Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4440/13.7TBSTB.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA PRESUMIDA DO CONDUTOR
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 05/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - O Tribunal não está impedido de recorrer às regras de experiência comum e às presunções naturais para a prova da culpa, sendo os acidentes de viação um campo privilegiado para a aplicação de presunções naturais.
II - O despiste inopinado e descontrolado, ao descrever uma curva, de um motociclo, envolvendo invasão da hemi-faixa por onde circulava outro veículo, com o qual veio a colidir, deve qualificar-se como evento anormal e imprevisível, para o efeito do preenchimento dos elementos tipificados no nº1 do artigo 24º do Código da Estrada.
III - A Lei não estabelece um prazo fixo para a colheita de sangue em caso de acidente, devendo esta realizar-se “no mais curto prazo possível”.
IV – Se, através de exame para pesquisa de álcool no sangue se apurou que o condutor tinha, cerca de 3 horas depois do acidente, uma taxa de 0,67 g/l de álcool, pode, com a devida segurança, concluir-se que ele conduzia o veículo sob a influência de álcool.
V - Não é exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, isto é, os factos em que se materializa a influência do álcool na condução e que eram relevantes na vigência do DL nº 522/85, de 31-12, na interpretação do AUJ nº 6/2002.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

RELATÓRIO
AA, S.A. instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra BB, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 93.156,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento.
Alegou, em síntese, que no âmbito da sua atividade seguradora e relativamente ao contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0002124891, referente ao motociclo …-…-RQ, propriedade do réu, procedeu ao pagamento da referida quantia a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes de acidente de viação ocorrido em 18.07.2010, em que foi interveniente o dito motociclo conduzido pelo réu e no qual seguia também CC, atribuindo a culpa na eclosão do acidente ao réu, dizendo que o mesmo circulava desatento e em excesso de velocidade, além de conduzir o RQ com uma taxa de álcool no sangue superior à permitida, o que lhe diminuía a capacidade de discernimento, bem como as capacidades psico-motoras.
Mais alegou que do acidente resultaram lesões na integridade física do réu e a morte do “pendura”, bem como danos materiais no veículo BD e no motociclo, tendo a autora efetuado o pagamento da quantia de € 90.000,00 a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais aos herdeiros de CC e € 3.156,00 a título de reparação do veículo BD, quantias de que se quer ver ressarcida com a presente ação, nos termos do art. 27º, nº 1, al. c), do DL 291/2007 de 21.08.
O réu contestou, começando por invocar a inconstitucionalidade do art. 156º, nº 2, do Código da Estrada, por violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição da República Portuguesa, defendendo que quem está consciente tem as hipóteses do art. 153º do CE à sua escolha, e que quem ficou inconsciente no acidente e assim foi conduzido ao Hospital – como sucedeu com o réu -, não tem qualquer escolha, nem sabe que lhe tiraram sangue para análise.
Invocou de seguida o réu a prescrição dos pagamentos alegados pela autora, por a mesma não indicar as datas em que os efetuou, salientando que o acidente ocorreu no dia 18 de Julho de 2010 e a petição inicial apenas deu entrada em juízo a 23 de Julho de 2013, quando já haviam decorrido mais de 3 anos.
Quanto ao acidente rejeitou qualquer culpa da sua parte na produção do mesmo, afirmando que à data pesava cerca de 70/75 Kg e o inditoso CC pesava cerca de 100 Kg, pelo que este desequilíbrio provocado, eventualmente, pelo passageiro, será a única explicação lógica que se pode encontrar para a eclosão do acidente.
Na sequência de despacho a notificar a autora para o efeito, veio esta esclarecer que o pagamento da quantia de € 90.000,00 ocorreu a 14.04.2012 e a quantia de € 3.156,00 foi paga em 05.11.2010.
Procedeu-se à realização de audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador que relegou para decisão final o conhecimento das exceções invocadas pelo réu – até porque em sede de audiência prévia a autora solicitou e foi-lhe concedido prazo para responder por escrito à matéria de exceção[1] -, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação.
Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu o réu do pedido.
Inconformada, a autora apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«1 - Vem a Apelante por meio das presentes alegações de recurso sindicar da decisão contida na sentença a fls… dos autos, cingindo as mesmas a dois pontos concretos: i) Da responsabilidade do Réu/Apelado na produção do sinistro dos autos e ii) Da condução do Réu/Apelado sob influência de álcool no sangue, à data do sinistro dos autos;
2 - De facto, com todo o respeito e consideração, entende a Apelante que mal andou o Tribunal a quo ao julgar improcedente a acção intentada pela mesma, o que fez com fundamento no errado julgamento da matéria de facto e aplicação das regras de direito;
3 - No que concerne ao primeiro dos tópicos de análise, entende a Apelante que a prova produzida em sede de julgamento impunha que o Tribunal a quo desse como provada a culpa do Apelado no sinistro dos autos, por meio da prova da factualidade que ora se reproduz, julgada, todavia, não provada: “Que no momento em que a condutora do veículo BD se encontrava a descrever a curva existente na faixa de rodagem, sita à sua esquerda atento o sentido de marcha, foi a mesma surpreendida, pela presença do motociclo RQ (…)”; “Que o RQ ao descrever a curva ai existente invadiu a via de trânsito em que circulava a condutora do veículo BD”;
4 - Ora, sem prejuízo da concreta apreciação da prova testemunhal produzida nos autos, entende a Apelante que a prova da matéria de facto referida no ponto 3. das presentes conclusões resulta ela mesma provada através do confronto com a matéria de facto dada como provada, pelo Tribunal a quo, na sentença dos factos, sob os artigos 10) e 18) dos elenco dos factos provados: “De súbito o RQ despista-se e cai na estrada, bem como o seu condutor e o pendura e, a deslizar pelo chão, invadem a faixa de rodagem por onde a condutora do BD seguia”; “O veículo BD sofreu dano em consequência do acidente tendo sido reparado (…)”, padecendo a sentença dos autos, nesta concreta parte, de manifesta nulidade nos termos e ao abrigo do artigo 615.º n.º c) do CPC;
5 - Deste modo, incorre a sentença dos autos em manifesta contradição entre a matéria de facto dada como provada nos artigos 10) e 18) dos factos provados e a matéria de facto não provada, integrante do elenco dos factos não provados respeitante à invasão da via de trânsito onde circulava o veículo BD pelo motociclo RQ, pois que a primeira implica, necessariamente, a prova desta última;
