Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2978/15.0T8FAR.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: SEGURO DE CRÉDITOS
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA PARA O TRABALHO HABITUAL
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: Preenche o conceito de invalidez absoluta e definitiva uma incapacidade permanente de 66,6422% que torna a lesada incapaz para o exercício da sua profissão habitual de funcionária administrativa e determina a correspectiva perda de remunerações.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário:
1. As cláusulas de um contrato de seguro que cobre os riscos de morte e invalidez absoluta e definitiva de segurado que contraiu um empréstimo bancário para aquisição de habitação, estão sujeitas ao Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, nomeadamente às regras relativas ao cumprimento dos deveres de informação e de comunicação, e às que proíbem a inserção de cláusulas contrárias ao princípio da boa-fé.
2. Uma cláusula que faz depender a verificação do risco de invalidez absoluta e definitiva da necessidade permanente de recurso à assistência de terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente, é atentatória do princípio da boa-fé.
3. Preenche o conceito de invalidez absoluta e definitiva uma incapacidade permanente de 66,6422% que torna a lesada incapaz para o exercício da sua profissão habitual de funcionária administrativa e determina a correspectiva perda de remunerações.
4. Face ao Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de Abril, a omissão negligente de patologias preexistentes à subscrição do contrato de seguro apenas permite ao segurador invocar a não cobertura do sinistro caso se demonstre o nexo de causalidade entre a informação inexacta ou omitida pelo segurado e o sinistro.


Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Faro, (…) e (…) demandaram, em 27.11.2015, (…) Vida – Companhia de Seguros, Lda., pedindo a condenação desta no pagamento à beneficiária Caixa de Crédito Montepio Geral do valor que estiver em dívida nos termos do contrato de mútuo, no momento do pagamento, bem como no pagamento aos AA. da quantia a liquidar correspondente aos valores pagos ao Montepio, no âmbito do contrato de mútuo, desde 26.02.2015 até efectivo cumprimento da obrigação anterior por parte da Ré.
A causa de pedir reside na celebração de um contrato de seguro denominado Plano de Protecção ao Crédito à Habitação, contratado na sequência da concessão de um mútuo hipotecário para aquisição de habitação própria e permanente, e na circunstância de à A. (…) ter sido atribuída uma incapacidade permanente parcial de 78%.
Na contestação, a Ré argumenta que não ocorre a invalidez absoluta e definitiva que permitiria o accionamento da apólice. Nesta peça nada se refere quanto à omissão de patologias preexistentes à data de subscrição do seguro.

Foi dispensada a audiência prévia – em despacho de 25.02.2016 – e realizada perícia médica à A..
Esta perícia consta de dois relatórios preliminares, elaborados em 05.09.2016 e em 02.01.2017, contendo a história do evento, a entrevista realizada à A., os dados documentais já existentes, o estado actual, o exame objectivo e os exames complementares de diagnóstico realizados; e de um relatório final, datado de 13.06.2017 mas recebido em juízo a 13 do mês seguinte e notificado às partes por comunicações electrónicas expedidas em 14.07.2017, contendo também a avaliação das doenças e sequelas existentes, o seu enquadramento na TNI, a fixação da incapacidade e a resposta ao quesito formulado.

Por despacho de 10.07.2017, notificado por comunicação electrónica expedida nessa mesma data, foi designada data para a audiência final.
Nos 10 dias seguintes a essa notificação, os AA. apresentaram articulado superveniente, referindo terem procedido à alienação do imóvel e pago do seu bolso o remanescente do mútuo contraído junto do Montepio Geral, motivo pelo qual alteraram o seu pedido, desta vez no sentido da Ré pagar-lhes, no âmbito do contrato de seguro celebrado, a quantia de € 251.600,39.
Admitido este articulado, a Ré respondeu no sentido de não ocorrer o sinistro que permitiria o accionamento da apólice.
Já na audiência final, ocorrida em 26.09.2017, também a Ré deduziu articulado superveniente, arguindo a omissão pela A. de intervenções cirúrgicas ocorridas em 2005 e 2008, anteriores à celebração do contrato de seguro, motivo pelo qual arguiu a sua anulação.
Respondendo, os AA. argumentaram que era intempestivo tal articulado, pois tais intervenções cirúrgicas eram conhecidas da Ré desde antes da propositura da causa ou, pelo menos, desde data anterior ao despacho que designou a data da audiência final, que o contrato de seguro já se encontrava extinto, pelo que não podia ser anulado, e que não ocorriam os factos que justificavam tal pretensão.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença absolutória, motivo pelo qual os AA., inconformados, recorrem e concluem:
a. O facto provado n.º 18 deve ser alterado de forma a fixar-se que a data do conhecimento pela Ré da operação ao útero foi a da notificação do relatório pericial de fls. 96, em 08/09/2016, por conter esse relatório a notícia da referida operação, precisamente nos mesmos termos que foram depois repetidos nos relatórios periciais posteriores, nomeadamente no de fls. 162.
b. O facto provado n.º 31 deve ser alterado de modo a reflectir fielmente a conclusão do relatório pericial, de que a Autora está limitada no exercício de actividades correspondentes aos seus conhecimentos e capacidades, não somente por não poder desenvolver esforços físicos significativos, como já lá consta, mas também por apenas o poder fazer com carácter parcial.
