Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2864/02-1
Relator: MANUEL NABAIS
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PERIGO DE PERTURBAÇÃO DO INQUÉRITO
PERIGO PARA A AQUISIÇÃO DA PROVA
PERIGO PARA A CONSERVAÇÃO DA PROVA
PERIGO PARA A VERACIDADE DA PROVA
PERIGO DE PERTURBAÇÃO DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS
Data do Acordão: 01/14/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
O perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo tem de surpreender-se em factos que indiciem a actuação do arguido com o propósito de prejudicar a investigação, não bastando a mera possibilidade de que tal aconteça para que possa afirmar-se a existência daquele perigo.
Decisão Texto Integral:
I- Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Findo o primeiro interrogatório judicial a que, entre outros, foi submetido o arguido A, em …, no âmbito do Inquérito n.º …, a correr termos nos Serviços do MP junto da Comarca de …, na sequência da sua detenção, o Mº Juiz de Instrução, impôs ao arguido, ouvidos a sua Ilustre Advogada e o Exº Magistrado do MP, as seguintes medidas de coacção:
a) Termo de identidade e residência;
b) Suspensão do exercício das funções que exerce como militar da GNR/Brigada de Trânsito; e
c) Obrigação de permanência na habitação, dela não podendo ausentar-se sem autorização do tribunal, com sujeição a fiscalização policial.
Louvou-se, para tanto, no disposto nos artºs 191º a 193º, 195º, 196º, 199º, n.º 1, al.a), 201º e 204º, als. b) e c), todos do CPP e, em substância, na seguinte fundamentação:
[...] existem indícios suficientes que todos os arguidos hoje sujeitos a 1° interrogatório incorrem na prática de um crime de corrupção passiva para acto ilícito p. e p. no art.º 372º, n° 1 do Código Penal com pena de prisão de 1 a 8 anos [...].
Para o enquadramento jurídico supra-referido e sobretudo para a imputação, nesta fase, destes ilícitos aos arguidos, foram fundamentais os meios de prova carreados para os autos designadamente prova testemunhal prestada por alguns dos empresários e responsáveis das empresas favorecidas com o comportamento dos arguidos, as intercepções telefónicas efectuadas aos telefones moveis dos arguidos e ao resultado das mesma, as apreensões efectuadas e incidentes sobre esses telemóveis, e, sobretudo as declarações confessórias de todos os arguidos no que se refere ao abastecimento dos seus próprios veículos com combustíveis existentes nas instalações da sociedade B. Ora, a gravidade dos ilícitos indiciados, os bens jurídicos por eles tutelados, como sejam a fé e a confiança pública nos agentes de autoridade em exercício de funções, impõem sem qualquer dúvida que os arguidos sejam submetidos a medidas de coacção que possam obviar aos perigos concretos, que neste momento existem. O comportamento ilícito dos arguidos evidencia a existência de perigo de perturbação de inquérito, nomeadamente, e sobretudo, para a aquisição e conservação da prova bem como o perigo em razão da natureza e das circunstâncias do crime, da ordem e a tranquilidade públicas serem perturbadas.
Se bem que com a detenção dos arguidos o perigo da continuação da actividade criminosa se encontra atenuado, a necessidade de os mesmos ocultarem e destruírem provas poderá conduzi-los a outros expedientes menos lícitos.
Cumpre deixar realçado, ainda, que é enorme o alarme social que anda aliado às vítimas destes ilícitos e ao destacamento territorial que estes integram.
Por outro lado, os arguidos são todos cidadãos integrados familiar e socialmente, e diga-se que o facto de serem militares da GNR não pode contribuir, por si só, para que estas circunstâncias não pesem a seu favor, bem como o facto de terem um passado incólume (se bem que se trata de um requisito que lhes é exigido em virtude das suas próprias funções).
A verdade é que os elementos constantes dos autos não permitem ainda e com clareza distinguir a intensidade do comportamento e participação de cada um dos arguidos nos factos ilícitos em participação quando alguns deles apenas exercem funções administrativas.
