Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
164/13.3YREVR
Relator: ANTÓNIO M. RIBEIRO CARDOSO
Descritores: LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
TRIBUNAL COMPETENTE
SENTENÇA PENAL
Data do Acordão: 04/28/2014
Votação: DECISÃO DO VICE-PRESIDENTE
Tribunal Recorrido: COMARCA DE PORTIMÃO - 2º JUÍZO CRIMINAL-1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Sumário:
O tribunal criminal que condenou no pagamento da indemnização cível a liquidar posteriormente, é o competente para processar e conhecer do incidente de liquidação, renovando-se a instância no enxerto cível
Decisão Texto Integral:
No processo comum (tribunal singular) nº 469/10.5GTABF do 2º juízo criminal da comarca de Portimão, foi deduzido pedido de indemnização cível, tendo a demandada Companhia de Seguros…, S. A. sido condenada a pagar à demandante E… “a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, a título de danos patrimoniais sofridos até à consolidação das lesões”.
Após trânsito, deduziu a demandante, no processo e tribunal referidos, o incidente de liquidação de sentença.
A demandada deduziu oposição.
Proferiu então a Mmª Juíza despacho indeferindo liminarmente a petição, nos seguintes termos:
“Vem a demandante E… deduzir incidente de liquidação de sentença, ao abrigo do disposto nos artigos 47°, n.ºs, 661°, n.º 2, 378°, nº. 2 do Código de Processo Civil contra a Companhia de Seguros….
Ora, segundo o disposto no artigo 82°, n.º 1, do Código de Processo Penal “Se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença. Neste caso, a execução corre perante o Tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal.” Daqui se retira, que a competência para tramitar tal incidente pertence aos Tribunais civis.
Destarte, declinando a competência deste tribunal para conhecer da matéria versada nos autos, porquanto consideramos que o presente incidente deve ser dirimido pela 1ª instancia dos Tribunais de competência civil, ao abrigo do artigo 66°, 96°, 101º, 102°, 103° e 105°, todos do Código de Processo Civil, indefiro liminarmente a petição inicial. Notifique.”
Notificada deste despacho, e invocando os arts. 105º, nº 2 e 33º do CPC, requereu a demandante a remessa dos autos ao tribunal competente “no sentido de aproveitar os articulados”.
Notificada, a demanda não se opôs.
Remetidos os autos aos juízos cíveis de Portimão e após a distribuição, proferiu a Mmª Juíza do 1º juízo cível despacho declarando igualmente a incompetência material do tribunal cível, entendendo caber a competência para a liquidação ao juízo criminal que proferiu a sentença liquidanda, e absolvendo a demandada da instância.
Transitadas em julgado ambas as decisões, requereu a demandante que fosse suscitada oficiosamente a resolução do conflito.
Recebidos os autos neste tribunal foi cumprido o estabelecido no art. 112º, nº 1 do CPC, tendo apenas a Ex.mª Srª Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal se pronunciado e no sentido da competência caber ao juízo criminal que proferiu a sentença em liquidação.

Decidindo.

Antes das alterações ao Código de Processo Civil introduzidas pelo DL 38/2003 de 8/03, a liquidação podia ser feita de duas formas ou, mais propriamente, em dois momentos. O primeiro, nos termos do art. 378º a 380º (antes de começar a discussão da causa, sendo discutida e julgada com a causa principal) e o segundo, no processo executivo, iniciando-o, nos termos dos arts. 805º a 810º, observando-se, no caso de contestação ou revelia inoperante, os termos do processo sumário de declaração.
Com o DL 38/2003 a liquidação continuou a fazer-se de duas formas, mas não já em função do momento, mas do título executivo.
Assim, tratando-se de acção declarativa com pedido genérico, quando este se referia a uma universalidade ou às consequências de um facto ilícito [art. 471º, nº 1, als. a) e b)], a liquidação continuou a ter lugar antes de começar a discussão da causa, como até então [art. 378º, nº 1], mas permitiu-se que pudesse ser ainda deduzida depois de proferida a sentença de condenação genérica, caso em que, sendo admitida, a instância extinta [com o julgamento – art. 287º, al. a)] se consideraria renovada [art. 378º, nº 2] e, sendo contestada a liquidação ou sendo a revelia inoperante, seguir-se-iam os termos do processo sumário de declaração [art. 380º, nº 3], tudo se processando, obviamente, no próprio processo de declaração, cuja instância, como se referiu e nos termos legais, se consideraria renovada.
Tratando-se de título executivo diverso da sentença e não dependendo a liquidação de mero cálculo aritmético, a liquidação continuou sendo feita, como até então, no processo executivo, iniciando-o, e, sendo deduzida contestação ou sendo a revelia inoperante, observando-se o disposto nos nºs 3 e 4 do art. 380º, mas no próprio processo executivo [art. 805º, nºs 4 e segs.].