c. A situação pessoal da Autora, tal como apurada no processo, baseada na opinião do autor do relatório pericial de fls. 162, corresponde precisamente à previsão da cláusula ITP, que deve ter-se como incluída no contrato de seguro, na medida em que a Autora está incapacitada total e definitivamente de exercer a sua profissão, bem como quaisquer outras actividades lucrativas correspondentes aos seus conhecimentos e capacidades.
d. Com efeito, se se apurou que a Autora apenas poderia exercer outras actividades com carácter parcial e sem desenvolver esforços físicos significativos, e porque isso não permite o exercício normal da profissão, por impor limitações inexistentes e inaceitáveis no mercado de trabalho, tal situação equivale, na economia da cláusula ITP, e tal como a entenderia um declaratário normal, precisamente à situação de incapacidade que faz surgir a responsabilidade da seguradora.
e. A cláusula ITP deve ser interpretada do modo mais favorável à Autora, por se tratar de norma imposta pela Ré e, nesse sentido, não é admissível que se interprete a mesma como considerando capaz para o exercício profissional uma pessoa que não pode desempenhar nenhuma actividade lucrativa (i.e., uma profissão) a não ser “com carácter parcial e sem desenvolver esforços físicos significativos”, pois não existem, nem foram concretamente indicadas, actividades lucrativas, ou profissões, onde tais restrições ou limitações sejam aceitáveis.
f. Aliás, o critério de incapacidade usado para considerar a Autora como incapaz para o exercício da sua profissão, deve ser o mesmo usado para julgar da sua (in)capacidade para o exercício de outras actividades lucrativas, e assim, do mesmo modo que não se considerou a Autora capaz para o exercício da sua profissão, desde que a exercesse de forma parcial e sem esforços físicos, não se deve considerar a Autora capaz para o exercício de outras profissões, se isso apenas for possível com aquelas restrições, como é aqui o caso.
g. Assim sendo, a Autora preenche a previsão contratual inscrita na referida cláusula ITP, pelo que a Ré está obrigada a indemnizá-la nos termos do contrato.
h. Finalmente, a Ré não pode anular o contrato de seguro com base na regra do art. 25.º da Lei do Contrato de Seguro (Dec. Lei 72/08, 16/4), pois não alegou a superveniência do seu conhecimento dos factos alegados no articulado superveniente que apresentou em 26 de Setembro de 2017; apresentou o referido articulado fora de prazo; exerceu o seu alegado direito de anulação quando o mesmo já estava caducado, nos termos do art. 287.º n.º 1 do Cód. Civil; e não alegou nem provou o dolo da Autora, sendo certo que este não se presume, nem decorre do mero facto objectivo de o questionário não conter informação sobre a operação ao útero.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, como previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, continua a vigorar o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz – artigo 607.º, n.º 5, do mesmo diploma, ao dispor que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.”
Deste modo, a reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova[1].
Por outro lado, o art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao art. 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Da análise das conclusões, os AA. colocam em discussão duas questões relativas à fixação da matéria de facto provada, sendo que quanto à primeira delas, relativa ao facto n.º 18, entendem que deve fixar-se que a data do conhecimento pela Ré da operação ao colo do útero foi a da notificação do relatório pericial de fls. 96, em 08.09.2016.
A primeira instância entendeu fixar o conhecimento dessa operação aquando da notificação do relatório pericial de fls. 96/100 e 162/166.
Em bom rigor, a fls. 96/100 encontra-se o relatório preliminar e a fls. 162/166 o relatório definitivo, o primeiro datado de 05.09.2016 e notificado por comunicação electrónica expedida em 08.09.2016, e o segundo datado de 13.06.2017 e notificado por comunicação electrónica expedida em 14.07.2017. Visto o disposto no art. 248.º do Código de Processo Civil, presume-se assim a notificação daqueles relatórios, respectivamente, em 12.09.2016 e em 17.07.2017.
Apesar do carácter preliminar do relatório médico elaborado em 05.09.2016, o certo é que o mesmo identifica já a intervenção cirúrgica a que foi sujeita a A. em Setembro de 2008, ao colo do útero para conização cervical por lesão CIN III, e apoia-se nos elementos clínicos disponíveis naquela data, nomeadamente a entrevista realizada à A., os dados documentais já existentes, o estado actual, o exame objectivo e os exames complementares de diagnóstico realizados.
Nesta parte, o relatório definitivo elaborado em 13.06.2017 não contém qualquer novidade, e visto que se questionava o conhecimento pela Seguradora daquela intervenção cirúrgica, não podem considerar-se provadas duas datas diferentes, pelo que se concede provimento a esta parte da impugnação, declarando-se provado que o referido conhecimento ocorreu em 12.09.2016, data em que se presume efectuada a notificação do relatório onde surge pela primeira vez descrito o mencionado evento, podendo e devendo a Seguradora, usando da necessária diligência processual a que está sujeita, exercer desde então os direitos decorrentes da omissão daquela operação no questionário clínico elaborado aquando da subscrição do seguro.
A segunda questão fáctica colocada no recurso respeita ao ponto 31, que os AA. defendem dever ser alterado de modo a reflectir fielmente a conclusão do relatório pericial, no sentido das actividades compatíveis poderem ser exercidas não apenas sem esforços físicos significativos, como já ali consta, mas também com carácter parcial. E de facto esse é o teor do relatório pericial, e não se vislumbram motivos para divergir dessa conclusão, pelo que nesta parte se concede provimento à impugnação da matéria de facto.
