Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
38/20.1T8ODM.E1
Relator: BERGUETE COELHO
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
CARTA POR PONTOS
PRESCRIÇÃO DA SANÇÃO
NE BIS IN IDEM
Data do Acordão: 03/23/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário:
1 - A cassação da carta nos termos do artº 148º, nºs 2 e 4, al. c) do Código da Estrada (cassação da carta por virtude de condenações em pena acessória de proibição de conduzir) não se trata de um procedimento por contraordenação rodoviária, nem mesmo de uma sanção acessória, pelo que não se mostra aplicável o prazo de prescrição de dois anos previsto no artº 188º, nº 1, do mesmo Código.

2 – A cassação da carta nos termos referidos não viola o princípio ne bis idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (“Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”), pois que abrangendo a proibição, quer o duplo julgamento, quer a dupla punição pelo mesmo crime, as razões que subjazem à cassação do título de condução revelam-se diversas, uma vez que apenas assentam na subtracção de pontos e sem envolver qualquer juízo de culpabilidade relativamente às situações que justificaram essa subtracção.

3 – É irrelevante a eventual atribuição de pontos posteriormente à data da decisão administrativa que determinou a cassação ca carta de condução por inexistência de qualquer ponto.

4 – Verificando-se a subtracção de todos os pontos nos termos artº 148º, nºs 2 e 4, al. c) do Código da Estrada, fica prejudicada a aplicação das als. a) (frequência de acção de formação) e b) (realização de prova teórica do exame de condução), previstas no referido nº 4 do artº 148º.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na Secção Criminal
do Tribunal da Relação de Évora

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1. RELATÓRIO

(…) impugnou judicialmente a decisão administrativa da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, proferida, em 15.04.2019, no processo autónomo de cassação n.º 211/2019, que determinou a cassação do título de condução n.º E-94410 de que é titular, por se verificarem os legais pressupostos, decorrentes de condenações em penas acessórias de proibição de conduzir, pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e consequente perda de doze pontos, nos termos dos arts. 121.º-A e 148.º do Código da Estrada (CE).
Enviados os autos ao Ministério Público, foram estes remetidos a juízo nos termos e para os efeitos do disposto no art. 62.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Dec. Lei n.º 433/82, de 27.10, na redacção actual.
Admitida a impugnação, no Juízo de Competência Genérica de Odemira do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, foi esta decidida por despacho (art. 64.º, n.º 1, do RGCO), que a julgou improcedente e, em consequência, manteve a decisão de cassação do título de condução aplicada ao arguido (…).