6 - Assim, a queda e consequente despiste e deslizamento do motociclo RQ, conforme artigo 10) dos factos provados, bem como a invasão da via de trânsito onde circulava a condutora do BD, pelos ocupantes do motociclo RQ, conforme artigo 10) dos factos provados, aliado aos danos sofridos pelo veículo BD em consequência do sinistro dos autos, conforme artigo 18) dos factos provados, impõe, necessariamente, a prova da factualidade respeitante à invasão da via de trânsito onde circulava o veículo BD, pelo motociclo RQ, uma vez que os danos no primeiro apenas podem ser causados pelo embate do motociclo RQ no veículo BD, factualidade que pressupõe, claro está, a invasão da via de trânsito;
7 - Sem prejuízo do exposto, chegamos a idêntica conclusão através da prova testemunhal produzida nos autos, mormente do depoimento da condutora do veículo BD, Dora…, que de forma clara, isenta e objectiva declarou: i) O motociclo RQ após sair da curva e após ter percorrido alguma distância (não concretizável) acaba por se despistar; ii) Em consequência do despiste os corpos do condutor e passageiro são projectados; iii) vindo o motociclo, sem os corpos do condutor e passageiro, a deslizar pela faixa de rodagem, invadindo, em consequência, a via de trânsito onde circulava a condutora do veículo BD; iv) A condutora do veículo BD, com vista a evitar o embate, enceta manobras de desvio da trajectória do veículo por si conduzido para a berma da estrada, sita do lado direito, atenta a sua circulação; v) O que comprova a invasão da faixa de rodagem onde esta seguia pelo motociclo RQ; vi) Ocorrendo o embate entre o motociclo RQ e o veículo BD depois da curva, atento o sentido de marcha do motociclo, e ainda antes de chegar à curva, atento sentido de marcha do veículo BD;
8 - O depoimento da condutora do veículo BD afigura-se mais credível, no que concerne à factualidade atinente à invasão da via de trânsito onde o primeiro circulava pelo motociclo RQ, que as declarações de parte do Apelado, condutor deste último, porquanto, conforme confessado pelo mesmo, o Apelado não tem memória da dinâmica do sinistro, apenas concluindo pela ausência de embate do motociclo RQ no veículo BD (e consequente invasão da via de trânsito em que este último circulava), após observação, algum tempo após o sinistro, dos danos no motociclo RQ, sendo certo que os danos no motociclo RQ não integram a matéria de facto dada como provada nos autos, ao contrário dos danos causados no veículo BD em consequência do sinistro (artigo 18) dos factos provados), o que sempre faz sucumbir a razão de ciência do depoimento do Apelado, inviabilizando a conclusão almejada pelo mesmo;
9 - Sem prescindir e ainda no que respeita ao primeiro dos tópicos de análise, a prova da factualidade atinente à invasão da via de trânsito em que circulava o veículo BD, pelo motociclo RQ, extrai-se, igualmente, da prova indiciária vertida no Despacho de Arquivamento, apurada em sede de processo-crime que correu termos na 2.ª secção dos Serviços do Ministério Público de Setúbal, sob o número 268/10.4GCSTB, junto aos presentes autos por meio de Requerimento do Apelado, datado de 9 de Abril de 2015;
10 - Aqui chegados, temos que, mal andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, à revelia do artigo 413.º do CPC, devendo, ao invés, dar como provada a matéria integrante do elenco dos factos não provados, vertida no ponto 3. das presentes Conclusões;
11 - Não obstante, pese embora dúvidas não restam de que o motociclo RQ invadiu a faixa de rodagem onde circulava ao veículo BD, certo é que da prova produzida em julgamento, em concreto do depoimento da condutora do veículo BD e declarações de parte do Apelado, não se apurou a causa do despiste do motociclo e consequente invasão da via de trânsito, fundamento do Tribunal a quo, expresso na sentença em crise, para julgar não provada a culpa do condutor do motociclo RQ no sinistro dos autos, aqui Apelado;
12 - Todavia, atenta a factualidade conhecida é possível concluir-se, ao abrigo da figura as presunções judiciais contidas nos artigos 349.º e 351.º do Código Civil e jurisprudência relevante, pela culpa imputável a este último, pois que a invasão da via de trânsito onde circulava o veículo BD, pelo motociclo RQ, (facto conhecido) ainda que na ausência de conhecimento da sua causa, (facto desconhecido), permite concluir pela violação das regras estradais imputável ao seu condutor, aqui Apelado, em concreto, “a imperícia” do condutor, “que não logrou, em condições normais, controlá-lo, mantendo-o na faixa em que circulava”, concluindo-se, desta feita, e contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, pela culpa imputável ao condutor do motociclo RQ, aqui Apelado;
13 - Devendo, assim sendo, Integrar a matéria de facto provada nos autos, a seguinte: “O sinistro dos autos teve como causa a imperícia do condutor do motociclo RQ, aqui Apelado, o qual não logrou, em condições normais, controlá-lo, mantendo-o na faixa em que circulava”
14 - Mal andando o Tribunal a quo ao pugnar pela ausência de culpa do condutor do motociclo RQ, aqui Apelado, em violação dos artigos 413.º do CPC e 349.º e 351.º do CC;
15 - Por último, no que concerne ao segundo tópico do objecto das presentes alegações de Apelação, entende, igualmente, a Apelante que padece a sentença em crise de manifesto erro de aplicação de direito ao dar como não provada a matéria “ Que no momento do despiste o Réu circulava com uma taxa de álcool de 0,67 g/l”, dando, todavia, como provada a factualidade: “15) Tendo-se procedido ao exame para pesquisa de álcool no sangue por colheita de sangue a BB, pelas 22:18 horas do dia 18/7/2010, verificou-se o resultado de 0,67 g/l.”
16 - Fundamentou o Tribunal a quo a ausência de prova, à data do sinistro dos autos, da taxa de álcool no sangue, superior à legalmente permitida, pelo Apelado, com base na dilação temporal entre a hora do sinistro (19:30 horas) e a hora da recolha de sangue para a realização do aludido exame (22:18 horas); concluindo, desta feita, que, não obstante o Apelado acusar uma TAS de 0,67 g/l às 22:18 horas do dia 18.7.2010, não se afigura válido concluir que o mesmo acusaria igual taxa de álcool, no mesmo dia, no momento do sinistro dos autos, situado pelas 19:30 horas.
17 - Com todo o respeito e consideração pelo Tribunal a quo, entende a Apelante que o raciocínio vindo de explanar encontra-se inquinado na premissa que lhe serve de base: o período legalmente imposto para recolha de sangue, no decurso do qual encontra-se dotada de validade a prova de álcool, pois que, analisado o Código da Estrada, mormente o artigo 156.º, constata-se, com clareza, que não é imposto qualquer período temporal para recolha do álcool no sangue a condutores impedidos de realizarem o teste de álcool por ar expirado, ou seja, o legislador não exige que o teste de álcool no sangue seja realizado dentro de dado período temporal, sob pena de invalidade da prova assim obtida;
18 - Deste modo, ao abrigo do artigo 156.º do Código da Estrada e jurisprudência relevante na matéria, inexistindo disposição legal que estabeleça o período temporal no decurso do qual deve ser efectuado o teste de álcool no sangue, findo o qual carece de validade o exame realizado, o teste de álcool no sangue realizado ao Apelado às 22:18 do dia 18/7/2010 afigura-se probatoriamente válido, concluindo-se, deste modo, pela condução, pelo Apelado, sob influência de álcool, à data dos factos em discussão, em concreto com uma taxa de 0,67 g/l.
