Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
538/17.0T8STR-D.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: ALIMENTOS A FILHOS MENORES
PENHORA
LIMITES DA EXECUÇÃO
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
i) estando em causa o desconto no vencimento do devedor da prestação de alimentos devida a filho com menos de 18 anos de idade, é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, a qual, em face dos direitos em colisão, se tem como o mínimo exigível para se respeitar o princípio da dignidade humana.
ii) no rol das despesas do progenitor obrigado a prestar alimentos ao filho não se inclui o pagamento do crédito automóvel, o que, salvo condições excecionais em que o automóvel seja bem imprescindível para o trabalho, não é despesa que caiba no manto protetor do princípio da dignidade da pessoa humana.
Decisão Texto Integral:
Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. Por apenso aos autos de regulação das responsabilidades parentais n.º 538/17.0T8STR, em que é requerente A…, e requerido J…, veio a requerente, em 19 de Dezembro de 2018, deduzir incidente de incumprimento (que constitui o apenso B), com vista obter do requerido o pagamento da quantia global de € 265,83.

2. Para tanto, alegou, em síntese, que:
- Nos autos de regulação do exercício das responsabilidades parentais a que estes autos foram apensos foi proferida sentença, em 8 de Outubro de 2018, transitada em julgado, que homologou o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais alcançado entre os progenitores, referente à filha M…, nascida a 17 de Outubro de 2015, no âmbito do qual a menor ficou a residir com a mãe, exercendo ambos os progenitores as responsabilidades parentais no que respeita aos actos de particular importância para a vida da menor e, entre outros pontos, o pai da menor contribuiria a título de pensão de alimentos para a menor com a quantia mensal de €75,00, a pagar até ao dia 5 de cada mês, por transferência bancária para conta titulada pela progenitora, com início em Novembro de 2018;
- Os progenitores acordaram ainda que cada um deles suportaria na proporção de metade as despesas médicas, medicamentosas e escolares relativas ao menor, mediante a apresentação do respectivo comprovativo pela mãe da menor; e
- O requerido não procedeu ao pagamento da pensão de alimentos devida à filha menor nos meses de Novembro de 2018 e Dezembro de 2018, à razão de €75,00 mensais, no total de €150,00, e que também não procedeu nos referidos meses ao pagamento de metade das despesas escolares e de saúde relativas à menor, no total de €115,83, o que perfaz o montante total de €265,83.

3. O requerido foi notificado para, querendo, alegar o que tivesse por conveniente, no prazo de 5 dias, com a advertência de que se nada dissesse se considerariam confessados os factos alegados pela requerente, tendo confessado o incumprimento no pagamento da pensão de alimentos, alegando dificuldades económicas. Quanto ao mais pedido, invocou não lhe terem sido enviados os recibos das despesas medicamentosas e escolares, porque alterou a sua morada, e que o valor pedido a título de despesas escolares não é devido, por não poderem assim ser qualificadas.

