Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
655/10.8TBVRS.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: CONTRATO DE CONCESSÃO DE CRÉDITO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 05/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não se tendo inscrito na contestação a alegação fáctica no sentido de haver um nexo entre uma qualquer obrigação de entrega dos documentos da viatura por parte da A. e o cumprimento das prestações do contrato de mútuo por parte da R., a apresentação inovadora dessa tese já em sede de recurso permite concluir que estamos perante matéria nova sobre a qual o tribunal de recurso não se poderá pronunciar.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 655/10.8TBVRS.E1-1ª (2015)
Apelação-1ª
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Na presente acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato – tramitada ao abrigo do Decreto-Lei nº 269/98, de 1/9 – que «Banco (…), S.A.» intentou contra (…), e actualmente a correr termos na Instância Local de Vila Real de Santo António da Comarca de Faro (depois de iniciada no Tribunal Judicial de Vila Real de Santo António), foi pela A. invocada a celebração com a R. de um contrato de concessão de crédito, sob a forma de mútuo, com vista à aquisição de um veículo automóvel, e o incumprimento do mesmo, devido a falta de pagamento de prestações, o que determinou o vencimento das restantes, pelo que foi pedida a condenação da R. a pagar à A. a quantia de 14.205,65 €, acrescida de 284,96 € de juros vencidos até à propositura da acção (25/8/2010), 11,38 € de imposto de selo sobre esses juros, e os juros vincendos sobre a primeira quantia, até integral pagamento, à taxa anual de 15,17% e respectivo imposto de selo sobre esses juros à taxa de 4%, num total já liquidado de 14.501,99 €.

Contestando, a R. impugnou o pedido, alegando, no essencial, que a viatura por si supostamente adquirida não chegou a ser-lhe transmitida, porquanto pertencia a terceiro, sem que a firma vendedora a pudesse efectivamente vender, pelo que ocorreu uma venda de bem alheio, ferida de nulidade, sendo por isso também nulo o contrato de financiamento celebrado com a A.. Mais requereu a intervenção principal provocada da firma vendedora, a fim de a chamada vir a ser condenada a restituir à A. a quantia peticionada (e a pagar à R. valor correspondente ao que despendeu como complemento do pagamento da viatura adquirida, no montante de 3.000,00 €) ou, se for entendido dever ser condenada a R. a pagar à A. tal quantia, ser a chamada condenada no direito de regresso a favor da R..

Sobre aquele pedido de intervenção principal provocada veio então a recair decisão do tribunal de 1ª instância (a fls. 63-64), que indeferiu tal pedido, por inadmissibilidade da suscitação desse incidente de intervenção de terceiros no âmbito do processo especial previsto no Decreto-Lei nº 269/98.

Na sequência da normal tramitação processual subsequente, foi realizado o julgamento, após o qual foi lavrada sentença em que se decidiu julgar a acção parcialmente procedente, condenando a R. a pagar à A. a quantia global de 11.648,52 €, respeitante a: a) 28 prestações vencidas e não pagas até à data da citação (em 13/12/2011), no valor de 4.291,56 € (o que exclui juros remuneratórios), acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa anual de 15,17%, desde a data do respectivo vencimento, e imposto de selo sobre os juros; b) 48 prestações restantes, que se venceram após a citação, no valor de 7.356,96 € (o que exclui juros remuneratórios), acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa anual de 15,17%, desde a data da interpelação até integral pagamento, e imposto de selo sobre os juros.