19 - Sem prescindir, sempre se diga que, ao abrigo da jurisprudência relevante, não obstante inexistir período temporal que obrigue à realização do exame de álcool no sangue, é entendimento pacífico que o decurso das horas faz decrescer a quantiada de álcool no sangue, o que permite concluir, in casu, pelo aumento da taxa de álcool do Apelado, à hora do sinistro em discussão;
20 - Sem ainda prescindir, a sufragar-se o entendimento do Tribunal a quo, no sentido de que, a dilação temporal na realização do teste de álcool no sangue redunda na ausência de valoração probatória do seu resultado para efeitos de prova da taxa de álcool, ter-se-ia que abolir do elenco dos exames a realizar, para esse fim, no Código da Estrada, a recolha de sangue, porque necessariamente realizada em momento temporal distinto do sinistro, em local diverso e, deste modo, ferida de validade probatória;
21 - Face ao exposto, deverá integrar o elenco dos factos provados a matéria dada como não provada que se reproduz, novamente: “Que no momento do despiste o Réu circulava com uma taxa de álcool de 0,67 g/l”;
22 - Incorrendo o Tribunal a quo com ao julgar a aludida matéria não provada na violação do artigo 156.º do Código da Estrada;
23 - A igual conclusão se chega se atentarmos na prova indiciária obtida nos autos de processo-crime, melhor identificados no ponto 9. das presentes conclusões, que expressamente concluiu no sentido da condução do Apelado, sob efeito de álcool no sangue, à data dos factos, na quantidade de 0,67 g/l;
24 - Por todo o exposto, encontrando-se provada a culpa do Apelado no sinistro dos autos, bem como a condução sob efeito de álcool do mesmo, à data dos factos em discussão, e dispensada a prova do nexo de causalidade entre o sinistro e a condução sob efeito de álcool, conforme jurisprudência do STJ, e contrariamente ao que aprece ser o entendimento do Tribunal a quo, entende a Apelante que cumpriu integralmente com o ónus de prova que sobre si impendia, ao abrigo do artigo 27.º n.º 1 c) do DL 291/2007, devendo, consequentemente, a acção ser julgada integralmente procedente, por provada, mal andando o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, à revelia dos artigos 27.º n.º 1 c) do DL 291/2007, 483.º do CC;
Face ao exposto,
Julgando de acordo com as CONCLUSÕES supra, será feita JUSTIÇA!»

O réu contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Como é sabido, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635º, nº 3 a 5 e 639º, n.º 1, do CPC.
Assim, das conclusões da recorrente retira-se que as questões a decidir são as seguintes:
- nulidade da sentença;
- culpa do réu na produção acidente;
- se no momento do acidente o réu conduzia o seu motociclo sob influência de álcool no sangue.

III - FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1) Encontrava-se, à data de 18/7/2010, transferida para a A. a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação relativa ao motociclo com a matrícula …-…-RQ mediante contrato de seguro titulado pela Apólice com o n.º ….
2) No dia 18 de Julho de 2010, pelas 19:30 horas, na E.M.536, Estrada do Vale da Rosa, localidade de Vale da Rosa, distrito de Setúbal, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o motociclo com a matrícula …-…-RQ, doravante apenas RQ, propriedade do ora Réu e conduzido pelo mesmo, em que era passageiro CC e o veículo com a matrícula …-BD-…, doravante BD, propriedade de Dora … e conduzido pela mesma.
3) O local onde concretamente ocorreu o acidente - E.M. 536 – Estrada Vale da Rosa – é uma faixa de rodagem, com 7,10m (sete metros e dez centímetros) de largura, composta por uma via de trânsito de dois sentidos, Pontes – Faralhão/Faralhão – Pontes, delimitada por uma linha longitudinal contínua (marca M1) apresentando uma curva à direita com ligeira inclinação descendente.
4) A faixa de rodagem encontrava-se, à data dos factos, devidamente conservada.
5) A velocidade máxima permitida no local é de 50 Km/h (cinquenta quilómetros/hora).
6) Na altura, o tempo estava bom, com luminosidade.
7) Na ocasião supra descrita, o condutor do RQ, ora Réu, circulava na E.N. 536, no sentido Pontes – Faralhão.
8) No mesmo tempo e lugar, a condutora do BD, circulava no sentido Faralhão – Pontes.
9) A uma distância não exatamente apurada, mas ainda na reta que antecede a curva, atento o sentido de marcha do BD, a condutora avistou o RQ, que seguia em posição normal e dentro da sua faixa de trânsito.
10) De súbito o RQ despista-se e cai na estrada, bem como o seu condutor e o pendura e, a deslizar pelo chão, invadem a faixa de rodagem por onde a condutora do BD seguia.
11) A condutora do BD tentou desviar o seu veículo para a berma do lado direito da estrada, atento o seu sentido de marcha e travou, imobilizando o seu veículo.
12) O condutor do motociclo, a deslizar pelo chão, veio a imobilizar-se por baixo do BD e o CC imobilizou-se na estrada no lado esquerdo do veículo, atento o sentido de marcha deste.
13) O motociclo RQ ao deslizar no pavimento, veio a imobilizar-se do lado direito do veículo BD, atento o sentido de marcha deste.
14) Em consequência direta e necessária do sinistro ora relatado, resultaram danos físicos no ora Réu e ocupante do motociclo RQ, os quais, no que respeita a este último, foram causa direta e necessária da sua morte.
15) Tendo-se procedido ao exame para pesquisa de álcool no sangue por colheita de sangue a BB, pelas 22:18h do dia 18/7/2010, verificou-se o resultado de 0,67 g/l.
16) Tendo-se realizado análise à vítima CC em 15/9/2010, apurou-se um resultado de 1,25 g/l de quantificação de etanol no sangue por GC/HS/FID no sangue periférico.
17) Correu processo-crime contra o aqui Réu, na 2.ª Secção dos Serviços do Ministério Público de Setúbal, sob o número 268/10.4GCSTB, pelos crimes de ofensa à integridade física por negligência p.p. pelo artigo 148.º n.º 1 do Código Penal e homicídio por negligência, p.p. pelo artigo 137.º n.º 1 do Código Penal, tendo sido proferido em 31/1/2011 despacho de arquivamento dos autos pelo MºPº, por carência de prova indiciária.
18) O veículo BD sofreu danos em consequência do acidente, tendo sido reparado o para-choques frente; o farol esquerdo e direito; o friso da porta da frente esquerda; o capot; o guarda-lamas frente esquerdo; a porta frente esquerda; a cava da roda frente esquerda e direita; o manípulo exterior da porta da frente esquerda; a chapa de matrícula frente e a grelha inferior esquerda e direita.