Aproveitar-se-á, ainda, a oportunidade para alterar o lapso de escrita constante do ponto 17 do elenco fáctico, na medida em que da motivação de facto e do próprio contexto daquele elenco, resulta que o conhecimento anterior a 23.04.2015 é da intervenção cirúrgica de 2005, à hérnia discal cervical, identificada no ponto 2 e não no ponto 3 dos factos provados. De resto, tal matéria também é patente das comunicações escritas trocadas entre as partes antes da propositura da acção, em especial da carta da A. de 20.04.2015, onde se anexa o relatório médico da intervenção cirúrgica de 2005.
Finalmente, o elenco fáctico contido na decisão recorrida opta por efectuar a remissão para diversos documentos juntos aos autos, sem menção expressa do conteúdo relevante para a decisão da causa, o que pode dificultar a compreensão dos factos em discussão nos autos. Em especial, nos pontos 12, 13 e 14 importa descrever quais as informações pré-contratuais prestadas aos AA. aquando da subscrição do seguro, nomeadamente no que concerne às garantias da apólice, bem como ao preenchimento de um questionário clínico, a realização de análises clínicas e a sujeição a um exame clínico por médico escolhido pela Seguradora.
Em suma, decide-se:
· conceder provimento à impugnação relativa ao ponto 18 dos factos provados, que passará a ter a seguinte redacção: «A Ré teve conhecimento da intervenção cirúrgica ao colo do útero referida em 3., em 12.09.2016»;
· conceder provimento à impugnação relativa ao ponto 31 dos factos provados, que passará a ter a seguinte redacção: «Mas compatíveis com outras actividades dentro da sua área de formação técnico profissional desde que com carácter parcial e que não exijam esforços físicos significativos»;
· rectificar o lapso de escrita constante do ponto 17 dos factos provados, que passará a referir-se à intervenção cirúrgica à hérnia discal cervical do ponto 2;
· no ponto 12, descrever as informações pré-contratuais prestadas aos AA. aquando da subscrição do seguro, concernente às garantias da apólice, ficando com a seguinte redacção: «Da proposta de subscrição fazia parte o documento “Plano de Protecção ao Crédito à Habitação – Informações Pré-Contratuais”, onde, em resposta à pergunta “Qual a garantia da apólice?”, se afirmava o seguinte: “Sempre que de uma situação de DOENÇA ou ACIDENTE, resulte a Morte ou a Invalidez Absoluta e Definitiva, a Seguradora pagará ao beneficiário designado o Capital Seguro à data do acontecimento. Existe invalidez absoluta e definitiva sempre que a Pessoa Segura tenha a necessidade permanente de recorrer à assistência de uma terceira pessoa para poder efectuar os actos ordinários da vida corrente, não sendo possível qualquer melhora de saúde, de acordo com os conhecimentos médicos à data da invalidez absoluta e definitiva. A atribuição desta invalidez terá sempre em conta o grau de incapacidade permanente de que a Pessoa Segura era portadora à data do início do Seguro”»;
· alterar a redacção do ponto 13, nos seguintes termos: «Previamente à elaboração dessa proposta de subscrição, os AA. preencheram um questionário clínico, realizaram análises clínicas e sujeitaram-se a um exame clínico por médico escolhido pela Seguradora»;
· alterar a redacção do ponto 14, nos seguintes termos: «Os questionários clínicos foram assinados pelos AA., constando dos mesmos as respostas por estes fornecidas às questões ali colocadas».

Os factos ficam assim estabelecidos:
1. A A. foi gerente de sociedade entre os anos de 2009 a 2012, foi chefe de serviços entre 2013 e 2014 e escriturária de segunda a partir dos anos de 2015 e 2016.
2. No ano de 2005 a A. foi sujeita a intervenção cirúrgica a hérnia discal cervical.
3. No ano de 2008 a A. foi sujeita a intervenção cirúrgica ao colo do útero com conização cervical por displasia grave (CIN II).
4. No dia 26.11.2009 os AA. celebraram com a Caixa Económica Montepio Geral um contrato de mútuo, através do qual se confessaram devedores a esta do montante de € 275.000, acrescido dos respectivos juros remuneratórios, destinado à aquisição do prédio misto, sito em (…), freguesia de S. Clemente, Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…)/20050803.
5. Para garantia do pagamento da referida importância, os AA. constituíram hipoteca sobre o referido imóvel a favor da Caixa Económica Montepio Geral.
6. E obrigaram-se a subscrever um seguro cuja finalidade era a amortização do capital em dívida logo que ocorresse morte ou uma situação de invalidez coberta.
7. Os AA. celebraram com a Ré um contrato de seguro de vida, titulado pela apólice n.º (…), com início em 26.11.2009, denominado “Plano Protecção Crédito Habitação Seguro Vida Individual”, no qual são segurados os AA. e beneficiária a Caixa Económica Montepio Geral.
8. O objectivo dos AA. ao celebrar o contrato de seguro foi ter coberto o risco de uma incapacidade para o trabalho, de modo permanente.
