Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3867/19.5T8FAR.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
ANIMAL
CULPA
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Os critérios e valores de ponderação previstos na Portaria n.º 377/2008, de 26/05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25/06, não são vinculativos e assumem um papel meramente indicativo e ordenador no sentido das seguradoras apresentarem propostas de indemnização razoáveis e que visem uma maior igualdade de tratamento dos sinistrados em matéria ressarcitória do dano.
2 – Por dano biológico deve entender-se qualquer lesão da integridade psicofísica que possa prejudicar quaisquer actividades, situações e relações da vida pessoal do sujeito, não sendo necessário que se refira apenas à sua esfera produtiva, abrangendo igualmente a espiritual, cultural, afectiva, social, desportiva e todas as demais nas quais o indivíduo procura desenvolver a sua personalidade,
3 – O prejuízo biológico, enquanto diminuição psíquico-somática e funcional de uma pessoa em geral, assume repercussões na vida individual e gerador de responsabilidade civil, tanto no domínio do dano patrimonial como na dimensão do infortúnio não patrimonial.
4 – O juízo de equidade a que lei faz menção determina que o julgador tome em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida e não se desvie do arco de decisões próximas que fixem indemnizações por lesões e danos de natureza similar.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3867/19.5T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central de Competência Cível de Faro – J2
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
Na presente acção declarativa com processo comum proposta por (…) contra “(…) Seguros, SA” e (…), a seguradora e a herdeira habilitada da primitiva segunda Ré vieram interpor recurso da sentença proferida.
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Após convite ao aperfeiçoamento, o Autor pediu que as Rés fossem condenadas a pagarem-lhe:
A) € 16.252,66, a título de danos patrimoniais por perdas salariais, a que serão deduzidos os montantes recebidos pelo Autor da segurança social a título de subsídio de desemprego ou outro no período compreendido entre 03/10/2016 e 16/07/2019 (artigos 41º a 42º da petição inicial);
B) € 96.812,00, a título de danos patrimoniais pela incapacidade permanente parcial de 33% (artigos 43º a 45º da petição inicial);
C) € 32.500,00, a título de danos não patrimoniais (artigos 48º a 77º da petição inicial);
D) Tudo no montante global de € 145.564,00, a que acrescem juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento;
E) Relegar para liquidação em execução de sentença o peticionado no artigo 46º da petição inicial quanto à necessidade de realização de fisioterapia para o resto da vida, número de sessões anuais e respectivo custo.
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Em benefício da sua pretensão, o Autor invocou que foi vítima de um acidente de viação enquanto conduzia um motociclo, ao ser surpreendido por um canídeo pertencente à 2ª Ré na via pública, que provocou um despiste e, nessa sequência, sofreu danos patrimoniais e morais.
A responsabilidade civil foi transferida para a 1ª Ré.
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Devidamente citada, a Ré “(…) Seguros, SA” apresentou contestação, em que aceitou a responsabilidade do canídeo por si seguro na produção do acidente em causa, mas impugnou os danos invocados e o montante do pedido.
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A Ré (…) também contestou, invocando a sua ilegitimidade passiva por ter celebrado seguro de responsabilidade civil relativo ao seu canídeo que fugiu para a via pública e impugnando os danos invocados e o montante do pedido.
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Por óbito da Ré (…), foi habilitada nos autos (…), em sua representação.
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Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva, identificou o objecto do litígio e indicou os temas da prova.
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Realizada a audiência final, o Tribunal a quo decidiu condenar, solidariamente, as Rés “(…) Seguros, SA” e (…), esta última representada por (…) atento o seu óbito, a pagarem ao Autor (…) a quantia de total de € 145.564,00, já lhe tendo sido adiantada a quantia de € 7.200,00, pelo que deverão entregar-lhe a quanta de € 138.364,00, a título de danos não patrimoniais (incluindo o dano biológico), acrescida de juros de mora desde o dia seguinte à data da prolação da douta sentença até integral pagamento, às taxas sucessivamente em vigor para os juros civis.
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A Ré seguradora não se conformou com a referida decisão e o articulado de recurso continha as seguintes conclusões:
«Nulidade da sentença
1. O valor do pedido líquido é de € 129.312,00 (€ 96.812,00 + € 32.500,00).
2. O pedido a título de perdas salariais não é líquido, pois o A. pediu a condenação das rés na diferença entre € 16.252,66 e os valores que recebera da Segurança Social a título de subsídio de desemprego ou outro entre 3.10.2016 e 16.7.2019, os quais não quantificou, nem foram apurados nos autos.
3. Ao ter considerado como valor total do pedido e limite à condenação a quantia de € 145.564,00 (que inclui os referidos € 16.252,66, não peticionados pelo A.), o tribunal a quo violou os limites da condenação previstos no artigo 609.º/1, do CPC.
4. Ascendendo o valor do pedido líquido a € 129.312,00 e o valor da condenação (antes de descontada a antecipada quantia de € 7.200,00) a € 145.564,00, a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º/1, e), do CPC.
• Medida da compensação dos danos não patrimoniais
5. A fixada medida da compensação dos danos não patrimoniais, no valor de € 145.564,00 (ou, após descontada a adiantada quantia de € 7.200,00, de € 138.364,00) peca, manifestamente, por excesso, à luz dos valores compensatórios que têm vindo a ser arbitrados pelas instâncias superiores noutros casos idênticos ou mais graves do que o do A..
6. Na definição da medida de compensação dos danos não patrimoniais do A., o tribunal a quo não teve em consideração o disposto no artigo 8.º/3, do CC, que é uma decorrência do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, que impede que sinistrados em situação idêntica sejam compensados distintamente pelos tribunais, sem prejuízo, naturalmente, da ponderação das especificidades dos casos concretos.
7. Uma análise da jurisprudência produzida pelas instâncias superiores em matéria de compensação de danos não patrimoniais permite extrair as seguintes ilações: a) os valores superiores a € 150.000,00 têm sido reservados para situações de incapacidade permanente entre os 90 e os 100 pontos; b) os valores entre os € 100.000,00 e os € 150.000,00 têm sido concedidos em situações de incapacidade permanente de 50 ou mais pontos, ou de lesados muito jovens, envolvendo amputação ou disfuncionalidade grave de membros, elevados graus de dependência de terceira pessoa ou sequelas incompatíveis com o exercício de qualquer actividade profissional ou, pelo menos, da profissão habitual; c) para situações como a dos autos (em que se destaca, entre os danos temporários, 5 fracturas, 4 cirurgias, défices funcionais temporários total e parcial de 100 dias e 918 dias, respectivamente, uma repercussão na actividade profissional total de 1018 dias e um quantum doloris de grau 5/7 e, entre os danos permanentes, um dano biológico de 27 pontos, um dano estético de grau 4/7, uma repercussão nas actividades desportivas e de lazer de grau 3/7 e a necessidade de dispêndio de esforços adicionais no exercício da profissão habitual), têm sido fixados valores, predominantemente, entre os € 50.000,00 e € 60.000,00.
8. A compensação dos danos não patrimoniais deve ser fixada de acordo com a equidade, nos termos do artigo 496.º/4, do CC, que manda atender às circunstâncias referidas no artigo 494.º, entre as quais o grau de culpabilidade do agente.
9. A condenação das rés resultou da presunção de culpa prevista no artigo 493.º/1, do CC (o que, em abstracto, permite a fixação equitativa da indemnização em valor inferior ao dos danos causados, no termos do artigo 494.º do CC), pelo que a indemnização deve ser despojada da sua função punitiva; dizendo de outro modo, assentando a responsabilidade das rés em culpa presumida, o grau de culpabilidade da 2ª R. não pode ser invocado para justificar um especial agravamento da indemnização, por referência aos padrões indemnizatórios adoptados pela jurisprudência.
10. A fixação equitativa da compensação, nos termos do artigo 496.º/4, do CC, não é incompatível com a ponderação dos critérios e valores orientadores da Portaria n.º 377/2008, de 26.5, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25.6, sendo que estes diplomas reflectem um esforço legislativo de uniformização dos valores indemnizatórios do dano corporal dos lesados por acidente de viação (e, deste modo, assegurar uma maior igualdade de tratamento dos sinistrados em matéria indemnizatória) e podem representar uma ferramenta útil para o julgador, que sempre decidirá em conformidade com o seu juízo equitativo.