19) Ao abrigo do contrato de seguro e tendo concluído pela culpa in totum do condutor seguro na Autora, ora Réu, pela produção do sinistro dos autos, veio a Autora a ressarcir os danos, despendendo, para o efeito, a quantia total de 93.156,00€ (noventa e três mil cento e cinquenta e seis euros) sendo 90.000.00€ (noventa mil euros) a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais emergentes do sinistro em causa, liquidada aos herdeiros de CC, em 14/4/2012 e 3.156,00€ (três mil cento e cinquenta e seis Euros) a título de reparação do veículo BD, em 5/11/2010.
20) Interpelou a Autora o Réu com vista ao ressarcimento da quantia despendida, não tendo este procedido a qualquer pagamento.
21) A presente ação deu entrada em juízo no dia 23/7/2013.

Factos considerados não provados:[2]
1 - Que no momento em que a condutora do veículo BD se encontrava a descrever a curva existente na faixa de rodagem, sita à sua esquerda atento o sentido de marcha, foi a mesma surpreendida, pela presença do motociclo RQ, e que o seu condutor, ora Réu, circulava desatento à condução efetuada bem como às demais características envolventes do local;
2 - Que o RQ circulava com velocidade desadequada às características do local – com curva descendente - onde se deu o sinistro em discussão;
3 - Que o RQ ao descrever a curva ai existente invadiu a via de trânsito em que circulava a condutora do veículo BD;
4 - Que encetou o ora Réu manobra no sentido de retomar à sua via de trânsito – sentido Pontes/Faralhão - de forma a evitar a colisão com o veículo BD;
5 - Não obstante, veio, acto contínuo, a roda de trás do motociclo RQ a entrar em derrapagem, ao mesmo tempo que a da frente terá bloqueado, factualidade causal do despiste do aludido motociclo;
6 - Que o RQ tenha embatido com a parte frontal na parte frontal do veículo BD;
7 - Que no momento do despiste o Réu circulava com taxa de álcool de 0,67 g/l.
8 - Que o sinistro dos autos ocorreu única, directa e necessariamente, porque o Réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida, a qual lhe afectou a capacidade de discernimento, bem como as capacidades psico-motoras, conduzindo num estado eufórico e menos atento, bem como diminuído na sua capacidade de concentração, nos seus reflexos e na sua acuidade visual e auditiva, com dificuldades de localização espácio – temporal, facto que impossibilitou a avaliação correcta da perigosidade dos comportamentos rodoviários empreendidos e que inexista qualquer outra causa concorrente para o sinistro dos autos;
9 - Que o CC estava alcoolizado num elevado grau, superior a 2,00g/litro;
10 - Que após a curva o motociclo entrou em despiste devido ao estado em que se encontrava o passageiro, já que na deslocação de motociclo, em curva, condutor e passageiro devem acompanhar, com os seus corpos, a direção da curva e no caso da curva à direita, como na dos autos, o condutor inclinou o seu corpo para a direita e, ou porque estivesse a dormir, ou porque entorpecido, a vítima inclinou o corpo para a esquerda, o que desequilibrou o motociclo;
11 - Que quem fica inconsciente apresentará sempre uma maior taxa de álcool no sangue do que aqueles que, com similares condições fisiológicas e tendo ingerido exatamente a mesma quantidade e qualidade de bebidas alcoólicas, possam efetuar o teste por ar expirado e que se o R. tivesse efetuado o teste por ar expirado não teria atingido os 0,5 g/l.

Da nulidade da sentença
Nos termos do artigo 615º, nº 1, al. c), do CPC, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Fundamento esse, de nulidade da sentença, que bem se compreende, pois que os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, funcionam na estrutura expositiva e argumentativa em que se traduz a mesma, como premissas lógicas necessárias para a formação do silogismo judiciário. Pelo que constituirá violação das regras necessárias à construção lógica da sentença que os fundamentos da mesma conduzam logicamente a conclusão diferente da que na mesma resulta enunciada.
Segundo a recorrente é o caso da sentença recorrida, dado existir contradição entre a matéria de facto dada como provada nos pontos 10) e 18) dos factos provados e a matéria de facto não provada respeitante à invasão da via de trânsito onde circulava o veículo BD pelo motociclo RQ.
A nulidade em apreço, como se viu supra, resulta apenas dos fundamentos invocados pelo juiz conduzirem logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto[3], e não da eventual circunstância de o conteúdo decisório da sentença revelar que o seu autor não teve em consideração determinados factos ou que não teve em consideração circunstâncias factuais a que fez menção na motivação da decisão de facto. Tais deficiências poderão, quando muito, implicar erro de julgamento, o qual, porém, se mostra sanável, não por via da arguição de nulidade da sentença, mas apenas pela via do recurso de mérito.
Ora, a consideração como provada na sentença da factualidade constante dos pontos 10) e 18) dos factos provados e a consideração como não provada da factualidade atinente à invasão da via de trânsito onde circulava o veículo BD pelo motociclo RQ conduzido pelo réu, não encerra em si a contradição que lhe é apontada pela recorrente.
Senão vejamos.
É a seguinte a factualidade dada como assente no ponto 10) dos factos provados: [d]e súbito o RQ despista-se e cai na estrada, bem como o seu condutor e o pendura e, a deslizar pelo chão, invadem a faixa de rodagem por onde a condutora do BD seguia».
E no ponto 18) dos factos provados deu-se como assente: «[o] veículo BD sofreu danos em consequência do acidente, tendo sido reparado o para-choques frente; o farol esquerdo e direito; o friso da porta da frente esquerda; o capot; o guarda-lamas frente esquerdo; a porta frente esquerda; a cava da roda frente esquerda e direita; o manípulo exterior da porta da frente esquerda; a chapa de matrícula frente e a grelha inferior esquerda e direita».
Por sua vez, foi dado como não provado que «no momento em que a condutora do veículo BD se encontrava a descrever a curva existente na faixa de rodagem, sita à sua esquerda atento o sentido de marcha, foi a mesma surpreendida, pela presença do motociclo RQ» e que «o RQ ao descrever a curva aí existente invadiu a via de trânsito em que circulava a condutora do veículo BD» (pontos 1 e 3, respetivamente, dos factos não provados).
A contradição de que fala a recorrente é apenas aparente, pois não sofre a menor dúvida, contrariamente ao que parece ser o entendimento da recorrente, que o motociclo conduzido pelo réu invadiu a faixa de rodagem por onde circulava o veículo BD, sendo que o que se considerou não provado foi o exato momento em que o motociclo RQ invadiu a faixa de rodagem por onde circulava o veículo BD, ou seja, quando o mesmo descrevia a curva existente no local e a condutora do veículo BD se encontrava, ela própria a descrever essa curva, mas no sentido contrário ao do motociclo.