Ora o Juiz de instrução ao aplicar medidas de coacção está sujeito a critérios de estrita legalidade, necessidade e proporcionalidade, e deve ter sempre em mente que a prisão preventiva é uma medida que só pode ser aplicada quando todas as outras se revelam inadequadas e/ou insuficientes. A prisão preventiva não pode funcionar como uma antecipação da pena a aplicar aos arguidos e por outro lado o Juiz deve pautar-se pelo critério estabelecido no artigo 193º, n° 1 do Código de Processo Penal, ou seja, aplicar uma medida coactiva adequada e proporcional à sanção que previsivelmente lhes venha a ser aplicada em julgamento.
Entendemos, pois, que os perigos advindos do comportamento dos arguidos, tal como os configuramos podem, desde logo, ser obviados com a suspensão dos militares das suas funções. E os perigos que se prendem com o decurso do inquérito, a tranquilidade e a manutenção da ordem pública podem ser obviados de forma adequada e proporcional com a sujeição dos arguidos à obrigação de permanência na habitação, com a impossibilidade dela se ausentarem e sujeitos à fiscalização policial desta medida.”

Inconformado, interpôs recurso o MP, rematando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1. Os arguidos A, C, D, E, F e G, encontram-se indiciados pela prática de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. pelo artigo 372°, n.º 1 do Código Penal e punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, em concurso efectivo real, relativamente ao arguido G, com um crime de extorsão, p. pelo artº 223°, n° 1 do Código Penal, punido com a pena de prisão até 5 anos.
2. Em sede de 1° interrogatório judicial foi decidido pela Mma. Juiz que os arguidos ficassem sujeitos às seguintes medidas de coacção: termo de identidade e residência, suspensão das funções que exercem como militares da GNR-BT e obrigação de permanência na habitação.
3. Fundamentou a sua decisão nas seguintes ordens de argumentos: a) gravidade dos ilícitos indiciados; bens jurídicos por eles tutelados, como sejam a fé e a confiança pública nos agentes de autoridade em exercício de funções; c) que os arguidos devem ser submetidos a medidas de coacção que possam obviar aos perigos concretos, que existem, ou seja, perigo de perturbação de inquérito, nomeadamente, e, sobretudo para a aquisição e conservação da prova, bem como o perigo em razão da natureza e das circunstância do crime, da ordem e a tranquilidade publicas serem perturbadas; d) o alarme social que anda aliado às vítimas destes ilícitos e ao destacamento territorial que estes integram; e) que os elementos constantes dos autos não permitem ainda com clareza distinguir a intensidade do comportamento e participação de cada um dos arguidos nos factos ilícitos em participação quando alguns deles apenas exercem funções administrativas.
4. Concordamos que os perigos que se visam obviar são os vertidos nas alíneas b) e c) do artigo 204° do Código Processo Penal, ou seja, de perturbação do inquérito, designadamente, quanto à conservação da prova e de perigo da ordem e tranquilidade públicas.
Com o que não concordamos, como se depreende, será com a aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação, como forma de obviar a tais perigos.
5. Com efeito, sob obrigação de permanência na habitação, os arguidos são livres de contactarem quem muito bem entendam, quer por si, quer por interposta pessoa, sendo impossível às forças policiais seguirem todos os que visitam as residências dos arguidos, mais estão os arguidos livres de utilizarem telefones móveis que lhes tenham sido trazidos por terceiros e de, assim, contactar de forma intangível os comparticipantes nos crimes que perpetraram ou determinar a destruição de prova e exercer pressões sobre as vítimas e testemunhas.
6. Entendemos, assim, que existe justo receio de perturbação do decurso do inquérito, no que tange à aquisição, conservação ou veracidade da prova.
