Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1/11.3GCSTR.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: DESPACHO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CRIME DE INJÚRIA
QUEIXA DO OFENDIDO
CRIME DE AMEAÇA
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
Data do Acordão: 03/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO DO ARGUIDO
Sumário:
I - Um despacho judicial deve ser claro, preciso, ter certeza no uso de conceitos e ser auto-suficiente na sua compreensibilidade.

II - A linguagem judicial deve seguir o aforismo “Tudo o que pode de todo ser pensado, pode ser pensado com clareza. Tudo o que se pode exprimir, pode-se exprimir com clareza”.

III - Deduzida acusação pela prática de crime público e comunicada a alteração da qualificação jurídica do factos para passarem a subsumir-se à prática de um crime particular, o Ministério Público perde a legitimidade para prosseguir nos autos a partir do momento em que se cristaliza nos autos a alteração da qualificação jurídica e o tribunal deixa de ter jurisdição para dirimir o conflito particular nesse mesmo momento.

IV - Sendo o arguido notificado em acta da audiência de julgamento da alteração da qualificação jurídica e para o exercício do direito previsto no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal e declara prescindir de prazo para defesa, deixa de ter legitimidade para interpor recurso desse despacho.

V - Na revisão de 1995 do Código Penal o crime de ameaças viu a sua natureza alterada para um tipo de perigo, o que por si poderia constituir um alargamento do tipo, mas com a previsão expressa dos bens passíveis de ameaça e com a exigência de “adequação” da conduta à causação do “medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, a restringir de alguma forma o alcance do tipo.

VI – Pretende-se, com tal previsão, que a interacção interpessoal, familiar e social não seja invadida pelo direito penal a não ser em caso extremo balizado pelas exigências do tipo penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No Tribunal Judicial de S correu termos o processo comum singular supra numerado no qual o M.º P.º deduziu acusação requerendo o julgamento em processo penal comum, por tribunal singular dos arguidos:

- AP, filha de..., natural da freguesia, concelho de L, nascida a 18/03/1967, divorciada, operadora de loja e residente na rua..., Queluz (tir a fls. 326);

- TA, filha de.., natural da república federal da Alemanha, nascida a 11/07/1989, solteira, militar, residente na rua...., Queluz (tir a fls. 321),

- JM filho de..., natural da freguesia de Vilar da Maçada, concelho de Alijó, nascido a 06/03/1964, divorciado, cortador de carnes e residente na rua --- .

Imputando-lhes a prática de factos que, em seu entender, integram:

• As arguidas AP e TA, em co-autoria, 01 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 1520 n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal, e

• O arguido JM, como autor imediato, 01 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152° n. ° 1 al. a) e n.º 2 do Código Penal.
*
AP foi admitida a intervir nestes autos na qualidade de assistente – cfr despacho judicial de fls 121.

O Hospital Distrital de S deduziu pedido cível para pagamento de despesas hospitalares contra AP e TA, pedindo que estas sejam condenadas a pagar àquele a quantia de € 1.555,41, quantia esta devida pela assistência hospitalar (internamento) prestada a JM, acrescida de juros de mora calculados à taxa de 4% ao ano, desde a notificação até efectivo e integral pagamento.

A final - por sentença lavrada a 09 de Março de 2012 - veio a decidir o Tribunal recorrido julgar parcialmente procedente por provada a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência;

Absolveu os arguidos AP, TA e JM do crime de violência doméstica de que vinham acusados;

Condenou a arguida AP como autora material de um crime de injúria, previsto no art.º 181.º do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros);

Condenou o arguido JM como autor material de um crime de ameaça, previsto no art.º 153.º do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros);

Julgou improcedente por não provado o pedido cível para pagamento de despesas hospitalares deduzido pelo Hospital Distrital de S e, em consequência, absolver as demandadas AP e TA do pedido;
E no mais legal.
*
Inconformados, os arguidos interpuseram recursos.

AP, assistente/arguida, com as seguintes conclusões:

1 - O Ministério Público acusou a recorrente imputando-lhe, pelos factos constantes da acusação de fls. 259 a 264 cujo o teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a prática, em co-autoria com a arguida TA, de um crime de violência doméstica p.p. pelo artigo 152º nº 1 al. a) e nº 2 do C.P..

2 - Em audiência de julgamento, antes de proferir a sentença, o tribunal recorrido proferiu o seguinte despacho: “Ao elaborar a sentença referente a estes autos, verificámos que os factos descritos na acusação devem sofrer uma alteração na sua qualificação jurídica, pois que os mesmos após obtenção da prova em audiência de julgamento, se mostram enquadráveis não no crime de violência doméstica, mas sim, num crime de injúria e um crime de ameaça. Neste sentido, o Tribunal determina o cumprimento do disposto no artigo 358º, n.º 1 por força do n.º 3 da referida norma do CPP, quanto aos arguidos.”.

3 - Após a prolação do mencionado despacho, o tribunal recorrido absolveu os três arguidos da prática de um crime de violência doméstica e condenou a recorrente pela prática de um crime de injúria p.p. pelo artigo 181º do C.P. e o arguido JM pela prática de um crime de ameaça.

4 - Entende a recorrente que não deveria ter sido condenada pela prática de um crime de injúrias.

5- O crime de crime de injúrias, trata-se de crime particular, tal como resulta dos artigos 181º e 188º do Código Penal.

6 - Nos crimes particulares a lei ainda exige no que respeita à actuação do ofendido para que ocorra procedimento criminal que o ofendido se queixe, se constitua assistente e deduza acusação particular, conforme impõe o nº 1 do artigo 50º do C.P.P.

7 - A queixa é a manifestação da vontade do titular do direito ofendido, ou de outra pessoa a quem a lei atribua essa faculdade, de que se verifique procedimento criminal pelo crime cometido contra si, nestes casos o Ministério Público não pode dar início ao procedimento criminal sem que esta vontade tenha sido exercida.

8 - Quanto à sua forma, e dada a omissão da lei nesta questão, a queixa pode assumir qualquer forma que dê a perceber a intenção do seu titular de que seja instaurado procedimento criminal: indispensável é só que o queixoso revele a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes pelos factos relatados.

9 - A queixa é essencial à instauração do procedimento criminal e desta essencialidade resulta que sem queixa o procedimento não pode iniciar-se, caso se tenha iniciado não pode prosseguir.

10 - Nos crimes particulares a existência de queixa é um pressuposto processual, daí que tenha uma natureza mista, processual e material, simultaneamente: sendo condição de procedibilidade, deve ser apreciada previamente; mas tendo natureza material, deve ser apreciada a qualquer momento, ao longo do procedimento, sendo que a qualquer momento se podem/devem retirar as consequências do facto de a queixa não existir ou não ser juridicamente relevante. Quando esta situação ocorre falta, portanto, um pressuposto do procedimento, logo da condenação.

11 - Nos presentes autos, a recorrente apresentou em 02/01/2011 queixa contra o arguido JM e este um dia depois daquela, a 03/01/2011, fez a denúncia que consta de fls. 3 a 7 e onde a fls. 5 consta expressamente que “pelo atrás exposto a vítima não deseja procedimento criminal.”. O arguido JM declara não desejar procedimento criminal contra a recorrente.

12 - Contudo, o Ministério Público findo o inquérito deduz acusação pela prática do crime de violência doméstica, de natureza pública, contra a recorrente. Por ser um crime de natureza pública a vontade do ofendido é preterida.

13 - Em sede de julgamento, o Mmo. Juiz entende proceder a uma alteração da qualificação jurídica dos factos contidos na acusação pública e considera que os factos integram, afinal, a prática dum crime de ameaças e de um crime de injúrias e condena a recorrente pela prática deste último crime.

14- Sucede, porém, que tal crime tem natureza particular e o aqui ofendido JM declarou não desejar procedimento criminal contra a recorrente.