11. Para os intervalos em que se enquadra a idade do A. à data do acidente (37 anos) e o seu dano biológico (27 pontos), o Anexo IV da referida Portaria prevê um valor máximo por ponto de incapacidade de € 1.692,80 (já actualizado nos termos do artigo 13.º da Portaria), do que resulta uma compensação, para um dano biológico de 27 pontos, de € 45.705,60 (€ 1.692,80 x 27 pontos).
12. Considerando: a) os padrões indemnizatórios adoptados em casos análogos; b) a compensação prevista na Portaria para um sinistrado da idade e com o dano biológico do A.; c) que, para além das consequências não patrimoniais do dano biológico, há que compensar outros danos morais complementares (nomeadamente advindos dos danos temporários); d) que a responsabilidade da 1ª R. assenta num mera presunção de culpa da sua segurada; parece à 1ª R. equitativa a atribuição ao A. de uma compensação de € 75.000,00, a título de danos não patrimoniais (incluindo o dano biológico), à qual haverá que descontar a adiantada quantia de € 7.200,00.
13. A sentença recorrida violou ou desconsiderou os artigos 8.º/3 (reflexo do princípio da igualdade, acolhido no artigo 13.º da CRP), 496.º/3 e 494.º do CC.
Termos em que devem V. Exas. conceder provimento à apelação e, em consequência, revogar, parcialmente, a sentença condenatória recorrida, reduzindo o valor da condenação de € 145.564,00 para € 75.000,00, com o que fareis a costumada Justiça!».
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A habilitada (…) não se conformou com a referida decisão e o articulado de recurso continha as seguintes conclusões:
«1 – O A. deduziu pedido de indemnização no valor global de € 145.564,00, a pagar subsidiariamente por ambas as RR, o qual incluía perdas salariais (€ 23.452,66), danos não patrimoniais por incapacidade de 33% (€ 98.812,00), e € 32.500,00 por danos não patrimoniais.
2 – A 1ª R. já havia pago ao A. a quantia de € 7.200,00 a título de pensão que abrangeu 12 meses, pelo que o pedido a titulo de perdas salariais ficou reduzido a € 16.253,66 e o montante global da indemnização pedida passou a ser de € 138.364,66.
3 – Não se provou a existência de perdas salariais nem de lucros cessantes, pois a incapacidade de 27% não causa ao A. impossibilidade de exercer a profissão de técnico informático, mas sim esforços acrescidos na sua actividade, pelo que deduzindo aos € 138.364,66 os € 16.253,66 de perdas salariais, o valor do pedido ficou reduzido a € 129.312,66.
4 – A sentença proferida pelo Tribunal a quo não teve em conta a redução do valor pedido por falta de prova e condenou solidariamente a 1ª R. (…) Seguros e a 2ª R. … (entretanto falecida, cuja sucessora habilitada é a filha …) a pagarem ao A. a quantia global de € 145.564,00, ou seja, o valor total do pedido do qual serão descontados € 7.200,00 pagos adiantadamente pela 1ª R ao A., sem cálculos aritméticos nem desdobramento em parcelas.
5 – A quantia fixada pelo Tribunal a quo a título de danos não patrimoniais corresponde exactamente ao valor global pedido pelo A. (€ 145.564,00) e depois reduzido por não terem sido provadas perdas salariais pelo A. nem lucros cessantes.
6 – A sentença, ao condenar em quantidade superior ao pedido, enferma de nulidade (artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do C.P.C.).
7 – A indemnização deve ser fixada segundo um critério de justiça natural e objecto de ponderação, por recurso à equidade (artigo 4.º, alínea a) e artigo 496.º, n.º 4, do C.C.) e ao direito de igualdade (artigo 13.º C.R.P.), seguindo a jurisprudência para casos semelhantes e também seguindo os critérios orientadores da Portaria 377/2008, alterada pela Portaria 679/2009.
8 – Apenas a 1ª R. assumiu expressamente e sem qualquer ressalva contra a 2ª R. exonerando-a de qualquer responsabilidade, o pagamento da indemnização.
9 – O A. apenas pode ser compensado a título de danos não patrimoniais, incluindo o dano biológico (artigo 566.º, n.º 1 e 3, do C.C.).
10 – O A. não pediu indemnização autónoma por danos futuros.
11 – O A. poderia ter exigido o pagamento de indemnização somente à 1ª R. (artigo 146.º, n.º 1, do D.L. n.º 72/2008) e só não o fez, conforme o próprio afirma, por desconhecer o conteúdo do contrato de seguro e se o mesmo abrangia animais domésticos.
12 – O A. não diz na sua p.i que houve falta de cuidado da 2ª R. na vigilância do canídeo, nem o provou, nem lhe imputou qualquer culpa.
13 – A 2ª R. não agiu com culpa nem se está perante um facto ilícito, tendo o Tribunal a quo recusado ouvir as duas testemunhas por aquela arroladas, sobre os cuidados e vigilância da 2ª R para com o seu canídeo (artigo 493.º, n.º 1,“in fine”).
14 – A condenação solidária da R. (o A. havia pedido condenação a título subsidiário), tem na base a culpa presumida.
15 – O facto de a 2ª R. continuar no processo e ter sido condenada solidariamente, parece deixar antever uma punição para a mesma, sem sentido.
16 – A sentença recorrida invoca um alegado e eventual direito de regresso não abordado por qualquer das partes, pelo que parece incompreensível tal referência.
17 – A 2ª R., entretanto falecida e que recebia uma parca reforma, era ajudada economicamente pela filha, habilitada nestes autos como sua sucessora.
18 – Pretende-se que a sentença, caso não seja declarada nula, seja reformulada no sentido de apenas ser condenada a 1ª R. e absolvida a 2ª R. da situação de solidariedade no pagamento da indemnização, pela qual apenas é responsável a 1.ª R. que nunca pôs em causa ser a única responsável pelo pagamento da mesma..
19 – O A. não necessita de fisioterapia no futuro.
20 – A 2ª R., dona do canídeo em causa, não perigoso, e que não circulava na rua, por contrato de seguro facultativo que cumpre a obrigação legal e que não contém exclusões contrárias à natureza do seguro obrigatório, celebrado com a 1ª R., tinha a sua responsabilidade civil transferida para a Seguradora, na modalidade de responsabilidade civil familiar/animais domésticos (cláusula 35.º do contrato; artigo 147.º, n.º 6, do D.L. 72/2008, de 16 de Abril).
21 – A 2ª Ré havia deduzido a excepção de ilegitimidade que, incompreensivelmente, foi declarada improcedente apesar de já estar produzida prova nos autos da existência do seguro, do seu clausulado e do seu âmbito (animais domésticos), à qual nem o A. nem 1ª R. responderam, o que significa concordância.
22 – Não foi produzida prova de que a 2ª R. não vigiasse o seu canídeo de forma a evitar que o mesmo conseguisse libertar-se da corrente no momento do acidente e tivesse entrado na via pública, contrariamente ao que consta da sentença como facto provado no ponto 4.
23 – A 2ª R. participou logo o acidente à 1ª R. no dia 3/10/2016.
24 – Ao A. foi atribuído o grau de incapacidade de 27%, na 2ª perícia médica.
25 – A 2ª R. sempre exerceu o seu dever de cuidado com o seu canídeo, que não circulava na via pública e estava sempre preso a uma forte corrente no logradouro do prédio.
26 – Foi totalmente imprevisto e inexplicável o facto de o canídeo se ter libertado da corrente à qual se encontrava preso, não se tratou de facto voluntário, tratou-se de uma situação anómala.
27 – O A. como lesado não produziu prova nem sequer alegou que os danos que sofreu foram causados pela não observância do dever de guarda do canídeo (artigo 344.º, n.º 1 e 350.º, n.º 1 e 487.º, n.º 1, do C.C.), pelo que não pode inferir-se que o acidente foi devido a culpa da 2ª R.
Nestes termos e nos demais de Direito, Deve ser dado provimento a este recurso no sentido de:
- ficar sem efeito a condenação solidária da 1ª R. (…), Seguros e da 2ª R. / Recorrente (…), entretanto falecida e, em sua substituição ser apenas condenada a 1ª R. (…) Seguros no pagamento da indemnização e que seja fixada por recurso à equidade e ao principio da igualdade para casos idênticos.
Como é de Direito e Justiça».
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Não houve lugar a resposta do Autor. *
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n. º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
a) existência de nulidade por excesso de pronúncia.
b) erro de julgamento na subsunção jurídica realizada, tendo em consideração os factos apurados, quanto à existência de culpa da dona do animal, à atribuição do montante indemnizatório e à condenação solidária da Ré habilitada.