Inconformado com tal decisão, o arguido interpôs recurso, formulando as conclusões:
A. O Recorrente foi notificado da douta sentença, no dia 24/11/2020, que manteve a decisão da autoridade administrativa da cassação do seu título de condução, com fundamento no artigo 148º, nº 2 do Código da Estrada.
B. Nos termos do artigo 148º, nº 4 do Código da Estrada, a subtração de pontos ao condutor tem como efeito, antes de se proceder à cassação do título de condução, fazer impender sobre o condutor a obrigação de frequentar uma ação de formação de prevenção rodoviária (5 ou menos pontos) e de se submeter a novo exame de código (3 ou menos pontos).
C. No entanto, nenhuma destas oportunidades foi concedida ao Recorrente, primeiro porque tinha registados demasiados pontos (6 e não 5 ou menos) e depois porque não tinha nenhum.
D. Tal resultado, colide com a ratio da Lei e a intenção do Legislador.
E. Nos considerandos da Proposta de Lei 336/XII da Presidência de Conselho de Ministros, que aprovou o atual sistema de pontos e cassação do título de condução, poderá aferir-se em parte a sua ratio e a intenção do legislador, nomeadamente que “A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de percepção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adoptando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão”.
F. Não sendo assim aceitável a sua condenação nos termos consignados na sentença recorrida, que confirma uma decisão administrativa que surpreendeu o Recorrente com a súbita cassação do título de condução com fundamento na subtração de pontos, sem que nunca tenha tido acesso aos mecanismos de compensação, ou seja, de recuperação de pontos, que a Lei prevê.
G. Entende o Recorrente que, para além do que já se referiu, preveem-se formas de atribuição de pontos aos condutores, nos termos dos artigos 121º-A, nº 3 e 148º, nº 5 e 7 do Código da Estrada, possibilidade de que o Recorrente nunca pode dispor, impedindo, desta forma, as demais ações de prevenção a que estaria obrigado (se tivesse um ponto no registo) e, muito certamente, evitaria o cometimento de mais infrações e a manutenção do título de condução.
H. Para além da questão essencial de o Recorrente não ter tido oportunidade para frequentar uma ação de formação de prevenção rodoviária, de forma voluntária, por não ter 1 (um) ponto registado, não foi permitido ao Recorrente o acesso a nenhum dos mecanismos de atribuição de pontos aos condutores.
I. Mais se deixou consignado que sempre seria possível fazer um juízo de prognose favorável, uma vez que, desde 04/09/2017, não existe qualquer notícia de infração rodoviária praticada pelo Recorrente, tendo o Tribunal a quo considerado o facto como não provado.
J. O Tribunal recorrido está vinculado ao princípio do Inquisitório, não tendo diligenciado pela obtenção do Registo Individual do Condutor atualizado, que viria a confirmar o facto alegado.
K. Mesmo que não o fizesse, sempre teria de, em obediência ao princípio in dubio pro reo, valorar a prova a favor do Recorrente, considerando provado tal facto.
L. O grau de censurabilidade das condutas do Recorrente já foi tido em conta para a determinação da medida da pena no âmbito dos processos crime, identificados na decisão impugnada, o que significa que não poderá ser novamente fundamento de decisão prejudicial ao Recorrente, sob pena de ilegalidade e até de inconstitucionalidade, uma vez que ninguém pode ser penalizado duas vezes pelo mesmo facto, como decorre dos termos do artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, estando assim violado o princípio ne bis in idem.
M. Também não é verdade que não exista base legal para a suspensão temporária dos efeitos de um ato administrativo, designadamente a requerimento do interessado, devido a questão prejudicial ou outra atendível.
N. Dispõe o artigo 124º, nº 1 do Código do Processo Penal, que “Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do Arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.
O. Da análise do elenco dos factos considerados provados e não provados pelo Tribunal a quo, não resulta qualquer referência ao arrependimento expresso pelo Recorrente, através do seu Mandatário, na Reclamação apresentada. Este é feito através do seu Mandatário, uma vez que não houve audiência, pelo que o Recorrente não teve oportunidade de expressar pessoalmente, perante o Tribunal, o seu arrependimento.
P. Acresce que a nossa Lei concede um tratamento especial ao arrependimento do agente, quando seja sincero, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 72º, nº 2, alínea c) do Código Penal, norma cuja aplicação prescreve.
Q. Ora, entendemos haver matéria para recurso, porquanto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º do Código do Processo Penal e artigo 73º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Regime Geral das Contraordenações, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre argumentos e factos invocados pelo Recorrente na impugnação judicial, violando o disposto no artigo 374º, nº 2 Código do Processo Penal.