9. Por intermédio do contrato de seguro, sujeito às condições gerais, juntas a fls. 15/16, a Ré obrigou-se ao pagamento da importância segura, cujo capital inicial era no montante de € 245.254,76, caso ocorresse algum dos riscos contratualmente previstos, concretamente morte ou invalidez absoluta e definitiva, ou invalidez total e permanente se a pessoa segura fosse trabalhador da Caixa Económica Montepio Geral e enquanto mantivesse essa condição.
10. Considerou-se ocorrer invalidez absoluta e definitiva quando a pessoa segura se encontrar totalmente incapaz para o exercício de qualquer actividade lucrativa e necessite de recurso à assistência sistemática e definitiva de uma terceira pessoa para os actos ordinários da vida humana e uma situação de invalidez total e permanente quando a pessoa segura, em consequência de doença ou acidente, se encontrar definitivamente incapacitada de exercer a sua profissão ou qualquer outra actividade lucrativa correspondente aos seus conhecimentos e capacidades.
11. Este contrato foi celebrado ao balcão da Caixa Económica Montepio Geral, agência de Loulé, através da elaboração da proposta de subscrição, datada de 14.05.2009, subscrita pelos AA..
12. Da proposta de subscrição fazia parte o documento “Plano de Protecção ao Crédito à Habitação – Informações Pré-Contratuais”, onde, em resposta à pergunta “Qual a garantia da apólice?”, se afirmava o seguinte: “Sempre que de uma situação de DOENÇA ou ACIDENTE, resulte a Morte ou a Invalidez Absoluta e Definitiva, a Seguradora pagará ao beneficiário designado o Capital Seguro à data do acontecimento. Existe invalidez absoluta e definitiva sempre que a Pessoa Segura tenha a necessidade permanente de recorrer à assistência de uma terceira pessoa para poder efectuar os actos ordinários da vida corrente, não sendo possível qualquer melhora de saúde, de acordo com os conhecimentos médicos à data da invalidez absoluta e definitiva. A atribuição desta invalidez terá sempre em conta o grau de incapacidade permanente de que a Pessoa Segura era portadora à data do início do Seguro”.
13. Previamente à elaboração dessa proposta de subscrição, os AA. preencheram um questionário clínico, realizaram análises clínicas e sujeitaram-se a um exame clínico por médico escolhido pela Seguradora.
14. Os questionários clínicos foram assinados pelos AA., constando dos mesmos as respostas por estes fornecidas às questões ali colocadas.
15. Aquando da elaboração da proposta de subscrição, os AA. foram informados da cláusula de exclusão da responsabilidade constante das condições particulares, nos termos da qual apenas os trabalhadores da Caixa Económica Montepio Geral têm a cobertura de invalidez total e permanente.
16. As intervenções cirúrgicas a que a A. foi sujeita mencionadas em 2. e 3. não foram, em momento prévio à subscrição do contrato de seguro, informadas à Ré.
17. A Ré teve conhecimento da intervenção cirúrgica à hérnia discal cervical referida em 2., em data anterior a 23.04.2015.
18. A Ré teve conhecimento da intervenção cirúrgica ao colo do útero referida em 3., em 12.09.2016.
19. Em 18.02.2015 foi emitido atestado médico de incapacidade multiuso, nos termos do qual foi atribuída à A. uma incapacidade permanente global de 78%, com carácter permanente desde 2014.
20. Por carta datada de 12.03.2015 a A. participou à Ré a situação de incapacidade de que ficou a padecer para efeitos de accionamento do seguro.
21. A Ré, por carta datada de 07.04.2015, solicitou à A. o envio de diversa documentação.
22. Por carta datada de 20.04.2015 a A. informou a Ré da operação realizada no ano de 2005.
23. Por carta datada de 23.04.2015 a Ré solicitou à A. o envio de diversa documentação.
24. Por carta datada de 17.09.2015 a Ré informou a A. que a situação clínica analisada não se enquadra no art. 2 ponto 1 da Condição Especial da Apólice, que refutava qualquer responsabilidade e não procederia ao pagamento da indemnização.
25. Em 26.02.2015 os AA. tinham em dívida à Caixa Económica Montepio Geral a título de capital a quantia de € 243.811,93.
26. Por documento particular datado de 06.10.2016 os AA. declararam vender o imóvel que adquiriram com recurso ao empréstimo contraído junto da Caixa Económica Montepio Geral.
27. Entre 26.02.2015 e 05.10.2016 os AA. pagaram à referida instituição bancária as prestações que se foram vencendo relativas ao contrato de mútuo, no valor de € 15.915,72.
28. No dia 06.10.2016 os AA. pagaram à mesma instituição bancária o valor remanescente em dívida do contrato de mútuo, no valor de € 235.684,67.
29. Por força do que a Ré considerou anulada a respectiva apólice de seguro.
30. A A. apresenta sequelas incompatíveis com o exercício da actividade habitual de funcionária administrativa com carácter irreversível.
31. Mas compatíveis com outras actividades dentro da sua área de formação técnico profissional desde que com carácter parcial e que não exijam esforços físicos significativos.
32. A incapacidade permanente parcial resultante das doenças crónicas que apresenta desde 2005 e com evolução até 2015 é fixável em 66,6422%.

Aplicando o Direito.