4. O Ministério Público promoveu que se proferisse decisão, nos termos do artigo 41º, n.º 3, da Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro, que aprovou o Regime Geral do Processo Tutelar Cível (doravante designado por RGPTC), julgando procedente o incidente deduzido.
Foi, então, proferida sentença, na qual se decidiu julgar procedente, por provado, o incidente de incumprimento suscitado por A…, mãe da menor M…, nascido a 17 de Outubro de 2015, e em consequência condenar o requerido J…, pai da menor, a pagar a quantia global de € 265,83, correspondendo:
a) € 150,00 a pensões de alimentos devidas e não pagas à filha menor nos meses de Novembro de 2018 e Dezembro de 2018, inclusive, à razão de €75,00 mensais (€ 75,00 x 2 meses);
b) € 115,83 ao não pagamento nos meses de Novembro de 2018 e Dezembro de 2018 de metade das despesas escolares e de saúde relativas à menor.
Custas pelo requerido, fixando ao incidente o valor de € 265,83, e sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique a progenitora para, no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado desta decisão, informar os autos caso não venha a ser paga a quantia em dívida.
5. Verificando-se não terem sido pagas as quantias em dívida, o Ministério Público, na vista que teve dos autos promoveu o seguinte:
«Por sentença proferida no presente apenso, transitada em julgado, foi o requerido condenado no pagamento da quantia total de 265,83€, a título de pensão de alimentos devidas ao menor, vencidas e não pagas.
Resulta dos autos que o requerido é trabalhador por conta de outrem, auferindo 363€/mês.
Não obstante o montante auferido seja inferior ao SMN, a quantia recebida pelo progenitor permite o desconto da pensão de alimentos face ao disposto no art. 738º nº 4 do CPC.
Assim, pr. que se determine à entidade empregadora id. a fls. 55 que proceda ao desconto mensal da pensão de alimentos – no valor de 75€ - na remuneração auferida pelo requerido, por conta dos alimentos que se vencerem doravante, nos termos do art. 48º do RGPTC, não de promovendo qualquer desconto adicional para amortização da quantia em dívida por ultrapassar o mínimo impenhorável.
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Mais pr. que, na notificação a efectuar à entidade empregadora se mencionem as consequências legais previstas nos arts. 773º nº 4 e 777 nº 3 do CPC, e se esclareça:
a) Que o desconto pode ser feito mesmo que o requerido aufira apenas o valor correspondente ao salário mínimo nacional, uma vez que, estando em causa um crédito de alimentos, o limite mínimo impenhorável fica reduzido a 210,32€ mensais (cfr. art. 738º nº 4 do CPC);
b) Se solicite à entidade empregadora o enviar aos autos de cópia dos recibos de remuneração, relativos os dois primeiros meses em que efectuar o desconto, devendo proceder ao envio no prazo de 10 dias a contar da efectivação de cada desconto.»

6. Tal pretensão foi deferida por despacho de 27/06/2019 (ref.ª 81457469).

7. Inconformado, apresentou o requerido recurso desta decisão (1º recurso), nos termos e com os fundamentos seguintes:
1.ª Requer-se que seja fixado efeito suspensivo ao recurso, porquanto, a execução do despacho causa ao Recorrente prejuízo considerável, sendo que com a dedução de € 75,00 no rendimento auferido pelo Recorrente, tendo este de suportar despesas fixas mensais, este fica privado de satisfazer as suas necessidades, o que põe em causa a sua própria subsistência, sobrevivência com um mínimo de dignidade, a dignidade humana do Recorrente, direito este constitucionalmente garantido, como supra e infra se deixa exposto.
2.ª O Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, determinou que a entidade empregadora do Requerido proceda ao desconto da pensão de alimentos – no valor de € 75 – na remuneração auferida pelo Requerido/Recorrente, por conta dos alimentos que se vencerem, nos termos do artigo 48º do RGPTC, por referência à promoção do Ministério Público, a nosso ver, tal despacho não poderá manter-se.
3.ª Ao tomar tal decisão o Tribunal “a quo” não teve em conta, nem curou de apurar a situação económico-financeira do Recorrente, para tomar uma decisão justa e adequada.
4.ª O Recorrente aufere €363/mês brutos, acrescido de subsídio de alimentação o que corresponde a € 417,01/mês líquidos de remuneração por conta de outrem, não tendo qualquer outro rendimento, cfr. Doc. nº 1.
5.ª Por requerimento datado de 20 de Maio de 2019, com a referência 5946085 dos autos, o Recorrente requer que a sua situação económico-financeira seja tida em consideração nos autos, inclusive tendo junto aos autos o recibo de renda, uma vez que vive em casa arrendada e paga a renda mensal no valor € 180,00/mês.
6.ª O Recorrente vive sozinho e tem de suportar os encargos fixos mensais, nomeadamente, o arrendamento de uma casa para viver, sita no …, Vila Nova do Coito, Almoster, Santarém, as despesas correntes de água, luz, cfr. Doc. nº 2
7.ª Nos autos principais (processo 538/17.0T8STR, Santarém- Juízo de Família e Menores – Juiz 3, Tribunal Judicial da Comarca de Santarém) já constava que o Recorrente tinha o encargo mensal referente à prestação bancária de um crédito automóvel - €.144,80/mês, que se mantém, cfr. Docs. nºs 3 e 4.
8.ª Parece evidente que com € 417,01/mês líquidos e com despesas com a renda de casa (€180,00/mês), a luz (€ 45,54/mês), a água (cerca de € 21,00/mês), pagas pelo Recorrente, embora facturadas em nome da senhoria e o crédito automóvel (€144,80/mês), este não consegue acumular mais a obrigação da pensão de alimentos de € 75,00. Inclusive, recorrendo muitas vezes a ajuda para se alimentar, junto de uma irmã.
9.ª Não se deve exigir ao Recorrente alimentos que, para os prestar, ponha em causa a sua própria subsistência, não pode ser retirado ao Recorrente qualquer montante ao seu rendimento, porque está em causa a sua própria subsistência, sendo necessário salvaguardar o seu direito fundamental a uma sobrevivência com um mínimo de dignidade, direito este constitucionalmente garantido.
10.ª A continuar a admitir-se a dedução de € 75,00 no rendimento auferido pelo Recorrente, tendo este de suportar despesas fixas mensais, este fica privado de satisfazer as suas necessidades, o que põe em causa a sua própria subsistência, sobrevivência com um mínimo de dignidade, a dignidade humana do Recorrente, direito este constitucionalmente garantido.
11.ª Do lado do alimentando, há que levar em conta que a impossibilidade de realização coactiva da prestação desencadeia a intervenção de prestações públicas que se filiam na tarefa do Estado de protecção à infância (artigo 69.ºda Constituição), nomeadamente a do “Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores”.
12.ª A dedução mensal no valor de € 75,00 no rendimento auferido pelo Recorrente, no caso dos autos, põe em causa e viola o princípio da dignidade humana, constante das disposições dos artigos 1°, 59º, nº2, alínea a) e 63° nºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa, não podendo manter-se o despacho recorrido.
13.ª Os documentos ora juntos, tornam-se necessários juntar para a boa decisão da causa e em virtude do despacho de que se recorre, bem como a sua apresentação ainda não tinha sido possível, pelo que requer-se e entende-se que devem ser admitidos.
14.ª Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a despacho recorrido, ordenando-se o levantamento da dedução da pensão de alimentos na remuneração auferida pelo Recorrente com a consequente devolução dos montantes que chegaram a ser deduzidos, V. Exªs. farão JUSTIÇA.

