Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
552/19.1PBEVR.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: EXAME LOFOSCÓPICO
INDÍCIOS
PROVA DE FACTOS
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Ainda que uma impressão digital faça prova direta do contacto do arguido com o local onde foi detetada aquela impressão ou esteve no local onde foi colhida, já não faz prova direta da participação do mesmo no facto criminoso, e isto porque se desconhece o momento daquele contacto ou as circunstâncias em que o mesmo ocorreu.
E, inexistindo outros indícios com que possa ser conjugada, a impressão digital por si só não pode fundamentar uma decisão condenatória.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo Local Criminal de Évora, Juiz 2, no âmbito do Processo n.º 552/19.1PBEVR, foi o arguido NUMI submetido a julgamento em Processo Comum e Tribunal Singular.
Após realização da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal, por sentença de 21 de outubro de 2021 decidiu absolver o arguido da prática do crime de furto qualificado p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, que lhe vinha imputado.
*
Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
1.ª – Nestes autos, foi deduzida acusação contra o arguido NUMI pelos factos e crime a seguir transcritos:
«1.º No dia 20.06.2019, pelas 01H00, o arguido NUMI dirigiu-se ao estabelecimento comercial de cafetaria e bebidas “(…)”, sito na Rua (…), em Évora, pertença de (…), com intenção de retirar objetos de valor do interior daquele espaço.
2.º Ali chegado, o arguido NUMI aproximou-se de porta traseira que dava acesso ao interior do estabelecimento e partiu o vidro inferior daquela porta, do lado esquerdo do arguido.
3.º Após, o arguido introduziu o braço no interior e logrou chegar à fechadura interior daquela porta, abrindo-a, e por essa forma, acedeu ao seu interior.
4.º Uma vez no interior do estabelecimento “(…)”, o arguido NUMI percorreu todas as divisões daquele edifício e retirou e levou consigo os seguintes bens:
- Moedas emitidos pelo BCE que se encontravam no interior da caixa registadora no valor total de € 20,00;
- Moedas e notas emitidas pelo BCE que se encontravam guardadas numa gaveta de um móvel, provenientes da venda de gelados, no valor total de € 180,00.
5.º Na posse daquele dinheiro, o arguido NUMI abandonou o local, levando consigo as quantias monetárias para parte incerta, assim as fazendo suas e integrando-as no seu património.
6.º Como consequência da destruição do vidro da porta, causou o arguido NUMI um prejuízo de 130,38 euros, para substituição do vidro e reparação do aro da porta.
7.º O arguido NUMI sabia que aquelas quantias monetárias que retirava não lhe pertenciam e que ao apoderar-se delas, com o propósito de as fazer suas, agia no desconhecimento e contra a vontade do seu legítimo dono, mais sabendo que não tinha qualquer direito sobre as mesmas e que a entrada nas instalações do estabelecimento comercial era feita no desconhecimento e contra a vontade do dono e que se tratava de um espaço fechado e reservado para utilização do ofendido, cujo acesso ao interior lhe estava vedado.
8.º O arguido NUMI quis subtrair aqueles montantes, fazendo-os seus, o que logrou concretizar.
9.º Mais quis partir o vidro da porta, sabendo que destruía bem alheio.
10.º O arguido NUMI sabia que objetos que retirava do “O Álamo” pertenciam ao ofendido, que não lhe pertenciam e que ao apoderar-se deles, com o propósito de os fazer seus, agia no desconhecimento e contra a vontade do legítimo dono, mais sabendo que não tinha qualquer direito sobre os mesmos e sobre o referido espaço.
11.º O arguido NUMI quis entrar no espaço daquele estabelecimento, apesar de saber que era um espaço privado, fechado em toda a sua área, que a entrada era feita através de destruição de objetos e arrombamento e que a entrada era feita no desconhecimento e contra a vontade do dono e que se tratava de um espaço reservado para utilização exclusiva do ofendido.
12.º O arguido NUMI agiu sempre de forma livre voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Pelo exposto, cometeu o arguido NUMI, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal.»