Da invalidez absoluta e definitiva
A primeira questão colocada nas alegações de recurso reside na qualificação da situação da A. como invalidez absoluta e definitiva, que a primeira instância entendeu não ocorrer, na medida em que, apesar de se ter demonstrada a ocorrência de uma incapacidade parcial permanente de 66,6422%, com sequelas incompatíveis com o exercício da profissão habitual e com carácter irreversível, também se provou que a A. poderia exercer outras actividades dentro da sua área de formação técnico profissional, desde que com carácter parcial e que não exijam esforços significativos.
Ficou provado que, da proposta de subscrição, fazia parte um documento que caracterizava a invalidez absoluta e definitiva como aquela que exigia a necessidade permanente de recurso à assistência de terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente, não sendo possível qualquer melhora de saúde.
A jurisprudência dominante tem reconhecido que as cláusulas de um contrato de seguro deste tipo, negociadas entre a Seguradora e o Banco tomador do seguro, ao qual o segurado se limita a aderir, estão sujeitas ao Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (RCCG) – DL 446/85, de 25 de Outubro – nomeadamente às regras relativas ao cumprimento dos deveres de informação e de comunicação (arts. 5.º e 6.º), e às que proíbem a inserção de cláusulas contratuais gerais contrárias ao princípio da boa-fé (arts. 15.º e 16.º), devendo ser ponderados os valores fundamentais do direito relevantes na situação considerada, assim como a confiança suscitada pelo sentido global das cláusulas, e o objectivo visado pelas partes e outros elementos atendíveis.
Note-se que o mutuário é o consumidor/aderente ao contrato de seguro, que celebra na medida em que tal lhe é imposto pelo Banco como condição de concessão do empréstimo hipotecário necessário à aquisição de habitação – como foi o caso dos autos, onde na cláusula 9.ª, n.º 1, al. e), do documento complementar à escritura se obrigou os AA. à celebração de um seguro de vida garantindo os riscos de morte e de invalidez.
Logo, como mero consumidor que pretende alcançar um fim social legítimo – a aquisição de habitação – deve procurar-se a eliminação das situações de desequilíbrio contratual proporcionadas pelo confronto entre partes com peso negocial diverso, e interpretar-se o contrato de modo a salvaguardar a protecção do aderente, à luz dos princípios da boa-fé e do fim social e económico do direito.
Deste modo, tem sido entendido que a Seguradora não pode opor ao aderente do contrato de seguro de grupo do ramo vida as cláusulas que não foram informadas, para se eximir do pagamento do capital seguro[2], como ainda que a cláusula contratual – como a retratada nos autos – que faz depender a verificação do risco de invalidez absoluta e definitiva da necessidade permanente de recurso à assistência de terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente, é atentatória do princípio da boa-fé.[3]
Na verdade, uma exigência destas, relativa à vida quotidiana, é alheia ao risco principal que se pretende segurar, ligada à perda de rendimentos derivada da impossibilidade de exercício da respectiva actividade profissional. Acresce que a imposição de uma cláusula desta natureza, provoca um significativo desequilíbrio contratual entre as partes, na medida em que o consumidor/aderente do contrato de seguro deixa de poder prevenir uma situação de impossibilidade de obtenção de rendimentos do trabalho e consequente incumprimento do contrato de mútuo.
Afastada a cláusula contratual que fazia depender a verificação do sinistro de invalidez absoluta e definitiva, da necessidade de assistência por terceira pessoa para os actos ordinários da vida corrente, observa-se que da proposta de subscrição do contrato de seguro – ponto 12 do elenco fáctico – não consta qualquer outra definição daquele conceito.
Não tendo a Seguradora logrado provar que comunicou aos AA. a definição de invalidez absoluta e definitiva constante da cláusula 2.ª das condições especiais da apólice – nomeadamente, na parte em que exige a incapacidade para o exercício, não só da sua profissão, mas ainda de qualquer actividade lucrativa – deverá tal cláusula ser considerada excluída (art. 8.º do RCCG) e recorrer-se ao sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, poderia deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não poder razoavelmente contar com ele (art. 236.º, n.º 1, do Código Civil).
Uma invalidez absoluta e definitiva será, para um declaratário normal, um estado da pessoa que o deixa totalmente (completamente, sem restrição) incapaz, para o resto da vida, de exercer a sua actividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência.[4]
No caso dos autos, o relatório pericial identificou as seguintes patologias à A.:
· Cervicobraquialgia direita com diminuição da força muscular e hipoestesia;
· Rigidez do ombro direito;
· Lombociatalgia direita com diminuição da força muscular e hipoestesia;
· Doença de Crohn activa com necessidade de tratamento com imunossupressores;
· Lesão uterina sujeita a tratamento cirúrgico (conização do colo do útero);
· Calcificações mamárias sujeitas a exérese cirúrgica; e,
· Síndrome depressivo moderado.
Face a tais patologias, o perito médico procedeu ao seu enquadramento de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro, valorizando as lesões a nível da coluna vertebral, a limitação da mobilidade do ombro direito, as nevralgias e radiculalgias, as lesões do aparelho digestivo (grau III), a moderada diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional, e as lesões do colo do útero, e concluindo pela atribuição de um nível de incapacidade permanente parcial de 66,6422%, com incompatibilidade para o exercício da actividade habitual da A. de funcionária administrativa, com carácter irreversível, mas admitindo que tais sequelas seriam compatíveis com outras actividades dentro da sua área de formação técnico profissional desde que com carácter parcial e sem esforços significativos.