Se esses factos foram ou não indevidamente considerados como não provados, tal não constitui, como é bom de ver, qualquer nulidade da sentença, reconduzindo-se antes ao denominado erro de julgamento, que tanto pode abranger o erro de julgamento de facto – será o caso - como o erro de direito.
Trata-se de errores in judicando, em contraposição aos errores in procedendo[4].
A sentença não enferma, assim, da nulidade que lhe é apontada pela recorrente.

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do art. 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto – documentos, declarações de parte do réu e e depoimentos testemunhais, registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo art. 640º, nºs 1 e 2, do CPC, já que: i) referiu os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados; ii) indicou os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados; iii) a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida; iv) e ainda as passagens da gravação em que se funda o recurso e que transcreveu em parte.
Cumpridos aqueles ónus, nada obsta, pois, ao conhecimento do objeto de recurso nesse segmento.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo art. 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Infere-se da alegação da recorrente que esta está em desacordo com a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, quanto à factualidade dada como não provada na 1ª parte do ponto 1 e no ponto 3 dos factos não provados, do seguinte teor:
- «No momento em que a condutora do veículo BD se encontrava a descrever a curva existente na faixa de rodagem, sita à sua esquerda atento o sentido de marcha, foi a mesma surpreendida, pela presença do motociclo RQ»;
- «O RQ ao descrever a curva aí existente invadiu a via de trânsito em que circulava a condutora do veículo BD».
Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Mm.ª Juíza a quo, a qual tem a seu favor o importante princípio da imediação da prova, que não pode ser descurado, sendo esse contacto direto com a prova testemunhal que melhor possibilita ao julgador a perceção da frontalidade, da lucidez, do rigor da informação transmitida e da firmeza dos depoimentos prestados, levando-o ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à recorrente no tocante à impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
Antes de mais, impõe-se aqui deixar claro, à semelhança do que se deixou dito a propósito da alegada nulidade da sentença, que não oferece a menor dúvida o facto do motociclo RQ conduzido pelo réu ter invadido a faixa de rodagem por onde circulava o veículo BD, situando-se a divergência apenas quanto ao momento em que se deu aquela invasão, que segundo a Mm.ª Juíza a quo não resultou provado ter ocorrido quando o motociclo descrevia a curva existente no local ou quando a condutora do BD descrevia essa curva em sentido contrário ao do motociclo.
Na fundamentação da decisão de facto escreveu a Mm.ª Juíza que «o Tribunal fundamentou a sua convicção na ponderação conjunta da prova documental e testemunhal produzida e declarações de parte do R.» referindo os documentos em causa e descrevendo aquilo que as testemunhas e o réu disseram, concluindo que «da ponderação conjunta da prova produzida, resultou a matéria de facto assente e não provada como supra referido, não se tendo logrado chegar a uma conclusão sustentada em elementos probatórios quanto à causalidade do acidente, ainda que com recurso a presunções judiciais …».
Ora, salvo o devido respeito, no que à dinâmica do acidente diz respeito, não foi feita uma análise crítica da prova, ficando sem se saber as concretas razões pelas quais a Mm.ª Juíza considerou não provada a matéria de facto objeto de impugnação, pois não basta dizer o que as testemunhas disseram e concluir de forma genérica e vaga que «da ponderação conjunta da prova produzida, resultou a matéria de facto assente e não provada …».
Não obstante, dispondo o processo de todos os elementos para aferir se foi ou não indevidamente considerada não provada aquela matéria de facto e estando apenas em causa dois factos, não se justifica determinar a baixa do processo à 1ª instância para que a Mm.ª Juíza fundamente devidamente a decisão sobre tais factos, nos termos do art. 662º, nº 2, al. d), do CPC.
Assim, ouvidos os depoimentos da testemunha Dora …, condutora do veículo BD interveniente no acidente e as declarações de parte do réu, entendemos que não se decidiu bem ao considerar não provada a factualidade em causa (1ª parte do ponto 1 e ponto 3 dos factos não provados).
Senão vejamos.
Referiu a testemunha Dora que circulava na Estrada Vale da Rosa [EN 536], sentido Faralhão-Pontes, estrada que utiliza com alguma frequência para ir a casa do seu irmão, a uma velocidade normal, pois “não tinha pressa para chegar a lado nenhum”, quando no sentido contrário, ao sair da curva apareceu o motociclo conduzido pelo réu que se despistou e foi embater no veículo BD da testemunha, a qual ainda se desviou para a berma mas não conseguiu evitar o embate, referindo que este se deu, atento o seu sentido de marcha, antes de chegar à curva, e depois da curva se se considerar o sentido de marcha do motociclo.
Esclareceu a testemunha que foi “tudo muito rápido”, mas que quando acabou de sair da curva o motociclo se despistou, sendo nesse momento que o vê, porque “antes de fazer a curva eu não consigo ver a mota”, não tendo dúvidas em afirmar que foi o motociclo que invadiu a faixa de rodagem por onde circulava conduzindo o veículo BD, e que se desviou “para a berma para evitar o embate, portanto estava na minha faixa de rodagem”, referindo ainda que nesse momento a mota vinha sozinha no chão.
Já as declarações de parte do réu em nada contribuíram para o esclarecimento da factualidade em causa, não colhendo minimamente a sua versão de “que não houve embate da minha mota contra o veículo, porque eu depois quando fiquei como deve ser, a única coisa que a minha mota tinha, a minha mota tem plásticos, eram raspados do alcatrão, porque se tivesse havido um embate da mota contra o carro os plásticos da mota nem um fica inteiro, o que houve foi uma projeção dos nossos corpos contra o carro”.
Ora, como o próprio réu confessou, o mesmo não tem qualquer memória do modo como ocorreu o acidente, concluindo apenas, baseado em alegada ausência de danos no motociclo, o que não está demonstrado nos autos, que este não embateu no veículo BD, mas sim o seu corpo e o corpo do “pendura”.
Ademais, a dimensão dos danos sofridos pelo veículo BD e dados como provados no ponto 18 do elenco dos factos provados, suportados, além do mais, pelo relatório técnico de fls. 52, são perfeitamente compatíveis com a versão do acidente dada pela testemunha Dora, não havendo por isso dúvidas de que o motociclo, desgovernado após o despiste, invadiu a faixa de rodagem contrária e foi embater no veículo BD.
É também isto que resulta dos autos de inquérito em processo-crime que correu termos pela 2ª Secção dos Serviços do Ministério Público de Setúbal com o nº 268/10.4GCSTB, cuja certidão do despacho de arquivamento se encontra a fls. 33-36 e no qual se exarou, além do mais, que «dos elementos indiciários apurados é possível afirmar que o acidente de viação foi um “despiste” de motociclo, seguido de “colisão” com veículo…», e que «[a]penas se pode afirmar que a condutora do veículo ligeiro de passageiros de matrícula 12-BD-46, Dora … (…) sendo conhecedora do local onde ocorreu o acidente, mas nada pode fazer para evitar o acidente, a não ser abrandar e desviar-se o mais para a direita possível, pois percebeu (visualmente) que o motociclo não iria conseguir efectuar a curva e a entrar em despiste na sua direcção».