R. Ao não se pronunciar sobre os argumentos invocados pelo Recorrente, o Tribunal proferiu sentença enferma de nulidade, por força do disposto do artigo 379º, nº 1, alínea c) do Código do Processo Penal, aplicado ex vi artigo 41º do Regime geral das Contraordenações.
S. Mais deixamos consignado que a decisão da A.N.S.R. (confirmada pela sentença agora em crise) é uma decisão sancionatória, aplicada no âmbito do Direito Estradal, cuja prática da infração que levou à perda dos últimos seis pontos no registo individual de condutor, remonta a setembro de 2017.
T. Considerando o Código da Estrada Lei especial e, portanto, aplicável ao caso que nos ocupa, entendemos estar prescrita a sanção acessória de cassação do título de condução, nos termos do artigo 188º do Código da Estrada, uma vez que já decorreram mais de 2 anos desde a data dos factos.
U. Por outra via, haverá que considerar que, como já se disse, a prática dos atos que conduziram à perda dos últimos seis pontos, remonta a setembro de 2017, ou seja, há mais de três anos.
V. Sendo certo quo Recorrente, mantem até ao momento a habilitação legal para a condução de veículos automóveis, que tem utilizado, sem que haja até ao momento, registo de qualquer transgressão estradal praticada pelo requerente.
W. Atento o disposto nos termos do nº 5 do artigo 148º do Código da Estrada “No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do nº 2 do artigo 121.º-A.
X. Assim, reconhecendo-se ao Recorrente a inexistência de infrações registadas nos últimos 3 anos, dever-lhe-á ser automaticamente atribuído um ponto no Registo Individual de Condutor, dispensando-se a intervenção de qualquer entidade administrativa.
Y. Nessas circunstâncias, deixa de estar preenchida a previsão para a cassação da carta de condução (zero pontos no seu registo individual de condutor), devendo permitir-se ao Recorrente a admissão a novo exame de código.
Razões pelas quais se roga a V. Exas.:
a) Reconhecer a prescrição da decisão administrativa que procedeu à cassação do título de condução; ou
b) Reconhecer a atribuição ao Recorrente de um ponto no seu registo individual de condutor nos termos do nº 5 do artº 148º do Código da Estrada;
c) Alterar a sentença e suspender a decisão de cassação do título de condução com o nº (…), por prazo que permita ao Recorrente frequentar voluntariamente ação de formação de prevenção rodoviária;
d) Após o que deve considerar o registo do condutor com 1 (um) ponto;
e) Permitindo-se consequentemente ao Recorrente a realização de um novo exame de código, que o Recorrente fará, permitindo-se assim manter, a final, o seu título de condução.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:
A. A cassação do título de condução não se trata de uma sanção acessória e, como tal, não está sujeita ao pretendido prazo de prescrição.
B. A cassação do título de condução é ordenada em processo autónomo, apenas iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução, pelo que tal prazo, mesmo a aplicar-se, só poderia contar-se desde o trânsito em julgado da sentença judicial que foi determinante da perda total de pontos, o que, no caso, foi em 08-FEV-2018 pelo que a decisão da ANSR que declarou verificados os requisitos da cassação e determinou a cassação do título de condução em 15-ABR-2019 ocorre antes ainda de se terem completado os 2 anos.
C. Primeiramente ao arguido foram subtraídos 6 pontos, pelo que não se verifica a previsão da alínea a) do artigo 148.º, n.º 4 do Código da Estrada, sendo que aquando da sua segunda condenação lhe foram subtraídos mais 6 pontos de uma só vez, pelo que também nunca se verificou a previsão da alínea b) do artigo 148.º, n.º 4.
D. Não viola o princípio constitucional ne bis in idem a cassação de título de condução decorrente, nomeadamente, de duas condenações do agente pela prática de crimes de condução em estado de embriaguez.
E. Por decisão datada de 15-ABR-2019 a ANSR declarou verificados os requisitos da cassação e determinou a cassação do título de condução de que é titular o recorrente, pelo que, a essa data – única que para o caso releva –, verificavam-se os requisitos da cassação, pelo que não tem razão o arguido/recorrente ao pretender ver-lhe atribuído, automaticamente, 1 ponto no RIC decorridos 3 anos sobre a data da prática dos últimos factos.
Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso apresentado pelo arguido, e, em consequência, deverá a Sentença ser integralmente confirmada.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo à argumentação expendida na referida resposta e no sentido que ao recurso deve ser negado provimento.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido nada veio acrescentar.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO

Nos termos do n.º 13 do art. 148.º do CE, A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.
E o regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª instância, em processo de contra-ordenação, está definido nos arts. 73.º a 75.º do RGCO, mormente seguindo a tramitação dos recursos em processo penal (n.º 4 do seu art. 74.º), decorrente do principio da subsidiariedade a que alude o seu art. 41.º, n.º 1.
Em conformidade, atento o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP, e, designadamente, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995, o objecto do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as previstas no art. 410.º, n.º 2, do mesmo Código.
Tem-se em conta, para o efeito, que, no âmbito do recurso em apreço e constituindo desvio ao princípio geral de que as relações conhecem de facto e de direito (art. 428.º do CPP), apenas se conhece, em regra, da matéria de direito, sem prejuízo de alteração da decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida ou de anulação e devolução do processo ao mesmo tribunal, como dispõe o art. 75.º do RGCO.
Delimitando-o, o objecto do recurso suscita a apreciação:
A) - da prescrição da cassação do título de condução;
B) - da nulidade da sentença;
C) - da violação do princípio ne bis in idem;
D) - da atribuição de um ponto no registo individual de condutor;
E) - da aplicação do art. 148.º, n.º 4, alíneas a) e b), do CE.
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Ao nível da matéria de facto, consta da sentença recorrida:
Factos provados:
Da instrução e discussão da causa, com interesse para a decisão da mesma resultaram provados os seguintes factos:
1- No âmbito do processo que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Odemira sob o n.º 128/17.8GGODM, o aqui recorrente foi condenado pela prática em 04-09-2017 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art.º 292.º n.º 1 e 69 n.º 1 al. a) ambos do CP, por sentença datada de 09-01-2018, transitada em julgado a 08-02-2018, além do mais, na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 06 meses.
2- No âmbito do processo que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Odemira sob o n.º 238/16.9GHSTC, foi aplicada ao recorrente, pela prática em 06-06-2016 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art.º 292.º n.º 1 e 69 n.º 1 al. a) ambos do CP, por decisão de suspensão provisória do processo, proferida a 08-06-2016, a injunção de inibição de conduzir por três meses.
3- No seguimento das condenações mencionadas nos pontos 1 e 2, a ANSR instaurou o competente processo com vista à verificação dos requisitos da cassação da carta de condução do aqui recorrente.
4- As referidas condenações determinaram a perda da totalidade dos pontos atribuídos a cada condutor (6 pontos por cada uma delas) e consequentemente a cassação da sua carta de condução.
5- Por decisão datada de 15-04-2019 a ANSR declarou verificados os requisitos da cassação e determinou a cassação do título de condução n.º E-94410 de que é titular o recorrente.