7. Além do perigo de perturbação do inquérito, como bem ponderou o despacho ora em crise, existe, ainda, perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, tendo em atenção a qualidade dos arguidos - agentes da autoridade - e, os crimes em causa, que implicou a instalação, nas vítimas dos factos indiciados e no público em geral, de um sentimento de descrédito para a GNR, a cujo corpo militar os arguidos pertencem, a qual deverá ser dissociada de prática como as que se investigam nos presentes autos.
8. Se a medida de obrigação de permanência na habitação aplicada aos arguidos permite, designadamente, a ocultação e a destruição de provas, é porque é desajustada ao caso dos autos
9. Aliás, constitui para os restantes arguidos dos presentes autos de inquérito, a quem foi imposta a medida de coacção de prisão preventiva, para a opinião pública e para a própria corporação a que os aqui arguidos pertencem, alguma perplexidade a aplicação de medida de coacção diversa para uns e para outros, sendo que os factos são idênticos, com o mesmo desvalor, implicando, pois, tratamento idêntico.
10. Posto isto e considerando ainda as circunstâncias particulares destes casos concretos, a gravidade dos factos praticados pelos arguidos enquanto soldados da GNR-BT, em grave abuso daquelas funções, os tipos de ilícito, o juízo de censura que lhe está associado, a aplicação de medida da coacção de prisão preventiva, apresenta-se não só proporcional e adequada, como a única que se revela eficaz à satisfação das medidas cautelares dos autos.
11. Com a prolação do despacho na parte em que determinou a sujeição dos arguidos à obrigação de permanência na habitação foram violados as regras jurídicas contidas nos artigos 193°, n° 1 e 2, e 202°, n° 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
12. Consideramos, deste modo, que a douta decisão proferida deve ser substituída por outra que decida a sujeição dos arguidos a prisão preventiva, conforme o disposto nos artigos 191°, 192°, 193°, 194°, 196°., 199º, 202°, n° 1, alínea a) e 204°, alíneas b) e c) do C.P.P.

Contramotivou o arguido A, pugnando pela confirmação do despacho recorrido.
Subidos os autos a esta Relação, o Exº Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer em que - sufragando a argumentação aduzida na motivação do recurso, invocando dois arestos desta Relação que decidiram recursos interpostos por arguidos envolvidos no caso de que tratam os presentes autos e, finalmente, “não deixando de apelar a princípios de equidade com anteriores situações similares que são do conhecimento judiciário e público” - conclui no sentido de que o recurso merece provimento.
Cumprido o disposto no artº 417º, n.º2 do CPP, o Arguido remeteu-se ao silêncio.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
*
II.1- Nas conclusões que extrai da motivação do recurso (e são elas que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum, conforme jurisprudência pacífica do STJ) insurge-se o Douto Recorrente contra a não aplicação da prisão preventiva ao arguido.
Vejamos.
A prisão preventiva configura-se como uma medida de coacção cautelar privativa do direito à liberdade, sujeita aos princípios da legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, assumindo natureza excepcional e subsidiária (artºs 191º, 193º e 202º, todos do CPP), em consonância, aliás, com o estatuído nos seguintes artºs da CRP: 27º, que consagra o princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas ou restritivas da liberdade; 28º, n.ºs 1 e 2 que, versando fundamentalmente sobre a dimensão processual da prisão preventiva, sublinha o carácter excepcional e precário desta; e, finalmente, 32º, n.º 2, que estabelece o princípio da presunção da inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, tudo isto em homenagem aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, cujas restrições estão subordinadas às regras dos n.ºs 2 e 3 do artº 18º da Lei Fundamental.
A imposição da medida de prisão preventiva depende da verificação dos requisitos gerais (aplicáveis a todas as medidas de coacção) e especiais, consignados, respectivamente, nos artºs 204º e 202º do CPP, e uma vez preenchidas as condições gerais da sua aplicação, enunciadas no artº 192º do mesmo diploma legal.