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Matéria de facto provada
Discutida a causa e produzida a prova, com interesse para a decisão da causa, resultam provados os seguintes factos:
1) No dia 02/10/2016, cerca das 16h50m, na estrada paralela à Estrada Nacional 125, na zona de (…), no sentido Faro-Albufeira, o Autor(…) circulava no seu motociclo, com a matrícula (…) quando, inesperadamente, um canídeo pertencente à Ré (…) soltou-se da corrente a que estava preso e invadiu em corrida desenfreada a faixa de rodagem do Autor (artigos 5º e 6º da petição inicial).
2) O Autor tentou desviar o seu percurso, por forma a evitar o embate com o animal, o que não veio a conseguir e, após a colisão com o animal, o Autor não mais logrou manter o controle do seu motociclo, despistando-se (artigos 7º e 8º da petição inicial).
3) Em consequência do embate, o Autor sofreu ferimentos graves, o passageiro que seguia consigo sofreu ferimentos ligeiros e o animal que deu azo ao acidente faleceu (artigo 10º da petição inicial).
4) (…) não guardou o seu canídeo de forma a evitar que o mesmo circulasse na via pública (artigo 12º da petição inicial).
5) Em consequência do embate, o Autor foi de imediato conduzido ao Centro Hospitalar do Algarve e aí foi diagnosticado com:
a) Traumatismo do punho direito com fractura distal do rádio e do escafoide sujeita a tratamento cirúrgico;
b) Traumatismo abdominal com fractura esplénica sujeito a esplenectomia de urgência;
c) Traumatismo torácico com fractura de costelas à esquerda;
d) Traumatismo do ombro esquerdo com fractura da clavícula esquerda;
e) Fractura dos pratos da tíbia esquerda sujeita a tratamento com cirurgia (artigo 14º da petição inicial).
6) Ao dar entrada no Centro Hospitalar do Algarve, o Autor, no próprio dia, sofreu a primeira intervenção cirúrgica, com esplenectomia total (artigo 15º da petição inicial).
7) Após a cirurgia para extracção do baço, o Autor foi internado na unidade de cuidados intermédios a aguardar o prognóstico, para saber se iria aguentar a operação simultânea a perna, braço, punho e clavícula (artigo 16º da petição inicial).
8) No dia 4 de Outubro de 2016, o Autor sofreu infecção abdominal com Bactéria Hospitalar MRSA (Staphylococcus), estando em estado crítico por mais de uma semana (artigo 17º da petição inicial).
9) No dia 21 de Outubro 2016, o Autor foi novamente para o bloco operatório, sendo certo que já com todos os procedimentos iniciais para a [realização] da cirurgia, tanto de preparação de material, como estabilização do meu corpo do doente na marquesa, o anestesista recusou a operação por haver ainda infecção pela bactéria MRSA (artigo 18º da petição inicial).
10) Em 25 de Outubro de 2016, o Autor foi finalmente submetido a intervenção cirúrgica para osteossíntese do radio distal e escafoide cárpico direito, redução e osteossíntese de fractura dos pratos tibiais no joelho esquerdo e osteossíntese da fractura da clavícula esquerda (artigo 19º da petição inicial).
11) No dia 16 de Dezembro 2016, o Autor teve alta para o domicílio, sendo certo que não se podia locomover sem ser em cadeira de rodas, não tendo condições na casa dos pais para se deslocar no mesmo, sendo os pais que ao ajudavam nas idas à casa de banho e deslocações na casa, bem como proviam a todas as suas necessidades (artigo 20º da petição inicial).
12) No dia 9 de Fevereiro de 2017, o Autor foi, mais uma vez, internado para nova operação ao punho (artigo 22º da petição inicial).
13) Em 27 Fevereiro de 2019 o Autor voltou a ser internado até dia 3 de Março 2019 para cirurgia plástica abdominal, para reparação de cicatriz distrófica abdominal, extração de material de osteossíntese do joelho esquerdo e mão direita, punho e escafoide direitos (artigo 23º da petição inicial).
14) Em consequência do embate, o Autor:
I) Sofreu traumatismo do punho direito com fractura distal do rádio e do escafoide sujeita a tratamento cirúrgico; traumatismo abdominal com fractura esplénica sujeito a esplenectomia de urgência, traumatismo torácico com fractura de costelas à esquerda, traumatismo do ombro esquerdo com fractura da clavícula esquerda e fractura dos pratos da tíbia esquerda sujeita a tratamento com cirurgia e apresenta como sequelas:
II) Marcha claudicante ligeira, sem recurso a ajudas técnicas;
Abdómen – Cicatriz operatória mediana supra umbilical de 22 cm sem eventração (Esplenectomia total);
Membro superior direito – cicatriz operatória dorsal de 7 cm com rigidez articular com dorsiflexão de 5º e flexão palmar de 45º e DC de 15º e pronação de 45º sem alterações neurológicas aparentes, nomeadamente força e sensibilidade e sem amiotrofia da eminência tenar tinnel e phalen negativos;
Membro superior esquerdo – cicatriz operatória da região clavicular de 7 cm com dor residual do acróioalvicular com mobilidades mantidas. Área de despigmentação da face externa do braço e antebraço com 5*3 cm e 12*3 cm respectivamente, sem limitação articular;
Membro inferior esquerdo – Cicatriz operatória da face externa do joelho de 22 cm e outra da face interna proximal da perna de 12 cm. Amitrofia de 2 cm medindo 10 cm do polo superior da rótula com limitação dos últimos graus de flexão e ligeira instabilidade articular e sinovite residual, com boa estabilidade ligamentar;
III) Consolidação das lesões em 16/07/2019;
IV) Défice Funcional Temporário Total de 100 dias;
V) Défice Funcional Temporário Parcial de 918 dias;
VI) Período de Repercussão Temporária na Actividade profissional Total – 1018 dias;
VII) um Quantum Doloris no grau 5/7;
VIII) um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 27 pontos em 100, sendo de admitir a existência de dano futuro;
IX) Dano Estético Permanente no grau 4/7;
X) Repercussão Permanente na Actividade Profissional – sequelas compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares;
XI) Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer no grau 3/7 (não consegue correr, nem andar de bicicleta);
XII) O Autor necessita de ajudas medicamentosas e eventual viscosuplementação (infiltrações) no joelho esquerdo (artigos 24º a 35º, 54º, 57º, 58º e 60º da petição inicial e relatório periciais).
15) Durante meses e por várias vezes na sequência das subsequentes operações cirúrgicas, para se locomover o Autor necessitou de usar canadianas axiais, embora tal uso lhe provocasse dor esfusiante na mão e punho direitos ao nível dos ombros e tórax (artigo 51º da petição inicial).
16) Foi sujeito a tratamentos dolorosos de fisioterapia, a fim de atenuar o seu sofrimento e desconforto, desde início de Janeiro de 2017 e até 16 de Julho de 2019 (artigo 53º da petição inicial).
17) O Autor evita ir à praia porque sente dificuldades de equilíbrio na areia.
18) O Autor jogava futebol, amigavelmente, em clubes e grupos de amigos e andava regularmente de motociclo (artigo 66º da petição inicial).
19) Não mais pôde ou poderá vir a jogar futebol e o seu motociclo encontra-se “estacionado” à espera de conseguir tomar a dolorosa decisão da sua venda (artigo 67º da petição inicial).
20) O Autor não consegue fazer um passeio de bicicleta (artigo 68º da petição inicial).
21) Todo o período de internamentos, dores, sofrimentos e tratamentos, causou no Autor alterações neuro-psicológicas, traduzidas em constantes momentos de nervosismo, ansiedade e períodos que iam da maior das agitações a um profundo mutismo (artigo 69º da petição inicial).
22) Durante os vários períodos de internamento, viu-se o Autor privado do conforto e companhia dos seus entes queridos, da sua vida profissional, pessoal e familiar normal, ele que era uma pessoa sempre muito dinâmica e saudável (artigos 70º e 71º da petição inicial).
23) O Autor sentiu temor e incerteza pelo seu futuro tanto profissional, como pessoal e de saúde, pois não sabia, qual iria ser o desfecho da sua situação clínica (artigo 74º da petição inicial).
24) O Autor sofreu com a inerente imobilidade, uso de cadeira de rodas e de canadianas, não poder locomover-se, vestir-se, levantar-se ou deitar-se, durante vários meses, sem a ajuda de terceiros (artigo 75º da petição inicial).