Factos não provados:
a) Que, desde 04-09-2017, não exista qualquer notícia de infração rodoviária praticada pelo condutor.

Motivação da decisão de facto:
A convicção do Tribunal quanto à factualidade considerada provada radicou na análise crítica e ponderada da prova documental junta aos autos, designadamente: as comunicações das sentenças elencadas nos pontos 1 e 2 à ANSR nos termos previstos no art.º 69.º n.º 4 do C. Penal, registo individual do recorrente, documento de intenção de cassação do título de condução pertença do recorrente e notificação ao recorrente para observância do seu direito de audição e defesa, conjugados com as regras da experiência comum e da normalidade das circunstâncias.
Quanto ao facto não provado, não existe documento junto ao processo que o possa atestar já que o registo individual do condutor corresponde ao ano de 2019.
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Apreciando:

A) - da prescrição da cassação do título de condução:
O recorrente, alegando que a cassação do título de condução está prescrita, invoca que a prática da infração que levou à perda dos últimos seis pontos no registo individual de condutor, remonta a setembro de 2017 e, nos termos do artigo 188º do Código da Estrada, já decorreram mais de 2 anos desde a data dos factos.
Contudo, não lhe assiste razão.
Segundo o disposto no referido art. 188.º do CE:
“1 - O procedimento por contraordenação rodoviária extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contraordenação, tenham decorrido dois anos.
2 - Sem prejuízo da aplicação do regime de suspensão e de interrupção previsto no regime geral do ilícito de mera ordenação social, a prescrição do procedimento por contraordenação rodoviária interrompe-se também com a notificação ao arguido da decisão condenatória”
.
Ora, a cassação tem natureza administrativa e funda-se na perda de pontos, resultantes da prática das infracções a que se reportem.
Com efeito, segundo o art. 121.º-A do CE, aditado pela Lei n.º 116/2005, de 28.08:
“1- A cada condutor são atribuídos doze pontos.
2 - Aos pontos atribuídos nos termos do número anterior podem ser acrescidos três pontos, até ao limite máximo de quinze pontos, nas situações previstas no n.º 5 do artigo 148.º.
3 - Aos pontos atribuídos nos termos dos números anteriores pode ser acrescido um ponto, até ao limite máximo de dezasseis pontos, nas situações previstas no n.º 7 do artigo 148.º”.
E a subtracção de pontos decorre do previsto no art. 148.º do CE, designadamente:
“1- A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, utilização ou manuseamento continuado de equipamento ou aparelho nos termos do n.º 1 do artigo 84.º, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.
2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor”
.
Redundando na cassação do título de condução, segundo o disposto na alínea c) do n.º 4 do mesmo art. 148.º, “sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor”.
Não se trata, pois, de um procedimento por contraordenação rodoviária, nem mesmo de uma sanção acessória, pelo que não se mostra aplicável aquele invocado prazo de prescrição.
Como se sublinhou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020, de 13.05, a cassação da carta de condução surge, portanto, não como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de inibição de conduzir. Essa cassação decorre de um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir.
Para além disso, nos termos do n.º 10 do art. 148.º, “A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 (como no caso sucede) é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução”, motivo por que não se poderia atender, para o efeito da prescrição, como o recorrente pretenderia, à data da prática da infracção mencionada no facto provado em 1, mas sim à data do trânsito em julgado da sentença que impôs a respectiva condenação, ou seja, como nesse facto provado consta, em “08-02-2018”.
E como tal, tendo a decisão administrativa sido proferida em “15-04-2019” (facto provado em 5), ainda que se aceitasse o referido prazo prescricional de dois anos, o mesmo ter-se-ia então interrompido e, assim, antes de decorridos esses dois anos.
Deste modo, não se verifica qualquer prescrição da cassação em apreço.