As medidas de coacção devem ser imediatamente revogadas ou substituídas por outras menos gravosas, nos casos previstos no artº 212º, n.ºs 1, als. a) e b) e 3 do CPP, respectivamente - ex officio, a requerimento do MP ou do arguido, devendo estes, sempre que necessário, ser ouvidos (n.º 4 do cit. artº 212º) - o que constitui um afloramento do princípio de que as medidas de coacção, pelas contínuas variações do seu condicionalismo, estão sujeitas à condição rebus sic stantibus.[1]

Sendo esta, em traços largos, a disciplina da prisão preventiva que ora interessa considerar, regressemos ao caso dos autos.
Não se questiona o fummus comissi delicti (fortes indícios da prática do crime de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. pelo artº 372º, n.º 1 do CP) nem a gravidade do mesmo.
O MP aceita pacificamente a verificação dos perigos de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para a aquisição da prova, e de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, naquela decisão invocados como fundamento da imposição da medida de coacção imposta (obrigação de permanência na residência).
Centra o MP o ataque à decisão recorrida na inadequação daquela medida de coacção para obviar a tais pericula libertatis e na sua desproporcionalidade face à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Ao invés, o arguido – que não reagira à decisão ora posta em crise pelo MP – esforça-se agora por demonstrar a inexistência daqueles perigos e, apoiando, nesta parte, a mesma decisão, tenta convencer que a obrigação de permanência na habitação se mostra proporcional e adequada “aos fins do presente inquérito”.
A questão que reclama solução consiste, pois, em saber qual das medidas coactivas – a obrigação de permanência na habitação (imposta pelo tribunal a quo, com o aplauso do arguido) ou a prisão preventiva (defendida pelo MP) – deve ser aplicada, questão esta que, perante a fundamentação da decisão recorrida e as posições assumidas pelo MP e pelo arguido, se reconduz a estoutras:
a) Verifica-se, em concreto, o perigo de perturbação do decurso do inquérito e, nomeadamente, para a aquisição e conservação da prova, bem como perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime, de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, como defendem o Mº Juiz de Instrução e o MP?
b) Suposta a existência de, pelo menos, um desses perigos, justifica-se, por adequada e proporcional, a (pelo MP) pretendida aplicação da medida de prisão preventiva?
Vejamos qual a resposta a dar a cada uma destas questões.

II.2- A existência do perigo de perturbação do decurso do inquérito e,. nomeadamente, para a aquisição e em especial para a conservação da prova infere-a o Mº Juiz de Instrução do “comportamento ilícito dos arguidos”.
Esta genérica afirmação não suporta, porém, a verificação de tal periculum libertatis
Com efeito, os pericula libertatis referidos nas diversas alíneas do artº 204º, têm de ser reais, assentes em factos concretos e não em abstractas asserções ou meros juízos de valor.
O perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo terá de surpreender-se em factos que indiciem a actuação do arguido com o propósito de prejudicar a investigação.
Como adverte o Prof. Germano Marques da Silva [2] , importa ter “muito cuidado na aplicação de medidas de coacção com fundamento no perigo para o inquérito ou a instrução do processo, pela invocação de perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, pois é necessário evitar o risco de que com tal pretexto se confunda e prejudique a legítima actividade defensiva do arguido, traduzida nomeadamente na investigação e recolha de meios de prova para a sua defesa, actividade que o arguido deve poder exercer com a maior liberdade e amplitude [...] Deve ainda considerar-se que, em geral, o perigo de perturbação da instrução do processo é maior nas fases preliminares do processo e nestas sobretudo na fase do inquérito e ainda quando são poucos os meios de prova que indiciem a responsabilidade do arguido. Será, em regra, mais difícil ao arguido perturbar a instrução do processo quando dos autos constem já os meios de prova que indiciem fortemente a sua responsabilidade, o que não significa que, em razão da natureza do crime e dos meios de prova recolhidos, essa perturbação não possa verificar-se em fases posteriores; o perigo tem, pois, de ser apreciado perante as circunstâncias concretas de cada processo”.
São conhecidas as naturais dificuldades de êxito na investigação do crime de corrupção.