15- Ora, conforme resulta claro do disposto no artigo 49º nº 1 do C.P.P., quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.

16 - Não existindo qualquer tipo de dúvida quanto ao facto de o ofendido JM ser o titular do direito de queixa quanto aos factos em apreço nos presentes autos, a manifestação expressa por parte deste de não desejar a instauração de procedimento criminal contra a recorrente gera a ilegitimidade do Ministério Público para a promoção do processo penal e determina o consequente arquivamento dos autos.

17 - Foram, assim, violados os artigos 49º, 50º nº 1 e 120 nº 2 do C.P.P. e os artigos 113º nº 1, 181º e 188º do C.P..

18 - Pelo que deverá a sentença recorrida ser revogada na parte respeitante recorrente e substituída por outra que ou determine o arquivamento dos autos nessa parte ou absolva a recorrente da prática de um crime de injúrias.

19 - Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que as expressões “porco” e “miserável” dadas como provadas terem sido proferidas pela recorrente não integram a prática de um crime de injúrias p.p. pelo artigo 181º do C.P..

20 - Ainda que se tenha dado como provado que a recorrente chamou “porco” e miserável” ao arguido JM não podemos encontrar neles uma relevância injuriosa, atento o circunstancialismo em que tais expressões foram proferidas.

21 - As expressões foram proferidas no decurso de discussão relacionada com o consumo de álcool por parte de JM e de dificuldades financeiras sendo certo que este chamava à recorrente, como aliás consta da matéria de facto provada, “puta”, “ordinária” e “vaca leiteira”.

22 - A verificação do ilícito não se pode circunscrever e/ou limitar-se à valoração isolada e objectiva das expressões proferidas pela recorrente. Importa analisá-las porque foram proferidas e em que circunstâncias.

23 - No caso dos autos, foram proferidas no decurso de discussões relacionadas com a imputação do consumo de álcool pelo JM e dificuldades financeiras.

24 - Chamar “porco” e “miserável” no seio de uma discussão familiar não se pode considerar só por si de injurioso.

25 - Com efeito, aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou consideração não pode considerar-se injúria e não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena.

26 - No caso dos autos, chamar “porco” num contexto de briga familiar por causa de problemas de álcool não constitui uma conduta eticamente reprovável a reclamar a tutela penal.

27 - Na verdade, face ao específico contexto em que foi proferida, a mencionada afirmação não tem idoneidade para atentar contra a honra e consideração de JM que chamava “puta”, “ordinária” e “vaca leiteira” à recorrente.

28 - Não se pode dizer que chamar “porco” alguém que nos chama “puta”, “ordinária” e “vaca leiteira” no meio de uma discussão seja ofensivo da honra e consideração ao ponto de ser merecedor de tutela penal.

29 – Na sentença recorrida foi violado o artigo 181º do C.P. ao condenar-se a recorrente pela prática de um crime de injúrias.

30 - Assim, também por estes motivos deverá ser recorrente absolvida do crime de injúria.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta.
*
JM, com as seguintes conclusões:

1. O recorrente e os demais arguidos vinham acusados da prática de um crime de violência doméstica.

2. Sucede que, nos presentes autos o Meritíssimo Juiz decidiu, após o encerramento da audiência, antes de proceder à leitura de sentença, reabrir a audiência de discussão e julgamento para proferir o despacho seguinte:

3. Despacho: “Ao elaborar a sentença referente a estes autos, verificámos que os factos descritos na acusação devem sofrer uma alteração na sua qualificação jurídica, pois que os mesmos após obtenção da prova em audiência de julgamento, se mostram enquadráveis não no crime de violência doméstica, mas sim, num crime de injúria e um crime de ameaça. Neste sentido, o Tribunal determina o cumprimento do disposto no artigo 358º, n.º 1 por força do n.º 3 da referida norma do CPP, quanto aos arguidos.”

4. A alteração não substancial dos factos e a alteração da qualificação jurídica traduzem-se numa modificação do objeto do processo como tal definido pela Acusação do Ministério Público e a cujo conteúdo factual se encontra o Tribunal vinculado.

5. Com a prolação de tal despacho os arguidos ficaram sem saber que tipo de crime, em concreto, lhe estava a ser imputado em consequência da alteração da qualificação, pois apenas foi referido que se alterava a qualificação para os crimes de injúrias e de ameaça.

6. Tal significa que, havendo uma alteração não substancial dos factos da Acusação, os mesmos tinham de ser concretizados e especificados no despacho que se decida por essa mesma alteração, do mesmo modo e cumprindo os mesmos requisitos que o artigo 283° do CPP impõe para a prolação do despacho de acusação.

7. O despacho cuja nulidade se arguiu é completamente omisso quanto a (i) especificação dos factos em que se concretiza a alteração da tipificação dos crimes pelos quais os arguidos vinham acusados, no caso do recorrente, da alteração do crime de violência doméstica para o crime de injúrias e ameaça; (ii) fundamentação do juízo de nexo de causalidade entre os factos imputados ao arguido e qualquer expressão que lhe tenha sido proferida pelo Arguido. (iii) total ausência de referência a meios probatórios de que tais indícios poderiam ter resultado; (iiii) a indicação em concreto que tipo de crime estava a ser imputado a cada um dos arguidos.

8. A remissão genérica para toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, como forma de justificar quais os meios probatórios que permitiram ao Tribunal concluir pela alteração é uma fuga à necessidade e obrigatoriedade de indicação concreta e especificada daqueles mesmos meios.

9. A ausência de fundamentação e de imputação em concreto de um tipo de crime demonstra uma postergação dos direitos do Arguido que assim vê claramente esbatidas as suas hipóteses de defesa, constituindo portanto uma claríssima violação do artigo 61°, n°1 e 97° do Código de Processo Penal, bem como do artigo 205º da Constituição.

10. O despacho limita-se a determinar a alteração da qualificação jurídica de crime de violência doméstica para crimes de injúrias e ameaça.

11. Tal despacho, desde que fundamentado, poderia ser admissível caso estivéssemos no âmbito do julgamento de um único arguido.

12. Porém, ao invés disso, os factos em apreciação pelo Tribunal são imputados aos três arguidos o mesmo tipo de crime (violência doméstica), que em consequência do despacho foi alterada a qualificação para dois crimes distintos (injurias e ameaça), sendo que o tribunal não efetuou a determinação dos arguido a quem seriam imputados os crimes de injurias e os crimes de ameaças, e bem assim, se todos seriam alvo da imputação do mesmo tipo de crime, ou se pelo contrário a todos os arguidos foram imputados os crimes de injurias e de ameaças.

13. Entendemos que, o Tribunal deveria ter especificado que tipo de crime imputava a cada um dos arguidos, de per si, fundamentado os factos que determinaram tal alteração da qualificação jurídica.

14. Ora, ficamos sempre sem saber que tipo de crime foi imputado ao ora recorrente, após o despacho de alteração proferido após o encerramento da audiência e antes da leitura da sentença.

15. De resto também, a alteração da qualificação, por via do despacho é aplicável à arguida T, e esta arguida não foi absolvida ou condenada pelos crimes de injúrias ou ameaças, sendo certo que foi absolvida do crime de violência doméstica.

16. Deveria pois o Tribunal a quo ter explicitado que crime imputava a cada um dos arguido, no caso ao ora recorrente, e que factos sustentavam essa acusação para, com base neles, se pronunciar e exercer a sua defesa.

17. A comunicação tem de ser rigorosa e transparente, não se podendo confundir uma defesa que obedeça às garantias que assistem a qualquer arguido com o seu eventual envolvimento e responsabilidade na prática de crime não concretamente determinado.

18. Ora, nos mesmos termos que, na sentença, o julgador deve indicar os meios de prova com o respectivo exame crítico em que se apoiou para dar os factos como provados ou não provados, assim esclarecendo e convencendo da bondade do decidido, para os sujeitos processuais ficarem a saber o raciocínio seguido pelo julgador na valoração da prova produzida – constituindo nulidade esta não explicitação ou fundamentação -, também a quando do cumprimento desta comunicação, tem o julgador o dever de indicar ao arguido, que os factos (novos) se mostram indiciados com base em determinados e concretos meios de prova.