Procede, pois, a impugnação da matéria de facto, havendo que considerar provado que «no momento em que a condutora do veículo BD se encontrava a descrever a curva existente na faixa de rodagem, sita à sua esquerda atento o sentido de marcha, foi a mesma surpreendida, pela presença do motociclo RQ», e que «o RQ ao descrever a curva ai existente invadiu a via de trânsito em que circulava a condutora do veículo BD».
Deve, assim, aditar-se ao elenco dos factos provados, sob o nº 10-A, a seguinte factualidade:
«10-A) No momento em que a condutora do veículo BD se encontrava a descrever a curva existente na faixa de rodagem, sita à sua esquerda atento o sentido de marcha, foi a mesma surpreendida, pela presença do motociclo RQ, o qual, ao descrever a referida curva em sentido contrário, invadiu a via de trânsito em que circulava a condutora do veículo BD.»
Por força desta alteração:
- é eliminado o ponto 3 dos factos não provados;
- o ponto 1 dos factos não provados passa a ter a seguinte redação:
«1 - O condutor do motociclo RQ, ora réu, circulava desatento à condução efetuada bem como às demais características envolventes do local».

Da culpa
Na sentença recorrida entendeu-se que não resultaram provados factos que permitissem concluir pela culpa do réu na produção do acidente, logrando assim este «afastar a presunção, ainda que judicial, de tal responsabilidade, pese embora igualmente não se tenham logrado provar factos que permitissem concluir por acto do lesado causador do acidente».
Nos termos do artigo 487º, nº 1, do Código Civil [CC], é sobre o lesado que recai a prova da culpa, a qual, nos termos do nº 2, é apreciada de acordo com a diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias do caso.
É esta a regra geral, à falta de presunção legal de culpa (cfr. art. 350º do CC).
Daqui não resulta, porém, que, não se tendo apurado as circunstâncias em que ocorreu o despiste do veículo do motociclo conduzido pelo réu, se tenha de concluir necessariamente pela falta de culpa deste.
Segundo Vaz Serra, «a jurisprudência … tem facilitado a prova da culpa: basta provar a culpa que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, tornem muito verosímil a culpa. Mas o autor do prejuízo pode afastar esta chamada prova prima facie, demonstrando, por seu lado, outros factos que tomem verosímil ter-se produzido o dano sem culpa sua. Com isto, destrói a aparência a ele contrária e força o prejudicado a demonstrar completamente a culpa, já que ao admitir-se a prova prima facie, só se dá uma facilidade para a produção da prova e não uma total inversão do ónus da prova.»[5]
Assim, o tribunal não está impedido de recorrer às regras de experiência comum e às presunções naturais para a prova da culpa, sendo os acidentes de viação um campo privilegiado para a aplicação de presunções naturais.
Nos termos do artigo 349º do CC, presunções são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, esclarecendo o artigo 351º do mesmo Código que as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.
Trata-se de uma prova de primeira aparência, em que o julgador faz apelo às regras de experiência comum - o id quoad plerumque accidit - para, a partir de um facto conhecido, inferir um facto desconhecido.
Ainda nas palavras de Vaz Serra[6], «[e]stas presunções são afinal o produto de regras de experiência: o juiz, valendo-se de certo facto e de regras de experiência, conclui que aquele denuncia a existência de um outro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência da vida, da qual resulta que um acto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra de experiência ou, se se quiser, vale-se de uma prova de primeira aparência».
Dir-se-á que não se apuraram as causas do despiste e que daí decorrerá a falta de demonstração da culpa do réu, mas não sendo avançada nenhuma razão plausível como, por exemplo, o rebentamento de um pneu, um obstáculo na via ou uma mancha de óleo, é legítimo presumir que o despiste se deveu a imperícia do condutor, que não logrou, em condições normais, controlar o veículo, mantendo-o na faixa em que circulava[7].
É entendimento jurisprudencial consolidado que da prova da inobservância das leis ou regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta inobservância da falta de diligência.
Segundo as palavras do acórdão recorrido que foi objeto de apreciação pelo acórdão do STJ de 20.11.2003[8], «(…), embora em matéria de responsabilidade civil extracontratual a culpa do autor da lesão em princípio não se presuma, tendo de ser provada pelo lesado (artº. 487º, nº. 1, do Cód. Civil), a posição deste é frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-lhe a tarefa, a chamada prova de primeira aparência (presunção simples): se esta prova aponta no sentido da culpa do lesante, passa a caber a este o ónus da contraprova. Para provar a culpa, basta assim que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, a tornem muito verosímil, cabendo ao lesante fazer a contraprova, no sentido de demonstrar que a actuação foi estranha à sua vontade ou que não foi determinante para o desencadeamento do facto danoso. Isto não está sequer em contradição com o disposto no artº. 342º do Cód. Civil, que consagra um critério de normalidade no que respeita à repartição do ónus da prova, no sentido de que aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram, tendo a parte contrária de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos do direito.»
Também no acórdão do STJ de 24.11.2009[9] se apontou no mesmo sentido, considerando que «[é] certo que se ignora o motivo do despiste, porém, a prova da inobservância de leis ou regulamentos faz presumir, perante a chamada prova de primeira aparência, relacionada com princípios de experiência geral que a tornam muito verosímil, a culpa na produção do acidente e das suas consequências, cabendo ao autor daquela inobservância o ónus da respectiva contraprova».
Caberia, pois, ao réu provar que, tendo saído, descontroladamente, sem dominar o motociclo que conduzia, da faixa de rodagem em que seguia, invadindo a faixa de rodagem contrária em que circulava o BD, tal aconteceu por motivos estranhos ao normal e prudente exercício da sua condução, prova essa que não foi feita, pois nada a esse respeito foi alegado pelo réu.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 28.11.2013[10], «[o] despiste inopinado e descontrolado, ao descrever uma curva, de certa viatura, envolvendo invasão da hemi-faixa por onde circulavam outros dois veículos, causando violenta colisão com o primeiro, deve qualificar-se como evento anormal e imprevisível, para o efeito do preenchimento dos elementos tipificados no nº1 do referido art. 24º[11]».
No caso em apreço, considerando os factos provados, não se poderá assacar qualquer culpa na produção do acidente à condutora do veículo BD que seguia dentro da sua faixa de rodagem, não podendo, naturalmente, prever que se atravessasse à sua frente o motociclo conduzido pelo réu que circulava em sentido contrário e se despistou ao descrever uma curva existente no local, invadindo a faixa de rodagem em que seguia a autora, colidindo com o veículo BD que aquela conduzia.
Há, assim, que concluir que a culpa do acidente é de atribuir, por inteiro, ao réu, não podendo a sentença recorrida subsistir nessa parte.