25) À data do acidente, o Autor exercia a profissão de técnico de informática, estando para iniciar um novo posto de trabalho próximo da data em que sofreu o acidente (artigo 40º da petição inicial).
26) Até hoje, o Autor recebeu, a título de pensão provisória paga pela Ré “(…) Seguros, SA”, a quantia de € 7.200,00, a qual lhe pagou as despesas médicas a que esteve sujeito (artigo 41º da petição inicial).
27) O Autor nasceu em 4 de Junho de 1979 – 37 anos (artigo 39º da petição inicial).
28) … transferiu para a Ré “(…) Seguros, SA”, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…), a responsabilidade civil decorrente de acidentes provocados pelo seu canídeo, o qual tinha o chip n.º (…), tal como resulta de fls. 46 a 68, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 11º da petição inicial).
29) O Autor recebeu subsídio de desemprego entre 12/12/2016 e 29/07/2019, de montante não concretamente apurado.
30) O Autor trabalhou entre 1 de Agosto de 2019 e 31 de Julho de 2020 para a “(…), Serviços Partilhados, Lda.” como técnico informático, auferindo € 750,00 mensais como salário base, estando actualmente desempregado, sendo a tarefa dificultada por ter dificuldade em colocar cabos e transporta impressoras ou outros objectos.
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3.2 – Matéria de facto não provada[1]:
Com interesse para a decisão da causa ficaram por provar os seguintes factos:
a) O Autor necessita de cerca de 60 sessões anuais de fisioterapia, por forma a minimizar as sequelas irreversíveis do acidente, sendo que tais tratamentos terão um custo de cerca de € 1.500,00 anuais (artigo 21º da petição inicial).
b) Para além do provado em 17), após o acidente o Autor não mais se sentiu à vontade para ir à praia ou outras actividades de lazer que envolvam exposição corporal, tal é a vergonha, constrangimento, desgosto e angústia que sente ao ver o seu abdómen, a sua perna com atrofia muscular, cicatrizes atrozes, profundas e extensas (artigos 61º e 62º da petição inicial).
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IV – Fundamentação:
4.1 – A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objectivo diverso do que se pedir:
É nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, conforme decorre da alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Trata-se de um mero corolário do princípio do dispositivo, numa área que constitui o núcleo irredutível deste princípio[2], infringindo a regra segundo a qual ne eat iudex vel extra petita partium. Justamente por isso, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora assinalam que a formulação do pedido reveste a maior importância, porque o juiz não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir[3].
Este vício traduz-se assim na violação do princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância[4], inobservando os limites impostos pelo artigo 609.º[5] da lei adjectiva, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso do pedido.
Entendem as recorrentes que o Tribunal a quo violou a sobredita norma. Em traços gerais, as recorrentes invocam que o julgador a quo cometeu a referida nulidade ao ter atribuído uma indemnização de valor superior ao pedido formulado, sendo que o montante máximo a atribuir não poderia ser superior a € 129.312,66.
Para tanto, ambas as recorrentes disseram que o Autor deduziu pedido de indemnização no valor global de € 145.564,00, que incluía perdas salariais e que estas não se provaram. Nesta ordem de ideias, naquela interpretação, o pedido a titulo de perdas salariais deveria ter sido subtraído ao montante total indemnizatório.
Neste campo, desde sempre, é consensualmente aceite na jurisprudência nacional que, no domínio da responsabilidade civil, os limites de condenação estabelecidos neste normativo legal se entendem referidos ao pedido global e não às parcelas atribuídas[6].
Assim, o juiz pode valorizar qualquer das parcelas em que se desdobra o pedido global de indemnização em montante superior ao indicado pelo próprio peticionante, mas o valor total alcançado não pode em caso algum ser superior ao pedido, a fim respeitar o disposto no n.º 1 do artigo 609.º do Código de Processo Civil.
E, assim, não existe a apontada nulidade. Na realidade, resta afirmar que existe uma identidade absoluta entre as pretensões deduzidas pelas partes e a matéria solucionada pelo Tribunal. No mais, a eventual sobreposição indemnizatória ou excesso de compensação pelo dano é uma questão de mérito, que, adiante, no lugar próprio, será debatida, carecendo assim de fundamento a arguição efectuada ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
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4.2 – Da responsabilidade pela produção do evento e da reparação de danos:
4.2.1 – Da responsabilidade civil por danos causados por animais:
Antes de iniciar a discussão desta questão, importa clarificar que quanto ao problema da rejeição parcial de meios de prova, a decisão mostra-se transitada e goza assim da característica da imutabilidade. Na realidade, a matéria em causa deveria ter sido objecto de impugnação recursal autónoma, ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 644.º[7] do Código de Processo Civil, por se tratar de um despacho de rejeição parcial de um meio de prova.
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Podemos afirmar que existe responsabilidade civil quando estamos perante uma obrigação imposta a alguém de reparar os danos sofridos por um terceiro.
Da análise do nosso ordenamento jurídico resulta que o legislador optou por um sistema que coloca a tónica na função reparadora ou compensatória da responsabilidade civil. No entanto, podemos também apontar uma função punitiva ou sancionatória, ainda que num segundo momento, já que o montante da indemnização varia consoante o grau de culpa do agente, conforme decorre da exegese do artigo 494.º[8] do Código Civil.
A pretensão indemnizatória do Autor situa-se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual e é enquadrada na responsabilidade por danos causados por animais, a qual se encontra sujeita quer ao regime geral da responsabilidade civil por factos ilícitos (baseada na culpa), quer ao regime excepcional da responsabilidade pelo risco.
Neste particular, importa focalizar a atenção no disposto no artigo 493.º[9] do Código Civil, que rege a violação do encargo da vigilância de quaisquer animais.
Tal responsabilidade recai sobre a pessoa que detém o animal, com o dever de o vigiar, é a pessoa que tens as coisas ou os animais à sua guarda quem deve tomar as providências indispensáveis para evitar a lesão. “Essa pessoa será, por via de regra o proprietário...”[10].
Estão aqui abrangidos apenas os danos causados por esses animais ou por essas coisas, não os danos causados por alguém com o emprego desses mesmos animais ou coisas, enquanto instrumentos da acção delitual – nesse caso, aplica-se o regime geral da responsabilidade civil delitual[11], depositado no artigo 483.º[12] do Código Civil.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, «estabelece-se neste artigo, como nos dois anteriores, a inversão do ónus da prova, ou seja, uma presunção de culpa por parte de quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou animais...»[13].
O artigo 493.º do Código Civil contém uma situação de presunção legal de culpa, cabendo ao demandado provar que empregou todas as medidas exigidas pelas circunstâncias, com o fim de prevenir os danos causados. Havendo uma presunção legal, provar o facto que serve de base à presunção equivale a provar o facto presumido de culpa (artigos 344.º, n.º 1[14] e 350.º, n.º 1[15] do Código Civil), pelo que, neste contexto desde que o lesado alegue e prove que os danos causados pela não observância do dever de guarda dos animais, a lei presume, a partir desse facto (base da presunção), que o sinistro foi devido a culpa do agente[16].
Isto é, incumbe ao lesado o ónus da prova do nexo de causalidade entre a omissão do dever de vigiar os animais e os danos, incumbindo ao réu provar que nenhuma culpa houve da sua parte na produção dos danos, na dimensão que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
Todavia, a presunção legal de culpa pode ser afastada “mediante prova da inexistência da culpa, conforme o disposto no n.º 2 do artigo 350.º, ou mostrando que os danos se teriam igualmente verificado mesmo sem culpa[17].
Por outras palavras, a parte final do n.º 1 estabelece um caso de relevância negativa da causa virtual do dano, ao isentar o agente da responsabilidade se este provar que os danos causados pela coisa ou animal que lhe caberia vigiar se teriam produzido ainda que não houvesse culpa sua[18] [19].
A culpa presumida só se aplica às pessoas que tenham assumido o encargo de vigiar os animais, mas não àqueles que entretanto os utilizam no próprio interesse, neste caso, vigora a responsabilidade pelo risco, sempre que os danos estejam em relação com os perigos especiais inerentes a essa utilização.
No artigo 493.º do Código Civil, o dano há-de estar em conexão com o dever de guarda, enquanto no artigo 502.º[20] mostra-se associado ao risco de utilização.
