determinando-a oficiosamente, com efeitos retroactivos à data da assembleia de apreciação do relatório».

2. Não foram apresentadas contra-alegações.

3. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
No caso em apreço, a única questão colocada para apreciação por este Tribunal é a de saber se deve ser revogado o despacho recorrido e ordenada a comunicação do encerramento da actividade da insolvente em termos fiscais, com efeitos retroactivos à data da Assembleia de Credores de apreciação do relatório.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
Os factos[4] e a tramitação processual relevante que importa à decisão do presente recurso são os que decorrem das conclusões das alegações acima transcritas.
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III.2. – O mérito do recurso
A questão em apreço prende-se unicamente com a interpretação da acta da Assembleia de Credores acima mencionada nas conclusões e os poderes oficiosos do tribunal no âmbito do processo de insolvência, já que com o aditamento do n.º 3 ao artigo 65.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[5], pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril - vigente aquando da assembleia de credores de apreciação do relatório -, o legislador estabeleceu expressamente que «com a deliberação de encerramento da actividade do estabelecimento, nos termos do n.º 2 do artigo 156.º, extinguem-se necessariamente todas as obrigações declarativas e fiscais, o que deve ser comunicado oficiosamente pelo tribunal à administração fiscal para efeitos de cessação de actividade».
Conforme esclarecem JOÃO LABAREDA e CARVALHO FERNANDES[6] em anotação ao referido artigo 65.º do CIRE, que rege sobre as contas anuais do devedor, «estamos aqui em presença de um preceito completamente novo, sem paralelo no Direito pregresso». Actualmente deve entender-se que a novidade respeita a dois momentos: o primeiro reporta-se à introdução pelo CIRE deste preceito com a redacção que hoje corresponde ao seu n.º 1; e o segundo refere-se ao aditamento pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, dos novos n.ºs 2 a 5, que os referidos autores entendem terem sido introduzidos para resolver as dúvidas antes suscitadas sobre quem incidia o dever de elaborar e depositar as contas[7].
Concordando com a interpretação expressa por estes autores, que conjugam este preceito com o aditamento também introduzido pelo n.º 2 do artigo 82.º, diremos que, «em síntese, conforme a administração passou a ser confiada ao administrador da insolvência, nos termos gerais do artigo 81.º, n.º 1, ou, pelo contrário, foi mantida no próprio insolvente, assim será aquele ou este quem deve agir e responder pelo incumprimento.
Porém, uma vez tomada a deliberação de encerramento do estabelecimento nos termos do artigo 156.º, n.º 2, extinguem-se todas as obrigações fiscais e declarativas inerentes à atividade do devedor, que, evidentemente, cessa.
Para este efeito, o tribunal comunica o facto oficiosamente à administração tributária, tarefa esta que, segundo o entendimento que temos como mais apropriado, deve ser desempenhada pela própria secretaria, sem necessidade de despacho judicial, visto que se trata de dar satisfação a uma obrigação que resulta diretamente da lei.
Na omissão, é claro, o administrador da insolvência e o insolvente podem solicitar directamente à própria secretaria que a supra e, no limite, requerer ao tribunal que a ordene».
Afirmando ainda que «naturalmente que este regime se justifica somente a partir do encerramento da totalidade da actividade empresarial do devedor», alertam estes autorizados autores que «face ao texto do novo n.º 3 deste art.º 65.º, há um aspecto mais a considerar. A sua aplicação não suscita dúvidas quando, como será normal, a assembleia prevista no art.º 156.º tenha sido convocada».
Aplicando estes ensinamentos ao caso em apreço importa ter presente que na sentença que declarou a insolvência o tribunal designou o dia para a realização da Assembleia de Apreciação do Relatório, a que alude o art.º 156.º do CIRE, destinando-se a mesma - como a sua denominação logo indica - a permitir à assembleia de credores apreciar o relatório elaborado pelo Sr. AI nos termos do artigo 155.º e a pronunciar-se sobre o mesmo, conforme previsto no n.º 1 do artigo 156.º.
Tendo recebido as notificações da Autoridade Tributária e Aduaneira para pagamento dos valores decorrentes de liquidação oficiosa efectuada nos termos do CIVA, tendo como base o volume de negócios anual, o Sr. AI apresentou requerimento nos autos reiterando «o encerramento da actividade em termos fiscais, nos termos do disposto no art.º 65.º, n.º 3, do CIRE, com efeitos retroactivos à data da assembleia de credores de apreciação do relatório (18.08.2014), conforme solicitado no relatório nos termos do art.º 155.º do CIRE de 11.08.2014, atento o número de notificação do Serviço de Finanças, conforme os documentos que se juntam». Estes referiam-se à notificação que havia recebido para pagamento dos valores de 363.75€ e 435,00€, respeitantes à liquidação oficiosa de IVA, efectuada em 11.10.2018 e 16.10.2018.