Da validade do exame de sangue ao réu para apuramento da taxa de álcool
Sobre esta matéria está dado como assente, no ponto 15 do elenco dos factos provados, o seguinte: «[t]endo-se procedido ao exame para pesquisa de álcool no sangue por colheita de sangue a BB, pelas 22:18 horas do dia 18/7/2010, verificou-se o resultado de 0,67 g/l».
Por sua vez, foi dado como não provado, no ponto 7 do factos não provados, «[q]ue no momento do despiste o réu circulava com taxa de álcool de 0,67 g/l».
Em sede de fundamentação da decisão de facto escreveu-se na sentença recorrida:
«(…), não resultou da análise da prova documental e produção de prova testemunhal que fosse sequer possível concluir, com a certeza necessária à acreditação do facto, qual a TAS que o R. apresentava no momento em que se encontrava a conduzir o RQ e se deu o acidente, uma vez que da análise da informação prestada pelo INML a fls.123 e depoimento da testemunha Orlando…, médico, resultou que não fosse sequer possível concluir se a TAS que o R. apresentaria na altura do acidente fosse maior do que aquela que acusou na altura da análise, uma vez que existem diferenças mais ou menos significativas ( e não necessariamente para mais ou para menos) consoante o metabolismo do examinado e se o organismo se encontra numa fase de absorção (cuja duração é variável) ou de eliminação do álcool ingerido».
Significa isto, pois, que a Mm.ª Juíza a quo fundamentou a ausência de prova da taxa de álcool no sangue, superior à legalmente permitida, pelo réu, com base na dilação temporal entre a hora do sinistro (19:30 horas) e a hora da recolha de sangue para a realização do aludido exame (22:18 horas), concluindo não ser possível afirmar que o réu acusaria igual, maior ou menor taxa de álcool, no mesmo dia, no momento do sinistro dos autos, situado pelas 19:30 horas.
Não podemos acompanhar a sentença recorrida também neste segmento.
Dispõe o artigo 156º do Código da Estrada, sob a epígrafe “Exames em caso de acidente”:
“1 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º
2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.
3 - Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito ou o examinando se recusar a ser submetido a colheita de sangue para análise, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas.
4 - Os condutores e peões mortos devem também ser submetidos ao exame previsto no n.º 2. “
Desta disposição legal não resulta a imposição de qualquer período temporal para recolha do álcool no sangue a condutores impedidos de realizaram o teste de álcool por ar expirado, pelo que o teste de álcool no sangue realizado ao réu às 22:18 do dia 18.07.2010, cerca de 3 horas após o acidente, é um meio de prova válido, permitindo concluir que o réu, quando se despistou com o motociclo conduzia sob a influência do álcool, com uma taxa, no mínimo, de 0,67 g/l, como veremos de seguida.
Escreveu-se, com inteira pertinência para o presente caso, no acórdão da Relação do Porto de 18.05.2011[12]:
«Sustenta igualmente o recorrente que ocorre uma proibição de prova que impediria a valoração do resultado do exame toxicológico para quantificação da taxa de álcool, por o sangue ter sido extraído cerca de quatro horas depois de ter ocorrido o acidente, o que conduziria a que o tribunal não pudesse dar como assente a factualidade vertida em 2 da “Fundamentação de Facto”, designadamente no que concerne à taxa de álcool de 3,00 g/l que apresentava. Mas carece de razão.
Analisando o estabelecido no artigo 156º, do Código da Estrada, na redacção que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23/02 e a Lei nº 18/07, de 17/05, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, constatamos que não foi estabelecido prazo fixo para a colheita do sangue em caso de acidente, limitando-se o artigo 5º, nº 1 deste Regulamento a estabelecer que a colheita é efectuada “no mais curto prazo possível” após a ocorrência do acidente.
O acidente em que o recorrente foi interveniente ocorreu entre as 00.00 horas e a 01.00 horas e na sequência do mesmo foi ele transportado para o Hospital …, em Riba d Ave e daí para o Hospital de …, em Braga, sendo que neste foi efectuada a recolha do sangue para o exame pelas 04.15 horas do mesmo dia.
Ora considerando a previsível necessidade de prestação de assistência ao recorrente nos hospitais mencionados por mor do seu estado de saúde em consequência do acidente que sofreu quando se fazia transportar de ciclomotor, não se pode considerar que a recolha não se tenha feito “no mais curto prazo possível”, sendo que, não obstante, esta determinação não tem como escopo a salvaguarda de qualquer direito do examinando, mas, ao invés, integra uma orientação indicadora de um procedimento a adoptar pelos agentes habilitados a realizar a colheita de sangue a quem haja sido interveniente em acidente de viação ou após o acto de fiscalização, alertando-os para a circunstância de, no caso de mediar espaço temporal dilatado entre o acidente e a recolha do sangue, o exame perder rigor ou mesmo tornar-se inútil por a taxa de álcool no sangue ter já começado a diminuir devido ao processo de eliminação natural do etanol pelo organismo.
Como se menciona no Ac. R. de Lisboa de 18/02/09, Proc. nº 12/05.8GTCSC-3, www.dgsi.pt “pode estabelecer-se que a absorção de uma moderada quantidade de etanol (0,6 – 0,8 g/kg) em jejum atinge uma concentração sanguínea (CES) máxima entre 30 e 60 minutos. Na presença de alimentos a máxima concentração de etanol no sangue verifica-se bastante mais tarde, entre 1 e 2 horas após a ingestão.
Ora, de acordo com o “coeficiente de Widmark”, que é o aplicável quando nos encontramos perante valores de concentração de etanol médios e moderados (entre 0,5 e 3 g/l), em cada hora o organismo de um homem elimina, em média, 0,15 g/l de álcool etílico”.
Face ao que, manifestamente se pode afirmar, se o exame tivesse sido realizado com uma amostra de sangue extraída anteriormente, a concentração de álcool seria necessariamente superior, pelo que a recolha no caso em apreço, no momento em que se efectuou, não prejudicou, pelo contrário, até beneficiou o arguido, por já há muito se ter atingido o pico máximo da concentração de álcool etílico no sangue, encontrando-se essa concentração já na sua fase descendente.»
Assim, de acordo com a ciência, o decorrer das horas apenas faz decrecer a quantidade de álcool no sangue, o que, no caso concreto, permite até concluir pela existência de uma TAS superior no momento da eclosão do acidente, até porque nada foi alegado, logo não provado, quanto à ingestão de alimentos por parte do réu em momento anterior e que determinasse uma concentração de álcool no sangue em momento ulterior.
Não pode, assim, dar-se como não provado «que no momento do despiste o réu circulava com taxa de álcool de 0,67 g/l», impondo-se, consequentemente, a eliminação do ponto 7 do elenco dos factos não provados.