19. Só esta concretização permitirá ao arguido identificar o objeto da sua defesa, contraditando os meios de prova já produzidos e oferecendo quiçá outros que, em seu entender, possam abalar os indícios até então existentes. Mas, mais uma vez, temos que distinguir entre o exercício pleno e efetivo do arguido deste seu direito, do resultado final de toda a sua defesa, que tanto pode abalar os indícios como não os afetar, de todo.

20. Assim, considerandos que resulta clara a necessidade de o julgador a quo dar cumprimento ao artigo 358º, nº 1, do CPP, pois a comunicação feita pelo Tribunal a quo ao arguido, da alteração não substancial dos factos, não observou o legalmente exigido quanto à sua fundamentação e individualização dos crimes imputados aos arguidos, no caso ao recorrente, que no caso se traduz na explicitação ou concretização dos factos e meios de prova indiciários, e crimes imputados, única forma e meio de salvaguardar ao arguido os direitos consignados no artigo 61º, nº 1, alínea c) e 358º, nº 1, ambos do CPP e 32º, nºs 1 e 5, da CRP, violador, pois, dos direitos de defesa e do princípio do contraditório.

21. Nesta medida, pode afirmar-se e concluir-se que a condenação do recorrente – ínsita na sentença -, pelos factos que não integravam a acusação, constitui a nulidade do artigo 379º, nº 1, alínea b), do CPP, pois esta condenação ocorreu fora do caso e condições do artigo 358º, do mesmo diploma.

22. Normas jurídicas violadas pela decisão de que ora se recorre (indicação feita nos termos do disposto da alínea a) do n° 2 do artigo 412° do Código de Processo Penal): 61°, 1, alínea e), 97 °, n° 5, 283°, 358º, nº 1 e 361º todos do Código de Processo Penal, e 32º, n. °1 e 5 e 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

23. O ora recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando incorretamente julgados e pedindo a renovação da prova relativamente aos pontos 16 e 17 da matéria de facto dada como provada, os quais se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

24. Salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo valorou erradamente o depoimento da arguida AP – prestado em audiência ata do dia 25-05-2012.

25. O Tribunal não esclareceu na fundamentação como valorou o depoimento desta arguida, sendo que considerou provado que a mesma sentiu medo do arguido José Álvaro, de modo a considerar provado os pontos 16 e 17 dos factos provados.

26. Jamais a arguida referiu ter medo do arguido, pelo contrário resulta da restante prova produzida em audiência e do texto da sentença que a mesma sempre fez frente ao arguido.

27. Veja-se a título de exemplo a fundamentação da convicção do tribunal quanto ao facto 18 da acusação, e citamos, “Quanto aos factos relativos desligamento de gás ….os arguidos acabaram por os confirmar na integra ….”

28. É demonstrativo da atitude da arguida de “não medo” o facto de após o arguido ter desligado o gás de modo a pressionar a sua entrada em casa a arguida AP ter agido do mesmíssimo modo, desligando o gás do anexo onde estes se encontrava a residir.

29. Mas mais evidente se torna se atentarmos no facto de o arguido para entrar na sua própria casa ter de solicitar invariáveis vezes a intervenção da GNR, e, bem assim, o facto de ter sido obrigado a dormir num anexo de terra batida, em pleno inverno (dezembro) onde chovia tendo de dormir tapado com um plástico.

30. Não poderemos considerar este comportamento a atitude tipo de um ameaçador, de quem incute medo e inquietação a outrem.

31. E resto, como já se disse a arguida AP nunca referiu ter medo, pelo contrário referiu que se sentia frustrada, humilhada e envergonhada com a vivência durante o casamento.

32. A arguida AP depôs, em audiência de discussão e julgamento ata de 25.05.2012, CD 1 – 16:05:03 a 16:56:09 (cfr CD de gravação da audiência: ficheiro CD 1):

33. Na verdade atento o depoimento da arguida o tribunal não poderia considerar provado que o arguido JM por qualquer forma lhe provocou medo, não se reproduz o depoimento dado inexistir qualquer referência a medo por parte da arguida, requerendo a sua audição na íntegra.

34. De resto não existem outros depoimento que possam esclarecer o quantum do medo que a arguida poderia ter sentido, dado que os demais depoimento nada acrescentam a esse respeito.

35. Sendo que do texto da sentença não os permite aferir qual o depoimento valorado para considerar provado tal facto.

36. De resto o tribunal de modo a considerar provado o crime de ameaças considerou que o arguido terá proferido as expressões seguintes: Facto 14. No dia 1 de janeiro nas imediações da casa, os arguidos JM e AP discutiram, tendo aquele dito, “Eu quero entrar, quero a Chave aí na porta. Eu vou dirigir-me ao quartel e vou-te tramar e vou ao teu trabalho e vou-te tramar também.” Facto 16. Contudo o arguido continuou a dirigir-se aquele local e quando encontra a AP, dizia-lhe, “Vou dar cabo da tua vida, vou fazer a tua vida num inferno”.

37. Salvo o devido respeito, que é muito, não podemos concordar que as expressões proferidas são adequadas a causar medo, muito menos à arguida (que impede o marido (arguido JM) de entrar em casa).

38. As expressões vou-te tramar, vou ao quartel (chamar a GNR), vou dar cabo da tua vida e fazer a tua vida num inferno, constituem expressões que não revelam nenhuma das características que a ameaça deve revestir.

39. Nem o anunciar de um mal, muito menos futuro e cuja ocorrência e dependa da vontade do agente.

40. No caso, as circunstâncias, o contexto e os factos em si denunciam que o arguido, agastado, pelo facto de não poder entrar em casa, o que lhe era impedido pela arguida AP, visada, diz-lhe que a vai Tramar e que lhe vai fazer a vida num inferno e que para isso vai ao quartel chamar a GNR e vai ao seu local de trabalho.

41. Esta objetividade torna a interpretação dos factos, clara e evidente, a traduzir a intenção de no imediato resolver a questão que tinha com a visada, entrar em casa, que de resto era sua residência permanente.

42. As palavras do arguido não denunciam, não exteriorizam que na sua mente a concretização do por si verbalizado de um mal fique reservada para um outro local e momento incertos e diversos.

43. Antes, que o que dele pretendia, era para ter lugar naquela ocasião, de imediato, entrar em casa! E ainda assim sem anunciar qualquer mal suscetível de provocar medo ou inquietação.

44. As expressões consideradas provadas são absolutamente, inócuas e vagas que não permitem integral o tipo de crime de ameaça.

45. Mais, não resulta da sentença quaisquer factos provados donde resulte que a conduta do recorrente teve a virtualidade ou sequer a potencialidade de condicionar e/ou de o inibir a arguida AP, o que é pressuposto do preenchimento do tipo legal.

46. Deste modo e por não se verificar, em qualquer das expressões, todos os elementos objetivos do tipo de ilícito, falhando ali o anúncio desde logo, do mal e aqui, do facto de a ocorrência do mal futuro anunciado, depender da vontade do arguido, deveria o arguido ser absolvido de tal crime.

47. Sendo que, perante a prova produzida em audiência e salientando-se o depoimento da visada com a conduta do recorrente, a arguida AP, cuja reapreciação se requer, outra decisão se impunha, a saber, a ABSOLVIÇÃO DO ARGUIDO, ora recorrente.

48. Foram violados os artigos 379°, n° 1, alínea b por referencia para o artigo 378 e 410º, n.º 2, alíneas b) e c) do CPP e 32º, n.º 2 e 205º nº 1 da CRP.