Efectivamente, os meios normais de prova relativamente a este crime são escassos pois que, pela sua natureza, a sua prática é geralmente rodeada de excepcionais precauções.
A imputação do ilícito penal ao arguido (e aos seus co-arguidos) assentou fundamentalmente, nas declarações prestadas “por alguns dos empresários e responsáveis das empresas favorecidas com o comportamento dos arguidos [...], intercepções telefónicas efectuadas aos telefones móveis dos arguidos e ao resultado das mesma” [...], apreensões efectuadas e incidentes sobre esses telemóveis, e, sobretudo [...] declarações confessórias de todos os arguidos no que se refere ao abastecimento dos seus próprios veículos com combustíveis existentes nas instalações da sociedade "B".
Não se divisando em que fundamento possa louvar-se o receio de que o arguido tente destruir a prova obtida através das escutas telefónicas e das apreensões efectuadas, não se exclui, todavia, de todo em todo, a possibilidade de o arguido, se em liberdade, vir a exercer pressões sobre as testemunhas e as vítimas do crime e/ou combinar com os co-arguidos determinada versão para os factos e/ou mesmo fazer desaparecer documentos probatórios e/ou produzir documentos falsos e/ou simular falsos alibis.
Não bastam, porém, as naturais dificuldades de investigação do crime nem a mera possibilidade de o arguido agir no sentido de prejudicar a investigação para que, sem mais, possa afirmar-se a existência do perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução.
Efectivamente, ainda na lição do Prof. Germano Marques da Silva [3] , “sendo possível, na generalidade dos casos, que o arguido desenvolva uma actividade no sentido de prejudicar a investigação, não basta, porém, a mera probabilidade de que tal aconteça. É necessário sempre, como também relativamente aos demais pressupostos das medidas de coacção, que em concreto se demonstre esse perigo pela ocorrência de factos que indiciem a actuação do arguido com esse objectivo e que não seja possível com outros meios obstar a essa perturbação.
Os abundantes meios de que dispõem hoje as autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal para investigar os crimes e sobretudo a sua utilização diligente e inteligente são em geral bastantes para obstar a que o arguido possa por si perturbar o decurso do processo”.
Nem o despacho recorrido nem o MP apontam qualquer facto concreto que indicie ter o arguido em preparação ou em marcha ou simplesmente em projecto qualquer das condutas acima referidas (pressões sobre as testemunhas e as vítimas do crime e/ou combinação com os co-arguidos de determinada versão para os factos e/ou mesmo fazer desaparecer documentos probatórios e/ou produzir documentos falsos, etc, etc.).

O MP extrai o “justo receio de perturbação do decurso do inquérito, no que tange à aquisição, conservação ou veracidade da prova”, da seguinte fundamentação:
“ [...] sob obrigação de permanência na habitação, os arguidos são livres de contactarem quem muito bem entendam, quer por si, quer por interposta pessoa, sendo impossível às forças policiais seguirem todos os que visitam as residências dos arguidos, mais estão os arguidos livres de utilizarem telefones móveis que lhes tenham sido trazidos por terceiros e de, assim, contactar de forma intangível os comparticipantes nos crimes que perpetraram ou determinar a destruição de prova e exercer pressões sobre as vítimas e testemunhas”.
Às considerações que acabam de ser tecidas, acrescentar-se-á que é patente o vício (petição de princípio) de que enferma o raciocínio do Douto Recorrente: demonstra a existência do perigo de perturbação do decurso do inquérito com a inidoneidade da obrigação de permanência na habitação, que tem como pressuposto de aplicação (como, aliás, qualquer outra medida de coacção, excepto o termo de identidade e residência) aquele perigo
Porque pressupostos da aplicação das medidas de caução, o juízo sobre a verificação dos pericula libertatis terá, necessariamente, de preceder a escolha da medida de caução e não concluir-se a sua existência ou inexistência a partir, respectivamente, da inadequação ou adequação da medida. Por outras palavras: antes de se proceder à escolha da medida há que, logicamente, averiguar se pode ser aplicada, o que exige se indague previamente se se verificam os respectivos pressupostos.