A diferença de regime explica-se pela diversidade de situações a que as duas disposições se aplicam, o artigo 493.º aproveita às pessoas que assumiram o encargo da vigilância dos animais (o depositário, o guardador, o tratador, etc.) enquanto o disposto no artigo 502.º é cabível aos que utilizam o animal no seu próprio interesse (o proprietário, o possuidor, o comodatário, etc.).
No entanto, é jurisprudência consolidada que nada impede que a pessoa que tem o dever de vigiar os animais seja o proprietário, mas o que releva em termos de responsabilidade civil é que o dever de vigilância incumbe a quem tiver poder de facto sobre animais[21].
Para a responsabilização ao abrigo deste artigo, basta o controlo material da coisa, acompanhado de um dever de vigilância, de origem legal ou negocial (apontando a existência de um poder de determinação sobre coisa[/animal], enquanto condição indispensável para a tomada das medidas de segurança necessárias, pessoalmente ou por intermédio de terceiros e, consequentemente, para a responsabilidade pela sua violação)[22] [23].
Impendia sobre a proprietária do animal que se encontrava à solta na via pública, após ter rebentado a corrente onde se encontrava preso, a ilisão da presunção de culpa ali estatuída, porquanto na sua efectiva detenção assumiu o encargo da vigilância daquele ser, por sua natureza, irracional, sobre si recaindo o dever de tomar todas as providências indispensáveis a evitar qualquer possível lesão[24].
De facto, no plano específico dos animais, nos termos do artigo 6.º do DL n.º 276/2001, de 17 de Outubro, na redação introduzida pelo DL n.º 315/2003, de 17 de Dezembro, “incumbe ao detentor do animal o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como de o vigiar, de forma a evita que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais”.
Encontra-se assente nos autos que, em consequência do embate com o canídeo, o lesado sofreu lesões e foi beneficiário de diversos tratamentos e assim o quantum satis para a existência do nexo de causalidade exigido pelo preceituado no artigo 487.º[25] do Código Civil, mostra-se preenchido, no mínimo a título presumido.
Como já se evidenciou, acresce ainda a circunstância de impender sobre a filha da dona do animal o ónus de infirmar aquela factualidade alegada, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º[26] do Código Civil, o que não logrou fazer como demonstrado vem pela factualidade assente na Primeira Instância.
Ademais, nesta valência, não foi impugnada a matéria de facto, mostrando-se assim consolidada a factualidade inscrita no artigo 4[27] dos factos provados, que se reporta à matéria da responsabilidade do dono do cão.
Vem-se entendendo que, provindo a lesão de um facto ilícito, seja de acolher e seguir a formulação negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a natureza geral e em face das regras de experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação dano. Causalidade adequada essa que se refere – e não apenas ao facto ou dano isoladamente considerado – a todo o processo factual que, em concreto, conduziu ao dano[28].
Da análise da matéria fáctica assente resulta que todos os referidos pressupostos impulsionadores da reparação fundada na responsabilidade civil se encontram perfectibilizados.
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4.2.2 – Dos danos – colocação do problema:
Ensina Gomes da Silva que «elementos fundamentais da responsabilidade são o dano e a relação em que ele se encontra com o responsável. (...) A responsabilidade é, por conseguinte, a obrigação nascida de um prejuízo e tem por objecto a reparação deste. O intuito com que a lei o estabelece não é o de intimar os indivíduos nem o de reprimir os factos ilícitos: é apenas o de satisfazer a justiça comutativa, reparando danos causados. O prejuízo, por conseguinte, é o fulcro de toda a responsabilidade»[29].
Na lição de Pereira Coelho «por dano pode entender-se (...) o prejuízo real que o lesado sofreu in natura, em forma de destruição, subtracção ou deterioração de um certo bem corpóreo ou ideal»[30].
Assim, defende-se que dano é «todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causada nos bens jurídicos, de carácter patrimonial ou não, de outrem»[31].
As recorrentes entendem que o montante indemnizatório deveria ser inferior, chamando à colação os critérios e valores de ponderação previstos na Portaria n.º 377/2008, de 26/05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25/06.
Porém, neste capítulo, é jurisprudência inteiramente estabilizada que os critérios de cálculo ali exarados não são vinculativos e assumem um papel meramente indicativo e ordenador no sentido das seguradoras apresentarem propostas de indemnização razoáveis e que visem uma maior igualdade de tratamento dos sinistrados em matéria ressarcitória do dano.
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4.2.3 – Do dano biológico: vertente patrimonial e não patrimonial. Danos actuais e futuros. Breve introdução à questão do dano biológico:
A análise concreta da situação faz apelo directo ao dano biológico, uma vez que o Tribunal a quo decidiu que era por esta figura dogmática que os danos patrimoniais pela incapacidade permanente parcial e os danos não patrimoniais seriam ressarcidos.
Para além da bibliografia geral dos direitos das obrigações, sobre o dano futuro, dano biológico e a obrigação de indemnização podem ser consultados Vaz Serra[32], Sinde Monteiro[33], João Dias Álvaro[34], Armando Braga[35], Maria da Graça Trigo[36] [37], Manuel Carneiro da Frada[38], Ana Mafalda Barbosa[39], Cátia Gaspar e Maria Manuela Chichorro[40], Duarte Nuno Vieira e José Alvarez Quintero[41], Brandão Proença[42], Maria Manuel Veloso[43] e Paula Meira Lourenço[44].
No plano jurisprudencial a teoria do dano biológico tem progressivamente ganho aceitabilidade enquanto realidade dogmática, traduzindo-se «na diminuição somático psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre» e que «tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial tal como compensado a título de dano moral»[45].
Por dano biológico deve entender-se qualquer lesão da integridade psicofísica que possa prejudicar quaisquer actividades, situações e relações da vida pessoal do sujeito, não sendo necessário que se refira apenas à sua esfera produtiva, abrangendo igualmente a espiritual, cultural, afectiva, social, desportiva e todas as demais nas quais o indivíduo procura desenvolver a sua personalidade.
É assim dominante a ideia que o prejuízo biológico, enquanto diminuição psíquico-somática e funcional de uma pessoa em geral, assume repercussões na vida individual e gerador de responsabilidade civil, tanto no domínio do dano patrimonial como na dimensão do infortúnio não patrimonial[46].
O dano biológico derivado de incapacidade geral permanente, de cariz patrimonial, é susceptível de justificar a indemnização por danos patrimoniais futuros, independentemente de o mesmo se repercutir na vertente do respectivo rendimento salarial, já que constitui um dano de esforço, porquanto o sujeito para conseguir desempenhar as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento, necessitará de um maior empenho, de um estímulo acrescido[47].
Sustentado na ideia do «dano de esforço» pode ser configurado um «um dano base ou dano central, um verdadeiro dano primário, sempre presente em caso de lesão da integridade físico-psíquica, e sempre lesivo do bem saúde» e uma lesão da capacidade laboral da vítima, que surge como «dano sucessivo ou ulterior e eventual; não um dano evento, mas um dano consequência», representando «um ulterior coeficiente ou plus de dano a acrescentar ao dano corporal»[48].
Este dano visa ressarcir mais do que a capacidade e de perda de rendimentos laborais ou profissionais, pois, acima de tudo, aquilo que mais releva neste segmento é tornar indemne o sofrimento psíco-somático que afecta a disponibilidade do autor para o desempenho de quaisquer actividades do seu dia-a-dia.
Sobre a conceptualização, valorização e finalidades da compensação do dano biológico pode ser lido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/10/2012[49]. Para Maria da Graça Trigo o dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas actividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis[50].
O mesmo evento pode produzir danos patrimoniais e não patrimoniais. Na hipótese judicanda, como bem realça a sentença recorrida, «provou-se que o Autor ficou afetado com sequelas e com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, pelo que não há dúvida de que este dano biológico determina uma alteração na sua vida, sendo a sua situação pior depois do acidente do que era anteriormente, razão pela qual esta alteração tem necessariamente que ser considerada para efeitos de atribuição de indemnização».
A matéria da indemnização a título de danos patrimoniais por perdas salariais e de incapacidade permanente parcial não foi impugnada por via recursal e, nessa medida, mostra-se transitado o juízo prudencial da Primeira Instância, restando assim de apurar se a dosimetria da valorização dos danos de natureza não patrimonial é justa e equilibrada.