A este requerimento o Tribunal respondeu com o despacho recorrido e, seguidamente, determinou fosse dado conhecimento ao Sr. AI “para os efeitos tidos por convenientes” do ofício que a Autoridade Tributária e Aduaneira havia remetido aos autos, informando «que se encontram por regularizar neste Serviço de Finanças dívidas em fase de execução fiscal respeitantes à massa insolvente do executado supra referido, cujo montante totaliza na presente data a quantia de 199.910,75€».
Insurge-se o Apelante contra aquele despacho, em suma, por entender que da acta consta a deliberação de encerramento da actividade ou pelo menos da deliberação incompatível com a manutenção de tal actividade, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que ordene a comunicação oficiosa do encerramento da actividade em termos fiscais, nos termos do art.º 65º, n.º 3 do CIRE, com efeitos retroactivos à data da Assembleia de credores de apreciação do relatório (18.08.2014), ou caso se entenda não ter sido então deliberada a proposta de encerramento da actividade do estabelecimento, que se considere existir a obrigação de o Tribunal suprir tal omissão, determinando-a oficiosamente, com efeitos retroactivos à data da assembleia de apreciação do relatório.
Que dizer?
Decorre dos autos que no dia 27 de Junho de 2014 foi proferida sentença que declarou a insolvência da sociedade comercial CC, Ld.ª, e nomeou Administrador de Insolvência (AI) o Dr. BB, que foi notificado em 30-06-2014.
A insolvência da identificada sociedade comercial foi requerida por um dos trabalhadores e dos factos provados de 2.1.10. a 2.1.12. da sentença extrai-se que no dia 14.05.2013 aquela empresa, ora insolvente, deixou de exercer a actividade e encerrou as instalações.
No relatório apresentado em 11.08.2014, nos termos do artigo 155.º do CIRE, o Sr. AI fez constar, para o que ora importa, que a empresa estava encerrada e não tinha trabalhadores, não conhecendo qualquer interessado em retomar a sua actividade, nem existindo qualquer condição para se propor a apresentação de um plano de insolvência, pelo que, se pronunciou a final pelo encerramento do processo em virtude de inexistência de massa insolvente, nos termos do artigo 232.º, n.º1, do CIRE, e concluiu requerendo «a cessação de actividade da insolvente junto dos serviços competentes nos termos do n.º 3 do art. 65º do CIRE, designadamente em sede de IVA e IRC».
Na acta da Assembleia de Credores que teve lugar em 18-08-2014, com a presença do Sr. AI e dos credores na mesma identificados, aquele manifestou pretender alterar a proposta, reportando-se obviamente ao encerramento do processo, já que justificou a alteração por considerar existir a possibilidade de resolução de negócios a favor da massa insolvente que poderão influir na avaliação da insuficiência da mesma, tendo nessa sequência sido proposta e nomeada uma comissão de credores de credores para acompanhamento da eventual resolução dos negócios, e sido exarado em acta que «por ausência de oposição pela proposta efectuada pelo Sr. Administrador de Insolvência seguem os autos para a liquidação», o que aconteceu.
Aqui chegados, impõe-se constatar a evidência de que, pese embora a Assembleia de Credores de apreciação do relatório tenha sido convocada e tido lugar em 18-08-2014, pese embora a proposta do Sr. AI no parecer respectivo, na acta que documenta a sua realização nada consta expressamente consignado a respeito do encerramento do estabelecimento da insolvente.
Deste modo, à luz dos comandos ínsitos nos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, consabidamente aplicáveis à interpretação das peças processuais, mormente do n.º 1 do artigo 238.º, não podia o tribunal dizer que houve deliberação da assembleia de credores sobre este ponto do relatório respeitante ao encerramento do estabelecimento, para efeitos fiscais, de harmonia com o disposto no artigo 65.º, n.º 3, do CIRE, nem a secretaria comunicar deliberação de encerramento do estabelecimento inexistente.
Efectivamente, conforme esclarecem os autores citados quando na assembleia de apreciação do relatório é tomada a deliberação de encerramento do estabelecimento nos termos do artigo 156.º, n.º 2, o tribunal comunica o facto oficiosamente à administração tributária, dando cumprimento à obrigação que decorre do acima indicado artigo 65.º, n.º 3, do CIRE.