8. Posteriormente, em 05/09/2019, promoveu o Ministério Público a notificação da entidade empregadora para proceder ao desconto adicional de € 75 em cada subsídio de natal e de férias que o requerido venha a auferir, até perfazer o montante dos € 265,83, em que foi condenado, com início no subsídio de natal de 20119, o que foi deferido por despacho de 10/09/2019 (ref.ª 81880905).

9. O requerido também interpôs recurso deste despacho (2º recurso), com fundamentos idênticos aos constantes do recurso do anterior despacho.

10. Contra-alegou o Ministério Público, sustentando a confirmação dos despachos recorridos, com os seguintes fundamentos:
1.ª Auferindo o requerido rendimentos do seu trabalho que, não obstante serem inferiores ao valor do salário mínimo nacional, permitem o desconto do valor da pensão de alimentos sem colidir com o mínimo impenhorável de 210,32€ mensais estabelecido por via do disposto no art. 738º nº 4 do CPC, impunha-se ao tribunal, na prossecução do superior interesse da menor Matilde, que decretasse o desconto da pensão de alimentos na remuneração auferida pelo requerido, em cumprimento do preceituado no art. 48º do RGPTC;
2.ª Com o desconto adicional de 75€ a efectivar apenas nos subsídios de férias e de Natal, até integral pagamento da quantia em dívida de 265,83€ em que o requerido foi condenado a título de alimentos, pretendeu-se fazer incidir o desconto para aquela amortização nos meses em que o requerido é abonado dos aludidos subsídios por forma a não agravar o “corte” mensal a que já está sujeito, tendo em vista garantir as condições de subsistência do obrigado a alimentos e a observância do princípio constitucionalmente consagrado do respeito pela dignidade humana;
3.ª Os despachos recorridos fizeram uma adequada interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis, devendo ser mantidos.