B) - da nulidade da sentença:
Alega o recorrente que a sentença enferma de nulidade, por força do disposto no artigo 379.º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, aplicado ex vi artigo 41º do Regime geral das Contraordenações.
Para tanto, refere que o Tribunal não se pronunciou sobre argumentos e factos que invocou, concretizando-o na circunstância de que não resulta qualquer referência ao arrependimento expresso.
Na verdade, como o recorrente alude, nos termos do art. 124.º, n.º 1, do CPP, “Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”, o que, adaptando-o à situação concreta em análise, significa que se devesse apurar todos os factos que fossem relevantes para a determinação da cassação do título de condução.
Com efeito, a oficiosidade da apreciação e do conhecimento de todas as questões que são pertinentes à decisão da causa impõe-se ao julgador, sendo certo que a própria letra da lei, ao usar, no alegado art. 379.º, a expressão «devesse», com o significado literal de injunção, outro sentido não consente.
Mas, inevitavelmente, sempre sob o crivo da relevância da questão, subjacente a essa imposição.
Se assim é, no caso, não se descortina, minimamente, que o referido arrependimento tivesse alguma importância para o que se discutia, uma vez que não estava em causa a aplicação de qualquer pena, medida de segurança ou coima.
Inexiste nulidade da sentença.
E note-se, porque aludido pelo recorrente, não pode assacar-se qualquer vício previsto no art. 410.º do CPP.
Por seu lado, ainda que não se insira na problemática da nulidade da sentença nos moldes explicitados, mas decorrendo da alegação do recorrente, refira-se que, no tocante ao facto não provado (“Que, desde 04-09-2017, não exista qualquer notícia de infração rodoviária praticada pelo condutor”), não se aceita que defenda que o Tribunal tivesse de diligenciar pela obtenção do Registo Individual do Condutor atualizado, dado que essa vertente não dizia respeito aos fundamentos que justificavam a decisão, situando-se em plano sem interesse concreto.
Isto para dizer que eventual preterição de diligência essencial para a descoberta da verdade (art. 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP) não se verifica.

C) - da violação do princípio ne bis in idem:
A violação do princípio ne bis in idem surge alegada pelo recorrente, suportada, como refere, em que se por um lado, o grau de censurabilidade das condutas do Recorrente já foi tido em conta para a determinação da medida da pena no âmbito dos processos crime, identificados na decisão impugnada, o que significa que não poderá ser novamente fundamento de decisão prejudicial ao Recorrente, sob pena de ilegalidade e até de inconstitucionalidade, uma vez que ninguém pode ser penalizado duas vezes pelo mesmo facto.
Decorre da sentença neste âmbito:
Relativamente à violação do princípio ne bis in idem, de forma perfunctória, desde já se refira que não assiste qualquer razão ao recorrente, não existindo uma dupla apreciação, por o arguido não ter sido sancionado duas vezes pelo mesmo facto.
Assim, a decisão de cassação do título de condução é uma decorrência da perda de pontos, que, inevitavelmente conduz a tal desfecho e que se alicerçou nas duas condenações em penas acessórias pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez”.
E diga-se, com correcto fundamento, uma vez que, designadamente acompanhando os acórdãos que são citados na sentença (in dgsi.pt), não tem qualquer sentido afirmar a pretendida violação.
Segundo o mencionado Acórdão do Tribunal da “Relação do Porto de 30 de abril de 2019 (proc. n.º 316/18.0T8CPV.P1)”, Não estamos perante uma dupla condenação. O que está na origem da cassação não é uma ou outra das condenações, mas a sucessão de condenações. Do mesmo modo, não se verifica uma dupla condenação quando uma determinada pena é agravada pelo facto de haver sucessão de condenações (em caso de reincidência, por exemplo).
Estamos, por outro lado …, não perante uma condenação suplementar, mas perante a verificação de uma condição negativa de atribuição do título de condução
.
E como se refere, identicamente, no citado Acórdão do Tribunal da “Relação de Coimbra de 23 de Outubro de 2019 (Proc. n.º 83/19.0T8OPH.C1)”, o que está na origem da cassação não é uma ou outra das condenações, mas antes a soma de perda de pontos por factos relativos ao exercício da condução automóvel, praticados durante um determinado período.
Ainda, mais recentemente, no mesmo sentido, vai o Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 20.10.2020, no proc. n.º 218/20.T8TMR.E1, rel. Fátima Bernardes (citado pelo Ministério Público na sua resposta): a cassação da carta de condução por efeito da perda total de pontos, não constitui, uma nova condenação pela prática dos mesmos factos/crimes de condução em estado de embriaguez por que o ora recorrente foi cominado em proibição de conduzir veículos.
Já se vê, pois, que o princípio ne bis idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (“Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”) não se mostra violado.
Abrangendo a proibição, quer o duplo julgamento, quer a dupla punição pelo mesmo crime, as razões que subjazem à cassação do título de condução revelam-se diversas, uma vez que apenas assentam na subtracção de pontos e sem envolver qualquer juízo de culpabilidade relativamente às situações que justificaram essa subtracção.