Porém, não tendo havido nessa oportunidade aquela deliberação de encerramento do estabelecimento, nos termos propostos pelo Sr. AI, mas decorrendo manifestamente dos autos que o mesmo se encontrava já nesse momento encerrado, o que então era do conhecimento de todos os credores, não tendo nem o AI nem o tribunal[8] proposto na própria assembleia tal deliberação expressa, mas tendo os autos seguido para liquidação por não haver oposição à proposta efectuada, pode aquela omissão significar que se devem manter inexoravelmente todas as obrigações declarativas e fiscais da insolvente?
Pensamos que não, havendo que harmonizar a situação em presença com o regime jurídico aplicável e os princípios que regem o direito insolvencial.
Assim, em primeiro lugar, há que ter presente que a obrigação cometida ao administrador da insolvência de preparar um relatório expositivo sobre a situação da empresa insolvente, ao qual anexa tanto o inventário do activo que exista como a lista provisória dos credores, destina-se precisamente a possibilitar que na assembleia de apreciação do relatório os credores se encontrem mais habilitados para se pronunciarem sobre as medidas propostas, aceitando-as ou deliberando outras que entendam melhor satisfazerem os seus interesses, já que não está limitada pelo entendimento vertido pelo administrador no parecer, e sequer, está condicionada pelas suas próprias deliberações, que pode posteriormente modificar ou revogar, nos termos previstos no n.º 6 do artigo 156.º do CIRE.
Em segundo lugar, importa igualmente notar que o princípio base a respeito dos poderes do administrador de insolvência é o de que «este não está agora vinculado às deliberações da assembleia de credores, nem esta pode sindicar os seus actos, muito embora haja o dever de informação nos termos consignados no art.º 79.º e também do art.º 61.º, n.º 1. (…)
Mas precisamente no que respeita às deliberações sobre o destino dos estabelecimentos do devedor e sobre a marcha do processo, tomadas em concordância com o art.º 156.º - tal qual sucede com os actos que assumam especial relevo para o processo, na terminologia do art.º 161.º, n.º 1 -, ocorrem excepções ao princípio base, estando aí o administrador adstrito ao decidido, o que importa consequências importantes»[9].
No caso em presença, a deliberação sobre a marcha do processo correspondeu ao seu seguimento para liquidação, o que, para além do mais, significa que na mesma não foi tomada nenhuma deliberação que a tal obstasse: v.g., a determinação da suspensão da liquidação e partilha da massa insolvente, nos termos previstos no artigo 156.º, n.º 3, ou a atribuição ao devedor da administração da massa, de harmonia com a possibilidade referida no n.º 3 do artigo 224.º.
Deste modo, estamos circunscritos à situação em que, eventualmente porque o estabelecimento já estava encerrado, os credores na assembleia nada decidiram a esse respeito, e o Sr. AI prosseguiu com a liquidação, no âmbito dos amplos poderes que lhe estão legalmente cometidos no exercício da função que assume imediatamente uma vez notificado da nomeação (artigo 54.º).
Como ficamos, então, quanto à comunicação do encerramento do estabelecimento que de facto os autos comprovam, aos serviços de finanças, que foi solicitado pelo Sr. AI ao tribunal?
A solução, segundo cremos, chega-nos novamente pela pena dos já citados autores, que referem: «pode suceder que os credores nada decidam sobre o encerramento ou manutenção em actividade dos estabelecimentos do devedor. Nessa eventualidade, a solução é a de considerar transferido para o administrador (…) a competência para agir como melhor entender, ainda que a assembleia conserve a faculdade de actuar ao abrigo do n.º 6 (…). A alternativa seria, porventura, a de considerar aplicável o regime do encerramento antecipado previsto no art.º 157.º, mas supomos que as razões são diferentes e não há justificação para o constrangimento que daí decorre».
Efectivamente, na anotação ao artigo 65.º, referindo-se ao confronto com a nova possibilidade aberta pelo art.º 36.º, n.º 1, al. a), de, apesar da existência de um estabelecimento no acervo da massa insolvente, a assembleia não ter sido convocada, aqueles autores indicam «que se abrem duas possibilidades: ou o estabelecimento se mantém em funcionamento e é aplicável o regime do n.º 4 do preceito em anotação; ou se dá o encerramento nos termos do art.º 157.º e, assim sendo, estarão reunidas condições para aplicar – quando menos por analogia – a disciplina do referido n.º 3».
Ora, cremos que a questão que a situação em apreço convoca encontra paralelo nesta propugnada aplicação analógica, por estar provado que o estabelecimento não se encontra em funcionamento desde o dia 14.05.2013, data em que a empresa insolvente deixou de exercer a actividade e encerrou as instalações, e por nada tendo sido decidido pela assembleia em contrário, a este respeito.