11. Os recursos foram admitidos como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Remetidos os autos a esta Relação e consultados que foram os autos principais e apensos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a única questão a decidir consiste em saber se pode ser efectuado o desconto no vencimento do requerido da quantia de € 75/mensais, para pagamento da pensão de alimentos devida à sua filha, e de € 75, nos subsídios de férias e de Natal, até perfazer o montante em atraso de € 265,83.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais resultantes do relato dos autos.
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B) – O Direito
1. No caso em apreço determinou-se o desconto no vencimento do requerido da quantia mensal de € 75, para pagamento da pensão de alimentos a que este está obrigado, de acordo com a sentença proferida nos autos principais de regulação das responsabilidades parentais (1º despacho recorrido), e bem assim da quantia de € 75 em cada subsídio de férias e de Natal que venha a auferir, até completar o valor em dívida, de € 265,83, apurado no incidente de incumprimento.
O requerido discorda destas duas decisões, porquanto entende que, auferindo apenas de vencimento a quantia de € 417,01 líquidos, e tendo em conta as despesas que apresenta, o desconto adicional da quantia de € 75, põe em causa a sua subsistência e sobrevivência com um mínimo de dignidade.
Em sentido contrário, entende o Ministério Público que o desconto da referida quantia observa o limite a que se reporta a norma do n.º 4 do artigo 738º do Código de Processo Civil.
Vejamos:

2. Nos termos do disposto no artigo 2003º do Código Civil, a obrigação alimentícia compreende tudo quanto é indispensável ao sustento, habitação e vestuário, e, sendo o alimentando pessoa menor de idade, compreende também a instrução e educação.
Os alimentos a prestar ao menor pelo progenitor a quem não está confiado devem ser fixados em função das necessidades inerentes à idade do filho, às suas aptidões, estado de saúde e nível socioeconómico, em ordem à satisfação do seu integral desenvolvimento. Todavia, importa ter presente que a quantificação do valor da pensão de alimentos terá de resultar do confronto entre as necessidades do menor e as possibilidades económicas do obrigado a alimentos porquanto, nos termos do n.º 1 do artigo 2004º do Código Civil, os alimentos devem ser proporcionais aos meios daquele que houver de prestá-los.
Porém, nos presentes autos não está em causa a fixação da pensão de alimentos, nem é pedida a sua alteração, mas, tão só, a efectivação da sua entrega perante a falta de pagamento pelo requerido.
Ora, a este respeito, prescreve-se no artigo 48º do RGPTC (sob a epigrafe “meios de tornar efectiva a prestação de alimentos”):
1 - Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte:
a) Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respectivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública;
b) Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respectiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário;
c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.
2 - As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são directamente entregues a quem deva recebê-las. (destaque nosso)
Como refere Tomé Ramião “[o] presente normativo visa a cobrança coerciva da prestação de alimentos, através de um procedimento específico pré-executivo, ou seja, à margem de uma acção executiva e independentemente dela, no sentido de que a não precede, e aplica-se a qualquer processo tutelar cível em que se tenha fixado uma pensão de alimentos à criança.
Assim, admite-se o pagamento das prestações de alimentos vencidos e vincendos, através do desconto no vencimento, ordenado, salário do devedor, ou de rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos e comparticipações que sejam processadas com regularidade” (Regime Geral do Processo Tutelar Cível – Anotado e Comentado, 4ª edição, 2020, pág. 203).
E, como acrescenta o mesmo autor, “[t]ratando-se de um procedimento especial, e desde que seja possível a cobrança dos alimentos através do desconto no vencimento ou dos rendimentos referidos nas suas alíneas, deve utilizar-se este meio, por ser mais célere e garantir de forma mais eficaz os interesses da criança, no caso, garantir e assegurar a satisfação das suas necessidades básicas, em particular os necessários meios de subsistência”, salientando que, na impossibilidade de obtenção dos alimentos por esta via, poderá então efectuar-se a cobrança coerciva através da acção executiva, podendo, ainda, se for caso disso, accionar-se o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, no âmbito da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro (ob. e loc. cit.).