2-ª – Na acusação foram indicados os meios de prova, designadamente, os documentos de folhas 3 a 3v. (auto de notícia), 41 a 45 (relatório de inspecção judiciária, incluindo reportagem fotográfica), o relatório de exame pericial de folhas 55 a 61 e as testemunhas POL, BOL e INHO.
3-ª – Na sentença impugnada veio o tribunal a julgar não provada a prática pelo arguido dos factos que lhe são imputados na acusação, nos termos descritos nas alíneas a), e), f), g), h), i) e j) do elenco dos factos não provados.
4-ª – Decorre da motivação do julgamento que assim decidiu por considerar a identificação judiciária lofoscópica realizada insuficiente para suportar tal imputação e não existir qualquer outro elemento probatório que a suporte.
5-ª – Tal consideração não corresponde ao acervo probatório disponível nos autos, na medida em que existem múltiplos outros elementos probatórios com conexões de sentido que, conjugados entre si e criticamente valorados, formam um todo significativo e convincente, para qualquer pessoa dotada de formação e experiência judiciária convenientes, de que o arguido praticou os factos de que está acusado.
6-ª – Tais elementos probatórios são os já mencionados no corpo desta motivação, resultantes dos meios de prova indicados na antecedente conclusão 2-ª.
7-ª – Assim, têm de ser analisados e valorados os elementos de prova documentados através do auto de notícia de folhas 3 a 3v., o relatório de inspecção judiciária, incluindo a reportagem fotográfica de folhas 41 a 45, o relatório pericial, de identificação judiciária lofoscópica de folhas 55 a 61, e os depoimentos produzidos na audiência e documentados através de gravação magnetofónica pelas testemunhas INHO, ofendido nos autos - registado no ficheiro 20211011124038_1493390_2870787, especialmente os excertos de 1.00m a 1.08m e de 3.41m a 7.45m – POL – registado no ficheiro 20210916100849_1493390_2870787, especialmente os excertos de 1.40m a 11.38m – e BOL – especialmente os excertos de 2.40m a 9.57m, 12.00m, 15.25m a 16.00m, especificados no corpo desta motivação e que, por razões de economia, aqui se dão por integralmente reproduzidos.
8-ª – Os indicados documentos são autos, documentos autênticos, e, não se tendo suscitado dúvida alguma sobre a sua autenticidade nem sobre a veracidade do seu conteúdo, provam os factos materiais deles constantes como tendo sido observados ou praticados por quem os elaborou – cfr. arts. 99-º, n-º1, e 169-º, do CPP.
9-ª – As impressões digitais são universais, permanentes, singulares ou inconfundíveis (jamais são idênticas em dois indivíduos), indestrutíveis (insusceptíveis de modificação ou de falsificação) e mensuráveis (susceptíveis de comparação – v. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10-04-2018, relatado por Gilberto Cunha, no Proc. 29/12.6GDSTC.E2, e Acórdão da mesma Relação de 03-03-2015, relatado por Martins Simão, no Proc. 420/02.6PATVR.E1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
10-ª – Devido a tais características, observados que foram os procedimentos de recolha da amostra-problema e os parâmetros de comparação entre aquela e a amostra-referência, regulados na Lei n-º67/2017, de 09-08, como se verifica pela leitura do relatório de inspecção judiciária e do relatório do exame pericial lofoscópico, o resultado positivo (confirmação) da identificação judiciária lofoscópica é isento de qualquer dúvida.
11-ª – No caso dos autos, a impressão digital colhida no aro de alumínio onde estava fixado o vidro partido, foi identificada com o dedo anelar da mão direita do arguido, com base no estabelecimento de 13 pontos característicos comuns, sem nenhuma divergência, considerando-se confirmação e identificação positiva, nos termos estabelecidos no art. 12-º, nº3, da Lei citada.