49. Termos em que se requer a V.ª Ex.ªs se dignem revogar a douta sentença recorrida,
*
A Digna magistrada do Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso interposto, defendendo a procedência dos mesmos, com as seguintes conclusões:

Arguida AP:

1. JM declarou nos autos, em duas ocasiões, não desejar procedimento criminal contra a recorrente.

2. Sem embargo dessa declaração, o processo seguiu os seus termos para julgamento, porque o Ministério Público imputou aos arguidos, incluindo AP, a prática do crime de violência doméstica, o qual reveste natureza pública.

3. Todavia, em despacho proferido previamente à leitura da sentença, o Mmo. Juiz a quo alterou a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, enquadrando-os na previsão dos crimes de injúria e de ameaça.

4. O crime de injúria reveste natureza particular – cfr. proémio do n.º 1 do artigo 188.º do C Penal – o que, nos termos do artigo 50.º, n.º 1 do CPPenal, torna necessária a apresentação de queixa e a constituição do particular ofendido como assistente.

5. Assim sendo, perante a falta de vontade de procedimento criminal de JM, o tribunal a quo carecia de legitimidade para exercer a acção penal contra AP.

Termos em que, substituindo a sentença recorrida por outra que ordene, quanto a AP, o arquivamento dos autos,
*
Arguido JM

1. À alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não subjaz qualquer alteração de factos, mas tão-só uma subsunção jurídico-penal diferente da propugnada na acusação ou na pronúncia.

2. O despacho que procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação estaria mais correcto se tivesse especificado que os factos descritos na acusação relativamente ao arguido JM eram passíveis de integrar não o crime de violência doméstica, mas o de ameaça.

3. Todavia, a falta de tal especificação importa, quando muito, uma irregularidade, que entretanto se sanou, porque o recorrente não a arguiu, como podia e devia ter feito, no próprio acto da comunicação da alteração, nos termos previstos no artigo 123.º, n.º 1 do CPPenal.

4. Se pode aceitar-se que, na motivação do arguido se cumprem, ainda que de forma pouco satisfatória, as prescrições das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPPenal, é evidente que o mesmo já não sucede no respeitante à exigência estabelecida na alínea c), uma vez que, nessa motivação, não se faz a mais ténue menção às provas que, no seu entender, devem ser renovadas.

5. Visando impugnar no seu recurso a matéria de facto e impondo-se, por conseguinte, a confrontação entre a prova produzida e o alegado na motivação, mas não satisfazendo o recorrente tal imposição, não é possível apreciar o thema decidendi, por ser inviável a dissecação ideológico-anatómica da prova.

6. Não havendo o recorrente feito as especificações nos termos prescritos pelo artigo 412.º do CPPenal, o presente recurso deverá ser rejeitado em matéria de facto.

7. A matéria de facto fixada pelo tribunal não preenche o elemento objectivo do crime de ameaça.

8. Não é possível asseverar que quando JM disse a AP “Eu vou dirigir-me ao quartel e vou-te tramar e vou ao teu trabalho e vou-te tramar também.” ou “Vou dar cabo da tua vida, vou fazer a tua vida num inferno” quis anunciar que ia ofender a integridade física daquela ou tirar-lhe a vida.

9. De acordo com as regras normais da interpretação das declarações, as expressões emitidas querem significar, isso sim, que JM vai apoquentar AP, que vai impor a sua presença na esfera pessoal e profissional desta, que não a vai largar.

Termos em que, substituindo a sentença recorrida por outra que absolva JM.

A Exmª Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da procedência dos recursos.

Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.

B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. Os arguidos AP e JM, contraíram casamento entre si, em 3 de Dezembro de 1988, tendo dessa união, nascido duas filhas, TA e AM, esta nascida a 01/06/1997.

2. Durante o ano de 2000, o casal AP e JM passou a residir, na companhia das suas filhas, na Rua ...

3. No final do ano de 2010, aquela relação sofreu um declínio, mostrando-se constantes as trocas de palavras ofensivas entre o casal, apelidando o arguido a sua mulher AP de "puta", "ordinária" ou "vaca leiteira", assim como a acusava de ter amantes.

4. Por outro lado, a arguida AP discutia frequentemente com o arguido, imputando-lhe o consumo excessivo de álcool e ainda por causa de dificuldades financeiras que atravessavam, chamava-lhe “porco” e “miserável”.

5. A hora não determinada da tarde do dia 24 de Dezembro de 2010, no interior da sala da residência referida e quando ali se encontravam presentes as filhas, AP, T e JM envolveram-se em discussão.

6. No decorrer da referida discussão, a arguida AP chamou JM de “porco” e o JM cuspiu na cara de AP.

7. No dia 27 de Dezembro de 2010, pelas 18.00h, a patrulha da GNR deslocou-se a casa dos arguidos, por comunicação via rádio recebida do posto.

8. Após a patrulha da GNR ter conversado com JM e AP, chegaram a acordo que o arguido JM iria ficar a dormir no anexo da casa.

9. A arguida AP, ao agir como se descreveu representou e quis proferir expressões que sabia serem aptas a ofender a honra e consideração do JM, sabendo ser seu cônjuge, tal qual fez e quis.

10. Sabia que violava o dever de respeito decorrente da relação de casamento.

11.Sabia a arguida APM que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e tinham capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.

12. No quadro de declínio do relacionamento familiar acima descrito, o arguido JM, para além de discutir com AP, entrava e saia das divisões da residência, deixando as portas abertas, abrindo-as com força, provocando estragos nas mesmas, e durante a noite acendia todas as luzes do interior da casa, independentemente de estar ali alguém a dormir.

13. Pelas 20.00h do dia 25 de Dezembro de 2010, o arguido desligou o gás da habitação comum e, por seu turno, AP desligou o gás do anexo onde o arguido JM se encontrava a pernoitar, altura em que este lhe exibiu um martelo.

14. No dia 1 de Janeiro de 2011, nas imediações da casa, os arguidos JM e AP discutiram, tendo aquele dito, "Eu quero entrar, quero a chave ai na porta. Eu vou dirigir-me ao quartel e vou-te tramar e vou ao teu trabalho e vou-te tramar também".

15. Durante o mês de Janeiro de 2011, as arguidas, AP e T, acompanhadas da menor AM, abandonaram a casa de morada de família e passaram a residir em Verdelho, Santarém.

16. Contudo, o arguido continuou a dirigir-se àquele local e quando encontra AP, dizia-lhe, "Vou dar cabo da tua vida, vou fazer a tua vida num inferno".

17. O arguido ao actuar como actuou e, bem assim, ao proferir aquelas palavras, dirigindo-as a AP, representou e quis perturbar AP, bem como representou e quis causar-lhe receio sobre a sua vida e integridade física, tal qual fez.

18. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.

19. A arguida AP está divorciada, vive com as duas filhas, em casa arrendada, da qual paga renda mensal no valor de € 350,00

20. A arguida AP exerce a profissão de operadora de loja, por conta de outrem – Sonae – da qual aufere a remuneração mensal, média e líquida de € 535,00.

21. A arguida AP tem como habilitações literárias o 12.º ano de escolaridade.

22. A arguida AP não tem antecedentes criminais.

23. A arguida TA está solteira, vive com a irmã e sua mãe, em casa desta.

24. A arguida TA exerce a profissão de militar no Exército, auferindo remuneração mensal, média e líquida de € 857,00

25. A arguida TA tem como habilitações literárias o 12.º ano de escolaridade.

26. A arguida TAOM não tem antecedentes criminais.

27. O arguido JM está divorciado, vive sozinho, em casa própria, pagando prestação bancária por empréstimo para aquisição de casa própria, no valor mensal de € 535,00, quantia que não paga há meses por dificuldades financeiras. Paga ainda prestação bancária por aquisição de viatura própria, no valor mensal de € 330,00.

28.O arguido JM exerce a profissão de cortador de carnes, por conta de outrem – SC – da qual aufere a remuneração mensal, média e líquida de € 535,00.