3. No caso em apreço, verificando-se que o requerido dispunha de rendimentos do trabalho, determinou-se o desconto da prestação de alimentos no seu vencimento e nos subsídios de férias e de Natal, nos termos acima referidos.
Mas será que tal desconto, em face do vencimento do requerido, põe em causa a subsistência e sobrevivência deste com um mínimo de dignidade?
Como se sabe, o Tribunal Constitucional tem afirmado, desde muito cedo, a existência de um direito fundamental a um mínimo de existência (condigna), fazendo-o decorrer do princípio da dignidade da pessoa humana. Afirmou-o, por exemplo, a propósito da actualização das pensões por acidente de trabalho, no acórdão n.º 232/91, e reafirmou-o a respeito da impenhorabilidade de certas pensões de reforma, nos acórdãos nºs 349/91 e 411/93 (todos disponíveis, como os demais citados do Tribunal Constitucional, em: www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).
Significa isto que há um mínimo (necessário à salvaguarda da dignidade humana) que é intocável, ou seja, impenhorável.
Nesse sentido, e a propósito da aplicação do artigo 189º da OTM (norma de teor idêntico ao actual artigo 48º do RGPTC), decidiu-se no Acórdão n.º 306/2005 de 8 de Junho, «[j]ulgar inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, com referência aos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da Constituição, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, interpretada no sentido de permitir a dedução, para satisfação de prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez do progenitor que prive este do rendimento necessário para satisfazer as suas necessidades essenciais».
E no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 394/2014, de 7 de Maio, decidiu-se «[j]ulgar inconstitucional a norma extraída do artigo 189º, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico da Organização Tutelar de Menores, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, de acordo com a redacção conferida pela Lei n.º 32/2003, de 22 de Agosto, quando interpretada no sentido de não se ter em consideração qualquer base mínima da pensão social que possa ser afectada ao pagamento da prestação de alimentos a filho menor, na medida em que prive o obrigado à prestação de alimentos do mínimo indispensável à sua sobrevivência, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, tal como previsto no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa».

4. Ora, à semelhança do que sucedia com a norma do artigo 189º da OTM, a norma do artigo 48º do RGPTC não coloca qualquer limite no montante a descontar. Nem a lei nos diz qual é o montante necessário atribuir a alguém de modo a que não seja violado o princípio da dignidade humana, constitucionalmente consagrado.
Porém importa ter em conta que a lei processual coloca limites à penhora, seja de vencimentos, seja de qualquer quantia que o executado receba, estabelecendo-se no n.º 1 do artigo 738º do Código de Processo Civil, que “[s]ão impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”, e no n.º 3, que “…, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.”
Contudo este limite mínimo de impenhorabilidade cede quando esteja em causa crédito de alimentos, “…, caso em que é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo” (cf. n.º 3 do citado artigo 738º), que no ano de 2019 era de € 210,32 (artigo 18º, n.º 1, da Portaria n.º 25/2019, de 17 de Janeiro), e actualmente de € 211,79 (artigo 18º, n.º 1, da Portaria n.º 28/2020 de 31 de Janeiro).
Com este preceito procurou o legislador estabelecer um equilíbrio na colisão dos direitos fundamentais em confronto: de um lado o direito da criança aos alimentos e, do outro, o direito do obrigado a ver garantido o mínimo indispensável ao seu sustento, tendo como referência o principio da dignidade da pessoa humana.
Deste modo, tal como se concluiu no acórdão da Relação do Porto, de 12/09/2016 (proc. n.º 2226/13.8TMPRT.P1 – relator Sousa Lameira), entende-se que “o desconto no vencimento do devedor de alimentos a filho menor tem apenas como limite o do montante da pensão social do regime não contributivo, o qual é considerado o mínimo exigível para se respeitar o principio da dignidade humana”.

5. Assim, e verificando-se que, no caso dos autos, o progenitor, devedor dos alimentos, tem o vencimento líquido de € 417,01, o desconto mensal de € 75, para pagamento da prestação de alimentos, bem como o desconto de € 75 nos subsídios de férias e de Natal, até perfazer o montante que estava em dívida de € 265,83, não interfere com a salvaguarda daquele montante mínimo garantido para o sustento do recorrente, em conformidade com o princípio da dignidade humana constitucionalmente consagrado.
É certo que atendendo às despesas fixas apresentadas pelo recorrente, o pagamento da prestação de alimentos é um encargo difícil de suportar, mas não podemos deixar de evidenciar que no rol das despesas o recorrente inclui o pagamento do crédito automóvel, no valor de € 144,80, o que, salvo condições excepcionais em que o automóvel seja bem imprescindível para o trabalho, não é despesa que caiba no manto protector do princípio da dignidade da pessoa humana.

IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar as decisões recorridas.
Custas a cargo do apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
Évora, 4 de Junho de 2020
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança
(documento com assinatura electrónica)