12-ª - O relatório da inspecção judiciária e o exame pericial dos autos, conjugados entre si, fazem prova directa de que o arguido tocou com o dedo anelar da sua mão direita no aro de alumínio onde estava fixado o vidro partido, na parte inferior da estrutura adjacente à porta traseira do estabelecimento “(…)”, e que esteve nesse local, por aí ter sido recolhido o vestígio digital identificado com as cristas papilares daquele seu dedo, não tendo havido remoção de tal estrutura;
12-ª - As fotografias de folhas 44 dos autos e os depoimentos das testemunhas ouvidas na audiência, conjugados entre si, fazem prova directa de que tal vestígio foi fixado sensivelmente a meia altura da parte lateral direita do referido aro de alumínio, a cerca de 50/60 cm de distância do solo (já que, como foi referido pela testemunha BOL a mencionada porta tem cerca de 2 metros de altura e as fotografias mostram que a estrutura adjacente a ela é composta por alumínio e dois vidros);
13-ª - O auto de notícia de folhas 3 e 3v., e o depoimento do ofendido, entre si conjugados, fazem prova de que, quando o autuante foi ao local, no período compreendido entre as 01h15m e as 03h42m do dia do crime, já tinham sido levados do estabelecimento os bens subtraídos, posto que foi registado naquele auto a declaração do ofendido de ter notado em falta 20,00€ da caixa registadora e o autuante não podia sabê-lo se o ofendido lho não tivesse dito;
14-ª - Os depoimentos das testemunhas INHO, ofendido, e POL, fazem prova directa de que as portas do estabelecimento foram fechadas à chave, quando o ofendido, antes do crime o encerrou, que a porta adjacente ao vidro fracturado estava fechada quando aí se deslocaram, logo após lhes ter sido dado conhecimento do sucedido, e que a entrada naquele se deu pelo espaço aberto através da fractura do vidro, por não ser possível a ele aceder por qualquer outro local;
15-ª - O depoimento da testemunha INHO faz prova directa de que o arguido não era cliente do seu estabelecimento, pois não o conhece.
16-ª Estes factos indiciários, verificados num estreito período temporal e todos convergentes no mesmo sentido, conjugados com as regras da experiência comum – segundo as quais, existe nexo de causalidade entre a fractura do vidro, a entrada no estabelecimento e a subtracção dos bens que foram dele levados e, ainda segundo as mesmas regras, que a aposição do vestígio digital colhido, dada a sua localização, não foi casual ou fortuita, por exigir que a pessoa que o fez se baixasse ou inclinasse o corpo – e da lógica conduzem, por raciocínio indutivo, a conclusão necessária, por não existir outra hipótese factual razoável ou plausível, de que a fractura do vidro, a entrada no estabelecimento e a subtracção dos bens foram realizadas pela mesma pessoa e tal pessoa é o arguido.
17-ª – Ou seja, os mencionados factos indiciários constituem presunção natural, de facto ou judicial de que o arguido praticou os factos descritos na acusação, por estarem uns e outros ligados por nexo de causalidade necessária.
18-ª – As presunções, incluindo as judiciais, enquanto ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, são meio de prova, de demonstração da realidade de factos, reconhecido no direito português – cfr. arts. 341, 349-º e 351-º, do CC.
19-ª - A prova por presunção é em geral permitida no processo penal, face ao princípio da liberdade de prova, e é no caso admissível, por não ser excluída a demonstração da realidade dos factos por prova testemunhal – cfr. art. 351-º, do CC e arts. 125-º e 151-º, do CPP.
20-ª - Tal presunção reúne as condições de operatividade consideradas exigíveis pela doutrina e pela jurisprudência, que consistem em serem as suas premissas graves, precisas e concordantes, nos termos explicitados no corpo desta motivação – v. Acórdão de 17-12-2020, relatado por Gomes de Sousa, no Proc. n-º45/19.7PEEVR, acessível em www.dgsi.pt.
21-ª - Os elementos probatórios antes mencionados, incluindo a presunção estabelecida, impõem, pelas razões aduzidas, decisão oposta da proferida na sentença recorrida quanto aos factos das alíneas a), e), f), g), h), i) e j) do elenco dos factos não provados, julgando-se os mesmos provados.