Analisando o quadro de incapacidades atribuído à A., nota-se que as lesões que maior contribuição tiveram para a desvalorização global da A. foram as existentes ao nível da coluna vertebral (15%), as nevralgias e radiculalgias (15%), e as lesões do aparelho digestivo (grau III), associadas à doença de Crohn (40%).
Admitindo-se que uma IPP de 66,6422% não corresponde, apenas por si, a uma incapacidade absoluta e definitiva, deveremos recordar que a A. foi considerada incapaz para o exercício da sua profissão habitual de funcionária administrativa, com a consequente impossibilidade de exercício da actividade profissional que desenvolvia antes daquelas doenças terem assumido a gravidade descrita nos autos, e determinado a correspectiva perda de remunerações.
Como já se escreveu – no Acórdão da Relação de Guimarães de 31.05.2011, relatora Rosa Tching[5] – uma incapacidade para o “exercício da profissão habitual, associada à perda de remuneração por incapacidade de a angariar, não pode deixar de corresponder a uma incapacidade absoluta e definitiva, por, de harmonia com o disposto nos arts. 236.º e 238.º, n.º 1, do Código Civil, ser este o entendimento que um destinatário médio e de boa-fé ao aderir ao contrato de seguro de grupo”, retiraria de um cláusula garantindo, como no caso dos autos, o risco de invalidez absoluta e definitiva.
Note-se que, sendo a A. destra – facto revelado no relatório pericial, na parte relativa ao exame objectivo realizado – a rigidez do ombro direito associada às lesões da coluna vertebral, dificultam sobremaneira o exercício da profissão de funcionária administrativa e outras afins. Aliando estas incapacidades à doença de Crohn, para a qual não existe cura e que tem tendência a agravar-se com a idade, podemos concluir que um observador razoável aceitará que o conjunto de incapacidades que afectam a A., tornando-a incapaz para o exercício da sua profissão, também a impossibilitam de exercer qualquer outra actividade remunerada.
Tanto mais que, admitindo o relatório pericial que a A. poderia exercer outras actividades dentro da sua área de formação técnico profissional, desde que com carácter parcial e sem esforços físicos significativos, não está demonstrado que tais actividades possam ser remuneradas ou que garantam o nível de remuneração que minimamente lhe permitiriam satisfazer as responsabilidades financeiras decorrentes do mútuo contratado com o Banco.
Ponderando, ainda, que o objectivo dos AA., ao celebrar o contrato de seguro, foi ter coberto o risco de uma incapacidade para o trabalho, de modo permanente – ponto 8 do elenco fáctico – entende-se que a situação retratada nos autos integra o conceito de invalidez absoluta e definitiva que um declaratário normal e razoável retiraria do contrato de seguro.
Para terminar, o Supremo Tribunal de Justiça vem reconhecendo que uma incapacidade para o exercício da profissão habitual, independentemente da possibilidade de exercício de outra actividade compatível com os conhecimentos e capacidades do lesado, corresponde a uma invalidez absoluta e definitiva. A título meramente exemplificativo, citam-se os seguintes Acórdãos[6]:
- “É de considerar preenchido o conceito de invalidez absoluta e definitiva de que depende o accionamento do questionado contrato de seguro, se o autor ficou a padecer de uma incapacidade permanente global de 66% de natureza motora, que o inabilita para o exercício da sua profissão” – Acórdão de 29.04.2010, Proc. 5477/06.8TVLSB.L1.S1;
- “Provando-se que a pessoa segura se encontrava incapaz para todo o serviço da GNR, que o declarou, absoluta e permanentemente, incapaz para o exercício das suas funções, preenche o pressuposto da invalidez, total e permanente, resultante de doença, na subespécie da total e definitiva incapacidade para o exercício da sua profissão, independentemente da sua eventual incapacidade para o exercício de qualquer outra actividade compatível com os seus conhecimentos e capacidades, em que se traduzia o segundo termo da alternativa” – Acórdão de 02.06.2015, Proc. 109/13.0TBMLD.P1.S1;
- Uma incapacidade permanente e global de 68%, passível de variação futura, preenche o conceito de invalidez absoluta e definitiva – Acórdão de 14.12.2016, Proc. 1724/11.2TVLSB.L1.S1.

Da superveniência do conhecimento das patologias preexistentes, da tempestividade na sua invocação e da sua relevância
De acordo com o artigo 588.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.
No seu articulado superveniente oferecido na audiência final, em 26.09.2017, a Ré arguiu a omissão pela A., no procedimento de subscrição do contrato de seguro, de duas intervenções cirúrgicas, a primeira a hérnia discal cervical (em 2005) e a segunda ao colo do útero (em 2008).
Ora, está demonstrado que a primeira dessas intervenções era conhecida pela Ré desde data anterior à propositura da causa, pelo que podia e devia ter invocado essa matéria no seu articulado de contestação, tanto mais que o art. 573.º, n.º 1, do Código de Processo Civil determina que toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado. Após esse momento, apenas podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente (n.º 2 do mesmo normativo).