29. O arguido JM tem como habilitações literárias a antiga 4ª classe – actual 4.º ano de escolaridade.

30. O arguido JM não tem antecedentes criminais.
*
B.1.2Factos não provados:

a) Decorridos quatro a cinco anos após o início do casamento, a relação entre AP e JM veio a deteriorar-se, passando a discutir assiduamente, no decurso das quais se verificavam ofensas verbais recíprocas.

b) O arguido JM dirigia à sua esposa AP expressões como "não prestas para nada ( ... ), nem tens dinheiro para nada ( ... ), nunca trabalhaste".

c) No decorrer da referida discussão, as arguidas AP e T empurraram JM, fazendo com que o mesmo embatesse com as mãos no vidro da porta da entrada da habitação, tendo JM cuspido na cara de AP.

d) Em consequência dos actos praticados pelas arguidas AP e T, JM sofreu as seguintes lesões: - Ferida no dorso da mão direita, na extremidade proximal do quinto metacárpico com 3mm; - Ferida na região dorsal do dedo médio direito, na primeira falange com 6x2mm, e ferida na região dorsal do dedo indicador esquerdo na extremidade distal da falange com 5x3mm.

e) Após, as arguidas empurraram JM para fora de casa, pelo que o mesmo teve que pernoitar num anexo da residência, não tendo a arguida AP permitido que ele entrasse de novo na habitação, tendo fechado as portas à chave.

f) Pela manhã do dia 25 de Dezembro de 2010, JM apercebeu-se que as arguidas iam sair de casa, pelo que as interpelou dirigindo-se concretamente a AP, dizendo-¬lhe, "Vais para o reino de Deus e não limpas a casa", tendo por seu turno, as arguidas respondido, "O que é que tens a ver com isso", "Porco", "Nojento", "Miserável", "Vais ficar sem nenhum cêntimo, vais para debaixo da ponte, o que merecias era um par de cornos".

g) Naquela mesma ocasião, a arguida T ainda disse para JM, "Eu trago cá a tropa toda e partem-te a tromba toda", "Eu hei-de te matar", tendo o arguido respondido, "Se queres matar, mata-me agora", após o que a arguida T o empurrou no ombro direito, projectando-o contra o solo e para fora da propriedade onde se situa a casa, fechando o portão de acesso à mesma, o que determinou para JM ferida escoriativa na região malar esquerda com 2x1,5cm, e na região mentoniana esquerda com 3x1cm e região frontal esquerda com 2x0,5cm.

h) No dia 27 de Dezembro de 2010, pelas 18.00h, JM solicitou a intervenção da GNR para conseguir entrar em casa.

i) Após a patrulha da GNR ter conversado com JM e AP, para que ele acedesse ao interior da habitação para tomar banho, AP acedeu ao pedido e colocou a chave na porta, mas logo após aquela patrulha se ausentou do local, AP retirou a chave da porta, impedindo que JM entrasse na habitação.

j) As arguidas AP e T, ao agirem como se descreveu representaram e quiseram bater em JM, assim como a arguida T proferir expressões que sabia serem aptas a ofender a honra e consideração do mesmo, por este ser pai da mesma, tal qual fez, assim como ambas representaram e quiseram causar-lhe receio sobre a sua vida e integridade física.

k) Sabia que violava o dever de respeito decorrente da situação de filiação.

l) Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.

m) No dia 27 de Dezembro de 2010, pelas 18,00 horas, JM solicitou a intervenção da GNR para conseguir entrar em casa.

n) O arguido JM escondia as chaves da viatura automóvel de AP, impossibilitando-a de a utilizar.

o) No decurso das discussões que o casal vinha encetando, o arguido disse várias a AP, "Eu acabo contigo, eu despedaço-te".

p) As arguidas AP e T agiram sempre em comunhão de esforços e intentos.

q) Todos os factos constantes da acusação tiveram lugar na casa de morada de família e no espaço adjacente à mesma, bem como, decorreram, parte deles, nomeadamente os constantes dos pontos 6 a 8, na presença da filha menor do casal, AM.

r) Todos os arguidos agiram como se descreveu, bem sabendo que o faziam no interior da casa comum, onde todos habitam e bem assim que o faziam na presença da filha menor do casal.
*
B.1.3 - E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:

A factualidade considerada provada resultou da convicção do tribunal formada a partir do conjunto de toda a prova produzida em audiência de julgamento, havendo que referir:

DAS DECLARAÇÕES: DA ARGUIDA AP;
…….
DA PROVA TESTEMUNHAL: DA(S) TESTEMUNHA(S) DE ACUSAÇÃO:
……
DA PROVA PERICIAL E DOCUMENTAL

Fls 8 – fotos; Fls 12 e 15 – autos de notícia; Fls 16 – auto de exame médico directo; Fls 128 – relatório de episódio de urgência hospitalar; Fls 129 – nota de alta psiquiátrica; Fls 253, 254 e 255 – certificados do registo criminal; Fls 284 – factura do Hospital Distrital de S;

EXAME CRÍTICO DAS PROVAS

A arguida AP, apesar de negar a prática dos factos que lhe são imputados na acusação, admitiu que entre os anos de 2008 e 2010 terão ocorrido frequentes discussões entre si e o seu marido, o arguido JM, motivadas, segundo ela pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do seu marido e o consequente estado de embriaguez e ainda por este não contribuir financeiramente para os encargos do agregado familiar e, segundo ele, por a sua mulher não lhe dar contas do seu rendimento do pequeno comércio que explorava e por se dedicar a uma religião com a qual não concordava pois a sua mulher deixava de se dedicar à casa por causa disso. Quanto às agressões que lhe são imputadas na pessoa do seu marido e que constam dos pontos 6 a 8 da acusação, a arguida AP nega a sua prática, afirmando que foi o próprio marido, arguido JM que teria desferido um murro na porta e nos vidros, como forma de a ameaçar e de lhe criar medo e receio, dado que estava muita enervado. Esta versão dos factos foi também confirmada pela sua filha, a arguida T, a qual também se encontrava no local e, segundo a acusação, também teria empurrado o seu pai contra o vidro onde se cortou, facto que negou. Declarou que a discussão teria por motivo o facto de não haver dinheiro e sobre as ameaças que o seu pai fazia e não por causa do carro, motivo este não muito credível. Ainda quanto a estes factos, a versão da testemunha AM, filha do casal e irmã da arguida T, a qual se encontrava no local, afirmou que foi o seu pai que, enfurecido com a discussão que estava a ter com a sua mãe, desferiu um murro no vidro da porta, de forma a ameaça-las e a criar medo, tendo-o visto a sangrar da mão. O arguido JM confirmou a versão constante da acusação no sentido de terem sido as arguidas AP e T o terem empurrado fazendo que o mesmo embatesse com as mãos no vidro da porta da entrada da habitação. Quanto a estes factos a testemunha AF, vizinho dos arguidos refere que no dia de Natal de 2010 o arguido JM lhe terá desabafado que a sua mulher e filha o tinham agredido mas não sabe como, apesar de o ver com sangue na cara num braço e nas mãos. Para além destes elementos de prova, consta a fls 8 fotografias que representam as feridas e escoriações que o arguido apresentava, bem como o auto de exame médico directo realizado pelo médico perito do tribunal, onde se descrevem as lesões que o arguido apresentava à data do mesmo – 6.1.2011. Para além destes elementos de prova, resta as afirmações dos elementos da GNR que foram a casa do casal e que afirmaram não terem visto vidros partidos na porta da casa. Da conjugação de todos estes elementos, bem como pelas regras de experiência aplicadas ao caso e circunstâncias concretas, às alegadas agressões antecede o conhecimento por parte do arguido de factos praticados pela sua mulher relativos à venda de um carro, que o mesmo desconhecia e que provocaram em si um estado de revolta e exaltação, motivador de mais uma discussão, na qual o arguido JM se mostrou enfurecido, nas palavras da sua filha AM, que o colocou numa situação muito mais activa que passiva, ou seja, as condições psicológicas do arguido eram próprias para o colocar numa situação mais agressiva do que passiva, tendo “descarregado” a sua fúria através de um murro num vidro. Este acto mostra-se próprio destas circunstâncias, sendo também conjugado com as lesões apresentadas no corpo do arguido, as quais não se mostram compatíveis com a versão da acusação.