22-ª - Em conformidade com o exposto, deve ser revogada a sentença e alterada a sua fundamentação de facto impugnada, eliminando-se do elenco dos factos não provados os descritos nas alíneas a), e), f), g), h), i) e j) e julgar-se que as provas indicadas demonstram a realidade dos seguintes factos:
1.º
No dia 20.06.2019, pelas 01H00, o arguido NUMI dirigiu-se ao estabelecimento comercial de cafetaria e bebidas “(…)”, sito na Rua (…), em Évora, pertença de INHO, com intenção de retirar objetos de valor do interior daquele espaço.
2.º
Ali chegado, o arguido NUMI aproximou-se de porta traseira que dava acesso ao interior do estabelecimento e partiu o vidro inferior daquela porta, do lado esquerdo do arguido, por onde entrou naquele.
3.º
Uma vez no interior do estabelecimento “(…)”, o arguido NUMI retirou e levou consigo os seguintes bens:
- Moedas emitidos pelo BCE que se encontravam no interior da caixa registadora no valor total de € 20,00;
- Moedas e notas emitidas pelo BCE que se encontravam guardadas numa gaveta de um móvel, provenientes da venda de gelados, no valor total de € 180,00.
4.º
Na posse daquele dinheiro, o arguido NUMI abandonou o local, levando consigo as quantias monetárias para parte incerta, assim as fazendo suas e integrando-as no seu património.
5.º
Como consequência da destruição do vidro da porta, causou o arguido NUMI um prejuízo de 95,95 euros, para substituição do vidro e reparação do aro da porta.
6.º
O arguido NUMI sabia que aquelas quantias monetárias que retirava não lhe pertenciam e que ao apoderar-se delas, com o propósito de as fazer suas, agia no desconhecimento e contra a vontade do seu legítimo dono, mais sabendo que não tinha qualquer direito sobre as mesmas e que a entrada nas instalações do estabelecimento comercial era feita no desconhecimento e contra a vontade do dono e que se tratava de um espaço fechado e reservado para utilização do ofendido, cujo acesso ao interior lhe estava vedado.
7.º
O arguido NUMI quis subtrair aqueles montantes, fazendo-os seus, o que logrou concretizar.
8.º
Mais quis partir o vidro da porta, sabendo que destruía bem alheio.
9.º
O arguido NUMI sabia que objetos que retirava do “(…)” pertenciam ao ofendido, que não lhe pertenciam e que ao apoderar-se deles, com o propósito de os fazer seus, agia no desconhecimento e contra a vontade do legítimo dono, mais sabendo que não tinha qualquer direito sobre os mesmos e sobre o referido espaço.
10.º
O arguido NUMI quis entrar no espaço daquele estabelecimento, apesar de saber que era um espaço privado, fechado em toda a sua área, que a entrada era feita através de destruição de objetos e arrombamento e que a entrada era feita no desconhecimento e contra a vontade do dono e que se tratava de um espaço reservado para utilização exclusiva do ofendido.
11.º
O arguido NUMI agiu sempre de forma livre voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
23-ª - Por consequência e em conformidade com o disposto no art. 358-º, n-º1, do CPP, e com a garantia de duplo grau de jurisdição, quanto à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena, deve determinar-se o reenvio dos autos, para que o tribunal comunique ao arguido a alteração não substancial de factos, relativa ao modo e ao local da entrada no estabelecimento “(…)”, e produza nova sentença, em conformidade com a decidida alteração da sua fundamentação de facto.
Vossas Excelências, porém, melhor decidirão como for de direito e de justiça.
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O recurso foi admitido.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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No Tribunal da Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer nos seguintes termos:
”Reconhecendo o mérito do argumentado não emitiremos parecer no sentido da procedência do recurso.
Na verdade, é valiosa a prova obtida de que os dedos da mão do arguido tocaram naquele aro do vidro partido.