Este regime foi mantido no actual CPC (aprovado pela Lei 41/2013 de 26/6), nos arts. 358º e 716º, nºs 3 e 4 (com excepção da referência ao processo sumário de declaração que passou a ser “do processo comum declarativo” – art. 360º, nº 3 do CPC).
Acresce que o art. 704º, nº 6 do CPC ora em vigor, estabelece que tendo havido condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º, e não dependendo a liquidação da obrigação de simples cálculo aritmético, a sentença constitui título executivo após a liquidação no processo declarativo, sem prejuízo da imediata exequibilidade da parte que seja líquida e do disposto no n.º 7 do artigo 716.º.
É clara a referência neste preceito ao facto da liquidação dever ser feita no processo declarativo, liquidação da qual depende, inclusive, a sua exequibilidade, rectius, a sua qualidade e classificação como título executivo.
É certo que o art. 716º, nº 5 do CPC ora vigente, dispõe, diferentemente do que estabelecia o diploma precedente, que o disposto no número anterior (nº 4) é aplicável às execuções de decisões judiciais ou equiparadas, quando não vigore o ónus de proceder à liquidação no âmbito do processo de declaração, bem como às execuções de decisões arbitrais, ou seja, a liquidação constitui o início e um incidente da execução. Porém, tal só é assim, nos casos em que, como expressamente ressalvado no preceito, quando não vigore o ónus de proceder à liquidação no âmbito do processo de declaração.
E, no caso, como, penso, ter demonstrado, esse ónus de liquidação na acção declarativa existe.
Do referido uma conclusão sobressai de imediato. A liquidação é um incidente processual da acção declarativa (ou da execução, consoante os casos).
E processando-se a liquidação nos termos dos art. 358º e sgs., quaisquer dúvidas que pudessem existir seriam arredadas com a simples observação da sistemática do Código de Processo Civil. Os arts. 358º a 361º constituem o capítulo V do título III com a epígrafe “Dos incidentes da instância”. E o próprio art. 360º é epigrafado de “termos posteriores do incidente”.
Por outro lado, sendo a liquidação feita na acção declarativa antes do início da discussão da causa, parece não merecer a menor dúvida o seu carácter meramente incidental (a própria discussão e o julgamento são feitos com a causa principal).
Mas mesmo quando tem lugar depois da sentença de condenação genérica, o seu cunho incidental é patente, uma vez que é a própria instância da acção declarativa que se renova, não se iniciando uma nova instância.
Finalmente, é o próprio legislador que classifica a liquidação na acção declarativa, anterior ou posterior à sentença, como incidente [art. 358º, nº 1 “…o autor deduzirá, sendo possível, o incidente de liquidação…”; art. 358º, nº 2 “o incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica…”].
E não oferece a menor dúvida que, apesar da sentença condenatória cuja liquidação está em causa, ter sido proferida no enxerto cível e julgado na acção penal, ainda assim valem os considerandos atrás consignados, equivalendo o enxerto cível à acção declarativa cível.
É certo que o art. 82º, nº 1 do CPP estabelece que se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença. Neste caso, a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal, sendo este o preceito ao abrigo do qual o juízo criminal declinou a sua competência para a liquidação.
Porém, importa ter em devida conta que a redacção deste preceito continua a ser a inicial (dada pelo DL n.º 78/87, de 17/02), quando ainda a execução de sentença não liquidada se iniciava, precisamente, com a liquidação do julgado, constituindo a execução (como continua a constituir) um novo processo e a liquidação um seu incidente.
Porém, como atrás referi, o processo civil e o processamento da liquidação da sentença sofreu grandes alterações, não sendo hoje processualmente possível deduzir o incidente de liquidação da sentença na acção executiva, tendo sempre que ocorrer como incidente da acção declarativa, excepto quando não vigore o ónus de proceder à liquidação [da decisão] no âmbito do processo de declaração.
Estabelece o art. 7º do Código Civil:
1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.
2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.
3. A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.
4. A revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que esta revogara.
Como vimos, mercê das alterações legislativas introduzidas ao CPC e, concretamente, ao processamento do incidente de liquidação de sentença, é manifesta a incompatibilidade entre o disposto no art. 82º, nº 1 do CPP e o estabelecido no CPC relativamente ao referido processamento, já que não é hoje possível liquidar a sentença como incidente da acção executiva, pressuposto subjacente ao art. 82º, nº 1.
Por conseguinte, a conclusão que se impõe é a de que, nos termos do art. 7º, nº 2 do CC, o art. 82º, nº 1 do CPP, na parte em que estabelece que tendo a liquidação da indemnização sido relegada para execução da sentença, a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal, está tacitamente revogado.
E, assim sendo, não se oferecem dúvidas de que cabe ao tribunal que proferiu a sentença condenatória liquidanda, o processamento e conhecimento do incidente de liquidação.
Pelo exposto e sem necessidade de outros considerandos, dirimindo o conflito, atribuo a competência aoJuízo Criminal da comarca de Portimão.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 28.04.2014
(António Manuel Ribeiro Cardoso)
(Vice-Presidente)