Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
510/15.5T8OR.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: COMPETÊNCIA
GESTOR PÚBLICO
Data do Acordão: 06/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: É da competência da jurisdição administrativa o conhecimento da acção onde o autor, gestor público de uma empresa municipal que foi demitido, pretende receber as remunerações que receberia até ao termo do seu mandato (art.º 26.º, n.º 3, Decreto-Lei n.º 71/2007).
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora

AA propôs a presente acção, no Tribunal Administrativo e Fiscal, entrada em 1 de Outubro de 2010 contra Município e BB Gestão de Espaços e Equipamentos Municipais, EEM, pedindo que as RR. fossem condenadas a pagar-lhe uma determinada quantia.
Alega que foi vogal com funções executivas na 2.ª R. e que iniciou este mandato, cujo prazo é de três anos, em Agosto de 2008 e que foi exonerado em Dezembro de 2009. É, assim, credor das remunerações que receberia até ao fim do mandato (Julho de 2011).
*
O processo seguiu os seus termos e no despacho saneador foi decidido julgar incompetente, em razão da matéria, o TAF.
Esta decisão foi confirmada pelo ac. do TCA Sul, de 16 de Abril de 2015, já transitado.
*
O processo foi remetido para a comarca.
*
Aqui foi decidido que o Tribunal Judicial é incompetente, em razão da matéria.
*
O A. recorre, de novo, concluindo a sua alegação nestes termos:
Estando em causa nos presentes autos uma relação estabelecida entre um gestor público (o recorrente) e a empresa no âmbito da qual exercia funções de vogal, no quadro regulado pelo Estatuto do Gestor Público, estamos no domínio do direito privado.
Como tal é o tribunal comum quem tem competência para conhecer o pedido de indemnização pelos danos causados pela cessação antecipada do mandato deduzido pelo aqui recorrente enquanto gestor público nos presentes autos em que é demandada uma pessoa colectiva de direito público (1.ª R.).
Em discussão encontra-se tal relação contratual que encontra enquadramento nos artigos 1154.º e segs. do Cód. Civil.
Como tal, não tem cabimento no disposto no art.º 4.º, n.º 1, ETAF.
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Foram colhidos os vistos.
*
O Estatuto do Gestor Público, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 71/2007, aplica-se às pessoas designadas «para órgão de gestão ou administração das empresas públicas abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro» (art.º 1.º).
Por seu turno, este último diploma legal prevê a existência de empresas públicas locais (art.º 5.º) que têm a sua regulamentação na Lei n.º 53-F/2006 (a alteração de 2011 é posterior aos factos desta acção).
O art.º 47.º, n.º 4, desta Lei manda aplicar o Estatuto do Gestor Público aos «titulares dos órgãos de gestão das empresas integrantes do sector empresarial local».
O A. foi vogal com funções executivas (art.º 20.º, EGP) na empresa municipal que é a 2.ª R..
Nos termos do art.º 26.º, n.º 3, EGP, no caso de dissolução dos órgãos ou livre demissão do gestor, este «tem direito a uma indemnização correspondente ao vencimento de base que auferiria até́ ao final do respectivo mandato, com o limite de um ano».
É este o fundamento da acção.
*
É a jurisdição civil a competente para conhecer deste litígio ou é a jurisdição administrativa e fiscal?
Considerando o disposto no art.º 66.º, Cód. Proc. Civil vigente à data da proposição da acção, o problema deve ser visto à luz do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, com a última (no que aqui interessa) alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 166/2009.
O seu art.º 1.º tem o seguinte teor: «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
São os litígios que surgem no âmbito das relações administrativas que constituem o objecto desta jurisdição e, por isso, definem a sua competência. O art.º 4.º, ao elencar um conjunto de matérias, não o faz de forma taxativa, como logo resulta da utilização do advérbio «nomeadamente». Significa isto que as diversas alíneas do n.º 1 daquele preceito legal não esgotam o objecto da jurisdição administrativa. Lê-se no ac. da Relação de Lisboa, de 13 de Março de 2014, o seguinte: a «actual definição legal, na esteira da lei fundamental, deixou de estribar a delimitação da jurisdição administrativa na distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, deslocando o pólo aglutinador para o conceito de relação jurídica administrativa e de função administrativa, em que avulta a realização de um interesse público levado a cabo através do exercício de um poder público e, portanto, de autoridade, seja por uma entidade pública, seja por uma entidade privada, em que esta actua no uso de prerrogativas próprias daquele poder ou no âmbito de uma actividade regulada por normas do direito administrativo ou fiscal».