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4.2.4 – Dos danos de natureza não patrimonial. Noção, extensão e recurso a critérios de equidade:
O artigo 496.º[51] do Código Civil impõe que na fixação da indemnização se deve atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis, não podem ser reintegrados mesmo por equivalente. Mas é possível, em certa medida, compensá-los mediante satisfações derivadas da utilização do dinheiro. Não se trata, portanto, de atribuir ao lesado «um preço de dor» ou «um preço de sangue», mas de lhe proporcionar uma satisfação, em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, na qual se podem incluir mesmo esses interesses de ordem refinadamente ideal[52] [53].
Almeida Costa entende «que os danos não patrimoniais, embora insusceptíveis de uma verdadeira e própria reparação ou indemnização, porque inavaliáveis pecuniariamente, podem ser, em todo o caso, de algum modo compensados. E mais vale proporcionar à vítima essa satisfação do que deixá-la sem qualquer amparo»[54] [55] [56] [57].
É ainda de alertar que, tal como atesta a jurisprudência constante dos Tribunais Superiores, a referida compensação tem natureza mista, pois visa simultaneamente reparar o prejuízo mas também encerra um juízo reprovador da conduta lesiva.
O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º (primeira parte do n.º 3 do artigo 496.º do Código Civil).
Conforme faz notar Pessoa Jorge «na generosa formulação do artigo 496.º do Código Civil, que confia ao legislador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, no que fundamentalmente releva, não o rigor algébrico de quem faz a adição de custas, despesas, ou de ganhos (como acontece no cálculo da maior parte dos danos de natureza patrimonial), mas, antes, o desiderato de, prudentemente, dar alguma correspondência compensatória ou satisfatória entre uma maior ou menor quantia de dinheiro a arbitrar ao lesado e a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ele se viu afectado»[58].
O juízo de equidade a que lei faz menção determina que o julgador tome «em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida»[59].
A equidade na visão de Menezes Cordeiro visa ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas[60]. E está limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal[61].
O juízo de equidade das instâncias, essencial à determinação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais, assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida – se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.
Aliás, estamos num domínio em que claramente não nos devemos afastar dos padrões indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, «procurando – até por uma questão de justiça relativa – uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8.º[62] do Código Civil, por forma a evitar exacerbações subjectivas»[63].
Neste campo, a proporção, a adaptação às circunstâncias, a objectividade, a razoabilidade e a certeza objectiva são as linhas motrizes de actuação da equidade.
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Ao analisar e ponderar a factualidade apurada, este Tribunal terá de tomar em consideração as circunstâncias do acidente, o sofrimento experimentado, as avaliações e os tratamentos médicos variados, os períodos de internamento e de recuperação, a afectação decorrente da incapacidade parcial permanente, as alterações na dinâmica familiar, social ou profissional, as dificuldades acrescidas de convívio sócio-familiar, as adversidades várias na execução de tarefas e a perda do prazer de prática de actividades de lazer que outrora realizava sem problemas, os bloqueios no exercício da condução, os problemas que as lesões trouxeram no desempenho profissional e outros transtornos ou complicações que passou a registar.
Pode ler-se nos factos provados que o Autor à data dos factos tinha 37 anos de idade, que, em consequência do embate, foi transportado para o Hospital de Faro e submetido a diversos tratamentos médicos e medicamentosos e cirurgias, tendo sido engessado e sujeito depois a cirurgias para retirada de material e para correcção das cicatrizes.
No plano ortopédico e orgânico sofreu traumatismo do punho direito com fractura distal do rádio e do escafoide sujeita a tratamento cirúrgico, traumatismo abdominal com fratura esplénica sujeito a esplenectomia de urgência, traumatismo torácico com fractura de costelas à esquerda, traumatismo do ombro esquerdo com fractura da clavícula esquerda e fractura dos pratos da tíbia esquerda sujeita a tratamento com cirurgia.
Relativamente ao dano regista um défice funcional temporário total de 100 dias, um défice funcional temporário parcial de 918 dias, uma repercussão temporária na actividade profissional total de 1018 dias, um quantum doloris no grau 5/7, um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 27 pontos em 100, um dano estético de 4/7, com repercussão permanente na actividade profissional, dado que as sequelas são compatíveis com o exercício da sua actividade profissional habitual, mas com esforços acrescidos, uma repercussão permanente nas actividades desportivas no grau 3/7, necessitando de ajudas medicamentosas e eventual viscosuplementação (infiltrações) no joelho esquerdo, apresentando como sequelas marcha claudicante ligeira (sem recurso a ajudas técnicas), esplenectomia total, várias cicatrizes no abdómen e nos membros superiores esquerdo e direito e ainda no membro inferior esquerdo, algumas com alguma extensão.
Também está demonstrado que o Autor sofreu angústia e desgosto na sequência do embate, sobretudo por ter de despender esforços suplementares nas suas actividades habituais e maior dificuldade no exercício da actividade profissional.
Para além do transcrito sofrimento físico e do quadro psicossomático anteriormente descrito, é de atender que Autor sofre de uma incapacidade permanente de 27%, mas não se apurou que o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica implique uma directa perda de ganho nem uma incapacidade para o seu trabalho habitual
Assim, a indemnização por danos resultantes de maiores dificuldades e de esforços para exercer uma profissão, deve ser calculada em atenção ao tempo provável de vida activa da vítima, de forma a representar um capital produtor de rendimentos que cubra a diferença entre a situação actual e a que existiria se não fora a existência do evento danoso[64] [65].
Embora os danos não patrimoniais não possuam um método avaliativo exacto, é de reconhecer que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização por danos não patrimoniais deverá ser significativa e não meramente simbólica.
Em conformidade com princípios de razoabilidade e justiça do caso concreto[66], seguindo um critério situado dentro do arco de decisões próximas deste Tribunal[67], bem como de outros Tribunais Superiores[68] [69] [70], o bom senso determina que os danos morais sofridos pelo Autor sejam dignos de protecção legal e que neste parâmetro a indemnização seja fixada em € 100.000,00 (cem mil euros).
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4.2.5 – Da condenação solidária da herdeira habilitada:
Foi invocada a ilegitimidade passiva da dona do animal para os termos da presente acção, sustentando a impugnante, em seu benefício, que havia celebrado com a 1ª Ré um contrato de seguro que garantia o pagamento dos danos provocados pelo seu cão.
Estamos num domínio distinto daquele que está presente no campo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, em que existe norma ad hoc, que prevê que nas acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido, as mesmas sejam apenas interpostas contra as seguradoras, quando o pedido se situa dentro do valor máximo do capital seguro.
No presente cenário o terceiro é estranho relativamente ao acordo celebrado e, neste domínio, reitera-se que não existe uma norma ad hoc de conteúdo equivalente à estabelecida no artigo 64.º[71] do DL n.º 291/2007, de 21/08 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel).
Efectivamente, nesta dimensão, o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador e o contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar diretamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado. Nesta visão, está-se perante a possibilidade de actuação em regime de pluralidade passiva de litisconsórcio voluntário.
É assim verdadeira a asserção consignada na decisão recorrida quando adianta que «não há qualquer obrigação de se demandar apenas a seguradora e não o segurado, dado que nada consta das condições da apólice do seguro em causa nesse sentido, pelo que o Autor pode demandar diretamente a 1ª Ré, segurada, enquanto alegada responsável pela prática de ato ilícito e culposo com base no qual peticiona uma indemnização, sendo certo que ocorre uma situação de solidária entre a 2ª Ré e a 1ª Ré, nos termos do artigo 497.º do Código Civil».
Pergunta-se então se a segunda Ré pode ser condenada solidariamente?
Contrato de seguro é o contrato pelo qual o segurador, em troca do pagamento de uma soma em dinheiro (prémio) por parte do contratante (segurado), se obriga a manter indemne o segurado dos prejuízos que podem derivar de determinados sinistros ou casos fortuitos[72].
A obrigação de manter indemne o segurado dos prejuízos que possam derivar de determinados sinistros consiste em o segurado remeter para a seguradora o risco da ocorrência desses sinistros[73].
O contrato de seguro é um acordo bilateral ou sinalagmático, porquanto dele decorrem obrigações para ambas as partes. Porém, os seguros de contratos de responsabilidade civil não se configuram na sua generalidade como contratos em benefício de terceiros.
Isto significa que o segurador não se constitui na obrigação de pagar a terceiro a indemnização devida. Na verdade, o segurador assume apenas perante o segurado a obrigação de o substituir no pagamento a terceiros das indemnizações que lhe forem exigidas. Isto é, o terceiro «apenas recebe reflexamente um benefício do contrato»[74].