Conclui-se, pois, pela inexistência, em concreto, do invocado perigo de perturbação do decurso do inquérito, nomeadamente para a aquisição e conservação da prova.

II.3- O mesmo não poderá dizer-se do perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas.
Bastará chamar à colação o alarme social desencadeado pelo caso, potenciado pelos media, caso esse que abalou seriamente a confiança pela comunidade depositada na GNR e o prestígio desta força de segurança, a que a respectiva Lei Orgânica (aprovada pelo DL n.º 231/93, de 26JUN) comete, entre outras missões, a manutenção da ordem pública, assegurando o exercício dos direitos, liberdades e garantias (artº 2º, al. a).
Violou o arguido, militar da GNR, frontalmente e de forma gravíssima, o especial dever que sobre ele impende de não cometer crimes. O artº 2º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo DL n.º 265/93, de 31JUL, define o militar da Guarda Nacional Republicana como «“um soldado da lei”, que se obriga a manter em todas as circunstâncias um bom comportamento cívico e a proceder com justiça, lealdade, integridade, honestidade e competência profissional, por forma a suscitar a confiança e o respeito da população e a contribuir para o prestígio da Guarda e das instituições democráticas». E o artº 6º do mesmo Estatuto assinala-lhe o dever fundamental de “constituir exemplo de respeito pela legalidade democrática e actuar no sentido de reforçar, na comunidade, a confiança na acção desenvolvida pela instituição que serve.”
Ao invés, com a sua fortemente indiciada conduta suscitou o arguido a desconfiança da comunidade na acção desenvolvida pela Guarda, desprestigiando-a gravemente.

II.4- Verificados, pois, os respectivos pressupostos de aplicação, há que averiguar qual das medidas – obrigação de permanência na habitação ou prisão preventiva – se mostra idónea à salvaguarda das exigências cautelares que o caso requer e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas ao arguido.
Uma medida é adequada se com a sua aplicação se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para realização das exigências cautelares [4]
Ora, se é certo que a prisão preventiva realiza mais eficazmente o fim pretendido, não é, porém, menos certo que a obrigação de permanência na habitação realiza suficientemente – e sem alguns dos mais graves inconvenientes àquela medida apontados – o mesmo fim.
É que, por um lado, a obrigação de permanência na habitação é uma espécie de prisão preventiva domiciliária, pois que tem os mesmos efeitos da prisão preventiva e, por outro, a fiscalização policial da execução da medida e, sobretudo, a suspensão dos arguidos das funções que exercem como militares da GNR/BT atenuaram consideravelmente o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
E a prisão preventiva não pode servir para suprir ou compensar hipotéticas falhas de “fiscalização policial” a que se encontra sujeita a obrigação de permanência na habitação, ou para poupar a incómodos as autoridades a quem compete exercer a fiscalização.
Vale isto por dizer que ambas as medidas se mostram igualmente adequadas às exigências cautelares.

II.5- Resta averiguar da proporcionalidade das medidas em questão face à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, princípio este que integra o da adequação.
Só por ociosidade se sublinharia a gravidade do crime imputado ao arguido – para o qual se comina, em abstracto, a pena de prisão de 1 a 8 anos – medida pelo modo de execução, importância dos bens jurídicos violados (a “autonomia intencional da Administração”, ou seja, em sentido material, a chamada “legalidade administrativa” [5] ) e culpabilidade do arguido.
Sugestivamente, dizia F.A. Silva Ferrão [6] , que a corrupção “importa da parte do funcionário o desprezo do que deve à sociedade como cidadão, à administração do Estado como seu agente, e a si mesmo como sujeito às leis da equidade”.
Violou o arguido, militar da GNR, frontalmente e de forma gravíssima, como se referiu, o especial dever que sobre ele impende de não cometer crimes.