Embora se desconheça quando é que esse contacto ocorreu, pois apenas se poderá dizer que foi antes de ter sido recolhida a amostra.
Este elemento de prova seria valioso pois comprova a presença do arguido naquele local se existisse qualquer outro elemento de prova como o qual se pudesse conjugar ou daí induzir a presença do arguido naquela noite no local e no interior do estabelecimento ou até mesmo noutro lugar mas por exemplo na posse do furtado.
Aí sim poderíamos falar na experiência comum, em prova indireta…
Agora no presente caso, não me parece sustentável que da simples impressão digital se possa concluir que foi naquela noite que o arguido aí esteve, que além de estar partiu o vidro e se introduziu no estabelecimento, dai retirou as quantias em dinheiro, seguindo-se ainda a prova do elemento subjetivo do tipo legal de crime.
Digamos que a suposição não pode ir tão longe sem se alicerçar na prova…
Aqui sim, faz sentido falar do princípio do in dubio pro reo, tão frequentemente alegado nos recursos erradamente.
Em nosso entender, é excessivamente temerária e perigosa a tese do recurso, com a margem de insegurança a que conduz, quase invertendo o ónus da prova sempre que fosse encontrada qualquer uma impressão digital na área espacial do crime.
Termos em que pugnamos pela manutenção da sentença recorrida.”
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Foi cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.
No caso sub judice o recorrente limita o recurso ao erro de julgamento de facto.
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Da Decisão recorrida - Factos e Motivação (transcrição)
“II. Fundamentação
II.I Factos Provados:
Com relevância para a discussão da causa, da prova produzida resultou provada a seguinte factualidade:
1. No dia 20.06.2019, pelas 01H00, pessoa não identificada, dirigiu-se ao estabelecimento comercial de cafetaria e bebidas “(…)”, sito na Rua (…), em Évora, pertença de INHO, com intenção de retirar objetos de valor do interior daquele espaço.
2. Ali chegada, tal pessoa aproximou-se de porta traseira que dava acesso ao interior do estabelecimento e partiu o vidro inferior daquela porta, do lado esquerdo do arguido.
3. Uma vez no interior do estabelecimento “(…)”, tal pessoa retirou e levou consigo os seguintes bens:
- Moedas emitidos pelo BCE que se encontravam no interior da caixa registadora no valor total de € 20,00;
- Moedas e notas emitidas pelo BCE que se encontravam guardadas numa gaveta de um móvel, provenientes da venda de gelados, no valor total de € 180,00.
4. Na posse daquele dinheiro, a pessoa não identificada abandonou o local, levando consigo as quantias monetárias para parte incerta, assim as fazendo suas e integrando-as no seu património.
5. Como consequência da destruição do vidro da porta, causou tal pessoa um prejuízo de 95,95 euros, para substituição do vidro e reparação do aro da porta.
6. O arguido encontra-se em cumprimento de prisão efectiva há cerca de 2 anos.
7. Tem o apoio da mãe.
8. Tem o 6.º ano de escolaridade.
9. Do seu certificado de registo criminal constam as condenações que aqui se dão por reproduzidas.
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II. II Factos Não Provados:
O Tribunal considera não provado,
a) Que haja sido o arguido a praticar os factos.
b) Após, o arguido introduziu o braço no interior e logrou chegar à fechadura interior daquela porta, abrindo-a, e por essa forma, acedeu ao seu interior.
c) Por referência a 3, que a pessoa “percorreu todas as divisões daquele edifício”.
d) Por referência a 5, que a reparação haja custado € 130,38.
e) O arguido NUMI sabia que aquelas quantias monetárias que retirava não lhe pertenciam e que ao apoderar-se delas, com o propósito de as fazer suas, agia no desconhecimento e contra a vontade do seu legítimo dono, mais sabendo que não tinha qualquer direito sobre as mesmas e que a entrada nas instalações do estabelecimento comercial era feita no desconhecimento e contra a vontade do dono e que se tratava de um espaço fechado e reservado para utilização do ofendido, cujo acesso ao interior lhe estava vedado.