Nesta concepção, somos confrontados com uma obrigação solidária em que a lesada pode exigir o cumprimento a qualquer dos devedores (demandando-os, como fez, em litisconsórcio voluntário), sendo que a seguradora apenas responderá até ao limite do seguro[75].
Tratando-se de obrigações solidárias, ao abrigo dos artigos 518.º[76] e 519.º[77] do Código Civil, o lesado pode exigir o cumprimento a qualquer dos devedores, podendo propor a acção contra o segurado ou contra a seguradora, ou contra ambos em simultâneo, como ocorreu no caso, em litisconsórcio voluntário.
Na solidariedade passiva, cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera[78]. Trata-se de uma garantia concedida ao credor, o qual, assim, assegura maior eficácia ao seu direito, que se pode exercer integralmente contra qualquer um dos devedores.
Neste domínio, a condenação solidária é assim acertada, mas tem um regime próprio de participação na dívida que afasta a aplicação da regra supletiva prevista do artigo 516.º[79] do Código Civil, pois não existe aqui uma perfeita relação de solidariedade passiva, por virtude da celebração do seguro facultativo aqui em debate.
A seguradora desempenha a função de garante e responsável pelo pagamento da indemnização e só quando interferem razões ponderosas definidas por um comportamento especialmente grave ou censurável do segurado[80] tem direito a ser reembolsada das quantias pagas aos terceiros lesados.
Na hipótese judicanda, não ficou demonstrada a existência de qualquer cláusula de exclusão que se mostrasse aplicável à presente situação. Existe assim um seguro válido que cobre o dano até ao montante contratualizado. E daqui decorre que, sem embargo da condenação solidária, em princípio, será a empresa seguradora que, na prática, procederá ao pagamento da indemnização fixada, seja por via directa, seja através do exercício do direito de regresso por parte da pessoa singular condenada ou do recurso a qualquer outro instituto jurídico geral do direito civil de reembolso funcionalmente equivalente, até limite do seguro contratado.
Fora do contexto daquilo que já foi expressamente debatido e alterado, não existe qualquer outro argumento recursivo que tenha a virtualidade de promover no mais a modificação do previamente decidido.
Em suma, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto, revogando-se em parte a decisão recorrida, alterando-se correspondentemente nos termos acima enunciados o montante indemnizatório anteriormente atribuído.
*
V – Sumário: (…)
*
VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto, revogando-se em parte a decisão recorrida, condenando-se os Réus “(…) Seguros, SA” e (…) a pagar a (…) uma indemnização no valor de € 100.000,00 (cem mil euros), descontando a quantia já adiantada de € 7.200,00, a título de danos não patrimoniais (incluindo o dano biológico), mantendo no mais a decisão recorrida.
Custas a cargo dos apelantes e do apelado na proporção do respectivo decaimento, ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
*
Processei e revi.
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Évora, 28/06/2023

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

Cristina Maria Xavier Machado Dá Mesquita

Anabela Luna de Carvalho


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[1] A este propósito, está escrito na sentença recorrida que: «consigna-se que a matéria e/ou documento não selecionada dos articulados, para além dos constantes do despacho-saneador, é mera repetição, conclusiva, de direito, de mera impugnação, meras suposições, não incumbe o ónus da prova da mesma a quem a alega e não se seleciona o facto na negativa ou não assume qualquer relevância para a decisão da causa, só tendo sido selecionados, para além dos constantes dos articulados, considerando o disposto no artigo 5.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, os factos essenciais, complementares e instrumentais que se consideram relevantes para a decisão e compreensão da matéria em causa e para a compreensão do litígio, sendo certo que, relativamente a todos os factos complementares apurados, as partes tiveram oportunidade de se pronunciar acerca dos mesmos e podem ser considerados oficiosamente pelo Tribunal, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil».
[2] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 675.
[3] Obra citada, pág. 244.
[4] Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pág. 670.
[5] Artigo 609.º (Limites da condenação):
1 - A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
2 - Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.
3 - Se tiver sido requerida a manutenção em lugar da restituição da posse, ou esta em vez daquela, o juiz conhece do pedido correspondente à situação realmente verificada.
[6] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/11/1975, 11/06/1976, 28/02/1980 e 02/03/1983, pesquisáveis no Boletim do Ministro da Justiça 251º-107, 258º-208, 294º-283 e 325º-365.
[7] Artigo 644.º (Apelações autónomas):
1 - Cabe recurso de apelação:
a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;
b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.
2 - Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:
a) Da decisão que aprecie o impedimento do juiz;
b) Da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal;
c) Da decisão que decrete a suspensão da instância;
d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;
e) Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual;
f) Da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo;
g) De decisão proferida depois da decisão final;
h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;
i) Nos demais casos especialmente previstos na lei.
3 - As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1.
4 - Se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão.
[8] Artigo 496.º (Danos não patrimoniais):
1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.
4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.
[9] Artigo 493.º (Danos causados por coisas, animais ou actividades):
1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
[10] Antunes Varela, Das obrigações em Geral, vol. I, 9ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, pág. 616.
[11] Maria da Graça Trigo e Rodrigo Moura, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 321.
[12] Artigo 483.º (Princípio geral):
1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.
[13] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, pág. 495.
[14] Artigo 344.º (Inversão do ónus da prova):
1. As regras dos artigos anteriores invertem-se, quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.
2. Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.
[15] Artigo 350.º (Presunções legais):
1. Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.
2. As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir.
[16] Antunes Varela, R.L.J., ano 122, pág. 217.
[17] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª ed., vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, págs. 616-617.
[18] Maria da Graça Trigo e Rodrigo Moura, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 322.
[19] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/09/2014, consultável em www.dgsi.pt.
[20] Artigo 502.º (Danos causados por animais):
Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização.
[21] Acórdão da Relação de Lisboa de 05/05/1994, divulgado em www.dgsi.pt.
[22] Maria da Graça Trigo e Rodrigo Moura, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 321.
[23] Mascarenhas Ataíde, Responsabilidade Civil por Violação de Deveres no Tráfego, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 389.
[24] Neste sentido, pode ser consultado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/09/2012, publicado em www.dgsi.pt.
[25] Artigo 487.º (Culpa):
1. É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
2. A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
[26] Artigo 342.º (Ónus da prova):
1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
[27] (4) … não guardou o seu canídeo de forma a evitar que o mesmo circulasse na via pública (artigo 12º da petição inicial).
[28] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/06/2006, in CJ STJ XIV-II-120.
[29] Gomes da Silva, O dever de prestar e o dever de indemnizar, vol. I, pág. 245.
[30] Pereira Coelho, O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, pág. 250.
[31] Vaz Serra, Boletim do Mistério da Justiça, n.º 84, pág. 8.
[32] Adriano Vaz Serra, Anotação ao acórdão do STJ de 22 de Janeiro de 1980, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 113º, n.º 3678, 1980.
[33] Jorge Sinde Monteiro, Dano Corporal (Um Roteiro do Direito Português), Revista de Direito e Economia, ano XV, 1989, págs. 367-374.
[34] João Dias Álvaro, Dano Corporal. Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Almedina, Coimbra, 2001.
[35] Armando Braga, a Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual, Almedina, Coimbra, 2005.
[36] Maria da Graça Trigo, Adoção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português, Revista da Ordem dos Advogados, ano 72, vol. I, 2012, págs. 147-178.
[37] Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil. Temas Especiais, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2015, págs. 69-87.
[38] Manuel Carneiro da Frada, Nos 40 anos do Código Civil Português. Tutela da Personalidade e Dano Existencial, Forjar o Direito, Almedina, Coimbra, 2015, págs. 289-313.
[39] Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa, Lições de responsabilidade Civil, Princípia, Cascais, 2017.
[40] Cátia Marisa Gaspar e Maria Manuela Ramalho Sousa Chichorro, A Valoração do Dano Corporal, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017.
[41] Duarte Nuno Vieira e José Alvarez Quintero (coordenação), Aspectos práticos da avaliação do dano em Direito Civil, Biblioteca Seguros, Julho, 2008, número 2.
[42] José Carlos Brandão Proença, Estudos de Direito das Obrigações, Universidade Católica Portuguesa, Porto, 2018.
[43] Maria Manuel Veloso, “Danos Não Patrimoniais”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. III.
[44] Paula Meira Lourenço, A função punitiva da responsabilidade civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2006.