D) - da atribuição de um ponto no registo individual de condutor:
Defende o recorrente a automática atribuição de um ponto no registo individual de condutor, ao abrigo do art. 148.º, n.º 5, do CE, tendo em vista que, desse modo, os pressupostos para a cassação do título de condução não se verificavam.
Suporta a sua posição, como invoca, na inexistência de infrações registadas nos últimos 3 anos, por referência a que os factos remontam a Setembro de 2017.
Ora, reza aquele normativo, na parte alegada, que “No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A”.
Não obstante, a sua aplicação ao caso vertente mais não serviria senão para desvirtuar a global previsão desse art. 148.º, equivalendo a que, se assim fosse, então a cassação do título de condução, cujos requisitos se preenchessem, cedesse por circunstância alheia aos mesmos.
Com efeito, no que aqui interessa, o art. 148.º prevê:
“4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
(…)
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor

(…)”.
Desde logo, assim se responde à questão, sendo certo que, à data da decisão administrativa, esse circunstancialismo normativo ocorria, motivo por que a cassação haveria de ser, como foi, determinada.
E sem dúvida, independentemente dessa alegada situação de ausência de outras infracções, que nem sequer, no caso, se provou.

E) - da aplicação do art. 148.º, n.º 4, alíneas a) e b), do CE:
Ainda, o recorrente defende que, previamente, à cassação, deveria ter beneficiado das faculdades a que se reportam as alíneas a) e b) do n.º 4 do art. 148.º, ou seja, que “A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes
; b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos”.
Insurge-se, então, contra não ter tido acesso a essas possibilidades.
Manifestamente, sem razão.
O Tribunal analisou esse aspecto, explicitando que “o que se verifica no caso dos autos é que primeiramente ao arguido foram subtraídos 6 pontos, pelo que não se verifica a previsão da alínea a) do artigo 148.º, n.º 4, sendo que aquando da sua segunda condenação lhe foram subtraídos mais 6 pontos de uma só vez, pelo que também nunca se verificou a previsão da alínea b) do artigo 148.º, n.º 4.
Pouco mais se poderá dizer, dada a clareza da previsão legal, relativamente ao que não se descortina fundamento para que o recorrente invoque que a posição colide com a ratio da Lei e a intenção do legislador, designadamente por referência ao que transcreve dos considerandos da Proposta de Lei n.º 336/XII da Presidência do Conselho de Ministros, que esteve na origem da mencionada Lei n.º 116/2015, que instituiu o sistema de pontos e a cassação do título por via da perda dos mesmos: A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de percepção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adoptando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão”.
Na verdade, tendo como finalidade intrínseca a segurança rodoviária, o sistema de pontos tem um sentido marcadamente pedagógico, estimulando o condutor para comportamentos estradais de índole positiva, apresentando-se como reflexo da gravidade da infracção cometida e do somatório com outra(s), permitindo aferir se o condutor continua a reunir condições para conduzir.
Ainda, acompanhando o mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020:
O regime tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública.
Revela-se como procedimento plenamente inteligível, transparente e de fácil compreensão, não se aceitando, por isso, a discordância do recorrente.
Verificado, assim, o pressuposto de que se encontravam subtraídos todos os pontos ao condutor (alínea c) do n.º 4 do art. 148.º), aqui recorrente, as invocadas possibilidades estavam prejudicadas.
Outra solução não restava senão a cassação do título de condução.
*
3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e, assim,
- manter a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 3 UC (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
*

Processado e revisto pelo relator.