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: da matéria de facto provada resulta que as partes celebraram um contrato de crédito ao consumo, para financiamento no âmbito de contrato de compra e venda de um automóvel celebrado pela A. com terceiro, sujeito às regras dos contratos de adesão (do Decreto-Lei nº 446/85, de 25/10) e sendo-lhe aplicável o regime previsto no Decreto-Lei nº 359/91, de 21/9 – entretanto revogado pelo Decreto-Lei nº 133/2009, de 2/6, mas em vigor à data da celebração dos contratos em apreço –, para essas situações de ligação funcional entre contrato de crédito e contrato de compra e venda financiada; do nº 1 do artº 12º do Decreto-Lei nº 359/91 infere-se que a eventual nulidade do contrato de compra e venda não se repercute na validade do contrato de mútuo, pelo que a R. não pode opor à A. aquele alegada nulidade da aquisição da viatura; do nº 2 do artº 12º desse mesmo diploma resulta que o consumidor/comprador só pode opor ao credor do financiamento o incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor quando, provada a afectação do crédito à respectiva aquisição, o contrato de mútuo tenha sido celebrado no contexto de uma colaboração estreita, com carácter de exclusividade, entre o mutuante e o vendedor; no caso presente, não se demonstrou a existência de uma vinculação estável e exclusiva entre a A. e o vendedor da viatura; a obrigação de entrega dos documentos do veículo, no caso presente, era incumbência do vendedor (pelo que a verificada omissão de tal entrega é apenas imputável a este), e não da A., sendo o compromisso desta de proceder ao averbamento da reserva de propriedade a seu favor no registo mera decorrência do seu propósito de assegurar a sua garantia; aliás, a R. não formulou nesta acção qualquer pretensão contra a A. no que respeita à falta de cumprimento da obrigação de entrega dos documentos da viatura e no sentido da excepção de não cumprimento do contrato de compra e venda; deve assim proceder a pretensão da A., sem que haja fundamento para declarar neste processo a nulidade da compra e venda ou considerar qualquer pretensão da R. contra terceiro não presente na acção; essa procedência será apenas parcial, já que, apesar do vencimento antecipado das prestações previstas, por força do incumprimento da R., se deve atender à orientação fixada pelo STJ no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) nº 7/2009, de 25/3/2009 (in DR, I, de 5/5/2009), com base na qual o vencimento antecipado de dívida liquidável em prestações não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados; daqui resulta que a A. apenas tem direito a exigir da R. as prestações de capital não pagas, com exclusão das quantias nelas insertas a título de juros remuneratórios, acrescidas dos juros moratórios à taxa convencionada de 15,17% (já incluindo 4%, a título de cláusula penal), tendo em conta que a interpelação da R. ocorreu com a citação, e do imposto de selo sobre esses juros.

Inconformada com tal decisão, dela apelou a R., formulando as seguintes conclusões:

«a) Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julga a acção parcialmente procedente por provada e condena a Ré no pagamento da quantia total de 11.648,51 €, acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, e demais encargos;

b) O recurso tem por objecto a impugnação da matéria de facto julgada provada, com base na reapreciação da prova documental e da prova gravada;

c) Do documento de fls. 9 dos autos, junto pelo Autor com a p.i. (doc. 1), denominado CONTRATO DE MÚTUO Nº (…), nas CONDIÇÕES ESPECÍFICAS consta que o Autor incluiu no valor do financiamento a quantia de 225,00 € destinado ao pagamento de “despesas de transferência de propriedade”;

d) Do documento de fls. 11 dos autos, junto pelo Autor com a p.i. (doc.2), denominado “Plano Financeiro”, consta o plano estabelecido para o pagamento das prestações, cujo valor inicial é de €12.875,00;

e) Da conjugação desses dois documentos resulta que as despesas de transferência de propriedade do veículo foram incluídas nas 84 prestações fixadas para a Ré pagar;

f) Resulta também destes documentos, conjugados com as declarações de parte da R. e com os depoimentos prestados pelas testemunhas, que competia ao Autor efectuar o registo de transferência de propriedade do veículo para nome da Ré, bem como o registo da reserva de propriedade em nome do Banco, registos que nunca foram efectuados;

g) Não é correcta a resposta dada pelo tribunal, constante dos pontos 8 e 15 dos factos provados da sentença, cuja alteração se requer nos seguintes termos:

8. “No valor das prestações estão incluídos o capital, os juros do financiamento, o valor dos impostos devidos, comissão de gestão e despesas de transferência de propriedade”;

15. “Incumbia ao Autor proceder ao registo de transmissão da propriedade do veículo para nome da Ré, bem como ao registo da reserva de propriedade a seu favor”;

h) A Ré (…) prestou declarações de parte de 00,00 a 14,17 da gravação na audiência de julgamento do dia 17 de Novembro de 2014; a testemunha (…) depôs de 00,00 a 18,41 da gravação na audiência de julgamento do dia 17 de Novembro de 2014; a testemunha (…) depôs de 00,00 a 18,44 da gravação na audiência de julgamento do dia 17 de Novembro de 2014;

i) Da análise crítica e conjugada das declarações da Ré e dos depoimentos das testemunhas, através das respectivas gravações, cuja audição se requer, deverá ser considerada provada e aditada aos factos provados da sentença, a seguinte matéria de facto:

«20. A Ré negociou a aquisição de veículo objecto dos autos com o Stand (…) & (…), Lda.;

21. O Stand comprometeu-se a tratar de toda a documentação para obtenção do crédito destinado ao financiamento do veículo;

22. A Ré nunca estabeleceu qualquer contacto com a Financeira destinado à concessão do crédito;

23. A Ré apenas assinou os papéis que o Stand lhe apresentou;

24. A Ré nunca viu os documentos do carro;

25. O Stand passou-lhe uma guia de circulação para poder andar com o carro e disse-lhe que os documentos foram entregues no Banco para efectuar os respectivos registos;

26. O carro foi apreendido no dia 21 de Julho de 2009 por não dispor de documentos para poder circular;

27. Seguidamente a Ré foi ao Registo e ficou então a saber que o carro se encontrava em nome de outra pessoa, com registo de reserva de propriedade em nome de outra instituição financeira;

28. A seguir contactou o Banco (…) e informou que se não resolvessem o problema deixaria de continuar a pagar as prestações;

29. E em Setembro de 2009 deixou de pagar as prestações;

30. O Stand (…) & (…) negociou com o A. o contrato para financiamento da aquisição do veículo pela Ré;

31. Depois de aprovado o financiamento, o Banco elaborou o contrato em 2 vias e enviou-o ao Stand para ser assinado pela cliente;

32. Após ser assinado pela Ré, o Stand deveria enviar o contrato ao Banco, acompanhado dos documentos da cliente e dos documentos da viatura, para ser assinado pelo Banco e activado;

33. O Stand enviou o contrato e a documentação da cliente mas não enviou os documentos da viatura, e o Banco activou o contrato e entregou o dinheiro do financiamento ao Stand, no qual tinha confiança;

34. O Stand nunca mais entregou os documentos da viatura ao Banco;

35. Passado algum tempo o Stand cessou a actividade e fechou as portas.»

l) Resulta da matéria de facto provada, que incumbia ao Autor proceder ao registo de transferência de propriedade do veículo automóvel para o nome da Ré, bem como o registo da reserva de propriedade a seu favor;

m) Para o efeito, necessitava dos documentos da viatura, que lhe deveriam ser obrigatoriamente remetidos pelo Stand, juntamente com a restante documentação, indispensáveis para conclusão, activação do contrato e pagamento ao Stand;

n) Mesmo sem ter recebido os documentos do automóvel financiado, o A. pagou directamente ao Stand o valor do financiamento;

o) O Autor não poderia disponibilizar o valor do financiamento ao Stand, enquanto o mesmo não disponibilizasse os documentos da viatura;

p) Se o A. não lhe tivesse disponibilizado o valor do financiamento sem a apresentação dos documentos da viatura, o Stand teria diligenciado a sua obtenção e entrega, sob pena da não activação do contrato do crédito e consequente inviabilização do contrato de compra e venda do veículo;

q) A Ré foi alheia a esta situação, pois que só em Julho de 2009, mais de um ano após ter assinado o contrato de crédito, é que teve conhecimento que o veículo não podia circular porque o Stand não entregou os respectivos documentos ao Autor;

r) De todo o exposto, resulta provado que o Autor não cumpriu pontualmente o contrato de crédito que assinou, como lhe competia e impõe o artº 406º, nº 1, do Código Civil, com grave prejuízo para a Ré;

s) A Meritíssima Juiz “a quo” não fez uma correcta apreciação da prova documental constante dos autos, bem como da prova produzida e gravada em audiência, ao não considerar provados os factos supra referidos;

t) A sentença violou, entre outras, as disposições do artº 406º, nº 1, do C. Civil, do artº 607º, nº 4, do C.P.Civil e do artº 12º do DL 359/91, de 21-9;

u) Deverá por isso ser revogada e substituída por outra que julgue a acção improcedente por não provada e absolva a ré dos pedidos formulados pelo Autor.»


A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações do recorrente resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar a eventual modificabilidade da matéria de facto (no sentido de serem alterados os pontos de facto nos 8 e 15 e aditados 16 novos pontos de facto, com os nos 20 a 35), ao abrigo do artº 662º do NCPC, e a aferir das consequências, no plano jurídico, da eventual procedência dessa impugnação da matéria de facto, sendo que é pretensão da apelante obter a total improcedência do pedido da A..