Consagra-se, pois, o princípio da concentração da defesa, segundo o qual todos os meios de defesa devem ser deduzidos na contestação, salvo os casos de defesa superveniente. Apresentada a contestação, fica precludida a invocação de outros meios de defesa, designadamente excepções, mesmo no caso de suprimento, aperfeiçoamento ou aditamento aos articulados, previstos no art. 590.º, n.ºs 2 a 7, do Código de Processo Civil, uma vez que se tratam de meros complementos aos articulados.
Analisando a contestação, a Ré não invocou nessa peça qualquer matéria relativa à omissão da intervenção cirúrgica à hérnia discal cervical, que já conhecia, nem retirou quaisquer consequências jurídicas desse facto. Logo, ficou precludida a oportunidade da Ré invocar esse facto em sede de articulado superveniente, pois o seu conhecimento dessa omissão era anterior ao termo do prazo de que dispôs para oferecimento da sua contestação.
Quanto à omissão da intervenção ao colo do útero, ocorrida em 2008, trata-se de facto conhecido pela Ré desde 12.09.2016, data anterior à notificação da data designada para a realização da audiência final. Visto que foi dispensada a audiência prévia, a Ré deveria ter invocado esse facto nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final – a qual foi efectuada por comunicações electrónicas expedidas em 10.07.2017 – pois assim o prescreve o art. 588.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Civil.
Têm, pois, razão os AA. quando pugnam pela intempestividade do articulado superveniente apresentado pela Ré em audiência final, pois o seu conhecimento dos factos ali invocados, num caso é anterior à propositura da causa e no outro deixou precludir o prazo de que dispunha para o efeito.
De todo o modo, observa-se que a A. foi acometida de diversas patologias que concorrem para a incapacidade global que a afecta. Dessas, a lesão do colo do útero não é a mais relevante nem se afigura decisiva para a incapacidade para o trabalho habitual que a afecta – neste aspecto, a rigidez do ombro direito, as lesões da coluna vertebral, as nevralgias e radiculalgias, e as consequências da doença de Crohn, são as impossibilitam o exercício da profissão de funcionária administrativa.
Segundo o relatório pericial, a lesão do colo do útero foi enquadrada na TNI no Capítulo XII, n.º 2.1, al. b) – incompetência cérvico-ístmica do útero ou alterações do muco que causem infertilidade secundária – e atribuída à mesma uma desvalorização de 10%. Ponderando a instrução geral n.º 5, al. d), da TNI[7], relativa ao cálculo do coeficiente global de incapacidade no caso de lesões múltiplas, tal lesão acaba por contribuir para o coeficiente global em apenas 3,706425%, o que revela bem que não foi esta lesão que provocou a invalidez absoluta e definitiva da A..
Neste aspecto, também haverá a notar que, face aos arts. 24.º, 25.º e 26.º do DL 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, passou a exigir-se a ocorrência de nexo de causalidade entre a informação inexacta ou omitida pelo segurado no momento da celebração do contrato de seguro e o sinistro como condição da sua invocação pelo segurador para não cobertura do sinistro.[8]
Em especial, não se detectando factos que permitam afirmar a omissão dolosa na subscrição da proposta de seguro, é tão só aplicável o regime do art. 26.º do citado diploma, cuja característica “é a necessidade de verificação de um nexo causal entre o incumprimento negligente do dever pelo tomador do seguro ou segurado e a divergência entre o risco previsto e o risco real, causando, um dano ao segurador.”[9] Não se detectando esse nexo de causalidade, outra conclusão não resta senão afirmar que a Ré não pode invocar a omissão da intervenção ao colo do útero para recusar a cobertura do sinistro – isto se se admitisse que invocou essa omissão atempadamente, o que também não é o caso.

Da relação trilateral formada entre a Seguradora, o Banco e os Segurados e da sub-rogação legal destes
A propósito do direito do segurado neste tipo de seguros a exigir o cumprimento do contrato de seguro pelo segurador, quando se verifique o sinistro, o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido o seguinte:
- Enquadra-se na categoria de contrato-quadro seguido da celebração de contratos individuais de seguro, aquela em que “o banco contrata com o segurador os parâmetros dentro dos quais irão celebrar-se os contratos individuais de seguro sobre a vida dos seus clientes, que estes últimos celebrarão com o propósito de os dar em garantia ao próprio banco. Nesta relação trilateral o banco mutuante/tomador do seguro é o beneficiário directo do seguro que cobre a primeira morte ou invalidez total e permanente dos mutuários/pessoas seguras. Mas também cada um destes últimos é beneficiário do seguro em caso de morte ou de invalidez total e permanente de um dos segurados – assim como no caso da sua própria invalidez total e permanente – na medida em que a liquidação das importâncias seguras o desonera perante o banco mutuante” – Acórdão de 03.11.2016, Proc. 3248/09.9TBVCD.S1;
- “Tratando-se de um seguro de grupo contributivo, com função de garantia, até conhecida do segurador, o aderente não pode ser concebido como um mero terceiro, totalmente alheio à relação contratual entre as partes do contrato de seguro: (i) primeiro, porque das próprias declarações desse terceiro resultará o complexo de riscos assumidos pelo segurador; (ii) segundo, porque a própria actuação do segurador desempenha um papel relevante na formação do vínculo entre o tomador do seguro e o aderente; e (iii) por fim, porque é o terceiro aderente quem assume o dever de pagar, no todo ou em parte, o prémio. A prestação do segurador, embora tenha como destinatário formal a instituição de crédito, visa extinguir a dívida que ainda onerar o aderente no momento do sinistro, sendo este ou também este que retira o benefício material ou económico da prestação” – Acórdão de 13.09.2016, Proc. 1445/13.1TVLSB.L2.S1.