[45] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/10/2009, incorporado em www.dgsi.pt.
[46] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12/12/2017, de 14/12/2017 e de 08/01/2019, todos disponibilizados em www.dgsi.pt.
[47] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/12/2017, pesquisável em www.dgsi.pt.
[48] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/05/2014, integrado na plataforma www.dgsi.pt..
[49] O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/10/2012, publicitado em www.dgsi.pt., refere que: «compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou conversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas. Na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais - mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado - constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável – e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição –, erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais (…)».
[50] Maria da Graça Trigo, Obrigação de indemnização e dano biológico, in Responsabilidade Civil - Temas Especiais, Capítulo IV, Universidade Católica, Lisboa, 2015, págs. 69 e seguintes.
[51] Artigo 496.º (Danos não patrimoniais):
1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.
4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.
[52] Mota Pinto, Teoria Geral, 3ª Ed., pág. 115.
[53] Sobre a vida, a morte e a sua indemnização veja-se o estudo de Leite Campos, no BMJ 365, pág. 5 e seguintes.
[54] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª Ed., Coimbra, pág. 502.
[55] Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, pág. 374 e seguintes.
[56] Pinto Monteiro, Sobre a reparação de danos morais, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, ano 1, n.º 1, Coimbra, 1992, pág. 17 e seguintes.
[57] Vaz Serra, Reparação do dano não patrimonial, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 83, pág. 69.
[58] Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, pág. 376.
[59] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Edição, Almedina, Coimbra, pág. 605, nota 4.
[60] Menezes Cordeiro, “O Direito”, n.º 122º, pág. 272.
[61] Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, Almedina, Coimbra, 1987, págs. 107/110.
[62] Artigo 8.º (Obrigação de julgar e dever de obediência à lei):
1. O tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio.
2. O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo.
3. Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.
[63] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/11/2014, que pode ser igualmente lido na plataforma www.dgsi.pt.
[64] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/06/2004, publicitado em www.dgsi.pt.
[65] A indemnização em dinheiro do dano decorrente da incapacidade permanente corresponde a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir, mas que se extinga no final do período provável de vida, tal como definem os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07/06/2003 e 27/11/2003, também disponibilizados em www.dgsi.pt.
[66] Armando Braga, A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual, pág. 229.
[67] A propósito da indemnização equitativa, embora abrangendo diversos assuntos, podem ser conferidos os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 08/03/2018, de 14/07/2020, de 15/12/2022, de 22/09/2020, de 23/09/2021, de 28/04/2022 e de 02/03/2023, todos incluídos em www.dgsi.pt.
[68] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31/03/2009, que foi confirmado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/10/2009, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, onde foi atribuída uma indemnização de € 45.000,00, numa situação em que a vítima esteve em coma, foi submetida a cirurgia, sofreu graves limitações temporárias, na medida em que, além de ter ficado totalmente dependente de terceiros, inclusive para a sua higiene, ida à casa de banho e para comer ou beber, usou fraldas durante um ano e ficou com uma incapacidade de 25%.
[69] No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/2015, também pesquisável em www.dgsi.pt, que considerou que: «é adequada a quantia de € 20.000,00 arbitrada a título de danos não patrimoniais tendo em atenção que (i) à data do acidente o autor tinha 43 anos de idade; (ii) em consequência do acidente sofreu traumatismo do ombro direito, com fractura do colo do úmero, fractura do troquiter, traumatismo do punho direito, com fractura do escafóide, traumatismo do ombro esquerdo, com contusão, (iii) foi submetido a exames radiológicos e sujeito a imobilização do ombro com “velpeau”; (iv) foi seguido pelos Serviços Clínicos em Braga e submetido a uma intervenção cirúrgica ao escafóide; (v) foi submetido a tratamento fisiátrico; (vi) mantém material de osteossíntese no osso escafóide; (vii) teve de permanecer em repouso; (viii) ficou com cicatriz com 5 cms, vertical, na face anterior do punho; (ix) teve dores no momento do acidente e no decurso do tratamento; e (x) as sequelas de que ficou a padecer continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodos e mal-estar que o vão acompanhar toda a vida e que se acentuam com as mudanças do tempo, sendo de quantificar o quantum doloris em grau 4 numa escala de 1 a 7»..
[70] No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/10/2012, divulgado em www.dgsi.pt, onde a indemnização por danos não patrimoniais foi fixada em € 45.000,00, estando em causa uma vítima com 19 anos, que sofreu fractura dos dentes e de ambas as pernas, suportou um internamento de oitenta dias e três dias, intervenções cirúrgicas, andou de cadeira de rodas, esteve totalmente dependente de terceiros, ficou com várias cicatrizes na perna, com perda de massa óssea, encurtamento da perna e marcha claudicante, com um período de incapacidade para o trabalho de 1629 dias, com um quantum doloris de 5,5 numa escala de 7, um dano estético de 4 numa escala de 7, um prejuízo de afirmação pessoal de 2/5 e uma IPG de 17,06%.
[71] Artigo 64.º (Legitimidade das partes e outras regras):
1 - As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente:
a) Só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório;
b) Contra a empresa de seguros e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar o limite referido na alínea anterior.
2 - Nas acções referidas na alínea a) do número anterior pode a empresa de seguros, se assim o entender, fazer intervir o tomador do seguro.
3 - Quando, por razão não imputável ao lesado, não for possível determinar qual a empresa de seguros, aquele tem a faculdade de demandar directamente o civilmente responsável, devendo o tribunal notificar oficiosamente este último para indicar ou apresentar documento que identifique a empresa de seguros do veículo interveniente no acidente.
4 - O demandado pode exonerar-se da obrigação referida no número anterior se justificar que é outro o possuidor ou detentor e o identificar, caso em que este é notificado para os mesmos efeitos.
5 - Constitui contra-ordenação, punida com coima de (euro) 200 a (euro) 2000 o incumprimento do dever de indicar ou de apresentar documento que identifique a empresa de seguros que cobre a responsabilidade civil relativa à circulação do veículo interveniente no acidente no prazo fixado pelo tribunal.
6 - Nas acções referidas no n.º 1, que sejam exercidas em processo cível, é permitida a reconvenção contra o autor e a sua empresa de seguros.
7 - Para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes de legislação fiscal.
8 - Para os efeitos do número anterior, o tribunal deve basear-se no montante da retribuição mínima mensal garantida (RMMG) à data da ocorrência, relativamente a lesados que não apresentem declaração de rendimentos, não tenham profissão certa ou cujos rendimentos sejam inferiores à RMMG.
9 - Para os efeitos do n.º 7, no caso de o lesado estar em idade laboral e ter profissão, mas encontrar-se numa situação de desemprego, o tribunal deve considerar, consoante o que for mais favorável ao lesado:
a) A média dos últimos três anos de rendimentos líquidos declarados fiscalmente, majorada de acordo com a variação do índice de preços no consumidor, considerando o seu total nacional, excepto habitação, nos anos em que não houve rendimento; ou
b) O montante mensal recebido a título de subsídio de desemprego.
[72] Guerra da Mota, O Contrato de Seguro, vol. I, pág. 271.
[73] Guerra da Mota, O Contrato de Seguro, vol. I, pág. 270.
[74] Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro, pág. 287.
[75] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 03/05/2016, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[76] Artigo 518.º (Exclusão do benefício da divisão):
Ao devedor solidário demandado não é licito opor o benefício da divisão; e, ainda que chame os outros devedores à demanda, nem por isso se libera da obrigação de efectuar a prestação por inteiro.
[77] Artigo 519.º (Direitos do credor):
1. O credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, ou parte dela, proporcional ou não à quota do interpelado; mas, se exigir judicialmente a um deles a totalidade ou parte da prestação, fica inibido de proceder judicialmente contra os outros pelo que ao primeiro tenha exigido, salvo se houver razão atendível, como a insolvência ou risco de insolvência do demandado, ou dificuldade, por outra causa, em obter dele a prestação.
2. Se um dos devedores tiver qualquer meio de defesa pessoal contra o credor, não fica este inibido de reclamar dos outros a prestação integral, ainda que esse meio já lhe tenha sido oposto.
[78] Artigo 512.º (Noção):
1. A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles.
2. A obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um deles; igual diversidade se pode verificar quanto à obrigação do devedor relativamente a cada um dos credores solidários.
[79] Artigo 516.º (Participação nas dívidas e nos créditos):
Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito.
[80] Ana Afonso, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 451.