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«1. O A. é uma instituição de crédito;

2. O A. no exercício da sua actividade comercial, e com destino à aquisição do veículo automóvel da marca TOYOTA, modelo COROLLA 1.6 SOL, com a matrícula (…), concedeu à R. um crédito pessoal directo, por acordo exarado em documento particular denominado "Contrato de Mútuo", constando na frente do mesmo "Condições Específicas" e no seu verso "Condições Gerais", e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;

3. Nos termos do acordo designado em 2), datado de 23 de Junho de 2008, o A. emprestou à R. o valor de € 12.875,00, com juros à taxa nominal de 11,170% ao ano, devendo a importância do financiamento, nos termos acordados, ser liquidada em 84 prestações mensais e sucessivas, no montante de € 241,22 cada uma, com vencimento a primeira em 10.01.2009 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes;

4. De harmonia com o acordado entre as partes, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga mediante transferências bancárias, a efectuar aquando do vencimento de cada uma das prestações, para conta bancária sediada em Lisboa, logo indicada pelo A.;

5. Nos termos da cláusula 8/b) do acordo identificado em 1): "a falta de pagamento de uma prestação na data do respectivo vencimento implica o imediato vencimento de todas as restantes";

6. Mais foi convencionado entre o A. e R. que, em caso de atraso sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 11,170% – acrescida de 4 pontos percentuais;

7. A R., das prestações referidas em 3), não pagou a 9ª a 20ª prestações e as seguintes, vencidas aos 10 dias dos meses de Setembro de 2009 a Agosto de 2010, vencendo-se a 10.08.2010 todas as subsequentes;

8. Do indicado acordo consta sob o nº 4/c) a seguinte cláusula: "No valor das prestações estão incluídos o capital, os juros do financiamento, o valor dos impostos devidos, bem como os prémios das apólices de seguro a que se refere a cláusula 13 destas "Condições Gerais";

9. Consta ainda na cláusula 3ª do referido acordo que o financiamento "considera-se utilizado com a emissão pelo Banco (…) de uma ordem de pagamento, a favor do mutuário ou do fornecedor do bem financiado, de valor igual ao montante total do financiamento";

10. O ajuste do negócio de compra e venda do veículo identificado em 2) deu-se entre o stand fornecedor, identificado pela denominação de "(…) & (…), Lda.", e a Ré;

11. O preço foi acordado entre a Ré e o fornecedor do automóvel no montante de € 15.000,00, sendo a quantia de € 12.500,00 entregue ao vendedor directamente pelo Autor, mediante a concessão do financiamento titulado pelo acordo referido em 2) e 3) e o restante através da entrega directa pela Ré ao dito stand de um veículo automóvel marca Nissan Micra, cor verde, matrícula (…);

12. O identificado vendedor "(…) & (…), Lda." contactou o Autor com vista à concessão de um crédito directo à Ré para a aquisição desse veículo, uma vez que esta não disponha de meios económicos para efectuar o pagamento de uma só vez;

13. O vendedor enviou ao Autor os elementos de identificação da Ré, bem como comunicou-lhe o montante do empréstimo directo a conceder no valor de € 12.500,00, ao que o Autor acedeu;

14. O Autor solicitou como garantia que, sobre o veículo objecto do financiamento dos autos, fosse registada a seu favor uma reserva de propriedade, ao que a Ré acedeu;

15. Incumbia ao Autor proceder à inscrição no registo da reserva da propriedade, sendo que previamente era necessário proceder ao registo da transmissão da venda do veículo por parte de quem figurava como proprietário do mesmo;

16. O stand fornecedor "(…) & (…), Lda." não entregou ao Autor o livrete, o título de registo de propriedade do veículo e o requerimento-declaração para registo de propriedade devidamente assinado pelo anterior proprietário;

17. O stand vendedor não entregou à compradora os documentos do veículo identificado em 2), apesar de várias vezes solicitado pela Ré para o efeito;

18. A aquisição do veículo está registada em nome de (…), residente na Urbanização (…), lote 12, 1º Direito, Faro, com reserva de propriedade a favor de (…) Financiero de Crédito SA (sucursal em Portugal), com morada na Avenida da (…), 245-4C, Lisboa;

19. O veículo automóvel identificado nos autos encontra-se apreendido por entidade policial, uma vez que não pode circular por falta de documentos.»