f) O arguido NUMI quis subtrair aqueles montantes, fazendo-os seus, o que logrou concretizar.
g) Mais quis partir o vidro da porta, sabendo que destruía bem alheio.
h) O arguido NUMI sabia que objetos que retirava do “(…)” pertenciam ao ofendido, que não lhe pertenciam e que ao apoderar-se deles, com o propósito de os fazer seus, agia no desconhecimento e contra a vontade do legítimo dono, mais sabendo que não tinha qualquer direito sobre os mesmos e sobre o referido espaço.
i) O arguido NUMI quis entrar no espaço daquele estabelecimento, apesar de saber que era um espaço privado, fechado em toda a sua área, que a entrada era feita através de destruição de objetos e arrombamento e que a entrada era feita no desconhecimento e contra a vontade do dono e que se tratava de um espaço reservado para utilização exclusiva do ofendido.
j) O arguido NUMI agiu sempre de forma livre voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
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III. Fundamentação da motivação da matéria de facto
Para a formação da sua convicção, na indicação dos factos provados e não provados, o Tribunal analisou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em audiência de discussão e julgamento atendendo ao disposto no artigo 355º do CPP e de acordo com o artigo 127º do mesmo diploma, respeitando os critérios da experiência comum e da lógica.
Deste modo, foram tidos em conta, em ambos os processos:
• Auto de notícia de fls. 3 a 3-v;
• Auto de denúncia de fls. 4 a 4-v;
• Recibos de fls. 39 e 40;
• Relatório de inspeção de fls. 41 a 43;
• Reportagem fotográfica de fls. 44 a 45;
• CRC de fls. 78 a 95;
• Relatório de fls. 55 a 61;
• Certificado de registo criminal
O arguido não prestou declarações, com excepção quanto às suas condições pessoais que foram genericamente credíveis e não foram contraditadas.
Não se tendo questionado os factos tal como provados, mormente às circunstâncias de tempo e local, e no que diz respeito à existência do furto e aos bens furtados, para o que valorámos acima de tudo o depoimento do ofendido,
Relativamente à autoria dos factos, dir-se-á,
POL, agente principal da PSP, foi ao local após os factos e confirmou o vidro fixo lateral à porta partido na sua parte de baixo.
Nada mais sabia.
BOL, agente principal da PSP, foi ao local cerca das 10h do dia seguinte ao dos factos para proceder à pesquisa e recolha de vestígios lofoscópicos, e confirmou o teor do seu relatório, ou seja, que a impressão digital estava a meio da caixilharia inferior na parte lateral direita exterior, tal como nas fotografias.
Nada sabia da autoria dos factos.
O ofendido INHO, atestou os bens furtados, que a porta traseira estava fechada e trancada quando saiu e quando voltou ao local, confirmou o vidro partido e o valor dos danos (o que deu origem à sua correcção tal como provado e não provado).
Da autoria dos factos nada sabia.
Ora,
A única prova efectivamente produzida foi a de que existia uma impressão digital correspondente ao dedo anelar da mão direita do arguido (fls. 57), retirada do aro da porta de alumínio exterior junto ao vidro danificado (fls. 42).
Dito isto, poderá com segurança afirmar-se que o arguido foi o autor dos factos?
Acompanhando o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03/12/2013, em que é relator o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Sérgio Corvacho, em situação que poderá apresentar semelhanças na sua essência,
A perícia lofoscópica apenas permite provar, directamente, em concreto, que o arguido, em algum momento anterior à recolha dos vestígios, esteve junto da viatura pertencente à ofendida e tocou com a mão na porta do lugar do condutor da mesma.
Para se chegar à prova de que foi o arguido quem retirou do interior do veículo objectos da ofendida, terá de se proceder, por via indirecta, considerando conjuntamente a factualidade directamente provada pela perícia e os factos que resultaram demonstrados por outros meios.