Urge, pois, repor a confiança nesta força de segurança, seriamente abalada pelo caso. Importa, por outras palavras, convencer que a parte não pode ser tomada pelo todo.
Afigura-se-nos, porém, que não terá de ser necessariamente à custa da prisão preventiva, medida de carácter excepcional, subsidiário e gravoso.
A obrigação de permanência na habitação responde eficazmente às exigências cautelares que o caso reclama, com a vantagem de evitar alguns dos aspectos mais gravosos da prisão preventiva
Não se olvide que, como também se referiu, o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas foi significativamente mitigado com a suspensão dos arguidos das funções que exercem como militares da GNR/BT.
Decorridos mais de três meses sobre a data da sua aplicação não consta nem vem alegado que a sujeição do arguido à obrigação de permanência na habitação tenha causado alarme social.
Alega o MP que “a aplicação de medida de coacção diversa para uns e para outros, sendo que os factos são idênticos, com o mesmo desvalor, implicando, pois, tratamento idêntico”, causou “alguma perplexidade” aos arguidos sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva, à opinião pública e à própria corporação a que os arguidos pertencem.
Além de que “alguma perplexidade” e “alarme social” são coisas distintas, não poderá perder-se de vista que a invocada identidade dos factos pelos arguidos indiciariamente praticados não é, seguramente, o único factor a que obedece a escolha da medida coactiva, sendo certo que, como adiante se demonstrará, não há similitude entre a situação do arguido e a dos arguidos sujeitos à medida de prisão preventiva. Aliás, cada caso é um caso.
Afinal, repete-se, a obrigação de permanência na residência configura-se (e assim é entendida, segundo cremos, pela generalidade das pessoas) como uma prisão preventiva domiciliária, tão acentuado é o paralelismo entre o seu regime e o da prisão preventiva [7] (daí que a obrigatoriedade de reexame trimestral da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva, imposta pelo artº 213º, seja aplicável à obrigação de permanência na habitação), sendo os mesmos os efeitos de uma e de outra.
Acresce que, como se refere no despacho recorrido, “a verdade é que os elementos constantes dos autos não permitem ainda e com clareza distinguir a intensidade do comportamento e participação de cada um dos arguidos nos factos ilícitos em participação quando alguns deles apenas exercem funções administrativas”.
E se dúvidas houvesse quanto a saber qual das duas medidas se mostra proporcionada à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada ao arguido, a opção teria de recair na obrigação de permanência na habitação, por força da subsidariedade da prisão preventiva.
Como escreve Germano Marques da Silva [8] , “não pode nunca esquecer-se o princípio constitucional da presunção de inocência que impõe que as medidas de coacção e de garantia patrimonial sejam na maior medida possível compatíveis com o estatuto processual de inocência inerente à fase em que se encontram os arguidos a quem são aplicadas e por isso que, ainda que legitimadas pelo fim, devam ser aplicadas as menos gravosas, desde que adequadas”, como é o caso vertente.

II.6- Quanto aos “princípios de equidade com anteriores situações similares que são do conhecimento judiciário e público”, a que o Exº Procurador-Geral-Adjunto faz apelo para sustentar que o recurso merece provimento, dir-se-á que, salvo o muito e merecido respeito, o argumento não colhe.
É que, por um lado, não existe similitude entre o caso vertente e anteriores situações. Com efeito, como se alcança do despacho que aplicou a prisão preventiva a alguns dos arguidos envolvidos no mesmo caso - despacho esse que deu origem aos recursos n.ºs 1413/02 (no qual se transcreve aquele despacho) e 1502/02, decididos pelos acórdãos desta Relação, de 2JUL02 e 31AGO02, respectivamente, pelo Exº Procurador-Geral-Adjunto citados no seu douto parecer - foram determinantes para a aplicação da prisão preventiva a alguns dos arguidos “o grau de intervenção dos arguidos assume um peso diverso [...] uma maior exigência ao nível cautelar não só em termos de sanções previsivelmente a aplicar e à motivação de se eximirem às mesmas, mas também na procura de afastarem antes do processo se concluir, por qualquer modo a consolidação dos indícios já recolhidos e a continuação da recolha de novos, o que se encontra em curso”, maior exigência ao nível cautelar essa decorrente da “maior intensidade de participação dos arguidos” [aos quais foi imposta a prisão preventiva], “o elevadíssimo número de vítimas e co-participantes que importa ainda [à data do despacho, note-se, proferido há mais de sete meses] ouvir”, a necessidade de evitar que os arguidos que maior domínio, indiciariamente, tiveram da acção possam impedir a aquisição de toda a verdade material” e, finalmente, “o perigo de continuação da actividade criminosa [...] atenuado embora [mas] não eliminado” (sublinhado nosso).