Pelo exposto o tribunal, apesar de todos estes elementos de prova, não conseguiu obter prova bastante, segura e capaz, pelo que na dúvida considera não provados estes factos.

Quanto aos factos do dia 25 de Dezembro de 2010, pela manhã (factos 10 e 11 da acusação), a arguida AP limitou-se a negar os factos e a afirmar que nesse dia nem saíram de casa. Contudo admite que o possa ter chamado “porco”. A arguida T nada esclareceu pois que passou a manhã a dormir, acrescentando que não ameaçou o seu pai com a tropa, apenas se colocando em frente da sua mãe quando discutia com o seu pai. O arguido JM confirmou os factos, esclarecendo que ocorreram no dia 28 de Dezembro e que os factos constantes do ponto 11 ocorreram tal como descritos mas tiveram lugar depois de ter saído do hospital. A testemunha AM, filha do casal esclareceu que o seu pai foi para o anexo de livre vontade, na véspera de Natal. O depoimento desta testemunha quanto aos factos da manhã do dia 25 de Dezembro, mostra-se pouco esclarecido e vincadamente parcial em favor da sua mãe e irmã. Começa por trocar a data por 24 de Dezembro, confirma as frases imputadas ao seu pai e não se lembra das frases da sua mãe e nega as frases imputadas à sua irmã.

Assim e quanto a estes factos a prova mostra-se contraditória e escassa, pelo que o tribunal dará como provado parte desta matéria factual.

Quanto à matéria de facto expresso na acusação no seu ponto 9 e 13 da acusação, a arguida AP nega que tenha expulsado o seu marido de casa pois que ele dormiu na mesma na noite de 24 de Dezembro. O seu marido aceitou ir para o anexo quando a GNR esteve em sua casa. Reconhece que o anexo tem condições precárias e o telhado não estava em condições e chovia lá dentro. Contudo afirmou que o seu marido foi para o anexo depois de sair do hospital e por sua livre vontade. A arguida T nega terem tirado a chave de casa e impedir o seu pai de nela entrar. Afirma que o seu pai foi viver para o anexo porque quis mas reconhece que este espaço não tem condições para o seu pai ali viver. O arguido JM apenas referiu que chovia dentro do anexo o chão era de terra e não podia cozinhar naquele local. A testemunha AM refere que o seu pai foi pernoitar para o anexo na véspera de Natal por decisão própria. Este anexo tinha uma cozinha antiga e um espaço livre no chão que era de terra batida. Tinha um colchão, uma mesa e uma cadeira. A decisão do seu pai de ir para o anexo deveu-se às inúmeras discussões que ocorriam entre eles. A testemunha AF relatou conhecimento sobre o local onde o arguido JM dormia, o qual visitou a convite do arguido. Chovia no local onde dormia e tinha a cama tapada com um plástico. Onde dormia não havia portas mas ao lado existia uma espécie de cozinha coberta onde estava um fogão e um lava louça, esclarecendo que não sabe se o arguido estava ali obrigado pela sua mulher ou por livre vontade. No entanto o arguido disse-lhe que a sua mulher não o deixava entrar em casa. A testemunha H, guarda da GNR confirmou que o arguido pernoitava numa pequena arrecadação, sem condições, onde dormia há vários dias pois a esposa não o deixava dormir em casa. Tinha uma cama e não havia casa de banho. Também a testemunha SM, guarda da GNR foi ao local e viu o arguido a dormir na arrecadação pois tinha havido um acordo entre eles. Contudo quando a sua mulher chegou do hospital, entraram todos em casa.

Da conjugação de todos estes elementos e das regras de experiência, resulta que o arguido JM pernoitava em local anexo à habitação casa morada de família, local desprovido das elementares condições para ali viver. Quanto ao facto de as arguidas AP e T terem obrigado o arguido a pernoitar naquele local e não lhe permitir o acesso à casa de habitação, ficam sérias dúvidas tendo em conta as contradições e dúvidas expressas pelas arguidas e pelas testemunhas, sendo que a maior parte destas e sobre este ponto, apenas sabe o que o arguido lhes contou. Contudo sempre terá havido um acordo entre todos com vista à separação do casal a fim de por termo às discussões, pelo que o JM terá ficado a dormir no anexo por sua forçada vontade.

Quanto aos factos descritos nos pontos 12 e 13 da acusação resulta que a patrulha da GNR esteve na casa dos arguidos não por solicitação do arguido JM mas por chamada recebida através do atendimento da GNR e feita por anónimo. Contudo outras patrulhas da GNR se deslocaram várias vezes a casa dos arguidos pelos mesmos motivos – discussões entre os arguidos.

Quanto aos factos relativos ao desligamento de gás e aos ocorridos em 1 de Janeiro, os arguidos JM e AP acabaram por os confirmar na sua íntegra, os quais ocorreram no âmbito do mesmo período de tempo em que o casal já sentia grandes dificuldades no seu relacionamento.

Em relação aos factos ocorridos após a saída das arguidas da casa de A e imputados ao arguido JM, relevam as declarações de ambos, bem como os depoimentos das suas filhas, conjugados com o depoimento das testemunhas TC e AC

Finalmente e quanto ao internamento do arguido JM no Hospital de S, o mesmo mostra-se confirmado. Contudo a causa da ida ao hospital ficou esclarecida através dos depoimentos dos elementos da GNR que se deslocaram a casa do arguido e presenciaram o estado físico e psíquico que aparentava, motivando-o a deslocar-se ao hospital, onde foi acolhido no serviço de urgência e encaminhado para o serviço de psiquiatria. Quer do exame médico directo, quer do relatório de episódio de urgência do Hospital Distrital de S, não resulta com total certeza que tenham sido as arguidas as causadoras directas e exclusivas do estado físico e psíquico em que se encontrava o arguido.

Em resumo se dirá que o relacionamento entre o casal teve um período curto de tempo – Natal e Ano Novo de 2010/2011 – em que houve um conjunto de actos ofensivos da honra e consideração, bem como geradores de medo e inquietação, praticados pelos arguidos AP e JM, à data marido e mulher.
Dos elementos de prova obtidos não é possível afastar sérias dúvidas quanto a agressões físicas nem quanto à participação da arguida T nos termos em que vem acusada”.

Cumpre conhecer.

B.2.1 – O recurso da arguida AP limita-se a um pedido de apreciação principal, a absolvição por ausência de legitimidade procedimental visto ter sido condenada pela prática de um crime particular e não existir queixa nem acusação particular, e a alegação, claramente subsidiária, de que apelidar o arguido de “porco” e “miserável” não é injúria no quadro de conflito familiar.

Ou seja, duas possíveis conclusões, ao invés das 30 apresentadas.
*
B.2.2 – O recurso do arguido apresenta 46 conclusões e nestas são suscitadas três questões, ou seja, três possíveis conclusões: a alteração da qualificação jurídica dos factos imputados na acusação aos arguidos (conclusões 2ª a 21ª); pretensão de impugnação dos factos 16 e 17 da matéria de facto provada (conclusões 22ª a 34ª); se os factos provados permitem o enquadramento no crime de ameaças (conclusões 35ª a 44ª).
*
B.3 – A questão abordada no recurso da arguida reconduz-se a apurar, unicamente, se deve ser revogada a decisão recorrida no pressuposto de que não existe “queixa” nem acusação particular.

A arguida foi acusada pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, al. a) e nº 2.

Após o despacho lavrado em acta (fls. 436-437) com a comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos imputados, veio a arguida a ser condenada pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal em pena de multa.

O crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal, depende de acusação particular nos termos do disposto no artigo 188º do mesmo diploma. É, portanto, um crime de natureza particular.

A diversa natureza dos crimes na nossa ordem penal – públicos, semi-públicos e particulares - é uma forma de o legislador regular e equilibrar interesses e bens jurídicos sem recorrer ao princípio da oportunidade.

Tratando-se, como se disse já, de um crime particular, é necessário que o ofendido se queixe, se constitua assistente e deduza acusação particular – artigo 50º, nº 1 do Código de Processo Penal.

Ora, no caso, só temos uma denúncia a fls. 3 a 7 dos autos, não temos queixa, não houve constituição de assistente pelo arguido JM, nem foi, naturalmente, deduzida acusação particular. No caso, basta ficarmo-nos pela primeira.

Como se sabe, o actual Código de Processo Penal atribui à queixa uma função volitiva e à denúncia a função de corporizar a “notícia do crime”.

Como já afirmámos no acórdão desta Relação de 20-11-2012 (proc. 1.831/10.9TAPTM.E1), que aqui seguimos, “se a denúncia é um elemento processual cognitivo da prática de um crime, a queixa tem de ser vista como um elemento processual volitivo. Conhecimento e vontade são diversos, não obstante se poderem resguardar à sombra do mesmo acto processual”.

E como assevera o Prof. Figueiredo Dias “queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (art. 111º e CPP, art. 49º). A queixa distingue-se, assim, tanto da mera denúncia, como da acusação particular. Com efeito, a denúncia é uma simples comunicação, através da qual é levada ao conhecimento dos órgãos de perseguição penal a suspeita de que foi cometido um crime (Código de Processo Penal, arts. 241º e ss.). Por isso a denúncia pode ser feita por qualquer pessoa – sem prejuízo da existência de denúncia obrigatória para certas entidades e categorias de pessoas -, não está sujeita a qualquer forma especial ou a prazos dentro dos quais deva ser feita e oferece ao MP apenas uma das possíveis formas de adquirir a chamada «notícia do crime»”. [1]

E se recordarmos a “tripla função da queixa” - “descriminalização de facto” dependente da vontade do titular, a tutela das “relações pessoais” e a protecção da vítima [2] - a vontade joga nelas, em todas elas, um papel fundamental:

Assim, nem o tribunal pode presumir vontades – a vontade de apresentar queixa, equiparando-a à denúncia – nem pode olvidar a inexistência dos outros dois actos processuais essenciais para que o procedimento chegue à fase de julgamento: a constituição como assistente e a dedução de acusação particular.

E quanto à primeira, o arguido é claro na afirmação de não desejar procedimento criminal, isto é, a clara afirmação de que não apresenta queixa.

Ou seja, o Ministério Público perdeu a legitimidade para prosseguir nos autos a partir do momento em que se cristaliza nos autos a alteração da qualificação jurídica relativamente à arguida e o tribunal deixou de ter jurisdição para dirimir o conflito particular nesse mesmo momento.

Face a estas simples razões o recurso da arguida deve proceder, face ao que se afirmou e ao disposto nos artigos 50º do Código de Processo Penal, 117º e 181º do Código Penal.
*
B.4 – Quanto ao recurso do arguido e na primeira razão de insatisfação parece resultar alguma indeterminação linguística entre “alteração da qualificação jurídica” e “alteração não substancial dos factos”.

Essa indeterminação é patente no despacho lavrado em acta a fls. 436-437 onde se não deixa claro que o regime da “alteração da qualificação jurídica” operada pelo tribunal é o objecto único da decisão, ou seja, que não há alteração factual, pois que o tribunal quanto a factos nada altera, apenas dando como não provados alguns factos mas num momento subsequente, a sentença.

E dar como não provados factos já constantes da acusação não é uma alteração de factos. Nem essa, verdade seja dita, foi a pretensão do tribunal.

Aquela indeterminação linguística estende-se depois às alegações de recurso do arguido.

Mas há que reconhecer que a redacção do despacho não é totalmente clara na delimitação desses dois conceitos.

Assim como não é claro na determinação de quais crimes são imputados a cada um dos arguidos, o que só se compreende por dedução e depois se confirma pelo teor da decisão.

Se a linguagem deve ser clara e compreensível como elemento essencial de uma comunicação interpessoal, a decisão judicial deve procurar a clareza e certeza, como elemento básico não só do acto de comunicação humana que também é, mas também com o significado de precisão de linguagem jurídica no âmbito da Ciência do Direito.

Um despacho judicial deve procurar ser claro, preciso, ter certeza no uso de conceitos e ser auto-suficiente na sua compreensibilidade.

Porque se é certo que “a linguagem é sempre mais ou menos vaga de modo que as nossas asserções nunca são completamente precisas”, não deixa de ser verdade que a “função da linguagem é ter sentido”. [3]

E no caso de um despacho judicial, “ter sentido” é acautelar o que de impreciso uma linguagem pode ter na produção de efeitos jurídicos na esfera dos destinatários da decisão.

Portanto, a linguagem judicial deve primariamente seguir o aforismo de Wittgenstein (4.116): “Tudo o que pode de todo ser pensado, pode ser pensado com clareza. Tudo o que se pode exprimir, pode-se exprimir com clareza”. [4]

Depois designar de forma diferente o que é diferente. E “alteração de factos” é algo diferente de “alteração da qualificação jurídica”.

Se, segundo Russell, o primeiro requisito de uma linguagem ideal é o de só ter um nome para cada objecto e nunca o mesmo nome para dois objectos diferentes, o contrário também é verdadeiro.

A circunstância de a “alteração da qualificação jurídica” dos factos descritos na acusação ou na pronúncia seguir, por vontade legislativa, o regime processual da “alteração não substancial dos factos” descritos na acusação ou na pronúncia, não significa que sejam realidades iguais.

E, seguramente, têm consequência processuais e substantivas diversas.

Depois, a clareza e precisão era igualmente exigível na delimitação dos crimes e seus agentes que iriam ser objecto de diversa qualificação.

É verdade, por fim, que com o despacho e com a sentença estas conclusões são do domínio do óbvio, mas o exercício do direito em causa pelo arguido deve ser exercido em audiência, isto é, antes da leitura da sentença e antes de ter acesso ao elemento confirmador de uma possível leitura ou interpretação do despacho.

Altera isto algo? Nada na medida em que a matéria não pode ser objecto de recurso e deve ser objecto de rejeição.

Isto porque o mandatário do arguido foi notificado em acta da alteração da qualificação jurídica e para o exercício do direito previsto no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal, aplicável à alteração da qualificação jurídica, por via da previsão do nº 3 da norma e declarou prescindir de prazo para defesa – fls. 437.

Se algo não percebia deveria, logo, ter solicitado esclarecimentos. Percebendo ou não, declarou prescindir de um direito que sabia qual era. Ou seja, não tem legitimidade para interpor recurso neste ponto.

Ou seja, o recurso de tal despacho – a haver nulidade - deveria ter sido interposto de imediato, nos termos do disposto no artigo 120º, nº 3, al. a) do Código de Processo Penal, e ser objecto de recurso interlocutório.

Não se trata, pois, de nulidade que se não deva considerar sanada para os efeitos do nº 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal, pois que esta, caso existisse, estaria sanada.

O recurso nesta parte deve ser rejeitado, o que se fará.
*
B.5 – Quanto ao recurso do arguido na parte em que pretende impugnar de facto, o mesmo apenas preenche um dos requisitos exigidos por lei para que se considere existente uma viável impugnação de facto. O arguido indica os factos impugnados, os factos provados 16 e 17.