Ora, no caso dos autos as únicas provas existentes são precisamente os vestígios lofoscópicos e nada mais.
É possível que tenha sido o arguido o autor dos factos?
Sim, é.
O vestígio foi aliás recolhido perto do vidro danificado.
Mas pode o vestígio ter sido aí recolhido porque o arguido passou no café e tocou naquela zona da porta traseira?
Sim, é.
Como é sabido, a base indiciária deve ser constituída, preferencialmente, por uma pluralidade de indícios (concordantes ou convergentes de modo a que se reforcem mutuamente) mas é admissível que um só seja suficiente se o seu significado for determinante.
Essencial na prova indiciária é que a conexão que tem de existir entre o facto base e o facto consequência seja fundamentada no princípio da normalidade conectado a uma máxima da experiência.
A prova indiciária só não terá a virtualidade de afastar a presunção de inocência e constituir prova bastante do facto probandum quando os indícios sejam ambíguos e a inferência seja ilógica ou de tal modo aberta que em si mesmo comporte uma tal pluralidade de conclusões alternativas que nenhuma delas pode dar-se por provada.
Ademais,
Como refere o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Manuel Soares em sumário ao acórdão de 21/06/2017, proferido na Relação do Porto, por referência ao princípio de que o exercício do direito ao silêncio não pode beneficiar o arguido, “Não viola a proibição do artº 343º nº 1 CPP, o entendimento de que os indícios de culpabilidade do arguido apurados na audiência de julgamento, só poderiam ser infirmados se existisse uma hipótese explicativa alternativa revelada na produção de prova, seja esta as declarações do arguido ou outra prova.”.
Mas a verdade é que não existem outras provas e o silêncio do arguido não pode ser valorado a seu desfavor.
Como se refere o acórdão da Relação de Évora de 24/09/2019, em que é relator o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Carlos Coelho,
O valor probatório da perícia dactiloscópica deve ser encarado numa tripla perspectiva:
- a aparição de uma impressão digital de uma pessoa faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada essa impressão;
- mas, se a impressão digital faz prova directa do contacto dessa pessoa com o objecto onde foi detectada essa impressão, ou esteve no local onde foi colhida, já não faz prova directa da participação do sujeito no facto criminoso (até porque aquele contacto com a coisa pode ser posterior à pratica do crime ou meramente ocasional);
- apesar de não fazer prova directa da participação do sujeito no facto criminoso, a impressão digital constitui um forte indício que, conjugado com outros indícios, pode fundamentar uma decisão condenatória.
Mas que outros indícios existem no processo?
No caso concreto nenhuma outra prova indirecta permite suportar o indicio resultante do vestígio lofoscópico.
Como é sabido, a dúvida deve ser decidida a favor do arguido, pelo que não vislumbrando qualquer outra prova que pudesse ser produzida para além da já carreada para os autos, impõe-se absolver o arguido.”
*
Apreciando
De acordo com o art. 428, nº 1, do Código de Processo Penal, “as relações conhecem de facto e de direito”.
A demonstração dos factos que consubstanciam a tipicidade do evento criminoso terá que decorrer de prova direta ou indireta, ou de ambas, competindo ao tribunal de recurso, em sede de impugnação da matéria de facto, exclusivamente verificar se a motivação constitui alicerce seguro para os factos que o tribunal a quo teve como provados e não provados.
Alega o recorrente que a prova produzida foi erradamente valorada, permitindo concluir pela condenação do arguido.
Vejamos
Como referido, e bem, na motivação da sentença recorrida “(…) O arguido não prestou declarações, com excepção quanto às suas condições pessoais que foram genericamente credíveis e não foram contraditadas.
Não se tendo questionado os factos tal como provados, mormente às circunstâncias de tempo e local, e no que diz respeito à existência do furto e aos bens furtados, para o que valorámos acima de tudo o depoimento do ofendido.
Relativamente à autoria dos factos, dir-se-á,
Joaquim Polha, agente principal da PSP, foi ao local após os factos e confirmou o vidro fixo lateral à porta partido na sua parte de baixo.