B) DE DIREITO:

1. Como se disse, quanto à impugnação da matéria de facto, e se atentarmos nas conclusões das alegações de recurso da R. apelante, pretende esta o seguinte:

a) alteração da redacção dos pontos de factos sob nos 8 e 15, nos termos supra transcritos (de forma a incluir referências a “despesas de transferência de propriedade”, e a uma “incumbência da A. de proceder ao registo da transferência de propriedade para o nome da R.”, que a R. pretende extrair dos documentos relativos ao contrato de mútuo, juntos pela A. a fls. 9-13, e com base nas quais se procura configurar uma pretensa obrigação da A. de assegurar o cumprimento do contrato de compra e venda pelo vendedor, quanto à entrega dos documentos da viatura);

b) aditamento de novos pontos de factos, sob os nos 20 a 35, com a redacção proposta na conclusão i) das alegações de recurso, supra transcrita [e que, globalmente, retratariam um alegado incumprimento do contrato de crédito por parte da A., tal como afirmado na conclusão r) das alegações de recurso, na medida em que se sustenta que a A. «não poderia disponibilizar o valor do financiamento ao stand enquanto o mesmo não disponibilizasse os documentos da viatura», conforme se declara na conclusão o)].

Sustenta a R. apelante que estas diferenças na factualidade a considerar provada e não provada, relativamente à que como tal declarou o tribunal a quo, se imporão por força de uma diferente valoração dos meios de prova produzidos nos autos – concretamente os aludidos documentos relativos ao contrato de mútuo e os depoimentos prestados em audiência pela própria R., ouvida em declarações de parte, e pelas testemunhas (…), (…) e (…).

Comece-se, desde logo, por fazer notar, genericamente, que esta pretensão de impugnação da matéria de facto tem subjacente toda uma nova linha de defesa, que se traduz numa invocação, ainda que não expressamente assumida, da excepção de não cumprimento do contrato por parte da A., que teria alegadamente desonerado a R., pela sua parte, da obrigação de cumprimento das suas prestações contratuais – e daí se poderia depois deduzir a improcedência do pedido da A..

Ora, toda essa argumentação não foi minimamente vertida na contestação da R.: trata-se de matéria nova, não apresentada perante o tribunal a quo e sobre a qual este não se pronunciou, nem tinha de pronunciar. Aliás, o próprio tribunal recorrido, na sua fundamentação, salientou precisamente aquela omissão, afirmando o seguinte: que «não existem concretos factos provados, porquanto não foram invocados, que permitam sustentar que essa obrigação de entrega se encontrasse ligada por um nexo sinalagmático à obrigação de reembolso de financiamento»; ou, noutro trecho, que «não se pode deixar de sublinhar que nenhuma pretensão, afinal, foi deduzida pela Ré contra o Autor no que respeita à falta de cumprimento da obrigação de entrega dos documentos da viatura objecto do contrato de compra e venda»; e, a culminar esta linha de raciocínio, que «a Ré não formulou contra o Autor qualquer pretensão no sentido da excepção de não cumprimento do contrato de compra e venda respeitante à falta de cumprimento da obrigação [de entrega] dos documentos ser considerada numa eventual decisão condenatória a proferir».

Concorda-se com esta argumentação: efectivamente, não se inscreveu na contestação alegação fáctica no sentido de haver um nexo entre uma qualquer obrigação de entrega dos documentos da viatura por parte da A. e o cumprimento das prestações do contrato de mútuo por parte da R.. Nessa medida, a apresentação inovadora dessa tese já em sede de recurso permite concluir (como também sustenta a A. nas suas contra-alegações de recurso) que estamos perante matéria nova sobre a qual este tribunal de recurso também não se pode pronunciar. Com efeito, se uma questão não foi apreciada pelo tribunal a quo, então também não se pode pronunciar sobre ela o tribunal de recurso.

Como é sabido, os recursos, no nosso sistema processual, têm uma finalidade de reapreciação pelo tribunal superior de matéria ponderada na decisão recorrida, e não de apreciação de todas e quaisquer questões que os recorrentes entendam submeter-lhe, mesmo que não colocadas perante o tribunal recorrido. Como sublinham LEBRE DE FREITAS et alii, «os recursos ordinários são, entre nós, recursos de reponderação e não de reexame», pelo que aos tribunais de recurso cabe «controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último», ou seja, «não [lhes] cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la» (Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 7-8). Isto significa que não pode este Tribunal apreciar a questão de excepção de não cumprimento do contrato suscitada ex novo em sede de recurso.