23.Março.2021
Carlos Jorge Berguete
Gilberto Cunha (Presidente da Secção) João Gomes de Sousa (vencido, conforme declaração junta)

A - Não posso acompanhar os meus ilustres colegas na decisão que fez maioria, mesmo tendo a noção de que a sua posição está de acordo com a habitual jurisprudência portuguesa sobre contra-ordenações e “carta por pontos”.
Mas perdoar-me-ão que considere de primeira aparência que assim não pode ser pelas razões que seguem em apertado argumentário, tendo por base a posição que sempre assumi quanto ao direito contra-ordenacional, a que sempre atribuí a natureza de direito sancionatório de cariz penal a que são aplicáveis as normas da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, logo, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e não um sub-produto de cariz administrativo, desprezável em termos de direitos de cidadania. [1]
E se é certo que o legislador nacional sempre procurou afastar os regimes sancionatórios dos dois ramos de direito, sanções acessórias contra-ordenacionais de um lado, penas acessórias penais, para outro, aqui apesar de todas as aparências de inocuidade punitiva a tratar os “descontos” de pontos como mera operação aritmética punitivamente asséptica, juntou os dois regimes num só.
Mas essa junção parece ter passado desapercebida à jurisprudência das Relações.
Note-se que a um inocente número 1 do artigo 184º do Código da Estrada que apenas fala em contra-ordenações (“A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor…”) sugerindo a ideia de que o regime de cartas por pontos, para além de não ter carácter punitivo, se limita ao regime contra-ordenacional, logo acrescenta um mais desprezado nº 2 que assevera que “A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor».
Isto é, seja o cidadão condenado por contra-ordenação com uma sanção acessória, seja por um crime com uma pena acessória, o regime de perca de pontos é uno, idêntico, o mesmo! Logo nem se trata apenas de aplicar ao regime contra-ordenacional o regime supletivo do Código Penal e do Código de Processo Penal, trata-se de aplicar a todo o “instituto” da perda de pontos e de forma “originária” o regime dos ditos diplomas.
É claro que na base está a consideração, para nós evidente, de que se trata de um regime punitivo suplementar com vestes de cordeiro aritmético e, pasme-se, pedagógico. O legislador ficciona – e nós, ao que parece, tendemos a acreditar – que se trata de simples regime de perda de pontos e não de um acrescento de uma sanção/pena de diversa e nova natureza, a perda de pontos, intróito da cassação do título.
Para a cidadania, potencial ou efectiva prevaricadora, trata-se simplesmente de mais uma sanção que pode conduzir de forma sub-reptícia à perda da “carta”, bem de valor muito significativo e que “desaparece” por – diz o legislador – mera operação aritmética sem natureza punitiva. “Esfuma-se” o direito de conduzir, pelos vistos, por mera abstracção!
Logo, para nós a “perda de pontos” acrescentada ao CE é uma sanção ou pena que tem na origem uma condenação por um acto ilícito contra-ordenacional ou criminal (artigo 69º, nº 1 do Código Penal) e que é aplicada de forma indirecta, automática e indefensável de cada vez que o cidadão é condenado, seja em processo contra-ordenacional, seja num processo criminal.
O somatório das condenações e respectivas perdas de pontos é, indubitavelmente, um acréscimo sancionatório criado artificialmente pelo legislador que, de uma realidade “título de condução” que só em excepcionais circunstâncias podia ser cassado, se transforma em sistema de perda directamente resultante de um acto ilícito contra-ordenacional e/ou criminal que só pode funcionar se às sanções e penas inicialmente previstas (coima+sanção acessória e multa ou prisão+pena acessória) for acrescentada a perda de pontos por cada ilícito, que é uma sanção acrescida ope legis e de natureza nova e diversa.
E sem que o arguido possa defender-se da perda de pontos dada a “automaticidade” do sistema.
E, note-se, com efeitos retroactivos pois que aplicável a todos os títulos de condução, mesmo os pré-existentes à entrada em vigor do sistema!
Automaticidade indefensável essa que é bem patente no caso sub iudicio em que o arguido com apenas duas acções - e sem o prolongar no tempo das condenações contra-ordenacionais – se vê confrontado com a quase imediata cassação.
E, por fim quanto a este concreto aspecto, não vale arrazoar com o argumentário importado dos acórdãos do Tribunal Constitucional relativos à cassação do título provisório de condução dos recém encartados pois que não há qualquer similitude entre situações (v.g., entre outros, o acórdão nº 472/2007). A não ser que se defenda que o sistema de pontos veio transformar todos os títulos de condução, mesmo decorridos os dois anos iniciais, em títulos de condução provisórios o que, no novo sistema, não andará longe da verdade.
Ou seja, estamos no seio daquilo que sempre foi declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, a “automaticidade” de uma condenação que é efectivamente sujeita à indefesa!
Temos presente a recente decisão do Tribunal Constitucional no acórdão nº 260/2020 que se limita à invocada inconstitucionalidade do prazo de cassação e que é, por isso, irrelevante para o caso sub iudicio.
Para o caso concreto consideramos existente pelas apontadas razões uma inconstitucionalidade material a inserir nos artigos 18º e 32º, ns. 1 e 2 da CRP.
*
B – A juntar a este acréscimo punitivo veio o legislador a prever uma nova forma de cassação do título de condução por perda de pontos.
Trata-se indubitavelmente de uma medida de segurança não detentiva. Não vale esconder esta realidade, apelidando a medida de “híbrida” ou ficcionar dois regimes diversos a que é aplicável, ou não, o artigo 101º do Código Penal!
E, como tal, os artigos 101º a 103º do Código Penal são directamente aplicáveis pois que o sistema sancionatório é misto no sentido supra indicado (contra-ordenações mais crimes) e sempre o seria subsidiariamente mesmo que o sistema se limitasse às contra-ordenações do CE.
Por isso que se não aceite que o artigo 101º do Código Penal não seja aplicável à apelidada “carta por pontos”.
E se é defensável afirmar que parte substancial do artigo 101º do Código Penal se encontra substituído pela mais recente – e sempre especial – letra do artigo 148º do CE (apenas em se tratando de contra-ordenações ao CE), sempre nos parecerá que dois pontos são inultrapassáveis.
O primeiro, a exigência, resultante do artigo 101º do Código Penal, que a conduta do arguido seja analisada tendo em conta os factos praticados e a sua personalidade, a que acrescerão as obrigações de frequentar acção de formação ou de realização de nova prova teórica mesmo no caso de já não lhe restarem “pontos” no título, caso a que o CE faz corresponder uma inapelável automaticidade e indefesa.
Depois, não se vê como – sem gravíssima violação do “direito ao juiz” e, logo, dos artigos 20º, nº 1 e 202º da CRP – possa um Director-Geral, Director ou Presidente de um instituto público, seja ele qual for, aplicar uma medida de segurança penal sequencial à prática de crime e/ou contra-ordenação.
Por isso que a própria entidade que “decidiu” pela cassação seja incompetente para sobre o tema decidir.
O que soma à anterior outra inconstitucionalidade material, esta mais perceptível, que sempre imporia declarar.
Évora, 23 de Março de 2021
João Gomes de Sousa

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[1] - Designadamente os nossos relatos nos acórdãos de 28-10-2008 – Processo 1441/08-1 – (III. O conceito de acusação em matéria penal contido no artigo 6º da CEDH, conceito com autonomia e que deve ser interpretado no sentido da Convenção, é interpretado pelo TEDH como abrangendo o direito contra-ordenacional.) e de 08-04-2014 – Processo 108/13.2TBCUB – (I - A jurisprudência do TEDH entende a expressão “acusação em matéria penal” do seu art. 6.º de forma a incluir o processo contra-ordenacional. O conceito “acusação em matéria penal” depende dos seguintes critérios: a qualificação jurídica da infracção no direito nacional; a verdadeira natureza do ilícito; a natureza e o grau de severidade da sanção; estes dois últimos não cumulativos. II - Assim deverá imperar uma leitura exigente, sem deixar de ser equilibrada, das exigências processuais do processo contra-ordenacional, tendo sempre presente que neste processo estamos perante uma “acusação em matéria penal” para os efeitos da Convenção, sem que isto implique uma colagem às redobradas exigências de um processo penal.).