Explicitamente, o Mº Juiz de Instrução que impôs a medida de prisão preventiva, pelo despacho acabado de transcrever parcialmente, aceita como “acertada a diferenciação realizada pela Digna Procuradora, uma vez que, por ora, o grau de intervenção dos arguidos assume um peso diverso” e a “maior intensidade de participação dos arguidos” [...] coloca uma maior exigência ao nível cautelar
Aliás, enquanto ao arguido A se imputa apenas a prática de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, os arguidos sujeitos a prisão preventiva estão indiciados como “co-participantes em crime de extorsão, corrupção passiva para acto ilícito e abuso de poder”.
Inexiste, pois, a alegada similitude.
Mas, ainda que existisse a pretensa similitude, estaríamos perante um argumento de dois gumes uma vez que ficaria por demonstrar qual das medidas (prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação) seria a reclamada pela similitude das situações.
Diga-se, por último, que, por acórdão desta Relação, de 7JAN03 (Proc. n.º 2771/02), foi considerada “plenamente justificada” a medida coactiva de obrigação de permanência na habitação, imposta, pelos mesmos fundamentos, a outro dos arguidos, pelo despacho de que ora recorre o MP

III- Face ao exposto, na improcedência do recurso, confirma-se a decisão recorrida.
Não são devidas custas.

Évora, 14 de Janeiro de 2003

(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Manuel Nabais
Sérgio Poças
Orlando Afonso




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[1] Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 1987, p.262
[2] Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., p. 245.
[3] Ibidem
[4] Germano Marques da Silva, op. cit., II, p. 248.
[5] António Manuel de Almeida Costa, Sobre o Crime de Corrupção (Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra - “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia” -1984), p. 93.
[6] Theoria do Direito Penal, vol. VI (n.55), p.224, cit. por António Manuel de Almeida Costa, op.cit., p. 94, nota 250.
[7] Assim, v. g., a existência de fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos constitui pressuposto geral comum de aplicação de ambas as medidas (artºs 201º, n.º 1 e 202º, n.º1); nem uma nem outra são cumuláveis com as seguintes medidas de coacção: caução (artº 205º), obrigação de apresentação periódica (uma vez que a imposição e execução daquelas obstaria à execução desta) e proibições de permanência, de ausência e de contactos, previstas no artº 200º (já que tais proibições pressupõem que o arguido se encontre em liberdade); nenhuma delas pode funcionar como substitutiva da caução (artº 197º, n.º2); a obrigação de permanência na habitação está sujeita aos prazos da prisão preventiva (artº 218º, n.º3); o prazo máximo de oito meses para o MP encerrar o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação, é reduzido para seis meses se houver arguidos sujeitos a prisão preventiva ou sob obrigação de permanência na habitação (artº 276ª, n.º 1); o prazo de duração máxima da instrução é reduzido de dois meses, haja arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação (artº 306º, n.º 1); tanto a prisão preventiva como a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado, são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão que lhe for aplicada (artº 80º do CP) - cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pgs. 421 e 436; Germano Marques da Silva, op. cit., p. 276;e Odete Maria de Oliveira, As Medidas de Coacção no Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, pgs. 177 e ss.
[8] Op. cit, p. 250.