Por aqui se poderá então extrair a conclusão de que está vedado a este Tribunal conhecer da matéria factual que a R. intentaria agora convocar, na medida em que, com tal matéria, no seu conjunto, se pretende sustentar a nova tese da excepção de não cumprimento do contrato.

Mesmo quando analisada de um ponto de vista mais específico, também não se encontra fundamento para conhecer daquela matéria factual. Assim, quanto aos pontos de factos sob nos 8 e 15, verifica-se que as referências que se pretende inserir se extrairiam de documentos que o próprio tribunal indicou, na respectiva motivação da matéria de facto, como tendo sido considerados na determinação da factualidade provada – pelo que a explicitação de outros dados, para além dos que já figuram na actual redacção dessa factualidade, nada adiantaria, porque sempre poderiam ser utilizados, a partir dos próprios documentos, e em função da remissão que para eles se faz no ponto de facto sob o nº 2, se tidos por relevantes (e não o são, como vimos, por inviabilidade da referida tese da excepção de não cumprimento do contrato). E, quanto aos pontos de factos sob os nos 20 a 35, não se vê como poderiam ser os mesmos extraídos de depoimentos (ainda que porventura estes os tivessem revelado) sem que os mesmos tivessem sido articulados pela R. na sua contestação, como não foram – e sendo certo que, não obstante a mitigação do princípio dispositivo no actual CPC, subsiste, no nº 1 do artº 5º desse diploma, a exigência de que o tribunal só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, relativamente àqueles que são essenciais quanto à causa de pedir e quanto às excepções invocadas (como é, no que tange a este último segmento, o caso da invocação pela R. da excepção de não cumprimento do contrato e dos factos, que a sustentariam, ora propostos para os novos nos 20 a 35 da factualidade provada).

Sendo assim, se a matéria fáctica que se pretendia inserir na factualidade provada não pode ser tida por relevante, por toda estar vinculada à tese da excepção de não cumprimento do contrato, impõe-se então concluir pela desnecessidade da audição da prova gravada em audiência e pela rejeição da pretensão de impugnação da matéria de facto.

Em conformidade, mantém-se integralmente a decisão de facto, tal como foi proferida no julgamento efectuado em 1ª instância.

2. Consequentemente, e perante a inalterabilidade dos factos apurados em sede de julgamento de 1ª instância, forçoso é concluir que, no plano jurídico, se deve ter por fundada a pretensão da A., nos termos em que a mesma foi reconhecida pelo tribunal recorrido, tanto mais que a R. se limitou a questionar a decisão deste apenas no plano de facto.

Aliás, nesta circunstância, pode mesmo afirmar-se que estamos perante “questão simples”, para os efeitos do disposto no artº 663º, nº 5, do NCPC, podendo bastar-se a decisão do recurso com uma fundamentação sumária do julgado, em conformidade com o citado normativo.

Com efeito, afigura-se correcto o percurso argumentativo, do ponto de vista jurídico, sustentado pelo tribunal recorrido.

Resultando da matéria provada a celebração de um contrato de mútuo entre A. e R., para financiamento de um contrato de compra e venda de veículo automóvel celebrado pela R. com terceiro, e o incumprimento daquele contrato pela R., teria de se reconhecer, à luz do artº 12º do Decreto-Lei nº 359/91 (em vigor à data da celebração), a impossibilidade de a R. opor à A. a eventual nulidade do contrato de compra e venda, por não estar demonstrada qualquer vinculação estável e exclusiva entre a A. e o vendedor da viatura, tal como entendido pela 1ª instância. Deverá assim proceder o pedido da A., apenas com a limitação decorrente da orientação firmada pelo citado AUJ-STJ nº 7/2009, quanto ao segmento do pedido relativo a juros remuneratórios.

Acolhem-se, assim, os fundamentos da sentença recorrida e não se vislumbra, pois, qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E, como tal, deverá improceder integralmente a presente apelação.

3. Em suma: concorda-se com o juízo decisório formulado pelo tribunal a quo, pelo que não merece censura a sentença sob recurso.

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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela R. apelante (artº 527º do NCPC), sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido (v. fls. 44-46).

Évora, 14/05/2015

Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)