O art. 592.º, n.º 1, do Código Civil prescreve que o terceiro que cumpra a obrigação alheia fica sub-rogado nos direitos do credor, quando estiver directamente interessado na satisfação do crédito.
Antunes Varela[10] nota que está aqui em causa “um interesse próprio na satisfação do crédito, excluindo os casos em que o cumprimento se realize no exclusivo interesse do devedor ou por mero interesse moral ou afectivo do solvens. Dentro da rubrica geral do cumprimento efectuado no interesse próprio do terceiro cabem não só os casos em que este visa evitar a perda ou limitação dum direito que lhe pertence, mas também aqueles em que o solvens apenas pretende acautelar a consistência económica do seu direito.”
Pode, pois, dizer-se que tem interesse directo “quem é ou pode ser atingido na sua posição jurídica pelo não cumprimento e pretenda, precisamente evitar essas consequências.”[11]
No caso, sendo os AA. terceiros interessados no cumprimento da prestação garantida pela Ré Seguradora, na medida em que assim se desoneravam do mútuo contraído perante o Montepio Geral, deve entender-se que, face àquela disposição legal, ficaram sub-rogados nos direitos do Banco, quer relativos às prestações vencidas após a reclamação do sinistro (€ 15.915,72), quer ao remanescente em dívida na data em que venderam o seu imóvel (€ 235.684,67).

Em resumo, concluindo-se pela ocorrência do sinistro coberto – invalidez absoluta e definitiva – e pela inexistência de fundamentos para recusar a sua cobertura, a causa procede por sub-rogação legal dos AA., embora apenas na medida do capital seguro e que se encontra documentado na apólice apresentada nos autos: € 245.254,76.

Decisão.
Destarte, no provimento do recurso, revoga-se a decisão recorrida e condena-se a Ré a pagar aos AA. a quantia segura de € 245.254,76.
Custas na proporção do decaimento.

Évora, 12 de Julho de 2018
Mário Branco Coelho (relator)
Maria Domingas Simões
Isabel de Matos Peixoto Imaginário (com a seguinte declaração de voto):
“Vencida quanto ao montante da condenação.
Afigura-se inexistir fundamento para condenar a Ré no pagamento de quantia que corresponde ao capital inicialmente seguro, a importância segura a 26/11/2009 (cfr. facto provado n.º 9), ainda que por redução das quantias efectivamente pagas pelos AA. ao Banco mutuário (sendo certo que o reembolso antecipado do empréstimo implica, desde logo e por força de regime imperativo, o pagamento de comissões e de imposto de selo sobre essas comissões). Antes importa atentar que a Ré seguradora se obrigou a pagar ao beneficiário o capital seguro à data do acontecimento que consubstancie o sinistro (cfr. facto provado n.º 12), sendo certo que se apurou que o capital em dívida, a 26/02/2015 (mês em que se fixou a incapacidade da A.), se cifrava na quantia de € 243.811,93.”

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[1] Cfr. os Acórdãos da Relação de Guimarães de 04.02.2016 (Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1), e do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016 (Proc. 1572/12.2TBABT.E1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, vide por todos os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2016 (Proc. 1274/15.8T8GMR.S1) e de 20.06.2017 (Proc. 1709/13.4TBFLG.P1.S1), ambos publicados no mesmo endereço da DGSI.
[3] Neste sentido se pronunciaram os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.2010 (Proc. 1583/06.7TBPRD.L1.S1), de 18.09.2014 (Proc. 2334/10.7TBGDM.P1.S1), de 27.09.2016 (Proc. 240/11.7TBVRM.G1.S1), e de 14.12.2016 (Proc. 1724/11.2TVLSB.L1.S1), igualmente publicados em www.dgsi.pt.
[4] Definição do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.03.2011 (Proc. 313/07.0TBSJM.P1.S1), publicado no mesmo local.
[5] Proc. 153/08.0TCGMR.G1, também na base de dados da DGSI.
[6] Igualmente disponíveis em www.dgsi.pt.
[7] O texto integral desta instrução geral é o seguinte: “No caso de lesões múltiplas, o coeficiente global de incapacidade é obtido pela soma dos coeficientes parciais segundo o princípio da capacidade restante, calculando-se o primeiro coeficiente por referência à capacidade do indivíduo anterior ao acidente ou doença profissional e os demais à capacidade restante fazendo-se a dedução sucessiva de coeficiente ou coeficientes já tomados em conta no mesmo cálculo. Sobre a regra prevista nesta alínea prevalece norma especial expressa na presente tabela, propriamente dita.”
[8] Assim se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 20.01.2014 (Proc. 4448/10.4TBMTS.P1), publicado em www.dgsi.pt.
[9] Joana Galvão Teles, in Deveres de Informação das Partes, págs. 40/41, disponível na Internet em https://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/MLR_MA_13702.pdf.
[10] In Das Obrigações em Geral, vol. II, 4.ª ed., págs. 332/333.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2013 (Proc. 749/08.0TBTNV.C1.S1), também na base de dados da DGSI.