Assim, o encerramento de facto na situação vertente é em tudo análogo ao encerramento antecipado, já que foi a própria devedora que tomou essa iniciativa, a assembleia de credores não deliberou a continuação da exploração da actividade empresarial ou alguma medida que contrariasse a sua imediata liquidação, e aquele encerramento foi proposto pelo Sr. AI, não tendo havido qualquer oposição a tal proposta.
Assim, tal como nos casos em que, se a assembleia não tivesse sido convocada, o juiz podia em caso de encerramento antecipado do estabelecimento proceder à aplicação analógica do preceito, verificando-se uma situação de facto como a vertente, a aceitação tácita do encerramento que decorre do que vimos de descrever, e constatando-se a necessidade de proceder à comunicação do encerramento da actividade do estabelecimento à administração fiscal para efeitos de cessação de actividade, nada obsta a que o julgador aplique, por analogia, a disciplina do n.º 3 do artigo 65.º do CIRE.
Nestes termos, ainda que com motivação diversa da preconizada pelo Recorrente e obviamente que sem atribuir a esta decisão efeitos retroactivos, impõe-se a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que determine o cumprimento do indicado preceito, com a comunicação à administração fiscal de que o estabelecimento se encontra encerrado de facto desde o dia 14.05.2013, e na assembleia de credores de 18.08.2014 foi deliberado o prosseguimento dos autos para a fase de liquidação.
Em consequência, procede o recurso, nos termos expostos.
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III.2.3. - Síntese conclusiva:
I - Quando na assembleia de apreciação do relatório é tomada a deliberação de encerramento do estabelecimento nos termos do artigo 156.º, n.º 2, o tribunal comunica o facto oficiosamente à administração tributária, dando cumprimento à obrigação que decorre do artigo 65.º, n.º 3, do CIRE.
II - Não tendo havido nessa oportunidade aquela deliberação de encerramento do estabelecimento, nos termos propostos pelo Sr. AI no relatório, mas decorrendo manifestamente dos autos que o mesmo se encontrava já nesse momento encerrado, o que então era do conhecimento de todos os credores, não tendo nem o AI nem o tribunal proposto na própria assembleia tal deliberação expressa, mas tendo os autos seguido para liquidação por não haver oposição à proposta efectuada, aquela omissão não pode significar que se devem manter inexoravelmente todas as obrigações declarativas e fiscais da insolvente.
III - Estando provado que o estabelecimento não se encontra em funcionamento desde o dia 14.05.2013, data em que a empresa insolvente deixou de exercer a actividade e encerrou as instalações, o encerramento de facto na situação vertente é em tudo análogo ao encerramento antecipado previsto no artigo 157.º, já que foi a própria devedora que tomou essa iniciativa, a assembleia de credores não deliberou a continuação da exploração da actividade empresarial ou alguma medida que contrariasse a sua imediata liquidação, e aquele encerramento foi proposto pelo Sr. AI, não tendo havido qualquer oposição a tal proposta.
IV - Assim, tal como nos casos em que, se a assembleia não tivesse sido convocada, o juiz podia em caso de encerramento antecipado do estabelecimento proceder à aplicação analógica do preceito, verificando-se uma situação de facto como a vertente, a aceitação tácita do encerramento que decorre do que vimos de descrever, e constatando-se a necessidade de proceder à comunicação do encerramento da actividade do estabelecimento à administração fiscal para efeitos de cessação de actividade, nada obsta a que o julgador aplique, por analogia, a disciplina do n.º 3 do artigo 65.º do CIRE.
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IV - Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se o despacho recorrido, e procede-se à sua substituição por outro que determine o cumprimento do n.º 3 do artigo 65.º do CIRE, com a indicação de que o estabelecimento se encontra encerrado de facto desde o dia 14.05.2013, e na assembleia de credores de 18.08.2014 foi deliberado o prosseguimento dos autos para a fase de liquidação.
Sem tributação.
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Évora, 27 de Junho de 2019
Albertina Pedroso [10]
Tomé Ramião
Francisco Xavier

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[1] Juízo de Comércio de Santarém - Juiz 3.
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC.
[4] Com as precisões que introduziremos na fundamentação, para permitir melhor compreensão da tramitação e evitar agora desnecessária repetição.
[5] Doravante abreviadamente designado CIRE.
[6] In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa 2015, págs. 363 a 365.
[7] Basta, porém, ver a posição manifestada por MENEZES LEITÃO a respeito da interpretação deste preceito, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 9.ª edição, Almedina, Coimbra 2017, págs. 146 e 147, para vermos que as dúvidas suscitadas pelo mesmo não foram afinal completamente resolvidas.
[8] Recorda-se que é o juiz quem preside à Assembleia e conduz os seus trabalhos (artigo 74.º do CIRE).
[9] Autores e obra citados na nota 6, pág. 517.
[10] Texto elaborado e revisto pela Relatora.