Mas, como é sabido, a impugnação ampla da matéria de facto nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3 e 4 do Código de Processo Penal, a incidir sobre os erros de julgamento e sobre a prova produzida em audiência de julgamento, apresenta os seguintes pressupostos essenciais e duas razões de ser.

a) – A observância pelo recorrente do ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância – al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;

b) - A especificação das provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam. Não apenas o relativo do “possível”, sim o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção - al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;

c) - Por referência ao consignado em acta, esta entendida em sentido amplo e aqui com o significado de “gravações” sonoras, com indicação concreta das passagens em que se funda a fundamentação, por impossibilidade de ter acesso à oralidade e imediação - nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal;

d) - A reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;

Em resumo, ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só é possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º].

A razão é clara: o recurso não é um novo julgamento, sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico.

Razão porque é inócuo pedir uma ilimitada, irrestrita, renovação da prova, que constituiria um mero segundo julgamento.

E o recorrente apenas cumpriu o primeiro ónus, o de indicar os factos impugnados, olvidando os restantes ou abrigando-se na alegação de que não cumpre porque a prova é negativa.

Em breve, o recorrente não indica os meios de prova da impugnação e, supondo-se prova pessoal, não indica as passagens que imponham outra decisão. A sua argumentação, por fim, não demonstra que as provas indicadas “imponham” outra convicção.

Assim, a matéria de facto deve permanecer intocada, porque de rejeitar o recurso de facto.

B.6 – O crime de ameaças era, por influência do artigo 169º do Projecto, um crime de dano e não de perigo no Código Penal de 1982, [5] tendo o Prof. Eduardo Correia considerado ser esta a melhor forma (o resultado) de averiguar da seriedade da ameaça, forma clara de restringir o alcance do tipo.

Mas na revisão de 1995 o crime de ameaças viu a sua natureza alterada para um tipo de perigo, o que por si poderia constituir um alargamento do tipo, mas com a previsão expressa dos bens passíveis de ameaça e com a exigência de “adequação” da conduta à causação do “medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, a restringir de alguma forma o alcance do tipo de perigo concreto.

De forma clara o legislador não quer que a interacção interpessoal, familiar e social seja invadida pelo direito penal a não ser em caso extremo balizado pelas exigências deste tipo penal.

Desde logo, o artigo 153.º é claro na exigência de que a ameaça tem que ser concretizada na prática de um crime (“quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”).

Depois, a exigência de “adequação” a causar “medo e inquietação”, conceito que não deve ser confundido com a efectiva verificação da causação do “medo e inquietação” na vítima.

Ou seja, tratando-se de um crime de perigo concreto e não de um crime de resultado, o crime de ameaças apenas supõe que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação, não exigindo a prova de que o resultado se tenha verificado no concreto ameaçado. [6]

O critério a utilizar para determinar essa adequação a causar medo ou inquietação é objectivo-individual, por referência ao “homem-comum”, adulto e médio, apenas atenuado na sua procurada objectividade pela ancoragem nas particularidades da pessoa ameaçada.

Se é certo que “a ameaça «adequada» é aquela que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, independentemente do seu destinatário ficar, ou não, intimidado” (Ac. TRG de 21-06-2010 - 380/06.4GEGMR.G2 . rel. Fernando Monterroso), também é certo que se deve afastar a integração no tipo se as características pessoais do ameaçado excluem claramente a adequação ao surgimento do “medo ou inquietação” ou o prejuízo para a respectiva “liberdade de determinação”.

Apuremos, então, da adequação dos factos dados como provados no caso concreto ao dito preenchimento do tipo.

Os factos que sustentam a condenação são:

13. Pelas 20.00h do dia 25 de Dezembro de 2010, o arguido desligou o gás da habitação comum e, por seu turno, AP desligou o gás do anexo onde o arguido JM se encontrava a pernoitar, altura em que este lhe exibiu um martelo.

14. No dia 1 de Janeiro de 2011, nas imediações da casa, os arguidos JM e AP discutiram, tendo aquele dito, "Eu quero entrar, quero a chave ai na porta. Eu vou dirigir-me ao quartel e vou-te tramar e vou ao teu trabalho e vou-te tramar também".

15. Durante o mês de Janeiro de 2011, as arguidas, AP e T, acompanhadas da menor AM, abandonaram a casa de morada de família e passaram a residir em Verdelho, Santarém.

16. Contudo, o arguido continuou a dirigir-se àquele local e quando encontra AP, dizia-lhe, "Vou dar cabo da tua vida, vou fazer a tua vida num inferno".

17. O arguido ao actuar como actuou e, bem assim, ao proferir aquelas palavras, dirigindo--as a AP, representou e quis perturbar AP, bem como representou e quis causar-lhe receio sobre a sua vida e integridade física, tal qual fez.

Os factos 13 e 15 são directamente irrelevantes e só ganham relevo na integração dos restantes numa visão global dos factos provados.

O facto provado em 13, ocorrido em 25 de Dezembro de 2010, não tem significado autónomo, nem permite pela sua secura e data de prática, a ligação significante aos restantes.

Sobram as expressões "Eu quero entrar, quero a chave ai na porta. Eu vou dirigir-me ao quartel e vou-te tramar e vou ao teu trabalho e vou-te tramar também" (facto 14) e "Vou dar cabo da tua vida, vou fazer a tua vida num inferno" (facto 16).

Nenhuma das expressões se pode considerar, por si ou em conjunto, uma ameaça com um mal futuro que seja considerado um ilícito criminal previsto no artigo 153º, nº 1, “crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”.

Não só nada se concretiza, nem a característica genérica do discurso permite retirar com segurança uma qualquer ameaça concretizável, como se fica pela habitual bravata sem conteúdo (já nem o inferno tem conteúdo, por falência de religiosidade ou por ser quotidiano).

Ou seja, a pretensão de integração no tipo claudica no primeiro pressuposto de integração tipológica: não há ameaça com acto ilícito criminal.

Resta inútil apurar da adequação ao surgimento do “medo ou inquietação” ou o prejuízo para a respectiva “liberdade de determinação”.

Também, com apelo ao “homem-comum”, no caso mulher adulta e revelando ausência de medo ou constrangimento, a objectividade do critério de avaliação ainda seria afastada por essas características da pretensamente ameaçada.

Por fim se afirma que a exclusão destes casos de “tensão” interpessoal são o preço de vida em sociedade, casos que não podem, todos, ser objecto de tutela penal, sob pena de se tornar inviável a vida societária ou esta se transferir para a sala de audiências.

Não há, portanto, crime de ameaças, pelo que o arguido dele deve ser absolvido.

B.5 – Relativamente ao pedido cível nada a conhecer como efeito necessário da decisão a tomar, na medida em que absolvidas as arguidas do pedido formulado por se não terem como verificados os pressupostos de responsabilidade civil.

C – Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em:

- conceder total provimento ao recurso da arguida e, em consequência, absolvem-na da prática de um crime de injúria, atenta a inexistência de acusação particular e consequente ilegitimidade do Ministério Público para prosseguir a acção penal;

- rejeitar o recurso do arguido quanto ao despacho de comunicação da alteração da qualificação jurídica, lavrado em acta de fls. 437 e quanto à impugnação da matéria de facto;

- conceder parcial provimento ao recurso do arguido e, em consequência, revogam a decisão recorrida e absolvem o arguido do crime de ameaça por que fora condenado.

Notifique.

Não são devidas custas.

Évora, 19-03-2013

João Gomes de Sousa
Ana Bacelar Cruz
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[1] - Prof. Figueiredo Dias, in “As consequências jurídicas do crime – Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 1063, pág. 665.

[2] - Prof. Figueiredo Dias, ob. cit. § 1066, pág. 666-668.

[3] - Bertrand Russell in “Introdução” ao “Tratado Logico-Filosófico”, de Wittgenstein, L. – págs. 2-3, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian – 4ª Edição, 2008.

[4] - “Tratado Logico-Filosófico”, pág. 63.

[5] - “Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal – Parte Especial”, Associação Académica, Lisboa, 1979, págs. 81-83

[6] - Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, págs. 348-349, Coimbra Editora, 1999.