A jurisdição administrativa não é hoje uma jurisdição por atribuição, no sentido de que a ela cabe conhecer dos litígios que a lei expressa e restritivamente indica. Como se escreve no mesmo acórdão, os «tribunais administrativos são, actualmente, os verdadeiros tribunais comuns em matéria administrativa». A sua competência abrange a quase totalidade, se não mesmo a totalidade, dos litígios que envolvam a Administração Pública, seja directamente, seja por intermédio de particulares que a ela se associam para prosseguir objectivos públicos, com base nos instrumentos jurídicos disponíveis.
A expressão «relação jurídica administrativa» pode ter diversos sentidos. Um subjectivo que se pode entender «como qualquer relação em que intervenha a Administração»; um tendencialmente objectivo «como a relação em que intervenham entes públicos, mas desde que sejam reguladas pelo Direito Administrativo»; e um outro sentido «associado agora à ideia do âmbito da própria função administrativa» (Vieira de Andrade, «Âmbito e Limites da Jurisdição Administrativa» em Reforma do Contencioso Administrativo Trabalhos Preparatórios O Debate Universitário, ed. do Ministério da Justiça, s. d., p. 102).
O certo, em todo o caso, é que, coligados aqueles sentidos da expressão, a reforma acabou entregar à jurisdição administrativa os litígios com a Administração Pública. Como logo se escreveu após a reforma de 2002, «uma das grandes novidades desta reforma do contencioso administrativo reside precisamente (…) na eliminação da referência às questões de direito privado no elenco de matérias que se consideram excluídas do foro administrativo. Finalmente desaparece a dicotomia tradicional “gestão pública/ gestão privada” como critério de repartição de competência entre o foro administrativo e o foro comum» (cfr. M.ª João Estorninho, «A reforma de 2002 e o Âmbito da Jurisdição Administrativa», em C.J.A., n.º 35, p. 5). E logo adianta: «Sintomática desta eliminação da dicotomia “gestão pública/gestão privada” é a atribuição aos tribunais administrativos, no art.º 4º., n.º 1, alínea g), do novo ETAF, de todo o contencioso da responsabilidade civil extracontratual das pessoas, colectivas de direito público (e não apenas, como agora acontece, do contencioso da responsabilidade civil extra-contratual por actos de gestão pública)» (idem, ibidem).
*
No nosso caso temos um gestor público cujo mandato terminou antes do prazo convencionado; o gestor pretende receber as remunerações que receberia até ao seu termo normal.
Não temos dúvidas em afirmar que este litígio tem a sua fonte numa relação de direito administrativo, que se trata, para usar a fórmula legal, de um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa.
Estamos perante a nomeação (e posterior demissão) do A. para um cargo de gestor público, para exercer funções numa empresa municipal. É uma relação de Direito Público, sem margem para dúvidas — e o facto de se chamar mandato ao exercício temporalmente limitado de funções não lhe atribui a natureza do contrato civil de mandato regulado nos artigos 1154.º e segs. do Cód. Civil.
E se tanto é assim à luz do art.º 1.º do ETAF, ainda mais será à luz do seu art.º 4.º, n.º 1, al. f): «Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público».
A nomeação de um gestor é feita por acto administrativo (art.º 13, n.º 2, EGP) e o exercício de funções está submetido a um contrato de gestão (art.º 18.º, EGP). As empresas empresariais municipais (como é o caso da 2.ª R.) estão sujeitas a tutela (art.º 30.º da Lei n.º 53-F/2006). Tudo isto é um regime de Direito Administrativo, tudo isto tem que ver com relações jurídicas administrativas.
*
Não estamos perante uma relação laboral do pessoal da empresa, caso em que se aplicaria o regime privado, nos termos do art.º 45.º da Lei n.º 53-F/2006; estamos perante o caso de um gestor público que foi demitido e a que se aplica o respectivo estatuto, por força da remissão feita pelo art.º 47.º, n.º 4, da mesma Lei.
*
Por estes motivos, entendemos que é competente para conhecer deste litígio a jurisdição administrativa.
*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente.
Évora, 16 de junho de 2016

Paulo Amaral

Rosa Barroso

Francisco Matos