Nada mais sabia.
Francisco Boleto, agente principal da PSP, foi ao local cerca das 10h do dia seguinte ao dos factos para proceder à pesquisa e recolha de vestígios lofoscópicos, e confirmou o teor do seu relatório, ou seja, que a impressão digital estava a meio da caixilharia inferior na parte lateral direita exterior, tal como nas fotografias.
Nada sabia da autoria dos factos.
O ofendido António Ramalhinho, atestou os bens furtados, que a porta traseira estava fechada e trancada quando saiu e quando voltou ao local, confirmou o vidro partido e o valor dos danos (o que deu origem à sua correcção tal como provado e não provado).
Da autoria dos factos nada sabia.
Ora, a única prova efectivamente produzida foi a de que existia uma impressão digital correspondente ao dedo anelar da mão direita do arguido (fls. 57), retirada do aro da porta de alumínio exterior junto ao vidro danificado (fls. 42).”
Com efeito nenhuma das testemunhas inquiridas presenciou a prática dos factos, apenas confirmando que ocorreu um furto, foram retirados bens, existindo, como único elo de ligação do recorrente aos factos, o exame lofoscópico realizado.
Analisando a fundamentação da decisão recorrida constata-se, efetivamente, que nenhuma das testemunhas inquiridas presenciou os factos, limitando-se o ofendido INHO a elencar os bens em falta e a descrever que “a porta traseira estava fechada e trancada quando saiu e quando voltou ao local, confirmou o vidro partido e o valor dos danos”.
Existe, porém, um elemento de prova que no caso se apresenta como relevante e foi determinante para a formação da convicção do tribunal recorrido, o exame lofoscópico dos vestígios digitais recolhidos no local, que concluiu que existia uma impressão digital correspondente ao dedo anelar da mão direita do arguido (fls. 57), retirada do aro da porta de alumínio exterior junto ao vidro danificado (fls. 42).
Ora, a apreciação da prova segundo o princípio da livre apreciação não se traduz em livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, correspondendo, antes, a apreciação da prova de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinam uma convicção racional, objetivável e motivável.
A livre apreciação da prova, consubstanciar-se-á nas regras da experiência e na livre convicção do julgador.
Segundo as regras da experiência, o facto de serem encontradas impressões digitais de uma pessoa retiradas “do aro da porta de alumínio exterior junto ao vidro danificado” significa que essa pessoa aí esteve presente, mas não quando e em que circunstâncias.
Assim, no caso em apreço, a prova pericial apenas permite concluir esse facto, ou seja, que o arguido deixou uma impressão digital correspondente ao dedo anelar da mão direita no aro da porta de alumínio exterior junto ao vidro danificado.
E da prova testemunhal produzida, tal como se mostra descrita na fundamentação de facto, nada se pode concluir quanto à autoria do furto, pois que o arguido não prestou declarações e nenhuma das testemunhas presenciou os factos ou demonstrou ter conhecimento de algum facto instrumental que permita concluir ter sido o arguido o autor do furto.
Ou seja, ainda que a impressão digital faça prova direta do contacto do arguido com o local onde foi detetada aquela impressão ou esteve no local onde foi colhida, já não faz prova direta da participação do mesmo no facto criminoso, e isto porque se desconhece o momento daquele contacto ou as circunstâncias em que o mesmo ocorreu.
E, inexistindo outros indícios com que possa ser conjugada, a impressão digital por si só não pode fundamentar uma decisão condenatória.
Conclui-se assim que a prova produzida é manifestamente insuficiente para imputar ao arguido a prática do furto qualificado descrito na acusação, impondo-se, por isso, tal como decidido, absolver o arguido/recorrente do crime de furto qualificado que lhe foi imputado.
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Decisão
Face a tudo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo a sentença recorrida.
- Sem custas.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 5 de abril de 2022

Laura Goulart Maurício (relatora)
Maria Filomena Soares (1.ª adjunta)
Gilberto da Cunha (presidente)