Não há, todavia, que integrar esse facto no elenco dos factos provados, como pretendido pela recorrente, não só porque aí consta já o ponto 15 onde se deu como provado que «tendo-se procedido ao exame para pesquisa de álcool no sangue por colheita de sangue a BB, pelas 22:18h do dia 18/7/2010, verificou-se o resultado de 0,67 g/l.», como também pelo facto de, no momento do despiste, o réu, pelas razões acima expostas, ser necessariamente portador de uma taxa superior a 0,67 g/l, uma vez que o exame foi realizado cerca de 3 horas após o acidente.

Do nexo de causalidade entre o acidente e a taxa de álcool apresentada pelo réu
Embora estejamos perante matéria controvertida na jurisprudência, temos para nós que a lei não exige que o condutor tenha dado causa ao acidente por causa da taxa de alcoolémia, antes estatui que se têm de verificar dois pressupostos: (a) que tenha dado causa ao acidente (fundamento com o qual a seguradora paga as indemnizações); (b) que estivesse a conduzir com excesso de álcool (fundamento específico do direito de regresso)».
A este propósito importa ter presente o Acórdão do STJ de 09-10-2014[13], cujo sumário, pela sua relevância para o caso dos autos, se transcreve:
«I - Nos termos do art. 27.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 291/2007, de 21-07, o sujeito passivo da acção de regresso fundada em alcoolemia é o condutor “que tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.
II - A expressão “que tenha dado causa ao acidente” restringe o destinatário do exercício do direito de regresso ao condutor culpado na eclosão do acidente e pressupõe a responsabilidade civil subjectiva fundada em culpa deste; logo, exclui-se naturalmente a responsabilidade objectiva ou pelo risco.
III - Para além da culpa, o direito de regresso exige também que o condutor “culpado” conduzisse com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
IV - A actuação daquele é passível de um juízo de dupla ilicitude manifestada na violação de direitos subjectivos alheios (responsabilidade civil propriamente dita) e na condução com TAS superior à legalmente permitida que fundamenta também uma dupla censura ético-jurídica.
V - Não é exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializa a influência do álcool na condução e que eram relevantes na vigência do DL nº 522/85, de 31-12, na interpretação do AUJ nº 6/2002.
VI - A “desconsideração” do nexo de causalidade no art. 27º do DL nº 291/2007 deve ser compreendida perspectivando o direito de regresso da seguradora como de natureza contratual e não extra-contratual; quer dizer, a previsão legal do direito de regresso integra o chamado estatuto legal imperativo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
VII - O risco assumido pela seguradora em tal contrato não cobre, nem poderia cobrir, os perigos acrescidos que a condução sob a influência do álcool envolve, porque, sendo proibida a condução com TAS igual ou superior a certo limite e sendo mesmo sancionada penalmente tal conduta quando atingir um limite superior (arts. 81.º, n.ºs 1 e 2, do CEst e 292.º do CP), tal assunção de risco pela seguradora seria nulo, por contrariar normas legais imperativas (art. 280.º, n.º 1, do CC).
VIII - Aquela condução (com TAS superior à legalmente permitida) funcionará, assim, como uma condição ou pressuposto do direito de regresso (independentemente da sua relação causal com o acidente) e não da responsabilidade civil; logo, a seguradora não tem que demonstrar que foi por causa da alcoolemia e da influência da mesma nas respectivas capacidades psico-motoras que o condutor praticou este ou aquele erro na condução e, com isso, deu causa ao acidente, bastando-lhe demonstrar que, nesse momento, ele acusava uma concentração de álcool no sangue superior à permitida por lei.»
Neste mesmo sentido se pronunciou o recente acórdão do STJ de 07.02.2017, assim sumariado:
«I - No domínio do DL n.º 291/2007 (com referência ao respetivo art. 27.º, n.º 1, al. c)), tendo o condutor de veículo automóvel dado causa ao acidente de viação, a seguradora goza automaticamente do direito de regresso quando aquele seja portador de uma TAS superior à legalmente admitida.
II - Assim, não é exigível ou indispensável para a procedência desse direito que a seguradora alegue e prove a existência de um nexo de causalidade entre a alcoolemia e a produção do acidente.»
Ora, conduzindo o réu no momento do acidente com uma taxa não inferior a 0,67 g/l, e tendo o acidente ocorrido por culpa sua, dúvidas não há que a autora/recorrente goza do direito de regresso contra o réu/recorrido (segurado), relativamente às quantias pagas a título de da indemnização a terceiros lesados.
O recurso merece, pois, provimento.

Sumário:
I - O Tribunal não está impedido de recorrer às regras de experiência comum e às presunções naturais para a prova da culpa, sendo os acidentes de viação um campo privilegiado para a aplicação de presunções naturais.
II - O despiste inopinado e descontrolado, ao descrever uma curva, de um motociclo, envolvendo invasão da hemi-faixa por onde circulava outro veículo, com o qual veio a colidir, deve qualificar-se como evento anormal e imprevisível, para o efeito do preenchimento dos elementos tipificados no nº1 do artigo 24º do Código da Estrada.
III - A Lei não estabelece um prazo fixo para a colheita de sangue em caso de acidente, devendo esta realizar-se “no mais curto prazo possível”.
IV – Se, através de exame para pesquisa de álcool no sangue se apurou que o condutor tinha, cerca de 3 horas depois do acidente, uma taxa de 0,67 g/l de álcool, pode, com a devida segurança, concluir-se que ele conduzia o veículo sob a influência de álcool.
V - Não é exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, isto é, os factos em que se materializa a influência do álcool na condução e que eram relevantes na vigência do DL nº 522/85, de 31-12, na interpretação do AUJ nº 6/2002.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a sentença recorrida e condenam o réu a pagar à autora a quantia de € 93.156,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Custas em ambas as instâncias a cargo do réu, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
*
Évora, 11 de Maio de 2017
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião
__________________________________________________
[1] Ainda que nenhuma resposta viesse a ser apresentada pela autora.
[2] Procedeu-se à numeração dos factos não provados, inexistente na sentença recorrida, por comodidade de exposição.
[3] Cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 141.
[4] Cfr. Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª ed., pp. 228 e ss..
[5] Culpa do devedor ou do agente, BMJ 68º-87.
[6] Provas, BMJ 110º-190.
[7] Cfr. Ac. da RP de 29.05.2012, proc. 6029/10.3TBMTS.P1, in www.dgsi.pt., que aqui seguimos de perto; no mesmo sentido, Ac. da RL de 27.02.2014, proc. 577/11.5YXLSB.L1-2, in www.dgsi.pt.
[8] Proc. 03A3450, in www.dgsi.pt.
[9] Proc. 1409/06.1TBPDL.S1. cujo sumário (e apenas este) se encontra disponível in www.dgsi.pt.
[10] Proc. 372/07.6TBSTR.S1, in www.dgsi.pt.
[11] Trata-se, evidentemente, do art. 24º, nº 1, do CE.
[12] Proc. 438/08.5GCVNF.P1, in www.dgsi.pt.
[13] Proc. 582/11.1TBSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt.